Bicentenário da Imigração - 44

A Ilustração colocou a Igreja Católica diante de gigantescos desafios específicos. O desmonte sistemático dos regimes de direito divino é complementado pelo ocaso dos regimes de padroado, pelos regimes de cristandade. Segue como consequência inevitável a separação do Estado e da Igreja, a laicização da vida civil, a secularização da vida cotidiana. As soluções para as questões do homem e do mundo são procuradas na razão e na ciência. A consagração pelo Estado do princípio que todos e tudo, também as religiões, são iguais perante a lei, a liberdade de consciência, a liberdade de  expressão, confinou a Igreja no seu campo de competência específica: questões de fé, de culto e disciplina religiosa. O estado laico evocou a si a educação dos cidadãos, a legitimação dos matrimônios, a administração dos cemitérios. Na suas decisões ignora e hostiliza a Igreja. Em não poucos casos, o Estado se organiza e age abertamente contra a Igreja, quando não a persegue. O anticlericalismo, o agnosticismo, o ateísmo marcam as elites dirigentes. 

Em meio a uma atmosfera tão adversa, a Igreja, foi obrigada a repensar o seu lugar no cenário histórico mundial e, de alguma forma, assegurar o espaço que lhe é privativo. A saída que encontrou caracteriza-se por um retorno à concepção da mística eclesiástica da Idade Média  e da ortodoxia  doutrinaria, litúrgica e disciplinar do Concílio de Trento. A Igreja começa a pôr em marcha o projeto da “Restauração Católica” como resposta à laicização  e à secularização da sociedade civil e, também, como forma de garantir o seu espaço no cenário dos povos.

O desafio doutrinário  posto pelas novas correntes do pensamento começou a ser enfrentado seriamente com o começo do pontificado de Pio IX. Os debates sobre a questão sucederam-se, multiplicaram-se e estenderam-se a toda a Igreja durante as  décadas de 1850 e 1860, culminando com a convocação do Concílio Vaticano I. 

Durante as sessões do Concílio, os padres conciliares, sob a orientação de Pio IX, empenharam-se  em afirmar e reafirmar as linhas doutrinárias  e as diretrizes disciplinares, tomando como referência o Concílio de Trento. A Restauração Católica nada mais é do que a reforma da Igreja nas bases doutrinarias e disciplinares daquele Concílio, adaptadas às circunstâncias dos tempos e finalmente formuladas nos documentos do Vaticano I. 

A Restauração Católica fundamenta-se, portanto, em primeiro lugar, no retorno ao catolicismo tridentino, sob autoridade direta do romano Pontífice. Opõe-se, em princípio, de qualquer tipo de composição com o poder laico e, antes de mais nada, a qualquer tutela do Estado. Foi nesse contexto  que foi entendido o conceito do “Ultramontanismo” ou Ultramontanos” (ultra montes ou além das montanhas), referindo-se aos teólogos, ao clero, aos religiosos e ao povo em geral, que combatia o galicismo dos católicos franceses que defendiam uma composição com o poder civil. Os ultramontanos reconheciam  como autoridade máxima e única aquele que tinha sua sede “ultra montes, além das montanhas, dos Alpes”, o papa em Roma.

O termo Ultramontano ou Ultramontanismo assumiu, no decorrer  do tempo e das circunstâncias, vários significados. O sentido original parece ter sido meramente geográfico. Ultra montes – alem das montanhas, referia-se a pessoas, povos e acontecimentos, localizados ou acontecidos no outro lado das montanhas, no caso, além dos  Alpes.

Com a generalização das ideias do Iluminismo, dos enciclopedistas, dos racionalistas..., durante o século XVIII, ocorreu uma mudança substancial no sentido do conceito de ultramontanismo. A partir daí irá caracterizar-se pela animosidade contra Roma. Três vertentes eclesiásticas foram as principais responsáveis: o Febronianismo das igrejas nacionais e episcopais, a eclesiologia estatal ilustrada do Jansenismo e o avanço do Protestantismo. Desde então ultramontanos são os que defendem a infalibilidade do papa e o primado jurisdicional de Roma, de acordo com os princípios  de Gregório VII e Inocêncio III. O termo torna-se sinônimo de curial, hierocrático, jesuítico, inimigo da ilustração. 

Com a implantação do Projeto da Restauração Católica no século XIX, o conceito ultramontanismo adquiriu novas conotações, como o retorno à ortodoxia  do Concílio de Trento e do princípio de que toda a autoridade emana de Roma. Um dos visados principais foi o Galicanismo na França que pregava um Igreja tutelada pelo Estado e com ele comprometida e os nacionalismos que viam na Igreja uma força de ingerência na autonomia do Estado, como aconteceu na Alemanha durante o Kulturkampf quando, os jesuítas acusados de agentes diretos a serviço de Roma, foram expulsos do pais.

Os princípios defendidos pela Restauração Católica rejeitavam  qualquer tipo de ingerência do estado laico nos assuntos da Igreja e por sua vez a Igreja devia manter-se afastada do Estado laico, agnóstico ou ateu. A dinâmica da história, entretanto, não tardou em demonstrar que o poder civil e o poder religioso não podiam ignorar-se mutuamente ou simplesmente um prescindir do outro. Foi preciso encontrar uma fórmula  aceitável de convivência. Essa fórmula certamente não consistia num passo para trás, retomando, ou restaurando o regime de cristandade. Os saudosistas do regime do passado somavam minoria e não havia as mínimas chances de êxito. A saída para o impasse situava-se em outro lugar. O Estado, a sociedade civil e suas autoridades, a Igreja, a sociedade religiosa e suas autoridades, tem obrigações para com seus súditos. Ao Estado cabe a obrigação de garantir o bem estar material do cidadão e à Igreja cabe zelar pelo bem estar espiritual dos fieis. Ora, uma avaliação antropológica elementar mostra que a história dos povos foi constuída, em última análise, sobre o pressuposto de que bem-estar material e bem-estar espiritual são complementares. Não se conhece exemplo na história em que algum povo tenha prescindido inteiramente dessa dupla realização humana. Os dois elementos são as duas faces de uma mesma medalha, são mutuamente complementares. 

Esse foi o quadro esboçado  na Europa desde a primeira metade do século XIX. Esse foi também o cenário que se definiu no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, para assumir a forma definitiva com a proclamação da República e a implantação do Estado laico.

A seguir pretendemos mostrar  como se deu a implantação da Restauração Católica no Brasil, de modo especial nos estados do sul e qual foi a fórmula encontrada para conviver em relativa harmonia com os governos positivistas  da primeira República, em especial no Rio Grande do Sul, onde a presidência do Estado ficou em suas mãos até 1930. 

A Restauração Católica  no sul do Brasil
Apesar de todos os movimentos contrários ao regime de cristandade surgidos durante o século XVIII e XIX, no Brasil, ele se manteve na sua essência, até o final do Império.  A Proclamação da República encerrou em definitivo o regime de cristandade, instalando no Pais um Estado laico, que consagrou a separação do Estado da Igreja. A sociedade civil abdicou do seu componente de sacralidade, o poder civil rejeitou o papel de braço secular da Igreja, ao mesmo tempo em que declarou todos e quaisquer credos e confissões religiosas gozando de direitos e deveres iguais e se empenhou em mantê-las o mais longe possível dos negócios do Estado. O Trono  o Altar, o Estado e a Igreja divorciaram-se  e cada qual fechou-se sobre seus negócios, não raro numa atitude de franca oposição e, em não poucos casos, de guerra declarada. 

Os primeiros sinais  de que um projeto de renovação da Igreja estava em andamento no Rio Grande do Sul, tornaram-se evidentes com a nomeação, em 1860, de D. Sebastião Dias Laranjeira, segundo bispo do Rio Grande do Sul. O novo bispo formara-se em Roma e em Roma fora escolhido e sagrado por Pio IX. Durante a formação imbuíra-se no mais genuíno espírito ultramontano. Desde logo orientou a sua preocupação pastoral  e disciplinar em favor da implantação do Projeto de Restauração Católica na Província do Rio Grande do Sul. Nessa tarefa foi obrigado a enfrentar uma série de dificuldades, oriundas de um lado da parte das autoridades públicas e do outro  dentro do próprio modelo de Igreja e do tipo de clero sob sua jurisdição. Teve que encontrar uma fórmula para superar a complicada convivência com os governantes provinciais de orientação positivista. Da assembléia provincial partiram renovados protestos contra a linha de governo eclesiástico implantado pelo novo bispo.  Repetiram-se os pedidos de informação dos deputados, com a evidente intenção de interferir nos negócios da Igreja, pretensão diametralmente  oposta às convicções  e aos propósitos ultramontanos de D. Sebastião. D. Sebastião tomou uma posição firme a favor dos bispos de Olinda e do Maranhão, presos durante o episódio da “questão Religiosa”. 

A Igreja que D. Sebastião encontrou  na Província do Rio Grande do Sul colocou-o diante de  problemas talvez ainda mais complicados e mais difíceis de resolver do que aqueles oriundos  da convivência com as autoridades provinciais. O atendimento pastoral estava a cargo de um clero impregnado de  um espírito laico incompatível com a proposta da Restauração Católica. Muitos  padres estavam  filiados a Maçonaria. Orientavam sua ação pastoral, se é que se podia chama-la  assim, em sintonia com as ordens, ou pior a sabor  das veleidades dos chefes políticos locais, dos detentores do poder econômico. O que importava eram festas ruidosas nas quais explodia uma manifestação religiosa eivada de comportamentos profanos ao ponto de mascarar qualquer sinal de religiosidade autêntica. A conduta particular dos membros do clero não sugeria em nada o perfil do sacerdote concebido pelas normas da Igreja. Era comum a não observância do celibato, fato tranquilamente aceito como algo normal por grande parte das freguesias. A vida  sacramental fora relegada a um lugar secundário. Mas, essa questão já foi lembrada em detalhes mais acima.

Foi em meio a esse quadro que D. Sebastião Dias Laranjeira começou a obra da implantação do projeto da Restauração Católica na Província do Rio Grande do Sul. 

Em 1890 tomou posse da diocese de Porto Alegre o sucessor de D. Sebastião, o lazarista vindo de Minas Gerais, também formado em Roma, D. Cláudio Ponce de Leão. Ele continuou,  intensificou e ampliou a obra da Restauração Católica começada pelo predecessor. No seu governo o projeto iria apresentar resultados muito importantes e amadurecer frutos que em muito compensaram os esforços empenhados. Na tarefa de restaurar a doutrina católica e implantar a disciplina no meio do clero e nas próprias comunidades dos fieis, contribuíram decisivamente vários fatores. Lúcio Kreutz assim enumera um série de deles na sua obra: “O Professor Paroquial – Magistério e Imigração Alemã”. 

Vários fatores concorreram para que a reação desencadeada pela Igreja Católica na Província, a partir de 1860, tomasse as reais proporções que adquiriu. Tiveram peso especial fatores como:

a) a presença de imigrantes alemães, italianos e poloneses, o que motivou as ordens religiosas dos respectivos países a assistirem os emigrados;

b) concomitantemente, os problemas entre a Igreja e o Estado na Alemanha, Itália e França (Kulturkampf, perda dos Estados Pontifícios, etc.), o que levou muitas congregações a procurarem outros paises com maior garantia e melhores condições de trabalho. Em conseqüência, e a pedido do bispo local, inúmeras congregações  europeias começaram a trabalhar na Província; 

c) a expulsão dos jesuítas da Alemanha pela questão do Kulturkampf com Bismarck e a transferência  de um número elevado dos mesmos para o sul do Brasil, tiveram um peso especial; vieram religiosos dos mais bem preparados e o bispo confiou-lhes o Projeto Católico junto à colonização teuta católica no estado, onde demonstraram destacada  atuação, como veremos a  seguir.

Sem o concurso desses fatores permitindo e mesmo  provocando a liberação de consideráveis contingentes de clero e religiosos (as) europeus para o Rio Grande do Sul, não teria sido possível a realização do Projeto Católico tão intenso nas zonas de colonização alemã. A vinda de novos contingentes de além-mar, principalmente depois de 1872, em conseqüência do Kulturkampf, permitiu a iniciativa de novas organizações,  sendo que então os católicos puderam encontrar ao menos um padre na matriz ou na canônica, enquanto um coadjutor atendia às comunidades distantes. 

De 1870 a 1904 chegaram ao Rio Grande do Sul respectivamente as seguintes ordens e congregações européias: 

Jesuítas: em 1849 vieram dois, em 1858 mais dois. O afluxo maior veio a partir de 1872. Até 1885 já havia 78 jesuítas com 13 residências e, em 1900 já somavam 100 padres. Posteriormente o afluxo dos mesmos continuou intenso.
Franciscanas da caridade: em 1872;
Palotinos alemães: em 1882;
Capuchinhos franceses: em 1900
Irmãs de Santa Catarina: em 1900;
Lassalistass franceses: em 1904; Irmãs do Imaculado Coração de Maria: em ?
Salesianos italianos: em 1901;
Padres diocesanos, mais de uma centena, de 1890-1904. (Kreutz, 1991, p. 63-64)

Com afluxo contínuo de imigrantes alemães, italianos e outros e com os reforços constantes que as ordens e congregações recebiam, estava posta a base logística para o Projeto da  Restauração Católica. Todo esse contingente humano: imigrantes saídos de uma Igreja restaurada na Europa, religiosos e clero comprometidos com o Projeto de Igreja definido no Concílio de Trento, reafirmado pelo Concílio Vaticano I e divulgado pelos documentos pontifícios de Pio IX, Leão XIII, Pio X, Bento XV e Pio XI e no pontificado de Pio XII, sempre sob a autoridade inconteste do Sumo Pontífice, formou a base sólida para que o Projeto alcançasse o êxito esperado.

A questão que se coloca a essa altura refere-se aos meios e estratégias para fazer vingar o Projeto. Lúcio Kreutz destaca na obra já citada três instrumentos básicos: o associativismo, a imprensa e a escola e o professor paroquial. Vale a pena aprofundar um pouco essa questão e acrescentar alguns fatores a mais. 

This entry was posted on quinta-feira, 16 de junho de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.