Da Enxada à Cátedra [ 96 ]

Em 2009: Inglaterra-Munique-Bolsano.

Em fins de setembro de 2009 a Inez e eu decidimos fazer mais uma visita ao nosso filho Paulo na Inglaterra. A viagem foi a convencional descrita nas viagens anteriores: Porto Alegre, São Paulo, Londres. Ficamos hospedados com o Paulo e sua companheira Rina em Ambrosden como na viagem anterior. Nos três ou quatro dias que passamos com eles as programações se resumiram em conhecer alguns palácios típicos construídos como residências de campo de magnatas ingleses. Um dia foi dedicado a conhecer Oxford onde almoçamos no antigo castelo, o museu no centro da cidade. Num daqueles ônibus de dois andares com o de cima sem cobertura percorremos os pontos de referência na cidade com destaque para o complexo da famosa universidade. É óbvio que em menos de um dia só foi possível formar uma ideia muito superficial da cidade e arredores. Dedicamos o último para conhecer dois enormes centros de compras situados fora de centros urbanos, floriculturas, uma cooperativa de hortigranjeiros oferecendo seus produtos para a venda. Encerrada a visita ao Paulo partimos num voo regional a Munique e de lá de trem a Bolsano (Bozen) passando por Bressanone (Brixen) no norte da Itália. Essa região assinalada nos mapas como Trentino – Alto Adige (Tirol do Sul) pertencia ao Império Austro-Húngaro até o final da primeira guerra mundial, como já lembrei mais acima e nos tratados de paz e acerto de fronteiras celebrados pelos vencedores passou, como que um troféu de guerra, para a jurisdição da Itália. O Alto Adige (Tirol do Sul) com Bolzano como centro urbano mais importante e capital daquela província também é conhecido como a província das “duas línguas”, alemão e italiano. As placas de sinalização vem com inscrição dupla: “Bressanone-Brixen”, “Bolsano-Bozen”, “Morano-Moran” e outras mais. Pois, foi em Bolsano-Brixen que nos hospedamos no hotel “Magdalenerhof” um pouco para fora do perímetro da cidade na subida para as montanhas. O lugar não podia ter sido mais próprio para as nossas caminhadas naquela semana que nos demoramos naquela região paradisíaca do emblemático Tirol do Sul. Na frente do nosso quarto de hotel as parreiras desciam a encosta até se confundirem com os quintais das casas da periferia da cidade. No lado oposto subiam a encosta das montanhas até onde a topografia o permitia. As fachadas das moradias dos cultivadores de uvas voltadas para o vale conferiam um toque de beleza singular aquela paisagem humanizada dedicada a cultura de vinhedos desde o tempo dos romanos. Numa plataforma de bom tamanho na meia encosta sobressaía aos parreirais uma daquelas igrejinhas com uma torre lateral, características do Alto Adige ou Tirol do Sul, rodeada por uma dúzia de moradias e instalações atendendo os serviços básicos de uma pequena comunidade de vinhateiros. Na primeira manhã subimos caminhando pela estrada usada por eles em meio aos parreirais em fim de colheita saturando a atmosfera com o saboroso perfume das uvas maduras. Seguidas vezes cruzamos por tratores puxando carretões carregados de uvas descendo até a periferia da cidade onde se encontravam as instalações de processamento. Um pouco mais adiante a estrada acompanhava a encosta íngreme da montanha. À direita predominava a vegetação nativa destacando-se o carvalho anão com os galhos retorcidos e carregados de bolotas. À esquerda parreiras seculares avançavam até a beira da estrada. Uma surpresa nos esperava numa curva onde terminava o asfalto substituído por uma trilha de chão batido cruzando pela vegetação nativa contornando a encosta. Um hotel projetado para receber de preferência executivos aninhado na encosta da montanha e uma visão privilegiada sobre a cidade e na fachada o letreiro “Hotel Eberle”. Foi inevitável um salto da imaginação de 11000 quilômetros até Caxias do Sul e sua indústria metalúrgica “Eberle”. Essa relação faz todo sentido pois, os Eberle de Caxias do Sul, como não poucos outros, emigraram do Alto Adige para o Brasil. Continuando cerca 200 metros pela trilha onde ela dobra para a esquerda e desce até a cidade, encontramos um desses cruzeiros tão emblemáticos da região, com seu telhadinho protegendo o Cristo crucificado esculpido em madeira. Esses cruzeiros são, por assim dizer, a marca registrada da paisagem do Alto Adige-Tirol do Sul. Originaram também um personagem que faz parte da história daquele cenário, artista perito em esculpir o “corpus” do Cristo crucificado, conhecido com “Herrgottschnizler”, mal traduzido o “escultor de Deus”.

Algo que merece destaque vem a ser o fato de o vitivinicultores e produtores e outras frutas nos espaços propícios mais altos, estarem organizados em forma de cooperativas de produção e processamento das colheitas com o suporte de cooperativas de crédito Raifeissen, o mesmo modelo, portanto, que deu e continua dando fôlego e segurança financeira aos colonizadores do sul do Brasil, vindos da Itália, Alemanha, Suíça, Áustria, Polônia, do Volga e outros lugares da Europa Central e do Norte. Os “Banca Raifeissen” fazem parte obrigatória dos serviços disponíveis para o público em qualquer comunidade maior nessa região. Não por nada encontramos em Bolsano uma população aparentemente tranquila, trabalhadora, solidária oferecendo um cenário geográfico humano que faz com que o forasteiro se sinta como que em casa. Cada vez que recordo aquelas caminhadas pelos caminhos e trilhas daquelas encostas entre parreirais milenares e vegetação nativa, na melhor das companhias que poderia desejar, acomete-me uma sensação profunda nostalgia de um paraíso perdido mas não esquecido. Já fazem sete anos que a Inez passou para o outro lado do caminho no entender de Santo Agostino. Não passa dia em que não repasso e, em muitos casos, nos mínimos detalhes os inesquecíveis 43 anos que juntos tropeçamos, levamos tombos, mas sempre nos levantamos para seguir a jornada em busca de Deus! Ao mesmo tempo vem-me à memória o testemunho deixado por São Bonifácio referindo-se a abadessa Eangyth, sua fiel incentivadora na cristianização dos povos germânicos: “Solatium peregrinationis meae – Consolo da minha peregrinação!”. A Inez foi o consolo e a fiadora da minha peregrinação! “Requiescat in pace – Descance na paz do Senhor!”

Aqui cabe um inciso que marcaria como ferro em brasa os sete anos que se seguiram. Num daqueles dias, depois de caminharmos a manhã inteira pelas trilhas da encosta das montanhas, a Inez acertou para o começo da tarde o penteado num salão de beleza perto do hotel. Enquanto ela foi cuidar do cabelo depois do almoço eu optei por uma soneca. Não me preocupei pela demora de ela voltar e dediquei o tempo esperando no quarto lendo um livro. Como ela gostava de ver coisas novas e falava perfeitamente o italiano não me preocupei. Quando voltou depois de uma hora ou pouco mais ela me contou que ao voltar do salão de beleza ela se sentiu perdida e não se lembrou do caminho de volta. Foi quando pediu informações na entrada de um estabelecimento. A atendente da portaria informou-a que se encontrava na entrada do hotel “Magdalenerhof” onde estava hospedada. Neste momento ela reconheceu o ambiente que lhe era familiar inclusive um enorme pastor alemão deitado na subida da escada saudando-a com um abano do rabo. Tudo esclarecido foi para o quarto onde eu esperava por ela. Contou-me o incidente e não sei como não me flagrei de que se tratava de algo estranho. Durante o resto da viagem não notei mais em nenhuma ocasião nela um lapso de memória como aquele. Dois anos mais tarde, porém, eles começaram a tornar mais frequentes. Foi então em meados de 2011 que os exames pedidos pela neurologista confirmaram um estágio bem visível do mal de Alzheimer. Não vou descrever o que significou para ela, para mim, minha filha e genro evolução do mal se agravando progressivamente. Para quem já se envolveu de alguma forma com os efeitos sobre o físico e a psique da pessoa vítima desse mal traiçoeiro do qual não se conhece devidamente nem a causa, nem um tratamento eficaz, muito menos uma cura, toda e qualquer descrição só consegue dar uma pálida ideia. Apenas registro que de dezembro de 2015 e 12 de abril de 2017, quando veio a falecer, a Inez ficou presa ao leito, sem reconhecer mais ninguém.

No dia seguinte desse episódio e sem noção do que de fato havia acontecido, melhor, que estava acontecendo, programamos uma subida de teleférico até o alto das montanhas na localidade conhecida na nomenclatura original alemã como “Oberbozen”, “Soprabolsano” no italiano, vem a ser uma dessas cidadezinhas típicas acomodadas nos prados emoldurados pelas dolomitas com os cumes cobertos de neve no nordeste da Itália. Foi neste cenário que se consolidou uma paisagem humanizada de uma rara beleza e de uma riqueza cultural difícil de encontrar em outra parte. A história conhecida dessa região, tanto o Tirol do Norte quanto o Tirol do Sul, o primeiro sob a jurisdição da Áustria e o segundo da Itália na verdade formando uma unidade geográfica e histórico cultural, recua até o tempo dos romanos e a migração dos Cimbros e Teutões no século II AC. A consolidação da ocupação do Tirol aconteceu definitivamente nos moldes em que continua existindo, com a fixação dos Alamanos no complexo das montanhas dos Alpes, durante a migração dos povos entre os séculos IV e VIII DC. A opção em subir de teleférico até “Oberbozen” não podia ser mais acertada. Do alto, tanto na subida quanto na descida podia-se desfrutar de uma visão ampla sobre a paisagem com a floresta nas encostas mais íngremes e as pastagens, pomares e vinhedos nas áreas mais planas. Saindo da estação do teleférico defrontamo-nos com uma cidadezinha de bom tamanho acomodada na plataforma entre as dolomitas, servida com uma infraestrutura completa: restaurante, comércio, cooperativa de crédito Raifeisen, a indispensável igreja com sua torre inconfundível em todo o Tirol, salão de festas. Entrando na igreja um detalhe me chamou a atenção: um belo quadro emoldurando o busto do Pe. Rupert Meier, herói da primeira guerra mundial como capelão na frente de combate quando perdeu uma perna e combativo opositor ao nacional socialismo, comandando os homens da Congregação Mariana em Munique onde sua sepultura pode ser visitada no Bürgersaal. Lembro maiores detalhes sobre esse autêntico santo moderno, nos registros que anotei mais acima na viagem que fizemos a Munique. O proprietário do restaurante vinha a ser um “Fink”, sobrenome comum entre os descendentes de alemães que emigraram do Tirol assim como “Eberle” de Caxias do Sul.

Aqui vem a ser o lugar e a ocasião de lembrar o nome e os feitos de dois personagens, ambos padres jesuítas, nascidos no Tirol do Sul, um em Bressanone-Brixen e o outro em Morano-Moran. Comecemos pelo primeiro. Falamos do missionário jesuíta Anton Clemens Sepp von und zu Rechegg. Nasceu em Kaltem an der Weinstrasse – Brixen-Bressanone em 1655 e faleceu na província de Missiones na Aargentina em 1733. Foi um homem de uma versatilidade impressionante. Formado em música pelo conservatório de Londres, arquiteto, escultor, urbanista, administrador de várias reduções e fundador da de São João batista. Trabalhou como missionário nas sete Missões entre 1691 e 1733, data do seu falecimento. Deixou um livro intitulado “Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos”, além de cartas e outros documentos descrevendo os costumes e hábitos dos indígenas. Empenhou-se na educação e prática da música nas reduções. Foi arquiteto, escultor, administrador de várias reduções, tudo somado a um feito histórico pioneiro. Instalou e fez funcionar o primeiro alto-forno de fundição de ferro do Brasil. Os vestígios de sua passagem e influência podem ser encontrados nas Missões do noroeste do Rio Grande do Sul e imortalizados como patrimônio cultural da humanidade. O Pe. Arnaldo Bruxel microfilmou as cartas e demais documentos deixados pelo Pe. Sepp. Encontram-se sob a guarda do Instituto Anchietano de Pesquisas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Por suas muitas realizações em favor dos seus amados indígenas ficou conhecido entre eles, de modo especial entre as crianças, com o pseudônimo carinhoso de “Pay Antô”.

O segundo filho ilustre do Tirol do Sul, o jesuíta Erich Wassmann, nasceu em Moran-Morano. Alinha-se entre os cientistas mais conceituados do final do século XIX e começos do Século XX. Conhecido também como o padre das formigas ainda hoje figura entre maiores pesquisadores e estudiosos das colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos. Condensou suas conclusões na obra clássica “Theoretische Biolgie” e uma série de artigos publicados no periódico Stimmen der Zeit na casa dos escritores dos jesuítas em Maria Laach na Alemanha. Em seus escritos defende o recurso aos princípios do evolucionismo de Darwin para explicar as descobertas científicas que observou no funcionamento das colônias de formigas e suas relações simbióticas com fungos, somados aos resultados das pesquisas científicas em outras especialidades. Teve o cuidado de deixar claro que não punha em dúvida princípios doutrinários pétreos envolvendo principalmente a criação divina em questões definidas pelo magistério oficial da Igreja. Com isso atraiu sobre si, de um lado, a ira dos evolucionistas materialistas como Ernst Haeckel, Julião Huxley apelidado de o “buldogue” de Darwin e outros mais. De outro lado despertou a suspeita dos cães de guarda da ortodoxia católica que rejeitavam toda e qualquer diálogo frutífero entre a ciência e a doutrina da Igreja que declarava o modernismo como herético. A prova a que estremos chegara a condenação do modernismo encontra-se numa proposta do Concílio Vaticano I, felizmente abortada pela guerra Franco-Prusssiana, declarando o Darwinismo como heresia. Qualquer pessoa razoavelmente informada sobre essa situação de beligerância entre a Ciência e a posição oficial da Igreja Católica, sabe da rejeição declarada do modernismo pelo papa Pio X nos documentos pontifícios, com destaque para a encíclica “Pascendi Dominici Gregis”. Sua posição foi tão radical que obrigava os sacerdotes a fazerem obrigatoriamente o “juramento anti modernista” como condição para a ordenação sacerdotal. Pressionado por esse cenário Wassman desistiu de publicar a terceira edição do livro “Theoretisch Biologie”. De outra parte enfrentou o materialismo numa série de embates diretos com Haeckel ocorridos em Berlim na primeira década do século XX.

Depois de degustar aquele ambiente paradisíaco descemos até a estação do teleférico na entrada de Bolsano e de lá até o hotel, reunir os nossos pertences e na manhã seguinte embarcar no trem e via Trento, Verona, Bergamo até a estação central Milão e de lá de ônibus até o aeroporto. A viagem até São Paulo, Porto Alegre e São Leopoldo foi tranquila.

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