Associativismo - Cooperativismo


A partir de 25 de julho de 1824, começaram a fixar-se no sul do Brasil os imigrantes de origem germânica. Vieram estimulados  pela política imperial da ocupação rápida das grandes áreas vazias dos estados do sul, cobertas de densas  florestas pluviais, situadas na bacia do Guaíba, da região da Serra, Missões, Alto Uruguai, oeste de Santa Catarina e Paraná. Nessas áreas proliferaram as pequenas propriedades de menos de 100 hectares dedicadas, em primeiro lugar, para a subsistência familiar, características de uma colonização de povoamento.. A dinâmica dessa colonização consistia essencialmente na formação de comunidades rurais de pequenos proprietários. Nos primeiros anos de sua presença no sul do Brasil os imigrantes enfrentaram uma série de dificuldades inerentes, de um lado, à sua identidade étnica e cultural e, do outro, às características geográficas e condições sócio culturais.

Procedentes da Europa Central e do Norte, vinham a ser descendentes dos diversos povos germânicos. Culturalmente  eram herdeiros e portadores da cultura  que emergira, pelo menos em linhas gerais, do contexto sócio cultural e geográfico da “Ordem Alemã”. O termo significa, antes de mais nada, a unidade histórico cultural dos povos que atualmente se localizam na Alemanha, nas repúblicas do Báltico, na Áustria, Suíça e, em parte na Polônia, República Tcheca, Alsácia, Lorena, Luxemburgo e arredores.

Considerados sob esse ângulo, os imigrantes alemães inseriram-se no contexto brasileiro como um componente inteiramente estranho, enfrentando as dificuldades inevitáveis originadas pelo convívio com os demais segmentos étnicos e culturais aqui encontrados. Todos esses fatores somados resultaram nas primeiras décadas num relativo isolamento. Enfrentaram as muitas e grandes dificuldades pondo em marcha uma série de iniciativas e estratégias para garantir a sobrevivência física e, principalmente, a cultural. Organizaram-se em comunidades, construíram igrejas, criaram escolas comunitárias, desenvolveram o comércio, os artesanatos e por aí vai. Simultaneamente os imigrantes criaram  iniciativas ricas e diversificadas direcionadas a atividades associativas. O proverbial instinto de os alemães e seus descendentes se associarem para as mais diversas modalidades de lazer, exporte, cultura e outras deu  origem, a partir da década de 1850, a centenas de clubes, associações, sociedades. Nelas as pessoas se encontravam para cultivar amizades, boas conversas, promover atividades esportivas, dedicar-se à arte, ao teatro, a iniciativas de assistência, de mútuo amparo, de promoção da saúde e, por fim, para por em andamento organizações amplas de desenvolvimento econômico e promoção humana.

Entre essas últimas a mais abrangente e por isso mesmo a mais ambiciosa foi a Associação Rio-grandense de Agricultores fundada em 1899 em Santa Catarina de Feliz. Com ela foi posto em andamento um autêntico projeto de desenvolvimento econômico e promoção humana, com base no compromisso solidário, aberto também aos imigrantes italianos, poloneses como também aos luso-brasileiros. Deixando de lado querelas de natureza doutrinária e ou disciplinares, propôs a colaboração com os protestantes e católicos com a finalidade de por em andamento um amplo projeto de desenvolvimento econômico e promoção humana. No seio dessa organização foram concebidas e postas em funcionamento as primeiras cooperativas de crédito e 1902 em Nova Petrópolis. A elas se somariam com o andar dos anos cooperativas de produção, comercialização e muitas outras modalidades. Na Associação Rio-grandense e Agricultores foi praticada com entusiasmo o espírito e cooperação inter étnica, intercultural e pela primeira vez praticou-se um autêntico ecumenismo.

Resgatar pelo menos em linhas gerais, essa inestimável contribuição  com  que os imigrantes alemães e de outras procedências que colaboraram e colaboram, ainda, na consolidação da identidade dos estados do sul do Brasil, constitui-se num questão de justiça. A fim de colaborar para que, com aproximação do bicentenário. A imigração, ofereço meu livro: “O Associativismo Teuto-Brasileiro e os Primórdios do Cooperativismo no sul do Brasil”, edição da Editora Unisinos.



Bicentenário da Imigração - 45

A base do Projeto da Restauração Católica teve como um dos seus pilares mestres uma cuidadosa organização paroquial e comunitária. Várias comunidades menores situadas em áreas contíguas e polarizadas por uma comunidade maior, formavam uma paróquia. Próximo à matriz e próximo às diversas capelas encontrava-se sempre uma escola. No começo, em muitos casos, capela e escola funcionavam no mesmo prédio, originando o que se convencionou chamar de uma “escola-capela”. Uma associação com sua diretoria cuidava da igreja. Cabia-lhe como tarefa a construção e a manutenção do templo, a casa paroquial além do sustento do pároco e de seus auxiliares, o bom andamento das missas e demais atos litúrgicos, organização das festas, a administração dos cemitérios, etc. Embora o pároco não integrasse a diretoria sua autoridade sobre ela era evidente pela posição que ocupava como representante da autoridade eclesiástica. Nessas circunstâncias ninguém ousava disputar qualquer tipo de liderança ou de autoridade com o pároco mesmo em questões de administração temporal. Seus  desejos e principalmente suas determinações assumiam o caráter de ordens que encontravam sempre eco favorável na diretoria da paróquia e das capelas e estas, por sua vez, encarregavam-se de faze-las respeitadas pela comunidade toda.

Frente a uma organização tão coesa e tão comprometida com o pároco e com a igreja e tudo que representavam, e o fato de que todas as comunidades ostentarem o mesmo perfil organizacional, fica fácil entender que o Projeto da Restauração Católica, emanado de Roma e implantado nas paróquias e capelas pelo bispo, os párocos e as diretorias das comunidades, produzisse, sem tardar seus resultados. A vida sacramental tornou-se a base da ação pastoral. O padre no caso era de fato um verdadeiro sacerdote cujo único objetivo consistia em que os fiéis vivessem de acordo com os mandamentos e os ditames emanados de Roma e das sés  episcopais. 

Além da base paroquial alicerçada  numa organização sólida e eficiente, várias outras formas  de associações setoriais e mutuamente complementares tornaram-se  comuns e praticamente obrigatórias. Entre as mais populares aparecem:

Primeiro. As associações de crianças reunidas em torno da devoção ao Menino Jesus (Kindheit Jesu Verein). Nelas as crianças, desde muito cedo, eram introduzidas numa profunda devoção a Jesus, a qual perduraria a vida toda nas mais diversas formas de devoção que praticariam como adultos. 

Segundo. A devoção o Coração de Jesus, muito popular especialmente entre as senhoras casadas e viúvas. Era difícil encontrar uma casa em que não se venerasse uma imagem do Coração de Jesus ao lado de outra do Coração de Maria. Essa devoção atingia o seu ponto alto no mês de junho, mês dedicado ao Coração de Jesus, culminando com a festa do Coração de Jesus na última sexta-feira daquele mês. Todas as primeiras sextas-feiras do mês durante o ano todo eram também consagradas ao Sagrado Coração e era convicção generalizada que alguém que tivesse assistido uma vez missa e comungado durante nove sextas-feiras seguidas, teria a salvação da alma garantida. 

Terceiro. O Apostolado da Oração foi mais um forma de devoção muito difundida entre as senhoras. As associações que se formavam com o objetivo de  fazer da oração um meio eficaz de apostolado costumavam ter uma vida religiosa muito ativa. Distinguiam-se em qualquer  paróquia pelas fitas vermelhas que portavam e pela intensa vida sacramental com evidentes objetivos missionários. 

Quarto. As Congregações Marianas fomentaram a vida religiosa e sacramental dos jovens e dos homens de todas as classes sociais e de todos os níveis de instrução. Também essas organizações  exibiam uma clara preocupação pela formação, pelo cultivo da vida cristã por meio da vida sacramental de seus associados, além de um marcante espírito  apologético e missionário. As Congregações Marianas caracterizavam em primeiro lugar as paróquias e os colégios  dos jesuítas. Nas ocasiões de manifestações públicas de fé, como procissões de Corpus Christi, congressos eucarísticos e outras, os congregados marianos davam bem a ideia de um catolicismo militante, símbolo da Igreja militante e tão a gosto dos jesuítas. Ostentando suas fitas azuis e portando suas bandeiras, as congregações de colegiais, de universitários, de formados, de operários ..., desfilavam como se fossem batalhões ou regimentos adestrados para o combate, manifestando publicamente   e sem respeito humano as suas convicções, enquanto cantavam o hino oficial das Congregações Marianas, o que aliás nos dá bem uma ideia do espírito que animava essas associações: “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras, cerremos as fileiras, soldados do Senhor ...” no decorrer da década de 1930 surgiu entre as Congregações Marianas de colegiais, universitários e formados, com sede no Colégio Anchieta  sob a orientação do Pe. Werner von und zur Mühlen, um importante núcleo de reflexão filosófica e teológica. O resultado foi o formação de um grupo de intelectuais católicos que marcaram presença visível na vida de Porto Alegre em geral e de modo especial conquistaram um número considerável  de cátedras  na então  Universidade do Rio Grande do Sul e um grande respeito pelo catolicismo em geral.

Quinto. A contrapartida feminina para as Congregações Marianas foram as associações das Filhas de Maria. Não havia paróquia em que esse tipo de associação não reunisse adolescentes e moças em torno da devoção a Nossa Senhora. O ponto alto nessas agremiações  era também a intensa motivação sacramental e o cultivo das virtudes cristãs.

Um objetivo comum tanto das Congregações Marianas quanto das Filhas de Maria consistia em preparar para as futuras gerações, pais e mães virtuosos e inteiramente  afinados com a Igreja. Ao mesmo tempo deveriam servir de fermento na sociedade civil, colocando a fidelidade à Igreja, a obediência ao papa, aos bispos e aos párocos como ideal supremo. Em suas reuniões, em seus congressos ou nas participações em atos público de fé costumavam cantar: “Papam protege, hostes reprime, stet Petri Cátedra, salutis regula – Protegei o Papa, rechaçai os inimigos, a Cátedra de Pedro permanece como regra de fé”. 

Sexto. Enquanto as Congregações Marianas e as Associações das Filhas de Maria se constituíram nas organizações  prediletas dos jesuítas, os bispos e os padres diocesanos valeram-se de preferência da Ação Católica como instrumento de formação e de ação. Como as Congregações Marianas, também a Ação Católica adaptou-se às condições sócio-culturais dos católicos, visando em primeiro lugar a juventude. No cenário católico dos anos 30, 40 e 50 destacaram-se a JOC – juventude operária católica; a  JAC – juventude agrária católica; a JEC – juventude estudantil católica; a JUC – juventude universitária católica – JIC – juventude independente católica. 

As duas organizações, a Congregação Mariana para universitários e formados e a Juventude Universitária Católica, por ex., mudaram o clima laico e em grande parte anti-clerical da Universidade do Rio Grande do Sul. 

O Projeto da Restauração Católica contou ainda com um fator poderoso: a educação nas escolas comunitárias e nos colégios de ensino médio. 

O currículo das escolas de comunidade propunha um tipo de educação em que a criança aprendia a ser um membro útil da comunidade. E na concepção da época e no contexto da Restauração, ser um membro útil significava saber ler, escrever, fazer cálculos, interiorizar costumes e  valores da tradição dos antepassados, preservar a língua e, antes de mais nada, aprender o catecismo, conhecer a História Sagrada, amar a Igreja, respeitar as autoridades eclesiásticas e viver conforme os mandamentos de Deus e da Igreja, orientar a vida em sintonia com os preceitos disciplinares prescritos por Roma e, finalmente, levar uma vida sacramental intensa e permanente.

Para que a escola e a educação atingissem essa meta, elas estavam entregues a um tipo de professor que, ele próprio, encarnava o paradigma do católico da Restauração. As comunidades entregavam a regência de suas escolas somente nas mãos de homens dos quais tinham a certeza que cumpririam a missão de serem fieis transmissores da doutrina e dos ensinamentos da Igreja. Dessa forma coube à escola e à educação  uma parte fundamental na concretização do Projeto da Restauração. Tanto assim que os rituais como a comunhão solene, que franqueava aos meninos e meninas o acesso pleno à participação religiosa e comunitária, dava-se ao término e como coroação do período escolar de quatro anos. A conclusão de uma etapa na vida escolar que hoje é apenas um acontecimento profano, revestia-se de uma motivação e de um clima de sacralidade, com o recebimento solene do sacramento da eucaristia.

A tarefa dos colégios de nível médio era o mesmo. Havia, entretanto, um aspecto peculiar nesses estabelecimentos. Situados sempre em cidades de médio e grande porte, atendiam a um clientela de alunos das classes média e alta pertencentes às diversas etnias representadas pela população. Os egressos não procediam, como nas escolas comunitárias da  região colonial, de uma única origem étnica. Eram lusos, alemães, italianos, poloneses, etc., que mais tarde integrariam a classe média como profissionais liberais, comerciantes, militares, funcionários públicos, políticos, juízes, diplomatas, burocratas .... Para o Projeto da Restauração Católica  era vital que as camadas dirigentes do futuro pautassem a vida particular e as funções na sociedade, de acordo com os princípios da Igreja hierárquica, levando a sério a vida sacramental e orientando suas ações conforme a moral e a disciplina do catolicismo renovado.

Não há dúvida que neste particular os colégios  prestaram, de fato, um relevante serviço à causa católica. Em grande parte saíram deles  as lideranças católicas que atuaram como agentes de transformação e assim foram responsáveis pela influência que o catolicismo exerceu na vida civil urbana e na vida pública do Estado e em âmbito nacional. Nessa tarefa contribuíram novamente as Congregações Marianas existentes entre os alunos desses colégios e de uma maneira toda especial os retiros espirituais, a insistência em freqüentar os sacramentos, além de uma série de atividades regulares de cunho religioso, que faziam parte da rotina diária, como o hábito de rezar antes e depois das aulas, as aulas de religião e outras mais.

O conjunto de estratégias implantadas nas comunidades e conduzidas com rigor pelo clero, foram determinantes para o êxito do Projeto da Restauração. A constante motivação religiosa somada a uma vida sacramental intensa, fez com que se multiplicassem as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa em geral. Dessa maneira, as paróquias novas que se fundavam no mesmo ritmo  do avanço da colonização, foram sendo entregues a padres vindos da Europa e à nova geração do clero nativo, de todo em todo afinado com o espírito da Restauração. Em poucas décadas desapareceu o clero comprometido com as situações políticas e econômicas locais, o clero a serviço de uma concepção de Igreja e de catolicismo em que Roma e os bispos pouca ou nenhuma influência exerciam, um clero dedicado ao culto sem consistência doutrinaria, levando uma vida divorciada dos costume disciplinares e do decoro clerical. No seu lugar entrou um clero regular e diocesano munido de uma formação teológica sólida, educado de acordo com as diretrizes disciplinares ditadas pelo papa, pelas congregações  da cúria romana e pelos bispos locais.  

Ao lado da nova geração do clero multiplicaram-se, com notável rapidez, as vocações religiosas masculinas e femininas, clericais ou não, como jesuítas, palotinos, salesianos, franciscanos, redentoristas, lassalistas, maristas, irmãs franciscanas, irmãs de São José, do Imaculado Coração de Maria, de Santa Catarina e muitas outras. Seu destino foram as paróquias e capelanias e de modo especial as escolas, os colégios e hospitais. A atuação preferencial das congregações femininas foram as escolas primárias e médias e o cuidado para com os enfermos em dezenas de hospitais. Durante a primeira metade do século XX, raros foram os hospitais que não estivessem sob a responsabilidade de alguma das congregações femininas. Além das escolas, colégios e hospitais,  as religiosas mantinham um número considerável de sanatórios, asilos, orfanatos, creches, escolas de artes domésticas, etc. É fácil de imaginar o que esse verdadeiro exército de sacerdotes diocesanos e regulares, de religiosos e religiosas significaram para o Projeto da Restauração Católica. 

O Projeto não se descuidou do operariado urbano emergente. Tomando como referência a Doutrina Social da Igreja, consolidada  na encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII e “Quadragesimo anno” de Pio XI, somada às experiências e o modelo social proposto pelo arcebispo von Ketteler e posta em prática, por ex, pelas “Associações Kolping”, o padre jesuíta João Batista Reus fundou, na primeira década do século XX, em Rio Grande a “Liga Operária Católica” que em começos da década de 1930, inspirou o Pe. Leopoldo Brentano a fundar em Pelotas os Círculos Operários. A agremiação teve uma ampla aceitação e em  pouco tempo espalhou-se pelo Estado inteiro e mais tarde, por todo o País.

As lideranças do Projeto da Restauração perceberam desde muito cedo que era preciso encontrar uma fórmula que permitisse que ele não  fosse comprometido por iniciativas isoladas e sem coesão entre si. Foram várias as tentativas. As circunstâncias  totalmente  novas criadas pelo advento  da República, levaram à fundação de um partido político católico, inspirado no “Partido Católico do Centro” da Alemanha, de orientação nitidamente ultramontana e que exerceu uma aguerrida oposição a Bismarck e seu projeto político-cultural do Kulturkampf. Também no Brasil recebeu o nome de “Partido Católico do Centro”. Tinha sido fundado no começo da década de 1870 por um grupo de católicos em Porto Alegre e retomado com maior vigor em 1890. Participou com candidatos próprios nas   eleições para representantes da Constituinte federal e estadual. Os resultados  deixaram claro  que não era por aí que os católicos  garantiriam o seu espaço nem a nível estadual e muito menos a nível federal pois, não conseguiram eleger nenhum representante a nível federal e a nível estadual os eleitos foram o fruto de uma coligação com o partido de Júlio d Castilhos, de orientação positivista, fato que descaracterizou a natureza do partido.

Bicentenário da Imigração - 44

A Ilustração colocou a Igreja Católica diante de gigantescos desafios específicos. O desmonte sistemático dos regimes de direito divino é complementado pelo ocaso dos regimes de padroado, pelos regimes de cristandade. Segue como consequência inevitável a separação do Estado e da Igreja, a laicização da vida civil, a secularização da vida cotidiana. As soluções para as questões do homem e do mundo são procuradas na razão e na ciência. A consagração pelo Estado do princípio que todos e tudo, também as religiões, são iguais perante a lei, a liberdade de consciência, a liberdade de  expressão, confinou a Igreja no seu campo de competência específica: questões de fé, de culto e disciplina religiosa. O estado laico evocou a si a educação dos cidadãos, a legitimação dos matrimônios, a administração dos cemitérios. Na suas decisões ignora e hostiliza a Igreja. Em não poucos casos, o Estado se organiza e age abertamente contra a Igreja, quando não a persegue. O anticlericalismo, o agnosticismo, o ateísmo marcam as elites dirigentes. 

Em meio a uma atmosfera tão adversa, a Igreja, foi obrigada a repensar o seu lugar no cenário histórico mundial e, de alguma forma, assegurar o espaço que lhe é privativo. A saída que encontrou caracteriza-se por um retorno à concepção da mística eclesiástica da Idade Média  e da ortodoxia  doutrinaria, litúrgica e disciplinar do Concílio de Trento. A Igreja começa a pôr em marcha o projeto da “Restauração Católica” como resposta à laicização  e à secularização da sociedade civil e, também, como forma de garantir o seu espaço no cenário dos povos.

O desafio doutrinário  posto pelas novas correntes do pensamento começou a ser enfrentado seriamente com o começo do pontificado de Pio IX. Os debates sobre a questão sucederam-se, multiplicaram-se e estenderam-se a toda a Igreja durante as  décadas de 1850 e 1860, culminando com a convocação do Concílio Vaticano I. 

Durante as sessões do Concílio, os padres conciliares, sob a orientação de Pio IX, empenharam-se  em afirmar e reafirmar as linhas doutrinárias  e as diretrizes disciplinares, tomando como referência o Concílio de Trento. A Restauração Católica nada mais é do que a reforma da Igreja nas bases doutrinarias e disciplinares daquele Concílio, adaptadas às circunstâncias dos tempos e finalmente formuladas nos documentos do Vaticano I. 

A Restauração Católica fundamenta-se, portanto, em primeiro lugar, no retorno ao catolicismo tridentino, sob autoridade direta do romano Pontífice. Opõe-se, em princípio, de qualquer tipo de composição com o poder laico e, antes de mais nada, a qualquer tutela do Estado. Foi nesse contexto  que foi entendido o conceito do “Ultramontanismo” ou Ultramontanos” (ultra montes ou além das montanhas), referindo-se aos teólogos, ao clero, aos religiosos e ao povo em geral, que combatia o galicismo dos católicos franceses que defendiam uma composição com o poder civil. Os ultramontanos reconheciam  como autoridade máxima e única aquele que tinha sua sede “ultra montes, além das montanhas, dos Alpes”, o papa em Roma.

O termo Ultramontano ou Ultramontanismo assumiu, no decorrer  do tempo e das circunstâncias, vários significados. O sentido original parece ter sido meramente geográfico. Ultra montes – alem das montanhas, referia-se a pessoas, povos e acontecimentos, localizados ou acontecidos no outro lado das montanhas, no caso, além dos  Alpes.

Com a generalização das ideias do Iluminismo, dos enciclopedistas, dos racionalistas..., durante o século XVIII, ocorreu uma mudança substancial no sentido do conceito de ultramontanismo. A partir daí irá caracterizar-se pela animosidade contra Roma. Três vertentes eclesiásticas foram as principais responsáveis: o Febronianismo das igrejas nacionais e episcopais, a eclesiologia estatal ilustrada do Jansenismo e o avanço do Protestantismo. Desde então ultramontanos são os que defendem a infalibilidade do papa e o primado jurisdicional de Roma, de acordo com os princípios  de Gregório VII e Inocêncio III. O termo torna-se sinônimo de curial, hierocrático, jesuítico, inimigo da ilustração. 

Com a implantação do Projeto da Restauração Católica no século XIX, o conceito ultramontanismo adquiriu novas conotações, como o retorno à ortodoxia  do Concílio de Trento e do princípio de que toda a autoridade emana de Roma. Um dos visados principais foi o Galicanismo na França que pregava um Igreja tutelada pelo Estado e com ele comprometida e os nacionalismos que viam na Igreja uma força de ingerência na autonomia do Estado, como aconteceu na Alemanha durante o Kulturkampf quando, os jesuítas acusados de agentes diretos a serviço de Roma, foram expulsos do pais.

Os princípios defendidos pela Restauração Católica rejeitavam  qualquer tipo de ingerência do estado laico nos assuntos da Igreja e por sua vez a Igreja devia manter-se afastada do Estado laico, agnóstico ou ateu. A dinâmica da história, entretanto, não tardou em demonstrar que o poder civil e o poder religioso não podiam ignorar-se mutuamente ou simplesmente um prescindir do outro. Foi preciso encontrar uma fórmula  aceitável de convivência. Essa fórmula certamente não consistia num passo para trás, retomando, ou restaurando o regime de cristandade. Os saudosistas do regime do passado somavam minoria e não havia as mínimas chances de êxito. A saída para o impasse situava-se em outro lugar. O Estado, a sociedade civil e suas autoridades, a Igreja, a sociedade religiosa e suas autoridades, tem obrigações para com seus súditos. Ao Estado cabe a obrigação de garantir o bem estar material do cidadão e à Igreja cabe zelar pelo bem estar espiritual dos fieis. Ora, uma avaliação antropológica elementar mostra que a história dos povos foi constuída, em última análise, sobre o pressuposto de que bem-estar material e bem-estar espiritual são complementares. Não se conhece exemplo na história em que algum povo tenha prescindido inteiramente dessa dupla realização humana. Os dois elementos são as duas faces de uma mesma medalha, são mutuamente complementares. 

Esse foi o quadro esboçado  na Europa desde a primeira metade do século XIX. Esse foi também o cenário que se definiu no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, para assumir a forma definitiva com a proclamação da República e a implantação do Estado laico.

A seguir pretendemos mostrar  como se deu a implantação da Restauração Católica no Brasil, de modo especial nos estados do sul e qual foi a fórmula encontrada para conviver em relativa harmonia com os governos positivistas  da primeira República, em especial no Rio Grande do Sul, onde a presidência do Estado ficou em suas mãos até 1930. 

A Restauração Católica  no sul do Brasil
Apesar de todos os movimentos contrários ao regime de cristandade surgidos durante o século XVIII e XIX, no Brasil, ele se manteve na sua essência, até o final do Império.  A Proclamação da República encerrou em definitivo o regime de cristandade, instalando no Pais um Estado laico, que consagrou a separação do Estado da Igreja. A sociedade civil abdicou do seu componente de sacralidade, o poder civil rejeitou o papel de braço secular da Igreja, ao mesmo tempo em que declarou todos e quaisquer credos e confissões religiosas gozando de direitos e deveres iguais e se empenhou em mantê-las o mais longe possível dos negócios do Estado. O Trono  o Altar, o Estado e a Igreja divorciaram-se  e cada qual fechou-se sobre seus negócios, não raro numa atitude de franca oposição e, em não poucos casos, de guerra declarada. 

Os primeiros sinais  de que um projeto de renovação da Igreja estava em andamento no Rio Grande do Sul, tornaram-se evidentes com a nomeação, em 1860, de D. Sebastião Dias Laranjeira, segundo bispo do Rio Grande do Sul. O novo bispo formara-se em Roma e em Roma fora escolhido e sagrado por Pio IX. Durante a formação imbuíra-se no mais genuíno espírito ultramontano. Desde logo orientou a sua preocupação pastoral  e disciplinar em favor da implantação do Projeto de Restauração Católica na Província do Rio Grande do Sul. Nessa tarefa foi obrigado a enfrentar uma série de dificuldades, oriundas de um lado da parte das autoridades públicas e do outro  dentro do próprio modelo de Igreja e do tipo de clero sob sua jurisdição. Teve que encontrar uma fórmula para superar a complicada convivência com os governantes provinciais de orientação positivista. Da assembléia provincial partiram renovados protestos contra a linha de governo eclesiástico implantado pelo novo bispo.  Repetiram-se os pedidos de informação dos deputados, com a evidente intenção de interferir nos negócios da Igreja, pretensão diametralmente  oposta às convicções  e aos propósitos ultramontanos de D. Sebastião. D. Sebastião tomou uma posição firme a favor dos bispos de Olinda e do Maranhão, presos durante o episódio da “questão Religiosa”. 

A Igreja que D. Sebastião encontrou  na Província do Rio Grande do Sul colocou-o diante de  problemas talvez ainda mais complicados e mais difíceis de resolver do que aqueles oriundos  da convivência com as autoridades provinciais. O atendimento pastoral estava a cargo de um clero impregnado de  um espírito laico incompatível com a proposta da Restauração Católica. Muitos  padres estavam  filiados a Maçonaria. Orientavam sua ação pastoral, se é que se podia chama-la  assim, em sintonia com as ordens, ou pior a sabor  das veleidades dos chefes políticos locais, dos detentores do poder econômico. O que importava eram festas ruidosas nas quais explodia uma manifestação religiosa eivada de comportamentos profanos ao ponto de mascarar qualquer sinal de religiosidade autêntica. A conduta particular dos membros do clero não sugeria em nada o perfil do sacerdote concebido pelas normas da Igreja. Era comum a não observância do celibato, fato tranquilamente aceito como algo normal por grande parte das freguesias. A vida  sacramental fora relegada a um lugar secundário. Mas, essa questão já foi lembrada em detalhes mais acima.

Foi em meio a esse quadro que D. Sebastião Dias Laranjeira começou a obra da implantação do projeto da Restauração Católica na Província do Rio Grande do Sul. 

Em 1890 tomou posse da diocese de Porto Alegre o sucessor de D. Sebastião, o lazarista vindo de Minas Gerais, também formado em Roma, D. Cláudio Ponce de Leão. Ele continuou,  intensificou e ampliou a obra da Restauração Católica começada pelo predecessor. No seu governo o projeto iria apresentar resultados muito importantes e amadurecer frutos que em muito compensaram os esforços empenhados. Na tarefa de restaurar a doutrina católica e implantar a disciplina no meio do clero e nas próprias comunidades dos fieis, contribuíram decisivamente vários fatores. Lúcio Kreutz assim enumera um série de deles na sua obra: “O Professor Paroquial – Magistério e Imigração Alemã”. 

Vários fatores concorreram para que a reação desencadeada pela Igreja Católica na Província, a partir de 1860, tomasse as reais proporções que adquiriu. Tiveram peso especial fatores como:

a) a presença de imigrantes alemães, italianos e poloneses, o que motivou as ordens religiosas dos respectivos países a assistirem os emigrados;

b) concomitantemente, os problemas entre a Igreja e o Estado na Alemanha, Itália e França (Kulturkampf, perda dos Estados Pontifícios, etc.), o que levou muitas congregações a procurarem outros paises com maior garantia e melhores condições de trabalho. Em conseqüência, e a pedido do bispo local, inúmeras congregações  europeias começaram a trabalhar na Província; 

c) a expulsão dos jesuítas da Alemanha pela questão do Kulturkampf com Bismarck e a transferência  de um número elevado dos mesmos para o sul do Brasil, tiveram um peso especial; vieram religiosos dos mais bem preparados e o bispo confiou-lhes o Projeto Católico junto à colonização teuta católica no estado, onde demonstraram destacada  atuação, como veremos a  seguir.

Sem o concurso desses fatores permitindo e mesmo  provocando a liberação de consideráveis contingentes de clero e religiosos (as) europeus para o Rio Grande do Sul, não teria sido possível a realização do Projeto Católico tão intenso nas zonas de colonização alemã. A vinda de novos contingentes de além-mar, principalmente depois de 1872, em conseqüência do Kulturkampf, permitiu a iniciativa de novas organizações,  sendo que então os católicos puderam encontrar ao menos um padre na matriz ou na canônica, enquanto um coadjutor atendia às comunidades distantes. 

De 1870 a 1904 chegaram ao Rio Grande do Sul respectivamente as seguintes ordens e congregações européias: 

Jesuítas: em 1849 vieram dois, em 1858 mais dois. O afluxo maior veio a partir de 1872. Até 1885 já havia 78 jesuítas com 13 residências e, em 1900 já somavam 100 padres. Posteriormente o afluxo dos mesmos continuou intenso.
Franciscanas da caridade: em 1872;
Palotinos alemães: em 1882;
Capuchinhos franceses: em 1900
Irmãs de Santa Catarina: em 1900;
Lassalistass franceses: em 1904; Irmãs do Imaculado Coração de Maria: em ?
Salesianos italianos: em 1901;
Padres diocesanos, mais de uma centena, de 1890-1904. (Kreutz, 1991, p. 63-64)

Com afluxo contínuo de imigrantes alemães, italianos e outros e com os reforços constantes que as ordens e congregações recebiam, estava posta a base logística para o Projeto da  Restauração Católica. Todo esse contingente humano: imigrantes saídos de uma Igreja restaurada na Europa, religiosos e clero comprometidos com o Projeto de Igreja definido no Concílio de Trento, reafirmado pelo Concílio Vaticano I e divulgado pelos documentos pontifícios de Pio IX, Leão XIII, Pio X, Bento XV e Pio XI e no pontificado de Pio XII, sempre sob a autoridade inconteste do Sumo Pontífice, formou a base sólida para que o Projeto alcançasse o êxito esperado.

A questão que se coloca a essa altura refere-se aos meios e estratégias para fazer vingar o Projeto. Lúcio Kreutz destaca na obra já citada três instrumentos básicos: o associativismo, a imprensa e a escola e o professor paroquial. Vale a pena aprofundar um pouco essa questão e acrescentar alguns fatores a mais. 

Bicentenário da Imigração - 43

A Restauração Católica no Sul do Brasil

O Contexto histórico
Para entendermos convenientemente o que foi o Projeto da Restauração Católica para a Igreja em primeiro lugar e, por extensão para o mundo ocidental, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, é preciso situá-lo no contexto histórico da época. A Igreja Católica, como qualquer outra instituição reage  como uma caixa de ressonância  aos ecos das mudanças históricas. Afinal, no plano da sua organização temporal, ela é sensível, como qualquer outra, às mudanças de rumo dos ventos da História. Mais profundos ou mais superficiais terminam influindo na condução do governo da Igreja, nas formulações doutrinárias, nos rituais litúrgicos e nas regras  disciplinares.

O final do século XVIII e, principalmente, a primeira metade do século XIX, compreende um espaço na História em que se gestaram transformações radicais que terminaram por moldar a fisionomia do mundo até os nossos dias. Quais seriam os principais componentes desse processo? Sem pretender estabelecer  uma priorização objetiva, é possível identificar uma série deles.

A revolução do pensamento, que teve a sua expressão máxima na Ilustração, no Iluminismo, no Racionalismo, no Liberalismo, no Evolucionismo, no Socialismo foi, sem dúvida, dúvida um dos componentes mais decisivos. A Revolução Francesa implantaria na França os resultados práticos dessa reviravolta, derrubando a monarquia e executando a família real na guilhotina. Mais tarde Napoleão se encarregaria de  difundir, com o avanço dos seus exércitos, as novas ideias pela Europa toda. O velho paradigma da organização com um monarca absoluto no topo e o povo a seus pés, chegara ao fim. E com ele encerrara-se a era em que o rei, o imperador, além de encarnar e exercer o poder civil, por bem ou por mal, representava também o poder espiritual. A coroação dos reis franceses em meio à pompa litúrgica na catedral de Reims, mergulhava a figura  do rei numa aura de sacralidade. Colocava-o no Olimpo dos deuses distantes, intocáveis, soberanos, investidos de uma autoridade inconteste, legitimando inclusive o autoritarismo despótico. A multidão correndo pelas ruas de Paris, respondeu a essa concepção com o clamor pela “liberdade, igualdade e fraternidade”, ao mesmo tempo em que aplaudia ruidosamente o fim da monarquia. 

Os  anos finais do século XVIII marcaram o início do fim dos tempos em que a Igreja e o Império, de mãos dadas, aliados no mesmo objetivo, mantinham sob tutela rígida os negócios temporais e os negócios espirituais. Auto coroação de Napoleão pode ser interpretada como um episódio de transição nessa dinâmica de transformação. A autoridade laica começava a rejeitar a legitimação eclesiástica e credenciava-se a si mesma. O monarca matinha o titulo, o cetro e a coroa, não mais outorgados  pela autoridade da Igreja em nome de Deus, mas pela autoridade que ele mesmo conquistou. A autoridade da coroa imperial prescindia, de lá para frente, da chancela da tiara de Roma. A autoridade sobre a sociedade civil já não emanava da autoridade divina tornada visível e palpável via Igreja. Foi credenciada pela  conquista pessoal do monarca ou do mandatário ou outorgada pela vontade e pela escolha do povo.

Do processo posto em movimento resultou um outro fenômeno de grande importância: Uma radical transformação na maneira de conceber o pertencimento ao corpo social. Ate aí a pessoa nascia num  determinado contexto e por isso mesmo passava a integrá-lo, sem que se lhe oferecesse a oportunidade de, por livre escolha, seguir outro caminho. O contexto marcava em que a pessoa era obrigada a se movimentar. Estabelecia os limites para a sua visão do mundo, do homem, do ideário ideológico, social, econômico e, de modo especial, o religioso. É neste último aspecto que o fato se torna mais visível. Nascia-se numa sociedade cristã e por isso mesmo era-se cristão. Não havia o mínimo espaço para uma escolha livre fora desses parâmetros. Como consequência, vivia-se numa sociedade em que desde os membros situados no topo da hierarquia até os mais ínfimos tinham sua presença e sua função legitimados pela sacralidade. A condução da sociedade, o fomento à arte e à ciência, etc.,  implicavam em preocupações de natureza religiosa. Era a Igreja, por ex., que determinava a taxa de juros que podiam ser cobrados. Mandava então a lógica que também as autoridades civis não fossem propriamente laicas. Elas administravam o lado aparentemente material de suas sociedades já que a materialidade era de fato apenas aparente pois, numa civilização que na sua essência era religiosa. Conclui-se daí que as autoridades civis necessitavam da investidura religiosa para legitimar suas funções. Deduz-se dessa situação também que todo o poder sobre a sociedade civil emanava de Deus. O poder era por Ele outorgado ao governante e não pela vontade do povo. Neste caso é legítimo  perguntar em que consistia  a diferença efetiva entre um príncipe da Igreja e um príncipe laico governando um povo? As fronteiras entre esses dois mundos diluíam-se e terminavam por apagar-se. É nisto que consistia o Regime de Cristandade. Nos casos extremos dos regimes de concordata e mais ainda no regime de padroado, a autoridade laica exercia também o poder sobre a administração interna da Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Cabia-lhe escolher e nomear bispos e párocos, regulamentar os matrimônios, criar dioceses, paróquias, capelas e capelanias, legislar sobre cemitérios, vigiar  a disciplina eclesiástica, cobrar dízimos. Chegou-se assim ao princípio de que o príncipe determinava qual a religião a ser adotada em seus territórios. No regime de concordata não cabia automaticamente  à autoridade civil poder sobre a Igreja nos territórios sob sua jurisdição. Mas num acordo firmado entre o governo civil  de um pais e o da Igreja, estabeleciam-se os pontos e as formas em que o poder civil tinha o direito de opinar, decidir ou intervir em assuntos da Igreja.

A fisionomia pré-moderna da religião e da Igreja quanto ao seu lugar, à sua organização e a sua competência na sociedade, era evidentemente incompatível com os novos ventos que começaram a varrer o mundo desde a Europa, a partir da segunda metade do século XVIII. Pregava-se a liberdade como pressuposto para que a realização individual e coletiva fosse possível. A liberdade pressupunha o direito do indivíduo sobre a livre escolha da sua profissão, do seu estilo de vida, do lugar onde morar, da ideologia a seguir, da confissão religiosa a professar. Foi neste contexto, por ex., que se tornou corrente e adquiriu sentido e tornou-se praticável o conceito de “conversão”. Reclamava-se  para o indivíduo o direito e converter-se ao protestantismo, ao calvinismo, ao catolicismo ou até converter-se ao agnosticismo, ao ateísmo. No regime de padroado ou no regime de cristandade “converter-se” a uma outra confissão religiosa significava até certo ponto, abdicar ou renegar a cidadania. Não havia espaço legítimo para uma conversão Em outras palavras, a pessoa era religiosa, professava uma confissão religiosa por imposição do território em que nasceu. De então para frente gozava da liberdade de mudar de confissão, de “converter-se”, ou declarar-se aconfessional, caso lhe conviesse, sem a ameaça de instrumentos legais que  constrangessem ou impossibilitassem a livre opção e sem que o controle do grupo o excluísse ou estigmatizasse como apóstata ou renegado.

A igualdade, outro princípio básico da nova ordem, colocava os adeptos dos credos e filiações confessionais mais diversas, como detentores dos mesmos direitos e deveres básicos. Não havia mais espaço legal para a discriminação por razões de crença, raça, etnia, classe social ou hierarquia. “Todos são iguais perante a lei”, reza hoje um dos princípios que de alguma forma é invocado em todas as constituições dos estados modernos.

A submissão ao monarca, a obediência cega e muitas vezes servil, devia ceder lugar a uma sociedade aos moldes familiares. Como ideal nas relações humanas estabelecia-se o convívio fraterno, no qual a consciência das próprias obrigações, o respeito para com os outros, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, garantiria a atmosfera necessária para que o convívio humano pudesse prosperar.

A lógica impunha que essa reviravolta  histórica removesse de vez os pressupostos que sustentavam as monarquias consideradas como de direito divino, o primado do religioso sobre o profano e o leigo, a fidelidade confessional, o sistema de padroado, o regime de cristandade. Superara-se o tempo em que a sociedade civil e a sociedade de fiéis formavam uma única entidade, operando os chefes políticos e religiosas numa única colaboração (Azzi, 1994, p. 7). Não havia mais lugar  para um regime de união dos poderes civil e eclesiástico, a união do Estado e da Igreja e, em não poucos casos a união entre a cruz e a espada. Muito menos cabia neste cenário o monarca na condição de chefe efetivo da sociedade sacral e como tal reconhecido pelas autoridades eclesiásticas. A sacralidade deixava de perpassar toda a organização social, política, econômica, artística, desde seus chefes até os últimos súditos, e foi obrigada  a recolher-se para dentro das fronteiras do religioso e do eclesiástico propriamente dito. 

Nas entranhas dessas mudanças nasceram simultaneamente na Europa, dois movimentos que caminharam na direção oposta: O Romantismo no plano cultural mais amplo e a Restauração da Igreja Católica. 

O romantismo clássico teve a sua origem na Alemanha no final do século dezoito com os irmãos Schlegel, Tieck, Wachenrode, Novalis, Schelling, Bernhardi e outros. Alimentou-se até certo ponto  no movimento intelectual surgido na  Inglaterra para combater a Ilustração e o Classicismo, inspirado no naturalismo de Rousseau, nas elegias de Young e Gray e outros mais. Desembocou mais tarde no movimento conhecido como “Sturm und Drang” na Alemanha. Da Alemanha, o romantismo espalhou-se por toda a Europa. Assumiu feições próprias de acordo com as peculiaridades de cada pais. Teve um desenvolvimento acentuado na Inglaterra como atesta a sua literatura. Victor Hugo foi um dos primeiros românticos franceses. O expoente maior do romantismo italiano foi Manzoni e Rivas do romantismo espanhol.

Poesia romântica é um conceito  que compreende originalmente a poética dos povos românicos da Idade Media, em oposição à poética latina. Tendo como ponto de partida o latim popular caracterizado por importantes influências sofridas nas circunstâncias  específicas em que o fenômeno se verificou. Nos últimos séculos do Império Romano ocorreu um distanciamento progressivo entre o latim erudito e o latim do povo. Este assimilou particularidades de pronúncia, introduziu vocábulos oriundos das línguas nativas. Cada uma dessas línguas românicas exibe  as marcas específicas deixadas pelas línguas locais. Assim, por ex., o francês assimilou elementos germânicos e alguns traços celtas, o português e o espanhol sofreram a influência árabe e o romeno mostra evidentes sinais de elementos eslavos, só para citar alguns exemplos mais conhecidos. O que, porém, é mais importante do que os elementos linguísticos formais, foram as fontes históricas e culturais em que o românico se inspirou. Alimentou-se basicamente das tradições e dos valores culturais dos diversos povos assim denominados românicos. Considerando agora que durante a Idade Média, o cristianismo europeu desenvolveu em grande parte suas bases no meio desses povos, chega-se à conclusão óbvia que ele vestiu a roupagem cultural da época e do ambiente local. Adotou o imaginário, as fontes de inspiração, os modelos arquitetônicos, a maneira de pensar, a língua e o linguajar, as formas de religiosidade, as práticas religiosas do contexto histórico e cultural de cada realidade. Compreende-se assim, sem maiores dificuldades, que a Igreja Católica seguisse o mesmo caminho de retorno à Idade Média, por razões nem sempre coincidentes com o romantismo. Uma outra razão de muito peso para a Igreja foi, com certeza, a revalorização do regime monárquico de governo e a  centralização em Roma das  decisões  sobre doutrina, rituais e disciplina.

O romantismo assumiu depois o significado de um movimento que se opunha ao rigor das formas  e das regras do classicismo em favor da expressão dos sentimentos e  da liberdade de fantasia. Contrapunha a infinitude  ao ideal da perfeição do classicismo, a procura do concreto, do palpável pela eterna procura do inatingível, à harmonia clássica pelo caos.  O objetivo final do romantismo consistia na fusão da religião, da ciência e da vida numa grande síntese: a Arte. Por isso o artista é o verdadeiro arauto dos mistérios de Deus.

O fato de os românticos  se alimentarem na poética dos povos românicos da Idade Media, significa logicamente uma revalorização de tudo aquilo que compunha o perfil característico desses povos e naquela época. Os poetas cantavam uma sociedade ancorada nas tradições, coesa em torno de sua Querência natal, a “Heimat”, comprometida com um príncipe e com a sua Igreja. O retorno às raízes medievais  fez com que o romantismo se alimentasse daquelas fontes declaradas superadas pela ilustração, pelo racionalismo, pelo liberalismo, pelo socialismo e demais desdobramentos do movimento desencadeado no século XVIII.

O romantismo aproxima-se  da Restauração Católica no momento em que propõe como objetivo final  “a fusão numa só unidade a religião, a ciência, a vida e a arte”. Na realização dessa síntese final cabe ao artista o papel  de “arauto dos mistérios de Deus”. 

Entende-se  assim que a linguagem  comum utilizada no canto religioso popular, na poética religiosa, manifesta a liberdade e a fecundidade da linguagem, característica do romantismo. Há outro componente que aproxima os dois movimentos: o fascínio por uma sociedade camponesa que cultua valores e costumes puros e ingênuos e uma fé  e uma religiosidade espontânea  e até infantil. O sonho de uma utopia humana em que as tensões originadas pelas aparentes contradições da própria  natureza de ser do homem, encontrarão a superação definitiva, numa grande síntese que  para o cristão encontra a sua realização no paraíso. 

Bicentenário da Imigração - 42

Para entendermos o clima e a natureza da  religiosidade que perpassava todas as horas do quotidiano dos imigrantes basta percorrer as páginas dos almanaques, editados para eles, com a finalidade de informá-los e, principalmente formar a sua mente e espírito. Num desses almanaques encontramos a seguinte reflexão. 

O trabalho do homem é necessário. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto! O trabalho é obrigação do agricultor, como se tudo dependesse dele. Se o agricultor não trabalha cresce a erva daninha, o chão se transforma em pântano, as plantas  se deterioram e os animais degeneram. O agricultor providencia pelas condições de vida das plantas, para que amadureçam frutos mais nobres.

O trabalho de Deus é necessário
Tudo depende da bênção de Deus. Quando terminamos a nossa tarefa, começa a de Deus. Assim se costumava dizer depois de concluída a semeadura. 

Uma chuva é melhor do que dez regadas – diz um provérbio. Chuva e  sol no momento certo são tão importantes para o agricultor quanto uma boa colheita. Se chove demais não tarda a enchente devastadora. Se chove de menos a fome castiga o animal e o homem. O homem trabalha na terra e Deus manda sua bênção do céu. 

Dois trabalham a terra.
O homem com fraca força, com seu juízo e sua vontade paciente. Mas a seu lado opera alguém incomparavelmente mais forte, por meio das forças da natureza.
O homem realiza muito, a Deus compete a maior parte. O homem começa, Deus leva a obra adiante e a conclui.

Por acaso não é uma grande honra para o agricultor colaborar tão intimamente com Deus. Vê-se rodeado pelo fenômeno da germinação, do crescimento, do florescimento e da maturação. Dia após dia flagra-se rodeado da vida, bem diferente do operário de fábrica e da indústria, que se ocupam apenas com material inanimado. Por isso é muito mais fácil ao agricultor preservar a sua união com Deus pois, tem consciência do quanto os seus esforços dependem das bênçãos e da colaboração divina. 

Essa parceria do colono como colaborador de Deus, simboliza a vida da graça, onde quer que Deus e o homem colaboram. (Die Fahne, 1948, p.36)

Ou ainda.

Eu sou um agricultor, eu lavro a terra que produziu as colheitas dos meus antepassados. Lavro a terra sozinho com meu arado e o cavalo que resfolega. A terra é dura e meu passo difícil. Minha boca em silêncio como silenciosa é a terra. Mas Deus caminha a meu lado e guia a mim e a lâmina do arado. (Familienfreund, 1941, p. 40)

 - O homem pode muito, mas o brilho do sol é dádiva de Deus.

- Deus não permite que nenhum homem corrija o seu relógio.

- Deus não paga todo o dia, mas mantém uma boa contabilidade e paga tudo de uma vez só. 

- O que Deus semeia Ele também rega

- A oração sobe ao céu. A bênção de Deus desce.

- O verde das sementeiras te diz: Acredita em Deus e não desanimes. 

- Quem tem Deus como amigo, não passa necessidades.

- Trabalho e oração. O trabalho é a fonte certa da prosperidade. A  oração é o incenso do céu; o trabalho faz a vida bela e transparente; a oração sincera chama a bênção do céu.

- Encaremos  a oração como a tarefa mais importante da nossa vida. Como se reza assim se vive. 

- Quem nega a Deus é como aquele que nega o sol, pois Ele continua brilhando. 

- Acreditar em tudo é fraqueza, não acreditar em nada é tolice.

- Teme a Deus, observa seus mandamentos. Então sairá desta casa toda a infelicidade.

- Quem entra e sai desta casa, deve pensar sempre, que nosso senhor Jesus Cristo é  única entrada e saída. 

- “Uma criatura que não acredita em criador é uma das coisas mais estranhas

- Tudo depende da bênção de Deus. Só Deus dá o sol e  chuva. 

Nessas reflexões, provérbios, aforismas, etc.; está condensada, por assim dizer, a alma da religiosidade do agricultor. No esforço de construir um futuro duradouro e feliz para si e os seus, não apenas conta com a presença amiga de Deus, mas conta com a sua colaboração e uma parceria em que cabe a Ele a parte mais importante. Constantemente o agricultor é convidado a agradecer a Deus a colaboração sem a qual seus esforços não passariam de um fardo insuportável.

O vermelho do entardecer cobre de magnificência do firmamento. Junto à  fonte da floresta ecoa uma  flauta como se fosse uma doce oração da noite.  Das profundezas da mata o sabiá agradece a Deus o alimento e o descanso. Parece que nos convida: Mortal agradece também tu. (Familienfreund Kalender. - 1937, p. 48)

As flores no meio da relva perfumada fecharam os olhos. Os pássaros sonham tranquilos descansando nos arbustos que farfalham. O riacho reza de mansinho seguindo sua viagem sem fim. Reza e adormece também tu. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 45)

Além das poesias que revelam as características da religiosidade que está presente em todas as horas do camponês e permeia todas as suas atividades, uma rica fonte neste sentido são os provérbios, também encontráveis de modo especial nos almanaques. Apresento aqui algumas amostras que ilustram bem o que acabo de afirmar.   

- O mundo está repleto da bênção de Deus. Tu a queres, ela é tua; só precisas mover a mão e o pé; só precisas ser religioso e inteligente. 

- Quem não reconhece a Deus numa flor, em vão sabe os nomes das estrelas. 

- O sofrimento foi uma constante na vida dos colonos e por isso as publicações que costumavam ser lidas por ele, lembram constantemente que ele deve ser encarado como algo que faz parte do quotidiano, purifica a alma e, se aceito com resignação, é uma garantia de recompensa na outra vida.

Sofrer, suportar, renunciar é o destino do homem na terra. Soframos com Cristo para com Ele sermos glorificados. (Familienfreund Kalender – 1937, p. 50)

Os sofrimentos são as flores milagrosas, que crescem na beira das estradas do Senhor. Com seu perfume silvestre abrem o nosso coração para a graça. (Familienfreund Kalender. – 1937, p. 59)

Uma boa palavra que brota de um bom coração, tem o efeito tranqüilizador do bálsamo. Refresca a ferida e a dor como a fonte que brota da terra. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 27)

Um anjo silencioso passa pela terra. O Senhor o enviou para consolar nos sofrimentos deste mundo. Quando sobrecarregado perguntas: Porque? Ele aponta em silêncio para o alto. (Familienfreund Kalender, 1938, p. 39)

Aceita as alegrias  e os sofrimentos como sinal de um destino mais alto. 
Saber  suportar, saber renunciar engrandece o homem
Boas ações formam a colheita, os feixes que agradam ao Senhor.
Um dia Ele te concederá a coroa como recompensa. (Familienfreund Kalender,  1937, p. 34)

A morte como constante presença na vida do homem, mereceu ser vista  através de diferentes metáforas.

- A criança foi recebida pelos anjos.

- O taverneiro fechou a conta.

- O cansado deitou-se para descansar

- A foice da morte atingiu o ceifador

- O marinheiro entrou no porto da eternidade

- O coveiro caiu na cova

- O relógio do relojoeiro parou

- O peregrino entrou na pátria eterna

- O fôlego do músico acabou

- O carroceiro fez sua última viagem.

Os exemplos que testemunham a religiosidade no quotidiano dos imigrantes e seus descendentes, constantes nas  publicações que circulavam entre eles, poderiam ser multiplicados ao indefinido. Mas não me quero alongar e, parece-me, que os apresentados dão uma boa idéia. Como consideração final permito-me insistir mais uma vez. Se alguém quiser perceber a verdadeira religiosidade que permeia o quotidiano do agricultor, que não o procure na igreja durante as missas e cultos, ou nas orações formais antes e depois das refeições, nas orações antes de dormir, na reza do rosário ou na recitação do Pai Nosso, durante as procissões solenes e ocasiões similares. A religiosidade que de fato conta não se expressa em fórmulas consagradas, nas orações atribuídas aos santos ou líderes religiosos, ou modelos de virtudes. Revela-se nas atitudes, nos gestos, no próprio silêncio, frente às vicissitudes da vida, dos espetáculos da natureza, do grandioso do céu estrelado, da imponência da floresta, do assustador de uma tempestade, do farfalhar de um milharal em flor, da singeleza de uma flor silvestre ou a sinfonia dos pássaros na primavera. Para o agricultor, o camponês, o colono, Deus está presente e se revela e, por  assim dizer, sacraliza, a natureza em todas as suas manifestações,  como o ensina São Paulo na carta aos Romanos:

Porque o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto a eles: porque Deus lho manifestou. Na verdade as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis depois da Criação do mundo pela consideração das obras que  foram feitas: E assim também seu poder eterno e sua divindade, de tal sorte que são eles inescusáveis. (cf. Carta aos Romanos)

Bicentenário da Imigração - 41

Religiosidade no quotidiano
dos imigrantes

A história da humanidade é uma história de migrações e seus efeitos. É assim que  Fouquet começa o seu livro: “A contribuição alemã para a construção da nação brasileira”, dedicado ao sesquicentenário da imigração alemã no Sul do Brasil, já mais vezes citado. Nesta colocação  há duas questões que merecem destaque. Em primeiro  lugar o homem como sujeito e ator da história, é um eterno migrante, um forasteiro, um peregrino sempre a caminho. Em segundo lugar é a pergunta porque afinal o homem migra? A resposta deve ser procurada na própria natureza humana, em constante busca de realização, em busca do aperfeiçoamento. É por essa razão que o homem não se cansa em melhorar a segurança e o bem estar material; vai à procura da inserção num relacionamento social que lhe assegure um convívio frutífero com seus semelhantes; busca aperfeiçoar-se  culturalmente apropriando-se de sempre novos conhecimentos; procura o equilíbrio interno de suas demandas psicológicas; e, de modo especial,  administrar os mistérios e as incógnitas da vida e do universo, por meio de crenças, rituais, atitudes e sistemas religiosos, como testemunham a história, a etnografia e a etnologia. 

Os teóricos que tentaram estabelecer uma tipificação e uma hierarquização  dos motivos que levaram e ainda levam o homem a migrar, valem-se dos parâmetros ditados pelo viés pelo qual  cada um observa o fenômeno. Para o economista o homem migra para prover as necessidades materiais do dia a dia; para o sociólogo o homem migra para livrar-se de uma situação social que o impede de beneficiar-se do convívio com seus semelhantes. Mesmo que esses ou outros motivos representem o momento da tomada de decisão para migrar, no fundo, no fundo, uma motivação permeia a todas elas. O que confere lógica e sentido a todas as migrações, resume-se na tendência, no instinto do homem em concretizar a sua realização existencial. Alias, acima já lembrei que os romanos na sua proverbial capacidade de formular máximas sábias, legaram uma que expressa na plenitude conceitual, a razão porque o homem migra. “Ubi bene ibi pátria” – “onde o homem se sente bem aí está a sua pátria”.

Qualquer que seja a situação que leva o homem a migrar implica em decisões acompanhadas de conseqüências mais ou menos traumáticas. Como ponto de partida cobra do imigrante  o abandono e a renúncia à terra natal com todo o entorno humano e a sua história. Mais ou menos definitivo, mais ou menos radical, trata-se sempre de um desenraizamento e  de um transplante, movido pela esperança de encontrar  a realização, a segurança e felicidade em outra parte. Ninguém migra sem a perspectiva de melhorar as condições de vida e construir um futuro melhor para si próprio e os seus. Em grau maior ou menor todo o migrante passa por esse processo, também aquele que se transfere de uma comunidade para outra, de uma cidade para a outra, de uma região para a outra. Não é aqui o objetivo de falar sobre migrações internas. 

A nossa atenção centra-se nas migrações transoceânicas e transcontinentais, durante o século dezenove, o período em que a Europa Central e do Norte  expeliram seus excedentes populacionais, para todos os quadrantes do planeta, de modo especial para as três Américas.

Não é difícil imaginar o que significou na época  e nas circunstâncias de então uma viagem da Europa para o Sul do Brasil. Os veleiros levavam meses dos portos alemães e holandeses até o Rio de Janeiro e, finalmente, para Rio Grande. Era tarefa para homens e  mulheres em grandes dificuldades mas decididos em busca de uma saída. Era tarefa também e, principalmente, para homens e mulheres de uma fé inabalável em si próprios e sobretudo uma profunda fé em Deus. Cristãos que eram, protestantes ou católicos, encaravam o migrar como uma autêntica peregrinação em busca da terra prometida, como mostram os seguintes versos de um cântico entoado pelos emigrantes do Hunsrück:

Fomos chamados por Deus, caso contrário a nossa peregrinação não teria sentido. Dando fé no seu chamado nos pomos a caminho.

Deus falou a Abraão: deixa a tua terra e parte para aquela que te mostrarei com minha forte mão. Também  nós acreditamos firmemente na sua poderosa voz. Por isso partimos daqui em busca do Brasil distante. 

Mais de cem anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes no Sul do Brasil, continuava viva a  convicção de que migrar ainda é uma peregrinação com motivações religiosas, uma missão a ser cumprida em função de um apelo religioso. Reproduzo em forma corrente o conteúdo de uma poesia publicada no Familienfreund Kalender de 1942, com o título “Der Auswanderer – o Emigrante”.

Nos primeiros clarões do amanhecer quatro seres humanos põem-se a caminho: um homem que a vida toda carregou fardos pesados, uma mulher que em vão esperou por um momento de descanso, dois rapazes ainda jovens e uma criança de cachos louros, aconchegada à mãe não percebe a angústia dos demais. É inimaginável o que lutaram pelo pão de cada dia, até que, finalmente, vencidos pela penúria e a miséria, decidiram partir, deixando para trás o fogão amigo. Por mais difícil que fosse tentaram buscar melhores dias em outro continente. Decidiram trabalhar duro numa terra selvagem e estranha. Não demorou e içaram-se as âncoras e os corações choraram lágrimas de sangue. 

Mas não é hora de duvidar ou de desanimar pois, o anjo que acompanha não faltará com seu consolo na hora oportuna, apontando para um cenário convidativo lá ao longe. Por cima das ondas, das nuvens e do vento, aproxima-se uma criança envolta no esplendor celestial, nos braços da Imaculada que a protege sorrindo. Na hora da necessidade e da escuridão estarão a seu lado. Eles os conduzirão através do mar tempestuoso, preparando um nova Querência, por mais longínqua que seja. Por mais dura e áspera que for a trilha que leva até o repouso, confiai na sua graça no peso do sofrimento. Continuai a peregrinação com a alma em paz, sem dar atenção aos temores. Não tardará e tereis a felicidade de uma nova pátria, uma nova Querência, lá longe além do oceano. (cf. Familienfreund Kalender, 1942, p. 77).

Estamos aqui diante das duas armas  de que se serviram também os imigrantes que desembarcaram no Litoral Norte, em São Leopoldo, em Blumenau, em Joinville, na Bahia, em Minas Gerais, no Espírito Santo, e em outras partes do Brasil. O trabalho e a oração. Logo que puseram os pés nas praias brasileiras, puseram mãos à obra para a construção da nova Querência motivados pelo lema: “ora et labora – reza e trabalho”.

Homens e mulheres práticos como eram  os camponeses, sabiam muito bem que a oração sem o trabalho não passa de uma alienação e o trabalho sem a oração se transforma num fardo insuportável. A chave do sucesso na vida está na complementação do trabalho pela oração e a oração pelo trabalho. 

A pergunta que a esta altura se coloca é esta: E no seu quotidiano como é que os imigrantes concebiam e punham em prática o binômio reza e trabalha. Para responder a essa pergunta é necessário entender a cosmovisão própria do camponês, do agricultor, do colono. 

O contato diuturno com a natureza e os fenômenos naturais, ensina-lhe que entre ele e o mundo que o rodeia há uma relação existencial. A sua vida e o seu bem estar dependem dos animais, das plantas, do sol, da lua, do calor e do frio, da alternância das estações. Encontra as referências simbólicas do seu mundo espiritual nas fontes, nas flores, nas  árvores, nas montanhas, nos mares, nos rios e nas florestas. É desta maneira que o convívio do colono imigrante com a natureza, ensina-lhe o caminho e a forma de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela e de como transformá-la numa aliada sempre disponível. O sol e a lua com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, o nascer e o ocaso do sol, a alternância das fases da lua, a sucessão das estações do ano, deixam de ser apenas fenômenos naturais para se transformarem no palco em que a  existência humana se torna possível. E nesta relação simbiótica o homem  constrói sua cultura, sua história, seu imaginário, sua  simbologia, sua mitologia, suas crenças, sua religião, sua religiosidade, seus rituais, seus princípios éticos. Tudo que o rodeia, por assim dizer, se anima e se personaliza, de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vem revestido. As realidades naturais e os fenômenos  que as acompanham, assumem vida e importância pelo que representam no quotidiano e pelo que sugerem à imaginação.

Pela alternância das  estações o sol define os ciclos anuais, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento,  a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, florescer, frutificar, amadurecer, declinar e morrer, para recomeçar tudo de novo, fenômenos pela sua natureza astronômicos, climatológicos ou biológicos, transformam-se em fatores causais de vital importância, na consolidação da identidade cultural e, de modo especial, na construção do imaginário das crenças e rituais religiosos. A primavera vai simbolizar a juventude, o verão o vigor e a plenitude adulta, o outono a maturidade e a colheita, o inverno o declínio e finalmente  a morte para, em seguida recomeçar o eterno vir e devir da dança da vida. As fases da vida e os ciclos anuais acabam fundindo-se simbolicamente na mesma dinâmica. A vida tem a sua primavera, verão, outono e inverno. O sol e a lua são cultuados como divindades. Água e vida são sinônimos. A terra é o ventre fecundo  do qual nascem os alimentos. O antigos gregos chamavam a terra de  “A Terra”, com atributos divinos. Nossos antepassados a chamavam com reverência de  “Mãe Terra”. 

O que pretendi mostrar com essas considerações aparentemente talvez não tenha a ver nada ou muito pouco com a religiosidade dos nossos antepassados imigrantes. Na verdade, entretanto, suas vidas foram vividas e sua história construída, ressalvadas as peculiaridades históricas e geografias, na sua essência no mesmo cenário de todos os agricultores do mundo e da história. 

Salvo melhor juízo a religiosidade dos indivíduos e das comunidades dos imigrantes manifesta-se em dois níveis. O primeiro deles, o mais visível e que normalmente se avalia como  termômetro para avaliar o grau   e a profundidade da religiosidade, são as práticas religiosas formais, representadas pela freqüência aos cultos, missas, novenas, procissões,  orações da manhã, nas refeições, antes de dormir.... etc. Não pretendo me ocupar desta forma de expressão da religiosidade pois, é por demais conhecida por todos e seria preciso entrar nas peculiaridades de cada confissão religiosa, já que os leitores, procedem de alguma forma de três tradições religiosas institucionais: a tradição Evangélica Protestante, a tradição Católica da Restauração e a tradição Católica  Luso-Brasileira. 

Religiões institucionalizadas como o catolicismo e o protestantismo convencionaram formas oficiais pelas quais os fiéis expressam a sua religiosidade. Resumem-se nas missas, cultos, procissões e outras tantas. Trata-se das práticas obrigatórias que indicam inclusive o nível de compromisso da pessoa para com a comunidade. Quem por exemplo não participa  das missas e cultos em domingos, ainda hoje, costuma ser tido como um membro relapso da comunidade em si. Tempos houve em que alguém que não assistisse à missa dominical, costumava ser  “apontado com o dedo” como se dizia. Não é desse tipo de religiosidade que pretendo falar. Para começar seria preciso caracterizar protestantes e católicos, cada qual com as suas particularidades.

Decidi demorar-me por isso naquilo que poderíamos chamar de respostas informais de natureza religiosa que costumam manifestar-se espontaneamente diante das situações mais diversas que costumam acompanhar o diário da vida das pessoas. Uma surpresa agradável, uma notícia triste, uma catástrofe natural, um espetáculo da natureza ou, simplesmente, a contemplação de uma flor, o caminhar por uma plantação em pleno crescimento, a satisfação diante de uma boa colheita. Esses  cenários e dezenas de outros costumam ocasionar momentos de irrupção da religiosidade na sua forma mais espontânea e, por isso mesmo, mais autêntica. 

É neste plano que se manifesta a verdadeira religiosidade. No momento em que a pessoa percebe que as fórmulas feitas já não dão conta do que sente e intui, recorre à espontaneidade que tem na oração do silêncio a sua manifestação mais eloqüente. As fórmulas e os versos atrapalham  e, tanto o homem simples, o colono com a enxada ou o machado na mão,  como o sábio munido da pena e do computador, refugiam-se na reflexão silenciosa que os põe em sintonia com a natureza e, nas suas manifestações mais prosaicas e  mais grandiosas, encontram-se com Deus e escutam a sua voz. A respeito dessa via  de relacionamento com Deus o Dr. Francis Collins deixou no seu livro  “A Linguagem de Deus” uma reflexão que tem tudo a ver com que se acaba de dizer. É importante lembrar que o Dr. Collins não é nada menos do que o Diretor do “Projeto Genoma”, responsável pelo mapeamento do código genético do homem, portanto uma dos expoentes maiores da ciência do início deste milênio. São suas as palavras:

Depois que passei a acreditar em Deus, empreguei um tempo considerável tentando apreciar as características dele. Conclui que Ele deve ser um Deus que se preocupa com as pessoas ( ... ) Também conclui que Deus deve ser santo e justo, já que a Lei Moral me chama nessa direção. Contudo isso me parecia uma abstração terrível. O fato de Deus ser bom e amar as suas criaturas não significa, por exemplo, que tenhamos a habilidade de nos comunicar com Ele, ou que tenhamos um tipo de relacionamento com Ele. Descobri, porém, uma sensação crescente de anseio por essas coisas, e comecei a perceber que é para isso que servem as orações. A oração não é, como alguns parecem sugerir, uma oportunidade de manipular Deus para que Ele faça o que você quer. Em vez disso, trata-se de uma forma de buscar uma afinidade com Deus, aprender com Ele e tentar perceber o ponto do vista Dele sobre vários assuntos ao nosso derredor, que nos deixam confusos, em dúvida e em sofrimento. (Collins, 2007.)