Viagem para a Alemanha e norte da Itália.
Para o segundo semestre de 2001 programei com a Inez uma viagem de duas etapas para a Europa. A primeira teve como destino o Hunsrück na Alemanha, região donde emigraram meus antepassados tanto do lado paterno quanto do materno. A segunda foi para o norte da Itália com o objetivo de conhecer os locais de origem dos antepassados da Inez, do lado paterno vindos de Trevísio e do materno de Cremona. Para a visita dupla para Alemanha e Itália centradas nas regiões que acabo de identificar foi motivada por razões em parte acadêmicas pois, minhas pesquisas e publicações centravam-se na imigração para o sul do Brasil de imigrantes da Europa Central e, complementarmente do Norte da Itália. O outro motivo não menos determinante foi gozar de um intervalo de lazer. Eu me encontrava em fim de carreira pois no final de 2002 encerravam-se os oito anos como Coordenador do PPGH de História com 72 anos de idade. Por ter viajado muito pouco para fora do País, como para o pós-doutorado em Paris em 1988, a viagem a Halle em 1999 e a viagem para o Chile que acabei de relembrar, despertou a vontade de conhecer um pouco mais a fundo a Europa, de modo especial a Alemanha, a Inglaterra, a República Tsheca, o norte da Itália, Roma, Urbino, Rimini e Pésaro. Um motivo não menos importante foi propiciar à Inez o prazer de viajar, pelo qual ela alimentava uma verdadeira peixão, muito mais do que eu próprio. Os dois filhos, o Paulo e a Ingrid já caminhavam com os próprios pés, a situação financeira sob controle. À viagem que em seguida irei descrever irão somar-se até 2011 mais seis com o mesmo destino. Meu voo de Porto Alegre a Frankfurt foi bancado pela Unisinos, o da Inez saiu da nossa poupança. Tudo acertado com agência de viagem do Banco do Brasil partimos na última semana de agosto. O Pe. Mallmann que tinha parentes próximos e amigos morando em Emmelshausen e Halsenbach providenciou, por meio de um amigo de sobrenome Michel a estadia no Hunsrück na pousada de um comerciante de vinhos de nome Stoffel. Além disso deu-se ao trabalho de localizar nos registros telefônicos nada menos de 120 pessoas com o sobrenome Rambo. O sr. Michel combinou com seu filho que morava em Mannheim, a nos localizar no aeroporto de Frankfurt e nos levar até Emmelshausen. Na compra da passagem na agência do Banco do Brasil na Unisinos fora incluído também o aluguel de um carro da Avis para nos movimentarmos livremente na parte da visita à terra dos meus antepassados.
O voo de Porto Alegre a São Paulo e de lá até Frankfurt foi tranquilo. No desembarque esperava o filho do Michel que nos levou de carro até a casa dos pais em Emmelshausen. Depois de um bom papo informal acrescido do plano de visitas nos próximos dias, passamos por um supermercado para comprar artigos para o consumo pelos quais tivemos que providenciar pois, a diária da hospedaria em que passaríamos os dias de visita não incluía as refeições. Já ao entardecer nos acomodamos no apartamento reservado para aluguel anexo à moradia do sr. Stoffel. Confiei ao Michel a chave do carro alugado pois, ele nos levaria nos dias seguintes, aos lugares que nos interessavam visitar. Às 8h em ponto, como convém a um bom alemão, o Michel estacionou na rua em frente ao nosso alojamento, pronto para circular pelos endereços programados para aquele dia.
A primeira parada foi em na cidade Kastelaun. Deixamos o caro no estacionamento no centro e, a pé, visitamos o histórico mercado de animais. Em resumo. Todos os anos, em data marcada, os agricultores da redondeza levavam os animais destinados à venda, até a praça principal da cidade, onde eram realizados os leilões. Depois da visita aquele local procuramos numa rua no centro da cidade um dos endereços de um morador de sobrenome Rambo que constava na lista que o Pe. Mallmann preparara. Encontrada a rua e localizado o endereço o Michel tocou a campainha. Uma senhora de meia idade apareceu na porta acompanhada de um enorme cachorro. Nosso cicerone nos apresentou como sendo do sul do Brasil e interessados em conhecer região donde emigrara meu trisavô Mathias Rambo em 1829 e ao mesmo tempo conhecer alguém desse sobrenome. A reação da mulher foi de poucas palavras e nas entrelinhas fez perceber que não éramos bem vindos. Ela apenas deu a entender que o marido não se encontrava em casa e por isso não nos poderia receber. Entendido o recado subimos para dar uma olhada nas ruinas do antigo castelo.
Aqui cabe uma explicação para a frieza daquela recepção. Acontece que terminada a segunda guerra mundial lideranças católicas e protestantes, entre elas meu irmão Balduino, o Pe. Pauquet, o sr. Siegman, Fritz Rottermund, Antônio Campani, Gastão Englert, Albano Volkmer e muitos outros, criaram em Porto Alegre a SEF – Socorro à Europa Faminta. Consistiu basicamente em arrecadar alimentos não perecíveis, roupas, calçados, somas em dinheiro para socorrer a Alemanha em ruinas, fome generalizada, sem abrigos e sem alimentos. Como os acordos firmados no final da guerra proibiam a entrega direta desse tipo de ajuda à Alemanha, foi mandado via Cruz Vermelha da Suécia sob o título genérico de Socorro à Europa Faminta. Se não me engano a campanha arrecadou nos estados do sul, principalmente Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná quinze cargas de navio. Dezenas de milhares de alemães foram salvos com esses donativos. Acontece que já no final da década de 1940 mas, principalmente na de 1950 a Alemanha se recuperara espantosamente solidificando uma economia robusta proporcionando um nível de vida invejável para seus cidadãos. Neste contexto entende-se a desconfiança dos alemães, de modo especial na Renânia-Palatinado em relação aos visitantes de descendentes da região vindos do sul do Brasil. A culpa cabe de modo especial a religiosos, padres diocesanos inclusive bispos e não poucos aproveitadores de todos os naipes que nas décadas de 1960 a 1980 percorreram aquela região e outras mais da Alemanha, cobrando por assim dizer, o ressarcimento dos auxílios doados pela SEF e outras entidades. Não poucos religiosos e padres diocesanos ofereciam-se para cuidar de paróquias substituindo os párocos em férias. Aproveitavam a permanência como párocos substitutos temporários ou auxiliares nas paróquias para organizar coletas em favor de seminários, paróquias, entidades de assistência e caridade, além de outros destinos menos confessáveis. Contam as más línguas que chegou ao ponto de um bispo do interior do Rio Grande do Sul trazer na bagagem uma Mercedes que ficou retida na alfândega do Rio de Janeiro por irregularidades burocráticas relativas à importação. Uma receptividade parecida esperava-nos também no norte da Itália. Essa experiência fez com que evitássemos daí para frente encontros com moradores das aldeias que visitamos depois.
Perto do meio dia, terminada a vista às ruinas do castelo, subimos até a estrada principal que que atravessa o Hunsrück para terminar em Trier – a “Hunsrücker Höhe Strasse”. Almoçamos num restaurante frequentado por motoristas, turistas e transeuntes de todos os feitios. A tarde foi reservada para uma visita à Simmern, donde emigrou meu bisavô Vier do lado materno. Sob o aspecto urbanístico e arquitetônico a cidade oferece o perfil quase que padrão das aldeias e cidades pequenas e médias da região do Hunsrück. O que, entretanto, empresta um destaque e historicamente marcante é a torre prisão, hoje transformada em museu, para onde foi recolhido o lendário e folclórico salteador e assaltante “Schinderhannes”, (“Johannes Bückler”). Depois de evadir-se da prisão foi capturado e guilhotinado em Mainz em 1803. Seus feitos como líder de um bando de salteadores de estrada que cometiam toda a sorte de delitos, transformou-se num símbolo de crueldade. Chamar alguém de “Schinderhannes” significava o mesmo que ser um “judiador”. Os emigrantes vindos do Hunsrück trouxeram na sua bagagem, como foi o caso dos meus antepassados, tanto do lado paterno quanto do materno, o simbolismo negativo inspirado naquele personagem. Lembro-me como se tivesse sido ontem, minha mãe me repreendendo com um sonoro “du Schinnerhannes”, quando maltratava algum animal, cachorro, cavalo ou outro e isso mais de 100 anos depois do desembarque do meu avô no Brasil.
Com a visita a Simmern o programa daquele dia estava cumprido e nos recolhemos ao nosso alojamento em Emmelshausen. Aproveitamos o final da tarde para dar uma caminhada pela cidade. Comprei uma caneta Mont Blanc e entramos na igreja matriz da cidade. Não se tratava de nenhuma dessas catedrais famosas construídas na Idade Média. O que mais me chamou a tenção foi uma relação de nomes afixada num local estratégico com os nomes dos soldados caídos na segunda guerra mundial. Lá constavam não poucos sobrenomes familiares entre os descendentes de imigrantes no sul do Brasil como o de Josepf Knecht e dezenas de outros.
No dia seguinte o Michel nos levaria pela “Hunsrücker Höhe Strase” até Trier descendo depois acompanhando o Mosela até Koblenz onde desemboca no Reno no “Deutscher Eck”. Naquele dia a esposa do Michel resolveu fazer-nos companhia. Depois de uma viagem tranquila entramos na cidade histórica que durante anos foi a sede do Império Romano. Fundada em 16 A.C peloimperador Augusto com o nome “Treverorum” pode ser considerada a cidade mais antiga da Alemanha. No final do século III da era cristã Trier ou Treveris passou a ser a capital do Império Romano. Seis imperadores romanos reinaram a partir dessa cidade que também era reconhecida então como a “Segunda Roma”. Quem tem um mínimo de conhecimento da história da Europa Ocidental sabe que, conquistadas as Gálias, em grandes linhas a França de hoje e territórios adjacentes por Cesar, ainda antes de Cristo, os romanos foram empurrando as fronteiras do Império para o norte e para o leste. Ocuparam a Grã Bretanha e no continente avançaram e consolidaram as fronteiras em toda margem esquerda do Reno. Os vestígios do domínio romano nos primeiros séculos da nossa era podem ser observados ainda hoje principalmente no centro e sul da Inglaterra como também em toda margem ocidental do Reno tendo Trier como capital e sede do império. São ruinas de cidades, fortalezas, obras de engenharia como a ponte sobre o Reno que deixa estupefatos os engenheiros da especialidade de hoje. As tentativas de conquistar a Europa central não tiveram êxito devido às táticas de combate consolidadas pelos povos germânicos no interior das florestas por toda a Europa Central e do Norte até as estepes da Rússia. O herói imortalizado pela Netflix, vem a ser Armínio um germânico criado pelos romanos e engajado no seu exército e feito comandante de uma Coorte sob as ordens de Polibius Q. Varus. Observando como seu superior oprimia seus conterrâneos germânicos, aproveitou a oportunidade para conquistar popularidade e poder de liderança entre eles. Terminou assim como comandante dos guerreiros germânicos que derrotaram as legiões de Varo na Floresta de Teuteburgo, desestimulando de vez novas tentativas de apoderar-se daquele mar de florestas assustadoras escondendo povos e mais povos acostumados às táticas de combate exigidas naquele ambiente. Vale chamar a atenção que a batalha de Teuteburgo marcou o fim do avanço do Império Romano para dentro da Europa Central e do Norte e evitou a romanização dos povos germânicos por isso pode ser considerado um dos lances mais importantes e decisivos do jogo de xadrez que moldou a Cultura Ocidental no seu nascedouro.
Não é aqui o lugar para aprofundar e detalhar aquele período histórico. Como minha intenção consiste em chamar atenção que uma viagem não se resume em admirar monumentos, participar de eventos ou fazer compras, permiti-me alertar que o chão que se pisa em qualquer parte do nosso planeta esconde, para quem estiver dispôs e em condições de detectá-la, uma história física e geográfica contada em milhões e até bilhões de anos e uma saga humana de séculos e milênios.
Logo na entrada paramos para conhecer o que sobrou do fórum romano, basicamente os muros externos até meia altura e o interior franqueado aos visitantes como se fosse uma praça. Uma caminhada pelo centro da cidade não podíamos deixar de dar uma parada na frente da casa em que nasceu Karl Marx, entrar na imponente catedral católica em estilo romano dedicada a SãoPedro e que guarda a “túnica sagrada” uma das relíquias mais emblemáticas da história do cristianismo. Mais adiante nos chamou a atenção o monumento símbolo da cidade: a “Porta Nigra” (Porta Negra), datada do século III, um imponente portal-monumento construído no estilo romano antigo. O nome vem do fato de que com o correr de séculos, o seu exterior escureceu. Consta na lista dos monumentos históricos considerados patrimônio da humanidade.