Religiosidade no quotidiano
dos imigrantes
A história da humanidade é uma história de migrações e seus efeitos. É assim que Fouquet começa o seu livro: “A contribuição alemã para a construção da nação brasileira”, dedicado ao sesquicentenário da imigração alemã no Sul do Brasil, já mais vezes citado. Nesta colocação há duas questões que merecem destaque. Em primeiro lugar o homem como sujeito e ator da história, é um eterno migrante, um forasteiro, um peregrino sempre a caminho. Em segundo lugar é a pergunta porque afinal o homem migra? A resposta deve ser procurada na própria natureza humana, em constante busca de realização, em busca do aperfeiçoamento. É por essa razão que o homem não se cansa em melhorar a segurança e o bem estar material; vai à procura da inserção num relacionamento social que lhe assegure um convívio frutífero com seus semelhantes; busca aperfeiçoar-se culturalmente apropriando-se de sempre novos conhecimentos; procura o equilíbrio interno de suas demandas psicológicas; e, de modo especial, administrar os mistérios e as incógnitas da vida e do universo, por meio de crenças, rituais, atitudes e sistemas religiosos, como testemunham a história, a etnografia e a etnologia.
Os teóricos que tentaram estabelecer uma tipificação e uma hierarquização dos motivos que levaram e ainda levam o homem a migrar, valem-se dos parâmetros ditados pelo viés pelo qual cada um observa o fenômeno. Para o economista o homem migra para prover as necessidades materiais do dia a dia; para o sociólogo o homem migra para livrar-se de uma situação social que o impede de beneficiar-se do convívio com seus semelhantes. Mesmo que esses ou outros motivos representem o momento da tomada de decisão para migrar, no fundo, no fundo, uma motivação permeia a todas elas. O que confere lógica e sentido a todas as migrações, resume-se na tendência, no instinto do homem em concretizar a sua realização existencial. Alias, acima já lembrei que os romanos na sua proverbial capacidade de formular máximas sábias, legaram uma que expressa na plenitude conceitual, a razão porque o homem migra. “Ubi bene ibi pátria” – “onde o homem se sente bem aí está a sua pátria”.
Qualquer que seja a situação que leva o homem a migrar implica em decisões acompanhadas de conseqüências mais ou menos traumáticas. Como ponto de partida cobra do imigrante o abandono e a renúncia à terra natal com todo o entorno humano e a sua história. Mais ou menos definitivo, mais ou menos radical, trata-se sempre de um desenraizamento e de um transplante, movido pela esperança de encontrar a realização, a segurança e felicidade em outra parte. Ninguém migra sem a perspectiva de melhorar as condições de vida e construir um futuro melhor para si próprio e os seus. Em grau maior ou menor todo o migrante passa por esse processo, também aquele que se transfere de uma comunidade para outra, de uma cidade para a outra, de uma região para a outra. Não é aqui o objetivo de falar sobre migrações internas.
A nossa atenção centra-se nas migrações transoceânicas e transcontinentais, durante o século dezenove, o período em que a Europa Central e do Norte expeliram seus excedentes populacionais, para todos os quadrantes do planeta, de modo especial para as três Américas.
Não é difícil imaginar o que significou na época e nas circunstâncias de então uma viagem da Europa para o Sul do Brasil. Os veleiros levavam meses dos portos alemães e holandeses até o Rio de Janeiro e, finalmente, para Rio Grande. Era tarefa para homens e mulheres em grandes dificuldades mas decididos em busca de uma saída. Era tarefa também e, principalmente, para homens e mulheres de uma fé inabalável em si próprios e sobretudo uma profunda fé em Deus. Cristãos que eram, protestantes ou católicos, encaravam o migrar como uma autêntica peregrinação em busca da terra prometida, como mostram os seguintes versos de um cântico entoado pelos emigrantes do Hunsrück:
Fomos chamados por Deus, caso contrário a nossa peregrinação não teria sentido. Dando fé no seu chamado nos pomos a caminho.
Deus falou a Abraão: deixa a tua terra e parte para aquela que te mostrarei com minha forte mão. Também nós acreditamos firmemente na sua poderosa voz. Por isso partimos daqui em busca do Brasil distante.
Mais de cem anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes no Sul do Brasil, continuava viva a convicção de que migrar ainda é uma peregrinação com motivações religiosas, uma missão a ser cumprida em função de um apelo religioso. Reproduzo em forma corrente o conteúdo de uma poesia publicada no Familienfreund Kalender de 1942, com o título “Der Auswanderer – o Emigrante”.
Nos primeiros clarões do amanhecer quatro seres humanos põem-se a caminho: um homem que a vida toda carregou fardos pesados, uma mulher que em vão esperou por um momento de descanso, dois rapazes ainda jovens e uma criança de cachos louros, aconchegada à mãe não percebe a angústia dos demais. É inimaginável o que lutaram pelo pão de cada dia, até que, finalmente, vencidos pela penúria e a miséria, decidiram partir, deixando para trás o fogão amigo. Por mais difícil que fosse tentaram buscar melhores dias em outro continente. Decidiram trabalhar duro numa terra selvagem e estranha. Não demorou e içaram-se as âncoras e os corações choraram lágrimas de sangue.
Mas não é hora de duvidar ou de desanimar pois, o anjo que acompanha não faltará com seu consolo na hora oportuna, apontando para um cenário convidativo lá ao longe. Por cima das ondas, das nuvens e do vento, aproxima-se uma criança envolta no esplendor celestial, nos braços da Imaculada que a protege sorrindo. Na hora da necessidade e da escuridão estarão a seu lado. Eles os conduzirão através do mar tempestuoso, preparando um nova Querência, por mais longínqua que seja. Por mais dura e áspera que for a trilha que leva até o repouso, confiai na sua graça no peso do sofrimento. Continuai a peregrinação com a alma em paz, sem dar atenção aos temores. Não tardará e tereis a felicidade de uma nova pátria, uma nova Querência, lá longe além do oceano. (cf. Familienfreund Kalender, 1942, p. 77).
Estamos aqui diante das duas armas de que se serviram também os imigrantes que desembarcaram no Litoral Norte, em São Leopoldo, em Blumenau, em Joinville, na Bahia, em Minas Gerais, no Espírito Santo, e em outras partes do Brasil. O trabalho e a oração. Logo que puseram os pés nas praias brasileiras, puseram mãos à obra para a construção da nova Querência motivados pelo lema: “ora et labora – reza e trabalho”.
Homens e mulheres práticos como eram os camponeses, sabiam muito bem que a oração sem o trabalho não passa de uma alienação e o trabalho sem a oração se transforma num fardo insuportável. A chave do sucesso na vida está na complementação do trabalho pela oração e a oração pelo trabalho.
A pergunta que a esta altura se coloca é esta: E no seu quotidiano como é que os imigrantes concebiam e punham em prática o binômio reza e trabalha. Para responder a essa pergunta é necessário entender a cosmovisão própria do camponês, do agricultor, do colono.
O contato diuturno com a natureza e os fenômenos naturais, ensina-lhe que entre ele e o mundo que o rodeia há uma relação existencial. A sua vida e o seu bem estar dependem dos animais, das plantas, do sol, da lua, do calor e do frio, da alternância das estações. Encontra as referências simbólicas do seu mundo espiritual nas fontes, nas flores, nas árvores, nas montanhas, nos mares, nos rios e nas florestas. É desta maneira que o convívio do colono imigrante com a natureza, ensina-lhe o caminho e a forma de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela e de como transformá-la numa aliada sempre disponível. O sol e a lua com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, o nascer e o ocaso do sol, a alternância das fases da lua, a sucessão das estações do ano, deixam de ser apenas fenômenos naturais para se transformarem no palco em que a existência humana se torna possível. E nesta relação simbiótica o homem constrói sua cultura, sua história, seu imaginário, sua simbologia, sua mitologia, suas crenças, sua religião, sua religiosidade, seus rituais, seus princípios éticos. Tudo que o rodeia, por assim dizer, se anima e se personaliza, de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vem revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanham, assumem vida e importância pelo que representam no quotidiano e pelo que sugerem à imaginação.
Pela alternância das estações o sol define os ciclos anuais, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, florescer, frutificar, amadurecer, declinar e morrer, para recomeçar tudo de novo, fenômenos pela sua natureza astronômicos, climatológicos ou biológicos, transformam-se em fatores causais de vital importância, na consolidação da identidade cultural e, de modo especial, na construção do imaginário das crenças e rituais religiosos. A primavera vai simbolizar a juventude, o verão o vigor e a plenitude adulta, o outono a maturidade e a colheita, o inverno o declínio e finalmente a morte para, em seguida recomeçar o eterno vir e devir da dança da vida. As fases da vida e os ciclos anuais acabam fundindo-se simbolicamente na mesma dinâmica. A vida tem a sua primavera, verão, outono e inverno. O sol e a lua são cultuados como divindades. Água e vida são sinônimos. A terra é o ventre fecundo do qual nascem os alimentos. O antigos gregos chamavam a terra de “A Terra”, com atributos divinos. Nossos antepassados a chamavam com reverência de “Mãe Terra”.
O que pretendi mostrar com essas considerações aparentemente talvez não tenha a ver nada ou muito pouco com a religiosidade dos nossos antepassados imigrantes. Na verdade, entretanto, suas vidas foram vividas e sua história construída, ressalvadas as peculiaridades históricas e geografias, na sua essência no mesmo cenário de todos os agricultores do mundo e da história.
Salvo melhor juízo a religiosidade dos indivíduos e das comunidades dos imigrantes manifesta-se em dois níveis. O primeiro deles, o mais visível e que normalmente se avalia como termômetro para avaliar o grau e a profundidade da religiosidade, são as práticas religiosas formais, representadas pela freqüência aos cultos, missas, novenas, procissões, orações da manhã, nas refeições, antes de dormir.... etc. Não pretendo me ocupar desta forma de expressão da religiosidade pois, é por demais conhecida por todos e seria preciso entrar nas peculiaridades de cada confissão religiosa, já que os leitores, procedem de alguma forma de três tradições religiosas institucionais: a tradição Evangélica Protestante, a tradição Católica da Restauração e a tradição Católica Luso-Brasileira.
Religiões institucionalizadas como o catolicismo e o protestantismo convencionaram formas oficiais pelas quais os fiéis expressam a sua religiosidade. Resumem-se nas missas, cultos, procissões e outras tantas. Trata-se das práticas obrigatórias que indicam inclusive o nível de compromisso da pessoa para com a comunidade. Quem por exemplo não participa das missas e cultos em domingos, ainda hoje, costuma ser tido como um membro relapso da comunidade em si. Tempos houve em que alguém que não assistisse à missa dominical, costumava ser “apontado com o dedo” como se dizia. Não é desse tipo de religiosidade que pretendo falar. Para começar seria preciso caracterizar protestantes e católicos, cada qual com as suas particularidades.
Decidi demorar-me por isso naquilo que poderíamos chamar de respostas informais de natureza religiosa que costumam manifestar-se espontaneamente diante das situações mais diversas que costumam acompanhar o diário da vida das pessoas. Uma surpresa agradável, uma notícia triste, uma catástrofe natural, um espetáculo da natureza ou, simplesmente, a contemplação de uma flor, o caminhar por uma plantação em pleno crescimento, a satisfação diante de uma boa colheita. Esses cenários e dezenas de outros costumam ocasionar momentos de irrupção da religiosidade na sua forma mais espontânea e, por isso mesmo, mais autêntica.
É neste plano que se manifesta a verdadeira religiosidade. No momento em que a pessoa percebe que as fórmulas feitas já não dão conta do que sente e intui, recorre à espontaneidade que tem na oração do silêncio a sua manifestação mais eloqüente. As fórmulas e os versos atrapalham e, tanto o homem simples, o colono com a enxada ou o machado na mão, como o sábio munido da pena e do computador, refugiam-se na reflexão silenciosa que os põe em sintonia com a natureza e, nas suas manifestações mais prosaicas e mais grandiosas, encontram-se com Deus e escutam a sua voz. A respeito dessa via de relacionamento com Deus o Dr. Francis Collins deixou no seu livro “A Linguagem de Deus” uma reflexão que tem tudo a ver com que se acaba de dizer. É importante lembrar que o Dr. Collins não é nada menos do que o Diretor do “Projeto Genoma”, responsável pelo mapeamento do código genético do homem, portanto uma dos expoentes maiores da ciência do início deste milênio. São suas as palavras:
Depois que passei a acreditar em Deus, empreguei um tempo considerável tentando apreciar as características dele. Conclui que Ele deve ser um Deus que se preocupa com as pessoas ( ... ) Também conclui que Deus deve ser santo e justo, já que a Lei Moral me chama nessa direção. Contudo isso me parecia uma abstração terrível. O fato de Deus ser bom e amar as suas criaturas não significa, por exemplo, que tenhamos a habilidade de nos comunicar com Ele, ou que tenhamos um tipo de relacionamento com Ele. Descobri, porém, uma sensação crescente de anseio por essas coisas, e comecei a perceber que é para isso que servem as orações. A oração não é, como alguns parecem sugerir, uma oportunidade de manipular Deus para que Ele faça o que você quer. Em vez disso, trata-se de uma forma de buscar uma afinidade com Deus, aprender com Ele e tentar perceber o ponto do vista Dele sobre vários assuntos ao nosso derredor, que nos deixam confusos, em dúvida e em sofrimento. (Collins, 2007.)