2005 Roma- Praga
Essa quinta viagem, também em companhia da Inez, teve dois objetivos principais. O primeiro foi conhecer Roma e o segundo participar de mais um simpósio no Instituto Ibero americano na universidade Carolina em Praga. A viagem de Porto Alegre – São Paulo – Frankfurt – Roma foi tranquila. Em Roma o Paulo vindo da Inglaterra nos esperava no hotel. Ele ficaria somente três dias conosco. Para começar alugamos um carro e viajamos até Assis cidade que a Inez sempre mostrou vontade de conhecer, para visitar a basílica e o túmulo de São Francisco de Assis. Foi um dia cheio de emoções pelo significado histórico que São Francisco significou e continua significando para a Igreja Católica. No dia seguinte visitamos com o Paulo alguns pontos turísticos de Roma e à tarde o acompanhamos até o aeroporto onde embarcou de volta para a Inglaterra. No terceiro dia foi a vez de visitar os monumentos remanescentes do tempo do império romano com seu ícone o Coliseu. Começamos a jornada com uma breve parada na “Fontana di Trevi seguindo depois até o centro histórico da antiga Roma. Caminhando por entre os testemunhos históricos do que foi o cenário e epicentro do maior império do ocidente a partir de cerca de 800 anos a.C. a 476 d.C., quando Rômulo Augusto, o último imperador do Império Romano do Ocidente foi destronado e substituído por Odoarco chefe da tribo germânica dos Hérulos. Este, por sua vez foi derrotado por Teodrico em 488 em Aquileia, em 489 em Verona e em 490 começou o cerco a Ravena.
Envolto nas brumas dos séculos desfilaram pela minha memória a lenda fundadora de Roma de Rômulo e Remo sendo amamentados por uma loba e as sete aldeias de pastores Sabinos subjugados pelos Etruscos, reunindo-as numa Cidade-Estado. Na sequência associaram-se os Itálicos nativos da península somados aos Helenos emigrados da Grécia. Estavam assim postos os fundamentos étnicos, culturais e políticos da República Romana. A amálgama dessas três vertentes se consolidaria na “Romanidade”, obedecendo ao ritmo e às leis que comandam a dinâmica histórica a médio e longo prazo. Naquele cenário no qual ecoavam na lembrança os discursos inflamados de Catão o Velho repetindo no plenário em silêncio a sua declaração mais famosa: “ceterum censeo, Cartago esse delenda” ou “repito mais uma vez, julgo que Cartago deve ser destruída”. Podem-se ouvir também os gritos de desespero dos moradores de Roma, gritando com a aproximação do exército de Aníbal: “Hannibal ante portas – Anibal diante das portas!”. Foi nesse cenário também em que Cícero pronunciou as imortais Catilinárias, discursos de acusação no processo contra Catilina. “Quo usque tandem Catilina abuteres patientia nostra. Até quando Catilina abusarás da nossa paciência?” Nos círculos literários liam-se e declamavam-se as obras dos clássicos como as Eclogas, Georgicas e Eneida de Virgílio; As Odes, Ars Política e Sátiras de Horácio; Heroides, Ars Amatoria, Amores de Ovídio; De Germania de Tácito; As Comédias de Plauto; De Bello Galico e De Bello Civile de Cesar; a Historia Naturalis de Plínio, o Velho; o relato ao imperador Trajano sobre os cristãos da Bitínia e o Ponto (atual Turquia) onde era governador.
Senti uma sensação estranha ao entrar no Coliseu cenário dos espetáculos de crueldade desumana dos gladiadores ou pessoas lutando com leões e a plateia aplaudindo embriagada pelas cenas de horror que aconteciam na arena. Não se podem esquecer os espetáculos apoteóticos da entrada triunfal dos combatentes voltando vitoriosos dos campos de batalha pelo Império afora, as pistrinas ou moinhos manobrados por escravos. Em resumo, foram esses os pensamentos e imaginações que me acompanharam todo aquele dia em que percorremos o cenário do centro de poder de um Império consolidado durante 12 séculos e que legou o código do Direito Romano, até hoje uma das bases do ordenamento jurídico da cultura ocidental.
O dia seguinte foi todo reservado para visitar o Vaticano. Desembarcamos no terminal do ônibus para entrar na “Via della Conciliatione” avenida que dá acesso à praça de São Pedro. A vista do conjunto com a colunata de Bernini abraçando a praça, no fundo a catedral de São Pedro e no centro da praça o emblemático obelisco, formam um cenário que definiria como belo grandioso, tanto pela amplitude do espaço quanto pelo estilo arquitetônico da colunata e no centro a majestosa catedral encimada pela imponente cúpula conhecida em todo mundo. Vamos por partes para não embaralhar a harmonia daquele cenário conhecido pelo mundo afora como o símbolo maior da história da Igreja Católica Romana. O obelisco no centro da praça merece algumas observações. O monobloco de granito vermelho de Assuã de 40 metros de altura foi buscado pelo imperador Calígula, pelo que se deduz originário de Heliópolis do templo de Pilone de Rá durante o reinado do faraó Amenemés II. A intensão de Calígula foi erguê-lo no centro do novo circo sendo por ele construído em 37 d.C. Naquele circo São Pedro seria martirizado e por isso o obelisco seria preservado no local original quando da demolição do circo de Calígula. Não há sinais de hieróglifos egípcios apenas uma dedicação dos imperadores Augusto e Tibério mandados gravar por Calígula. Em 1586 o papa Sixto V mandou remover o obelisco para o centro da praça de São Pedro. A bola de ouro contendo as cinzas de Júlio Cesar foi retirada do topo e transferida para o museu de Roma. Em 1660 Bernini construiu as colunatas em volta da praça de São Pedro.
O seguinte passo foi a visita ao interior da basílica de São Pedro. Não é possível descrever as emoções que tomam conta do visitante ao percorrer aquele enorme templo com o altar mor, sustentado pelas quatro coluna emblemáticas, erguido sobre o túmulo do apóstolo escolhido a dedo pelo próprio Cristo, encarregando-o para consolidar os fundamentos da sua Igreja que, apesar dos pesares mantêm-se em pé há mais de 2000 anos. Com toda a justiça é preciso reconhecer a validade expressa na canção do mundo católico: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Depois de uma caminhada pelo restante da basílica foi o momento de descer ao subsolo e caminhar entre as fileiras de dezenas de sarcófagos dos papas entre eles autênticos santos e outros nem tanto. Não nos cabe emitir juízos sobre os que lá jazem pois, é preferível adotar o ditado: “De mortuis nihil nisi bonum” – “Dos mortos só se lembrem coisas boa” e, se não há nada a louvar sugiro recorrer a outro ditado: “Louvar não posso, criticar não devo, por isso calo-me”. Em seguida foi a vez de dar uma passada na Capela Sixtina, palco dos encontros da cúpula da Igreja como sínodos e concílios para garantir a Fé, a disciplina e diretrizes pastorais para toda a Igreja. Nesse recinto acontece também a reunião dos cardeis por ocasião da escolha de um novo papa.
Depois da Capela Sixtina foi a vez de dar uma rápida passagem pelos museus do Vaticano. Depois de almoço na Via della Conciliatione a Inez e eu fomos acomodarmos na escadaria à esquerda da entrada da basílica para observar a movimentação na praça e mais uma vez admirar o obelisco no centro. A última programação daquele dia memorável foi uma visita à “Pietá” no seu recinto vigiado com o rigor que merece sua importância como obra de arte mas, principalmente, pelo significado histórico para a Igreja e, porque não, para a tradição judaico-cristã como um todo.
Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra, melhor, buscado no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, símbolo da revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore.
Depois da visita à Pietá descemos a Via della Consolatione até o castelo do Anjo na margem direita do Tibre. Não deu para entrar pois estava fechada para a visitação pública. O Castelo do Anjo começou a ser construído pelo imperador Adriano em 135 e concluído por Antonino Pio em 139. Sua finalidade inicial foi servir de mausoléu da família imperial mas passou a abrigar instalações militares. Durante a peste que dizimou a população de Roma, o papa Gregório teve a visão de um anjo acima do castelo colocando a espada na bainha, sinalizando o fim da epidemia. Durante a Idade Média serviu de fortaleza para os papas e nos movimentos de unificação como prisão. Descansando num banco à beira do Tibre repassei mais uma vez na memória a história do Império Romano e seu significado para a história posterior da civilização do ocidente, suas conquistas, sua expansão por todo Mediterrâneo e mais além, sua estrutura política e militar e, de modo especial a legislação que ainda hoje pode ser encontrada como base e referência do Direito, também do Brasil. O final da tarde foi dedicado a uma rápida passada pela praça do Quirinal e seu conjunto de palácios e residência do presidente italiano. Em tempos passados foi residência de verão dos papas e é uma das sete colinas sobre as quais se consolidou a cidade de Roma.
No dia seguinte viajamos de trem para uma vista à histórica à cidade de Tívoli nas proximidades de Roma. Pela sua importância histórica e arquitetônica foi declarada patrimônio mundial da humanidade. Passamos o dia percorrendo as ruas e ruelas da cidade com vistas para a planície em direção a Roma. Dois ícones arquitetônicos envolvendo testemunhos e personagens da história que começa com o imperador Adriano que mandou construir a Villa Adriana, um complexo residencial imperial no século II d. C. Durante a Idade Média a Villa Adriana foi saqueada sobrando praticamente somente ruínas. No século XVI o filho de Lucrécia Borgia, neto do papa Alexandre VI, construiu a Villa d`Este utilizando o material que sobrou da Villa Adriana. Quem se empenhou de modo decisivo nessa obra foi o cardeal Ippolito decepcionado por não ter sido eleito papa. Como prêmio de consolação foi nomeado governador de Tívoli. Acomodados num banco na sombra de grandes árvores, frente a frente à cascata que, por assim dizer, brota dos fundamentos da Villa, mais esse fragmento da história enriqueceu e fez valer a viagem a Roma.
Com a visita a Tívoli estava concluída a programação de visitas a Roma e na manhã seguinte voamos do aeroporto de Roma até Praga onde no dia seguinte me cabia falar sobre a imprensa em língua alemã no sul do Brasil em mais um encontro de historiadores no Instituto Ibero-americano da universidade Carolina. Detalhes Sobre a universidade, a cidade e seus monumentos e parque, já foram lembrados mais acima quando da primeira viagem a Praga. Encerrada a programação oficial do simpósio programamos para o dia seguinte uma viagem de trem até a cidade de Bad Schandau nas margens do Elba a meio caminho de Dresden na Alemanha. Não visitamos Dresden por que não havia como retornar no mesmo dia a Praga pois na manhã seguinte embarcaríamos no trem para Munique e, como dispúnhamos de apenas de um dia, conhecer pelo menos o centro da capital da Baviera. A primeira caminhada foi para a imponente catedral. O que mais chamou a minha atenção foi o memorial com a sepultura dos arcebispos da diocese. Paramos uns bons minutos na frente da lápide do cardeal Michael Faulhaber, arcebispo de Munique no período do regime nazista. Ficou famoso pela sua oposição corajosa ao nacional socialismo. Hitler e sua Gestapo não tiveram a ousadia de prendê-lo e confina-lo num campo de concentração por temerem uma reação em massa não só de Munique como da Baviera toda predominantemente católica. Só para lembrar, uma situação semelhante enfrentaram os nazistas na capital da Vestfália com o cardeal Clemens von Gallen, conhecido como o “Leão de Münster”. Depois da visita a catedral foi a vez de localizar numa rua próxima a igreja dos jesuítas com o “Bürgersal” para fazer uma oração junto ao túmulo do Pe. Rupert Meyer, conhecido como apóstolo de Munique. Na primeira guerra mundial ele servira como capelão na frente de combate na França onde perdeu uma das pernas. Pelo seu heroísmo e dedicação aos combatentes foi distinguido com a Cruz de Ferro, a mais alta condecoração concedida aos heróis nacionais. Durante o período do nacional socialismo considerado como inimigo do regime por presidir uma Congregação Mariana de 6000 homens e Munique e sem temor desfilava com eles, feitos uma tropa de assalto pelas ruas de Munique. Sabia perfeitamente que suas homilias e sermões era vigiadas pela polícia do regime mas, não se intimidou até ser preso e confinado no mosteiro de Ettal. Terminada a guerra voltou a dirigir a Congregação de homens até que em primeiro de novembro de 1945 foi acometido por um enfarte fulminante em plena homilia no púlpito da igreja dos jesuítas onde se encontra sepultado. A fama do heroísmo do Pe. Meyer fez dele um exemplo de vida e continua sendo, passados mais de 70 anos. Depois de uma passada rápida pela universidade Maximilian nos recolhemos ao hotel Itália para no dia seguinte viajar de trem até o aeroporto de Frankfurt. Depois de uma viagem tranquila até São Paulo, Porto Alegre, São Leopoldo foi concluída também essa viagem tão cheia de surpresas e vivências carregadas de simbolismos e rica em novos conhecimentos.