2006 – Milão – Trento – Stuttgard
Essa viagem veio a ser de turismo sem nenhum compromisso acadêmico acompanhado também pela Inez que cultivava um enorme prazer em viajar. Mais do que eu, mas sinto ainda hoje, depois de seis anos da sua partida, um enorme prazer por lhe ter proporcionado essa satisfação. O roteiro começou em Porto Alegre para em São Paulo voarmos até Milão. Do aeroporto um “ônibus nos deixou na estação do trem em Milão. Embarcamos no trem regional e, passando por Bérgamo, para na estação central de Verona baldearmos e seguirmos até Trento. Tínhamos reservado por uma semana uma vaga no hotel Dolomiti em Vattaro. Como não conhecíamos nada do Trentino, achando que Vattaro ficava nas redondezas de Trento, tivemos uma surpresa ao pedir que um taxista nos levasse para o hotel. Ele nos olhou quase como que espanto e disse: “Vattaro fica lá nas montanhas”. Não tínhamos outra alternativa senão pedir que nos levasse para lá, imaginando que a viagem importaria num pequena fortuna. Antes de perguntar pelo preço da corrida ele propôs levar-nos, se não me engano, por 35 euros. Fiquei agradavelmente surpreso pois, calculara que a corrida custaria em torno de 70 a 80 euros. Embarcamos e na entrada da noite depois de subir as montanhas, nos apresentamos ao escurecer no hotel Dolomitti. O quarto ficava no último andar com vistas para a encosta das montanhas. A primeira surpresa foi o hotel “Alpenrose” no outro lado da rua principal e, na encosta e mais adiante, a floresta de pinheiros escalando a muralha das dolomitas. O nome daquele hotel e as montanhas como fundo fizeram-me viajar, de um lado, pela história recente da região e do outro pela história contada em milhões de anos da gênese geológica daquele cenário.
As dolomitas, como já lembramos mais acima formam o segmento oriental do complexo da cordilheira dos Alpes no norte da Itália. Predominam nas províncias de Belluno, Bolzano, Trento, Udine e Pordemone. Seu ponto mais alto encontra-se em Belluno no Momolade com 3.343 metros de altitude. Há 250 milhões de anos essas montanhas estavam submersas no mar. Com a retirada deste terminaram por assumir a geomorfologia que hoje as caracteriza. Basicamente trata-se de rochas calcárias compostas numa dosagem equilibrada de carbonato de magnésio e carbonato de cálcio. Os solos que resultaram da decomposição dessas rochas pela ação do tempo são propícios para o cultivo de vinhedos, maçãs, pêssegos, peras, ameixas e outras. Vattaro localiza-se a cerca de 450 metros de altitude próximo a Calurânica no lago de Caldona e Vígolo.
A cidade como tal não oferece maiores atrações. Mas as trilhas em meio às florestas que sobem até o sopé das montanhas vem a ser o cenário ideal para quem aprecia caminhar sem compromisso nem de hora, nem de distância, como era o nosso caso. A Inez vinha a ser a companheira perfeita para degustar as surpresas que nos aguardavam em cada curva daquelas trilhas. Na meia encosta um rebanho de cabras pastava num pasto cercado por uma tela de arame. Ao nos perceberem vinham correndo pedido um carinho encostando o nariz ou a cabeça nas malhas da cerca. Um cercado do lado abrigava uma dezenas de búfalos americanos. Ignorando a nossa presença continuavam pastando e ruminando sem nos dar a mínima importância. A brisa vinda da penumbra das florestas oxigenava os pulmões fazendo com que não se sentisse cansaço e de troco revelavam que a natureza não vem a ser apenas um conjunto de milhares e milhões de árvores, arbustos, insetos, pássaros e inúmeras outras criaturas e a sinfonia dos sons, mas fala uma linguagem que revela muitos significados que não estão escritos em livros.
Para o segundo dia o dono do hotel levou-nos até Vigolo cerca de 4 quatro quilômetros de Vattaro. O motivo principal para conhecer essa cidadezinha, foi o fato de ser a cidade natal da santa madre Paulina que emigrou para São Paulo fixando-se com outras religiosas no bairro Ipiranga onde fundaram a obra “Sagrada Família”, destinada a abrigar antigos escravos depois da abolição. O nome de batismo da santa foi Amabile Lúcia Visintainer, nascida em 1865 em Vígolo e falecida em 1942 em São Paulo e canonizada em 2002 pelo papa João Paulo II. Vale acrescentar que ela nasceu na região hoje conhecida como Alto Adige antigo Tirol do Sul incorporado à Itália e 1920, depois da derrota e desmoronamento do Império Áustro Húngaro. Fizemos uma visita rápida à casa onde nasceu a santa para depois subir a encosta da montanha e almoçar num restaurante na beira de uma estrada de chão que ligava outras localidades mais para o norte. Pela meia tarde voltamos a pé até o hotel em Vattaro
No terceiro dia o dono do hotel nos levou até uma trilha de mato que ligava Vattaro a Caluranica al Lago, junto ao lago Caldona ou Caldonazzo. Não havia grande novidade a ser visto além do lago. Depois de um almoço na beira do lago, descansamos um bom tempo num banco de frente para o lago para depois voltarmos a pé a Vattaro, não pela trilha no mato mas por um estrada de chão que beirava pomares de maçãs maduras. Apesar de as pencas quase tocarem o barranco da estrada nenhum transeunte as colhia. Admirei o respeito daquela população pela propriedade alheia e, automaticamente me imaginei algo semelhante no Brasil. Pelo fim da tarde voltamos por um atalho até o hotel. Num arroio de bom porte que cruzava a trilha do atalho, podiam-se observar as trutas nadando na água cristalina.
Para o quarto dia programamos, por sugestão do dono do hotel uma viagem até Veneza. Ele nos levou até a estação do trem regional perto do lago. Não me lembro ao certo quanto tempo levamos. Entramos na estação da cidade pela meia manhã e começamos a circular a pé pela cidade conhecida por qualquer pessoa razoavelmente informada como a cidade dos canais. A história dessa cidade começou com o povoamento das 117 pequenas ilhas pela movimentação da migração dos povos germânicos vindos do norte e do centro da Europa. Quando os ostrogodos e lombardos expulsaram os primitivos habitantes do Vêneto estes refugiaram-se nas ilhas da região pantanosa da foz do Pó. Como pescadores e extratores de sal moravam em palafitas até que em 421 d.C. os romanos fundaram a cidade construindo-a sobre as ilhas e pântanos da foz do Pó. Em 476 d. C. Odoarco nascido na Panônia na Áustria mas servindo no exército romano destronou Rómulo Augusto, selando o fim do império romano do ocidente. Não é aqui o lugar para detalharmos em minúcias essa história pois, levaria muito longe e nos desviaria do nosso objetivo. A pergunta que merece ser lembrada refere-se às técnicas utilizadas para construir a cidade com sua imponente arquitetura naquelas ilhotas e na lama que as rodeava. Para tanto os construtores foram buscar nas florestas próximas troncos de árvore de 2 a 8 metros de comprimento. Numa extremidade as apontavam como um lápis e as mergulhavam em pé no lodo. Sobre esse fundamento foram construídas as edificações. Mergulhadas na água salgada e na lama composta de areia e argila as toras não se decompuseram. Pelo contrário endureceram e por assim dizer petrificaram tornando-as sempre mais sólidas com o correr dos séculos. O estilo das construções, palácios, residenciais, igrejas com destaque para o complexo que circunda a praça de São Marcos e seu ícone a basílica de São Marcos, vem a ser rico e muito variado, com predominância do gótico. Os canais em vez de ruas e avenidas com destaque para o “grande canal”, as gôndolas transportando as pessoas, manobradas por peritos, os “gondoleiros” que gozam de um status respeitado pela população residente e uma curiosidade a mais para os turistas. Nas poucas horas que percorremos a cidade deu apenas para formar uma ideia muito superficial de suas belezas com destaque para a praça de São Marcus. Pela meia tarde embarcamos no trem de volta para Vattaro. Chegamos ao anoitecer na estação perto do lago Caldona. Como não localizamos nenhum taxi que nos levasse ao hotel em Vattaro, apelamos por telefone para o dono do hotel que sem demora nos atendeu e nos veio buscar. No intervalo da espera a Inez ficou praticando seu italiano com o casal que nos emprestou o telefone numa residência próxima, enquanto eu passei o tempo descansando e refletindo sentado num banco da praça. Aquele mergulho na história de Veneza e de cobro na história de um milênio em que o norte da Itália consolidou sua fisionomia humana e geográfica de hoje, por si só, teria valido a viagem.
Dedicamos o último dia em Vattaro para descer de ônibus até Trento a fim de acertar a segunda etapa da viagem. Depois de comprar a passagem de trem por Munique a Stuttgard. Passamos o resto da manhã e metade da tarde visitando alguns pontos de importância histórica. Antes de entrar em detalhes resumo a tumultuada história dessa cidade como passagem do norte da Itália, via Passo do Brenner, para a Europa central do norte. Trentino-Alto Adige ou Trentino Südtirol vem a ser uma paisagem única formada por montanhas cobertas de neve, extensos vales, pastagens alpinas, florestas escuras, cachoeiras e lagos. Sua importância resume-se no fato de ser passagem pelos dolomitas ou Alpes orientais, do norte da Itália para a Europa. A história da região começa a esboçar-se a.C. com a civilização Rética sob o domínio dos Celtas. A ocupação romana começa pelo ano de 81 a.C. para intensificar-se ao ponto de Trento ser elevado à categoria de Município autônomo por volta de 50 a.C. Esse dado tem um significado importante porque o Império Romano na sua estrutura político administrativa contava na sua base os municípios, por essa razão é conhecido pelos historiadores como Império Municipal, no qual as diversidades étnicas, raciais e culturais costumavam ser preservadas. Mas essa é uma questão que extrapola aqui o nosso objetivo. Por volta de 15 a.C. Druso e Tibério completaram a ocupação romana transformando a região num importante centro da expansão da “romanidade” antiga. Com o colapso do Império Romano do ocidente, começou pela Idade Média adentro uma disputa movimentada pela posse do território protagonizada principalmente pelos Ostrogodos, Lombardos e Francos. A partir do século X a região passa para o domínio do Sacro Império Romano Germânico. Data desse período o nome “Trient” para designar o Trento de hoje. A partir de 1802 a região foi alvo da ocupação napoleônica do norte da Itália. Os tiroleses sob a liderança de Andreas Hofer ofereceram uma feroz resistência até serem levados de roldão pelos invasores em 1809. Pagaram um alto preço pela resistência e o patriotismo. Andreas Hofer foi capturado e executado pelos invasores do grande Corso em Mântua em 1810. Posteriormente seus restos morais foram levados para Innsbruck e sepultados na Hofkirche. Andreas Hofer permanece até o hoje como o herói mais importante do Tirol na resistência contra a invasão das tropas de Napoleão e figura importante nos embates bélicos que marcaram a história da região no começo do século XIX. A derrota de Napoleão na Rússia levou ao restabelecimento do Império Austro-Húngaro. Depois da desintegração do Império Austro-Húngaro na primeira guerra mundial, Trento com o Tirol do Sul passou para a jurisdição italiana. O resultado foi uma “italienização” do território com uma resistência muito forte da parte dos tiroleses do sul. No período do fascismo na Itália Mussolini apertou o cerco aos renitentes com uma campanha forçando a integração linguística e cultural na comunidade italiana, uma campanha muito parecida com a Campanha de Nacionalização implantada na mesma época no Brasil.
Além da sua importância geoestratégica Trento serviu também de sede do Concílio de Trento reunido para definir os rumos da Igreja Católica frente ao impacto da Reforma Luterana e Calvinista, por isso é conhecido também como Contra Reforma. Convocado pelo papa Paulo III em 1545 e concluído em 1563 por seus sucessores. Sua realização se deu no convento da cidade e foi o 19 concílio da história da Igreja. Seus objetivos principais foram a reafirmação dos dogmas, a defesa dos sacramentos, o latim como língua litúrgica, a manutenção do celibato clerical, a disciplina religiosa a correção de desvios da Igreja como a compra de indulgências além da expansão do catolicismo no mundo ocidental e, principalmente, implantação de missões entre os povos que vinham sendo descobertos e localizados pelas rotas comerciais para o oriente remoto, as ilhas do Pacífico e as três Américas. Para o sucesso da obra missionária a Igreja dispunha, por assim dizer, da “tropa de assalto” da Companhia de Jesus fundada em 1540 por Santo Inácio de Loiola e aprovada pelo papa. Como se pode deduzir o Concílio de Trento deu a partida para uma nova era para o catolicismo. Nos 300 anos que seguiram, isto é, até meados do século XIX, não poucos desvios foram-se consolidando na doutrina e disciplina eclesiásticas motivadas pela revolução do pensamento no contexto do “Modernismo”. Esses desvios acumulados até meados do século XIX levaram Pio IX a dar partida a uma nova reforma da Igreja conhecida como Restauração Católica, objetivo central para convocar o Concílio Vaticano I em 8 de dezembro de 1869 e interrompido pela guerra franco-prussiana em 18 de dezembro de 1870. Os debates tiveram como foco os problemas e desvios acumulados na Igreja pelo Racionalismo, o Liberalismo, o Materialismo, a Infalibilidde do Papa, a disciplina eclesiástica e outros desvios acumulados nos 300 anos depois do Concílio de Trento. Para as resoluções e os respectivos documentos oficiais do Concílio Vaticano I serviram de base para a definição oficial do perfil desenhado pela doutrina e a disciplina do Concílio de Trento. Essa redefinição do papel da Igreja no contexto do mundo moderno ficou conhecido como “Restauração Católica”. Não é minha intenção entrar, aqui nesse contexto, numa análise mais detalhada dessa reforma. Para quem estiver interessado no tema e sua importância para toda a Igreja, também para o Brasil, recomendo meu livro “Jesuítas no sul do Brasil – o Projeto Pastoral, Edit. Unisinos, 2013.
Acertada a passagem de trem, via Munique a Stuttgard voltamos a Vattaro para reunir nossos pertences de na manhã seguinte descer até Trento em embarcar no trem e seguir viagem. Mais acima já lembrei que o trem para a Alemanha passou por um panorama histórico de importância complementar ao do Trentino. Cruzamos a cidade de Bolzano (Botzen) e Bressanone (Brixen), região conhecida também como a região dos “dois nomes” pois, as placas de sinalização ao longo da estrada costumavam ser em alemão e italiano. A explicação resume-se no fato de que estamos no Tirol do Sul pertencente à Áustria até sua incorporação à Itália em 1919, com a derrocada do Império Áustro-Húngaro. A maioria da população continua até hoje fiel às tradições e à língua de sua origem germânica. Prometo mais detalhes sobre essa região mais abaixo ao descrever a viagem que a Inez e eu fizemos a Bozano em 2007. Depois de passar por Bressanone subimos as dolomitas até o Passo do Brenner, divisa da Itália com a Áustria para de lá descermos pela encosta dos Alpes até Innsbruck ainda na Áustria e de lá até Munique. Na estação central de Munique baldeamos para o trem até Stuttgard passando por cidades histórica como Ulm com sua catedral gótica e Regensburg. Chegamos ao destino no fim da tarde. Depois de uma viagem de metrô de poucos minutos nos apresentamos no hotel onde nos esperava o Paulo e sua companheira Rina vindos da Inglaterra para passar dois dias conosco. Voltamos depois ao centro da cidade para jantar na avenida principal.
Stuttgart vem a ser a capital do estado Baden-Würtenmberg. O nome vem do alemão antigo “Stuordgarten” e significa “haras” pois a cidade se desenvolveu a partir das cavalariças do duque Lindolfo. Não é aqui o lugar de detalhar a gênese histórica do estado de Baden-Würtemberg e sua capital Suttgart. É importante lembrar que daquele estado no sudoeste de Alemanha emigrou significativo número de imigrantes para o Brasil. Tanto assim que deram os nomes a comunidades no Rio Grande do Sul como “Badensertal” hoje distrito do município de Tupandi com o nome de “Júlio de Castilhos”, ou a cidade “Neu Würtemberg na Serra rebatizada durante a Campanha de Nacionalização para Panambi.
Stuttgart é conhecida também pelos grandes parques e áreas verdes nas suas redondezas e na própria cidade. Um dos motivos porque a cidade é conhecida pelo mundo afora vem a ser o fato de ser o berço da indústria automobilista. No final do século XIX Gottlieb Daimler e Carl Benz desenvolveram paralelamente os primeiros motores a gasolina e diesel protótipos de todos os demais que seguiram depois. A fusão posterior das duas marcas deu origem aos carros talvez mais desejados pelo mundo afora identificados com a emblemática estrela de três pontas. A primeira versão dessa estrela dada pelos criadores da marca sinalizava para o desenvolvimento de motores para serem usados em terra, mar e ar. Às três pontas foi acrescentado em 1923 o círculo e três anos depois da fusão das empresas foi acrescentada a coroa de louro. A versão definitiva hoje conhecida por qualquer pessoa pelo mundo afora, data de 1 933 e a partir daí não sofreu nenhuma alteração. Na periferia de Stuttgart a Mercedes-Benz construiu um monumental museu. Resolvemos dedicar uma manhã para visita-lo junto com o Paulo. O edifício consta de 9 andares e resume-se na história da empresa desde a sua fundação até hoje com a exibição dos modelos dos mais antigos aos mais recentes. Foi uma manhã cheia de emoções e surpresas além de uma aula não só da empresa em como do seu significado em grandes linhas dos acontecimentos históricos da Alemanha nos últimos 100 anos. Naquela tarde acompanhamos o Paulo até o aeroporto onde embarcou no voo até Londres.
A Porsche vem a ser outra empresa de fama mundial dos seus carros com sede em Stuttgard. Embora não a tenhamos visitado merece alguns comentários e curiosidades que podem interessar aos amantes de carros de alta categoria.
Para o último dia em Suttgart programamos conhecer o centro da cidade com o objetivo principal fazer uma visita ao IFA - Institut für Auslandsbeziehungen que concentra em grande parte a produção bibliográfica e documental dos alemães no estrangeiro, desde emigrantes, passando por cientistas, viajantes, aventureiros e por aí vai. Pelo final da tarde embarcamos no trem para Frankfurt e voltar para casa. E assim terminou mais uma viagem para o velho mundo na melhor companhia que poderia escolher, minha Inez a inesquecível parceira da minha vida. “Requiescat in Pace.”- “Descansa na paz do Senhor”.