Da Enxada à Cátedra [ 98 ]

O Entardecer

Na medida em que a vida avança e os anos se somam em décadas, uma depois da outra, a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número, mas em compensação aqueles que perduram, ganham em importância existencial. Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades. Caminhos em muitas direções nos convidavam a percorrê-los. Percebíamos o mundo como um cenário de inúmeras alternativas para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos os nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram em não poucas ocasiões um preço alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos, utopias impossíveis. Opções para darmos rumos à vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos anos. Para não sucumbir em tais situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz com o passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos com as pessoas, da atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e o lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se nessa lógica também situações limites em que a nossa resistência física, psíquica e espiritual, foi posta à prova próxima ao sobre-humano. Se corretamente entendidas e avaliadas, porém, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar, descartar, dar valor ao verdadeiro, e dessa forma converter a “Geschenkte Zeit” – como diriam os nossos antepassados, ou “o tempo que nos ainda é reservado como uma dádiva valiosa” – no coroamento prazeroso dos muitos sonhos que alimentamos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco.

E, para não estagnar em divagações genéricas, julgo oportuno refletir mais a fundo sobre aspetos da minha trajetória não faltando muito para um século, que de alguma forma perpassam subliminarmente, mais nas entrelinhas do que propriamente nas linhas, os registros e as reflexões sobre a caminhada da “Enxada à Cátedra”. Como já mencionei mais acima a minha família, a começar pelos avós e tios, tanto da parte da mãe como do pai vinham a ser profundamente religiosos. Três tias, irmãs do meu pai foram religiosas franciscanas e dois tios sacerdotes e um tio e uma tia irmãos da minha mãe seguiram o mesmo caminho. E a tradição teve continuidade na minha família. Dos oito irmãos dois jesuítas, um seminarista candidato também a ser jesuíta e uma irmã religiosa franciscana. Somando a isso um respeitável número de primos e primas enveredou pelo mesmo caminho. Despertei para a vida respirando essa atmosfera de religiosidade realimentada sem sofrer continuidade pela educação recebida dos pais, as orações diárias antes e depois das refeições e antes de dormir, a catequese na escola, a assistência dominical à missa, somado aos encontros periódicos dos irmãos religiosos, despertou em mim, ainda criança, a vontade evoluindo para uma decisão, de seguir o mesmo caminho. A opção foi-se consolidando durante os quatro anos de frequência da escola comunitária. Ao concluir esse período falei com meu pai e minha mãe da vontade de entrar no seminário dos jesuítas em Salvador do Sul. Concordaram sem restrições mas deixaram claro que no momento em que por uma razão ou outra decidisse voltar para a “enxada” não haveria nenhum problema. Foi assim que em fevereiro de 1942 com 12 anos recém completados, entrei no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul para cursar o ensino médio, o “ginásio” concluído em 1949, então com quase 20 anos. Como também já destaquei mais acima o “ficar padre ou religiosa”, vinha a ser na prática a única via da época para um menino ou menina da colônia de 11 ou 12 anos continuar os estudos. Também já apontei que seguramente 70% ou mais desistiam da vida religiosa e seguiam outro rumo ou voltavam “para a enxada”.

Eu, da minha parte, encontrei no Colégio Santo Inácio tudo do que precisava. Em primeiro lugar uma programação acadêmica inspirada orientada pela “Ratio Studiorum” dos jesuítas oferecendo uma sólida formação acompanhada dos instrumentos indispensáveis para o acesso ao nível superior e partir daí para uma especialização tanto nas ciências naturais, quanto na filosofia, nas ciências humanas, nas letras e artes. Em segundo lugar um corpo docente composto exclusivamente de jesuítas altamente qualificados pelo tirocínio obrigatório a todos os membros da Ordem. Em terceiro lugar espaço mais que suficiente para desenvolver atividades e adquirir conhecimentos complementares à formação formal. Em quarto lugar uma sólida formação religiosa, doutrinária e ascética em vista do cumprimento da missão apostólica a ser cumprida na pastoral, no magistério em todos os níveis e modalidades, na ciência, nas letras ou artes. Em quinto lugar, a rotina do regime de internato exigia uma programação prévia para disciplinar as demandas diárias.

Foi neste contexto da formação no nível médio que foram-se desenhando e consolidando os contornos que moldaram a minha maneira de conceber o homem e sua história incarnada no contexto histórico e geográfico concreto em que me cabia cumprir a minha missão de vida. Como, após o ginásio ou formação no nível médio, entraria na ordem dos jesuítas, uma das características de como cumprir a missão missionária na Igreja, isto é, “A conquista Espiritual” pressupunha uma disciplina como que militar, como descrita por Ruiz de Montoya. Em outras palavras. A Companhia de Jesus, melhor os jesuítas, inspirados no passado militar do seu fundador, o capitão comandante da fortaleza de Pamplona, assumiam-se como brigadas de assalto e conquista a serviço da Igreja tendo como lema: “diversa loca peragrare – percorrer os mais diversos locais do mundo”.

Acontece que um mínimo de disciplina vem a ser a precondição para o êxito em qualquer atividade a que as pessoas se dedicam, desde as mais modestas coletando lixo, fazendo faxina numa casa, cuidando de um a plantação, servindo de ajudante de pedreiro e tantas outras, passando pela imensa gama de profissões liberais, na administração pública e privada, no exercício da política e evidentemente nas forças armadas. Para mim, pelo menos, o elemento disciplina fazendo parte de como lidar com os pequenos e grandes desafios do dia a dia, foi um dos recursos mais importantes para não perder o norte em situações que exigiram correção radical de rota com consequências profundas de curto, médio e longo prazo para o futuro da vida. Para mim os episódios que envolveram o meu desligamento da Ordem dos Jesuítas e a redução ao estado laico, foram a fase mais dramática. Mas esse episódio pretendo detalhar mais abaixo. De qualquer maneira, se no momento em que, aos 94 anos, registro essas recordações, gozo de uma saúde física e, principalmente mental em boas condições, credito-a à velha guarda dos jesuítas e seu modelo de educação ginasial praticado no lendário Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Aos mestres de então minha eterna gratidão e que descansem na paz do Senhor. Guardo na memória com carinho e admiração os nomes e as personalidades de todos eles.

Os 15 anos que se seguiram da formação no nível superior dentro da Ordem aconteceram no mesmo espírito e prática de disciplina que marcou o ritmo do quotidiano do ginásio. Submetido a esse a essa dinâmica dos 12 aos 33 anos o resultado não tinha como ser outro. A disciplina foi-se amalgamando com os demais traços da personalidade, fazendo parte existencial da maneira de ser, como que um estado de espírito. Sem uma disciplina praticada num clima de razoabilidade, deixando espaço pleno à liberdade de escolha de como dar conta das linhas mestras prescritas pelos conteúdos das diversas etapas da formação, dificilmente teriam levado aos resultados pretendidos.

Entre as reflexões ao “entardecer da vida” um segundo fio condutor que foi responsável pelo meu perfil de docente de antropologia, no formato de uma Introdução ao estudo do Homem em duas universidades, nas pesquisas a que me dediquei paralelamente e nas diversas obras que publiquei, nos artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, além de contribuições em simpósios e congressos dentro e fora do país, aparece uma outra peculiaridade. Essas publicações não se concentram ou limitam à temática centrada numa especialidade rigorosamente delimitada ou centrada. São de natureza histórica, antropológica, sociológica, científica, filosófica, inclusive, teológica. A explicação imediata encontra-se na minha formação interdisciplinar já no nível médio, no “ginásio” e, de modo especial no nível superior, nos bacharelados mais acima mencionados, em Línguas e Literatura Clássicas, em Filosofia, em História Natural e Geologia, licenciatura em Teologia e livre docência em Antropologia e doutorado em Filosofia. Tentei mergulhar o mais profundamente em cada um desses vastos e abrangentes campos do conhecimento.

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