Bicentenário da Imigração - 45

A base do Projeto da Restauração Católica teve como um dos seus pilares mestres uma cuidadosa organização paroquial e comunitária. Várias comunidades menores situadas em áreas contíguas e polarizadas por uma comunidade maior, formavam uma paróquia. Próximo à matriz e próximo às diversas capelas encontrava-se sempre uma escola. No começo, em muitos casos, capela e escola funcionavam no mesmo prédio, originando o que se convencionou chamar de uma “escola-capela”. Uma associação com sua diretoria cuidava da igreja. Cabia-lhe como tarefa a construção e a manutenção do templo, a casa paroquial além do sustento do pároco e de seus auxiliares, o bom andamento das missas e demais atos litúrgicos, organização das festas, a administração dos cemitérios, etc. Embora o pároco não integrasse a diretoria sua autoridade sobre ela era evidente pela posição que ocupava como representante da autoridade eclesiástica. Nessas circunstâncias ninguém ousava disputar qualquer tipo de liderança ou de autoridade com o pároco mesmo em questões de administração temporal. Seus  desejos e principalmente suas determinações assumiam o caráter de ordens que encontravam sempre eco favorável na diretoria da paróquia e das capelas e estas, por sua vez, encarregavam-se de faze-las respeitadas pela comunidade toda.

Frente a uma organização tão coesa e tão comprometida com o pároco e com a igreja e tudo que representavam, e o fato de que todas as comunidades ostentarem o mesmo perfil organizacional, fica fácil entender que o Projeto da Restauração Católica, emanado de Roma e implantado nas paróquias e capelas pelo bispo, os párocos e as diretorias das comunidades, produzisse, sem tardar seus resultados. A vida sacramental tornou-se a base da ação pastoral. O padre no caso era de fato um verdadeiro sacerdote cujo único objetivo consistia em que os fiéis vivessem de acordo com os mandamentos e os ditames emanados de Roma e das sés  episcopais. 

Além da base paroquial alicerçada  numa organização sólida e eficiente, várias outras formas  de associações setoriais e mutuamente complementares tornaram-se  comuns e praticamente obrigatórias. Entre as mais populares aparecem:

Primeiro. As associações de crianças reunidas em torno da devoção ao Menino Jesus (Kindheit Jesu Verein). Nelas as crianças, desde muito cedo, eram introduzidas numa profunda devoção a Jesus, a qual perduraria a vida toda nas mais diversas formas de devoção que praticariam como adultos. 

Segundo. A devoção o Coração de Jesus, muito popular especialmente entre as senhoras casadas e viúvas. Era difícil encontrar uma casa em que não se venerasse uma imagem do Coração de Jesus ao lado de outra do Coração de Maria. Essa devoção atingia o seu ponto alto no mês de junho, mês dedicado ao Coração de Jesus, culminando com a festa do Coração de Jesus na última sexta-feira daquele mês. Todas as primeiras sextas-feiras do mês durante o ano todo eram também consagradas ao Sagrado Coração e era convicção generalizada que alguém que tivesse assistido uma vez missa e comungado durante nove sextas-feiras seguidas, teria a salvação da alma garantida. 

Terceiro. O Apostolado da Oração foi mais um forma de devoção muito difundida entre as senhoras. As associações que se formavam com o objetivo de  fazer da oração um meio eficaz de apostolado costumavam ter uma vida religiosa muito ativa. Distinguiam-se em qualquer  paróquia pelas fitas vermelhas que portavam e pela intensa vida sacramental com evidentes objetivos missionários. 

Quarto. As Congregações Marianas fomentaram a vida religiosa e sacramental dos jovens e dos homens de todas as classes sociais e de todos os níveis de instrução. Também essas organizações  exibiam uma clara preocupação pela formação, pelo cultivo da vida cristã por meio da vida sacramental de seus associados, além de um marcante espírito  apologético e missionário. As Congregações Marianas caracterizavam em primeiro lugar as paróquias e os colégios  dos jesuítas. Nas ocasiões de manifestações públicas de fé, como procissões de Corpus Christi, congressos eucarísticos e outras, os congregados marianos davam bem a ideia de um catolicismo militante, símbolo da Igreja militante e tão a gosto dos jesuítas. Ostentando suas fitas azuis e portando suas bandeiras, as congregações de colegiais, de universitários, de formados, de operários ..., desfilavam como se fossem batalhões ou regimentos adestrados para o combate, manifestando publicamente   e sem respeito humano as suas convicções, enquanto cantavam o hino oficial das Congregações Marianas, o que aliás nos dá bem uma ideia do espírito que animava essas associações: “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras, cerremos as fileiras, soldados do Senhor ...” no decorrer da década de 1930 surgiu entre as Congregações Marianas de colegiais, universitários e formados, com sede no Colégio Anchieta  sob a orientação do Pe. Werner von und zur Mühlen, um importante núcleo de reflexão filosófica e teológica. O resultado foi o formação de um grupo de intelectuais católicos que marcaram presença visível na vida de Porto Alegre em geral e de modo especial conquistaram um número considerável  de cátedras  na então  Universidade do Rio Grande do Sul e um grande respeito pelo catolicismo em geral.

Quinto. A contrapartida feminina para as Congregações Marianas foram as associações das Filhas de Maria. Não havia paróquia em que esse tipo de associação não reunisse adolescentes e moças em torno da devoção a Nossa Senhora. O ponto alto nessas agremiações  era também a intensa motivação sacramental e o cultivo das virtudes cristãs.

Um objetivo comum tanto das Congregações Marianas quanto das Filhas de Maria consistia em preparar para as futuras gerações, pais e mães virtuosos e inteiramente  afinados com a Igreja. Ao mesmo tempo deveriam servir de fermento na sociedade civil, colocando a fidelidade à Igreja, a obediência ao papa, aos bispos e aos párocos como ideal supremo. Em suas reuniões, em seus congressos ou nas participações em atos público de fé costumavam cantar: “Papam protege, hostes reprime, stet Petri Cátedra, salutis regula – Protegei o Papa, rechaçai os inimigos, a Cátedra de Pedro permanece como regra de fé”. 

Sexto. Enquanto as Congregações Marianas e as Associações das Filhas de Maria se constituíram nas organizações  prediletas dos jesuítas, os bispos e os padres diocesanos valeram-se de preferência da Ação Católica como instrumento de formação e de ação. Como as Congregações Marianas, também a Ação Católica adaptou-se às condições sócio-culturais dos católicos, visando em primeiro lugar a juventude. No cenário católico dos anos 30, 40 e 50 destacaram-se a JOC – juventude operária católica; a  JAC – juventude agrária católica; a JEC – juventude estudantil católica; a JUC – juventude universitária católica – JIC – juventude independente católica. 

As duas organizações, a Congregação Mariana para universitários e formados e a Juventude Universitária Católica, por ex., mudaram o clima laico e em grande parte anti-clerical da Universidade do Rio Grande do Sul. 

O Projeto da Restauração Católica contou ainda com um fator poderoso: a educação nas escolas comunitárias e nos colégios de ensino médio. 

O currículo das escolas de comunidade propunha um tipo de educação em que a criança aprendia a ser um membro útil da comunidade. E na concepção da época e no contexto da Restauração, ser um membro útil significava saber ler, escrever, fazer cálculos, interiorizar costumes e  valores da tradição dos antepassados, preservar a língua e, antes de mais nada, aprender o catecismo, conhecer a História Sagrada, amar a Igreja, respeitar as autoridades eclesiásticas e viver conforme os mandamentos de Deus e da Igreja, orientar a vida em sintonia com os preceitos disciplinares prescritos por Roma e, finalmente, levar uma vida sacramental intensa e permanente.

Para que a escola e a educação atingissem essa meta, elas estavam entregues a um tipo de professor que, ele próprio, encarnava o paradigma do católico da Restauração. As comunidades entregavam a regência de suas escolas somente nas mãos de homens dos quais tinham a certeza que cumpririam a missão de serem fieis transmissores da doutrina e dos ensinamentos da Igreja. Dessa forma coube à escola e à educação  uma parte fundamental na concretização do Projeto da Restauração. Tanto assim que os rituais como a comunhão solene, que franqueava aos meninos e meninas o acesso pleno à participação religiosa e comunitária, dava-se ao término e como coroação do período escolar de quatro anos. A conclusão de uma etapa na vida escolar que hoje é apenas um acontecimento profano, revestia-se de uma motivação e de um clima de sacralidade, com o recebimento solene do sacramento da eucaristia.

A tarefa dos colégios de nível médio era o mesmo. Havia, entretanto, um aspecto peculiar nesses estabelecimentos. Situados sempre em cidades de médio e grande porte, atendiam a um clientela de alunos das classes média e alta pertencentes às diversas etnias representadas pela população. Os egressos não procediam, como nas escolas comunitárias da  região colonial, de uma única origem étnica. Eram lusos, alemães, italianos, poloneses, etc., que mais tarde integrariam a classe média como profissionais liberais, comerciantes, militares, funcionários públicos, políticos, juízes, diplomatas, burocratas .... Para o Projeto da Restauração Católica  era vital que as camadas dirigentes do futuro pautassem a vida particular e as funções na sociedade, de acordo com os princípios da Igreja hierárquica, levando a sério a vida sacramental e orientando suas ações conforme a moral e a disciplina do catolicismo renovado.

Não há dúvida que neste particular os colégios  prestaram, de fato, um relevante serviço à causa católica. Em grande parte saíram deles  as lideranças católicas que atuaram como agentes de transformação e assim foram responsáveis pela influência que o catolicismo exerceu na vida civil urbana e na vida pública do Estado e em âmbito nacional. Nessa tarefa contribuíram novamente as Congregações Marianas existentes entre os alunos desses colégios e de uma maneira toda especial os retiros espirituais, a insistência em freqüentar os sacramentos, além de uma série de atividades regulares de cunho religioso, que faziam parte da rotina diária, como o hábito de rezar antes e depois das aulas, as aulas de religião e outras mais.

O conjunto de estratégias implantadas nas comunidades e conduzidas com rigor pelo clero, foram determinantes para o êxito do Projeto da Restauração. A constante motivação religiosa somada a uma vida sacramental intensa, fez com que se multiplicassem as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa em geral. Dessa maneira, as paróquias novas que se fundavam no mesmo ritmo  do avanço da colonização, foram sendo entregues a padres vindos da Europa e à nova geração do clero nativo, de todo em todo afinado com o espírito da Restauração. Em poucas décadas desapareceu o clero comprometido com as situações políticas e econômicas locais, o clero a serviço de uma concepção de Igreja e de catolicismo em que Roma e os bispos pouca ou nenhuma influência exerciam, um clero dedicado ao culto sem consistência doutrinaria, levando uma vida divorciada dos costume disciplinares e do decoro clerical. No seu lugar entrou um clero regular e diocesano munido de uma formação teológica sólida, educado de acordo com as diretrizes disciplinares ditadas pelo papa, pelas congregações  da cúria romana e pelos bispos locais.  

Ao lado da nova geração do clero multiplicaram-se, com notável rapidez, as vocações religiosas masculinas e femininas, clericais ou não, como jesuítas, palotinos, salesianos, franciscanos, redentoristas, lassalistas, maristas, irmãs franciscanas, irmãs de São José, do Imaculado Coração de Maria, de Santa Catarina e muitas outras. Seu destino foram as paróquias e capelanias e de modo especial as escolas, os colégios e hospitais. A atuação preferencial das congregações femininas foram as escolas primárias e médias e o cuidado para com os enfermos em dezenas de hospitais. Durante a primeira metade do século XX, raros foram os hospitais que não estivessem sob a responsabilidade de alguma das congregações femininas. Além das escolas, colégios e hospitais,  as religiosas mantinham um número considerável de sanatórios, asilos, orfanatos, creches, escolas de artes domésticas, etc. É fácil de imaginar o que esse verdadeiro exército de sacerdotes diocesanos e regulares, de religiosos e religiosas significaram para o Projeto da Restauração Católica. 

O Projeto não se descuidou do operariado urbano emergente. Tomando como referência a Doutrina Social da Igreja, consolidada  na encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII e “Quadragesimo anno” de Pio XI, somada às experiências e o modelo social proposto pelo arcebispo von Ketteler e posta em prática, por ex, pelas “Associações Kolping”, o padre jesuíta João Batista Reus fundou, na primeira década do século XX, em Rio Grande a “Liga Operária Católica” que em começos da década de 1930, inspirou o Pe. Leopoldo Brentano a fundar em Pelotas os Círculos Operários. A agremiação teve uma ampla aceitação e em  pouco tempo espalhou-se pelo Estado inteiro e mais tarde, por todo o País.

As lideranças do Projeto da Restauração perceberam desde muito cedo que era preciso encontrar uma fórmula que permitisse que ele não  fosse comprometido por iniciativas isoladas e sem coesão entre si. Foram várias as tentativas. As circunstâncias  totalmente  novas criadas pelo advento  da República, levaram à fundação de um partido político católico, inspirado no “Partido Católico do Centro” da Alemanha, de orientação nitidamente ultramontana e que exerceu uma aguerrida oposição a Bismarck e seu projeto político-cultural do Kulturkampf. Também no Brasil recebeu o nome de “Partido Católico do Centro”. Tinha sido fundado no começo da década de 1870 por um grupo de católicos em Porto Alegre e retomado com maior vigor em 1890. Participou com candidatos próprios nas   eleições para representantes da Constituinte federal e estadual. Os resultados  deixaram claro  que não era por aí que os católicos  garantiriam o seu espaço nem a nível estadual e muito menos a nível federal pois, não conseguiram eleger nenhum representante a nível federal e a nível estadual os eleitos foram o fruto de uma coligação com o partido de Júlio d Castilhos, de orientação positivista, fato que descaracterizou a natureza do partido.

This entry was posted on sábado, 18 de junho de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.