Bicentenário da Imigração - 30

Para os imigrantes alemães e seus descendentes a casa em que nasceram (Heim – Vaterhaus), na qual tiveram suas experiências infantis, em que cresceram e tornaram-se adultos, assumia as proporções do sagrado. Representava à sua maneira um santuário no qual não se permitia a entrada do lado escuso do homem. Dele se bania tudo o que era baixo, tudo o que era sórdido, tudo o que era mentiroso, tudo o que era pérfido. Quando alguém se reportava  à sua casa paterna (Heim), sempre o fazia com respeito e com veneração. Entre suas quatro paredes, por mais modestas que tivessem sido,  viveram e lutaram as pessoas a quem mais queria e devia: os pais. Foi lá que aprenderam a amar e  a rezar, o que é certo e o que é errado e a sentir-se membros da micro sociedade  que é a família. Na casa paterna (no seu Heim) cresceram e se tornaram adultos e, por fim, partiram para a vida, carregando consigo  uma rica bagagem de valores humanos e religiosos e dispostos   a perpetuá-los  onde quer que fossem instalar  o “em casa” (das Zuhause) dos seus filhos. Como se pode ver esses valores eram essenciais na preservação da identidade. Preservá-los nada mais significou do que manter vivas as raízes culturais. A quem, por uma razão ou outra,  faltassem essas raízes, carecia da ligação mais importante para com o passado cultural. Ficava separado da cepa que o vivificava com a  seiva vital da sua história. 

Enquanto na família a assimilação dessa realidades acontecia pelo vivenciar diário no relacionamento com os  pais e irmãos, na escola a questão era tratada de maneira mais sistemática. Não se recorria a grandes discursos para garantir  os resultados, a dramatizações do tipo ético, apontando para os castigos e os prêmios reservados aos faltosos e os cumpridores das suas obrigações. Obtinha-se um resultado excelente com a leitura de histórias, de contos, de fábulas, com a declamação de poesias, com execução de cantos que se ocupavam com o tema. Os livros de leitura adotados nas escolas costumavam preencher uma dupla finalidade: exercitar a leitura e consolidar os valores culturais da tradição dos antepassados. 

O espaço formal reservado para a disciplina “Realia” não passava de meia hora por semana. Nem Havia necessidade para mais pois, seus conteúdos permeavam todas as outras disciplinas. Serviam de pano de fundo para histórias, fábulas, poesias, cantos, contos etc., como serviam para exercícios de  redação e de composição. 

Como extensão da casa destacava-se uma segunda “realidade”, não menos vital. Na tradição germânica ficou designada como “Hof” ou em tradução livre “pátio”. Esse vocábulo, entretanto, não se aproxima nem de longe do conceito que os alemães e seus descendentes lhe atribuíam. Os  elementos físicos do “Hof” compreendiam a casa de moradia (das Haus), os celeiros, os estábulos e as demais benfeitorias. Não podia faltar o jardim com flores na frente da casa. Entre as construções cresciam árvores de sombra, árvores frutíferas. Soltos andavam galinhas, patos, gansos e obviamente cães e gatos. Tudo estava convenientemente cercado por arame farpado ou uma taipa de pedras. Não raro a área ultrapassava vários mil metros quadrados. Todo esse complexo formava o pequeno mundo imediato do colono. A criança, ao sair do recinto sagrado da casa, entrava nesse espaço ainda perfeitamente delimitado e circunscrito. Este seria o seu mundo até os seis ou sete anos. Neste espaço vivenciava as alegrias e as realizações, as tristezas e as frustrações da infância. Esse minúsculo universo proporcionava-lhe o contato com as plantas e os animas. Nele descobria as primeiras incógnitas oferecidas pela natureza. Nele passava os dias brincando, divertindo-se e tentando entender os mistérios que evolviam a vida e a natureza. 

Essas experiências e essas vivências  todas faziam com que o colono lançasse raízes profundas e existenciais  no chão sagrado do “Hof”. Cada árvore contava uma história, cada pássaro  recordava uma emoção, cada flor sugeria um símbolo, cada telhado evocava um acontecimento, enfim, tudo que existia, vivia e se movimentava  neste recinto, vinha carregado de significados e de simbolismos. Nem a distância, nem a idade, nem os descaminhos da vida fariam com que qualquer autêntico filho dessa estirpe se esquecesse do seu “Hof”. Retornava a ele quando possível. E não havia nada mais triste e mais decepcionante para o forasteiro do que, voltando ao local onde ficara o  seu “Hof” e não encontrar mais nada, nem a casa em que nascera, nem as árvores em cuja sombra brincara e cujos frutos apreciara, nem os muros que marcavam as fronteiras do seu universo de criança, nem os celeiros, nem as estrebarias, nem as flores, nem os animais amigos. O palco desfeito do seu mundo infantil aperta-lhe o peito e faz doer o coração, com uma dor profunda pelo paraíso perdido mas não esquecido. As ervas desordenadas, os arbustos selvagens, os cipós e as árvores estranhas, que tomaram conta de tudo, parecem chamar-lhe a atenção que suas raízes já não se encontram naquele lugar. Foram apagadas e se perderam no passado. E o viajante perdido no chão que já não reconhece como o seu, tenta com tristeza e nostalgia, reconstruir na memória aquilo que um dia fora o seu “Hof”. Sente-se estrangeiro e estranho em sua própria terra e partindo, convence-se de que algo de existencial lhe foi roubado. 

Também na preservação de mais esse componente  importante da identidade, a escola participava de forma decisiva. As histórias dos livros de leitura, as poesias, os contos e os cantos, não se cansavam de chamar a atenção para as realidades integrantes do minimundo do  “Hof”. Enquanto na vivência  diária aprendiam reconhecer os limites práticos e as realidades concretas do “Hof”, na escola se lhes despertava a consciência da necessidade de apreciá-lo e amá-lo com todas as energias da alma. O descendente autêntico dos imigrantes alemães cultivava um verdadeiro caso de amor com o seu “Hof”. 

Mais tarde, com sete ou oito anos, a criança chegava na idade de freqüentar a escola. Chegara o momento de transpor os limites do minúsculo universo que era o “Hof”. A partir daí tomava pé numa realidade circunstancial mais ampla, mas que não deixava de ser uma extensão  das duas anteriores, a casa paterna, o “Heim” e o “Hof”. Começava a viver e conviver com a terra natal, a “querência natal”, a “Heimat”. Falamos novamente de um espaço geográfico e de uma experiência de vida. As fronteiras da comunidade limitavam o espaço geográfico. Como realidade humana a sociedade local polarizava-se em torno da escola, da igreja, do cemitério, da casa de comércio, dos artesanatos e demais elementos da infra-estrutura comunal. Até a década de 1950 a existência dos colonos, de fato,  esgotava-se e se consumia no perímetro da terra natal, da “Heimat”. Nela nasciam, viviam e morriam. Por essa razão o convívio na comunidade da terra natal, assumia em termos a mesma importância da casa paterna, do “Hof”. O menino e a menina identificavam aos poucos esse espaço e aprendiam a orientar-se por todas as trilhas  e caminhos que interligavam os moradores. Sabiam onde cada um morava, quem era, quais suas virtudes e quais seus defeitos. Assim, aos domingos, na igreja, nos encontros festivos, nos bailes periódicos, só encontravam rostos conhecidos. Algum forasteiro eventual caía logo em vista. Consolidava-se a consciência do mundo comunal no qual um pacto tácito, porém, sagrado, convidava as pessoas a se comprometerem mutuamente e a se engajarem  nos objetivos comuns.

Consolidava-se aí um convívio que retratava com absoluta fidelidade uma comunidade colonial Todas as pessoas conheciam-se pelo nome. O vizinho e o parente significavam muito mais do que um mero acidente geográfico ou uma simples fatalidade biológica. A trama das relações  interpessoais encontrava na proximidade e na vizinhança geográfica e no parentesco biológico, toda a sua motivação e toda a sua vitalidade. Essa realidade transformou-se no critério elementar para definir os direitos e os deveres mútuos. Vizinho tinha deveres e direitos por serem vizinho e parente tinha deveres e direitos por sere parente. 

Entende-se assim a não existência de certos serviços de assistência prestados hoje por repartições públicas ou por empresas especializadas. Não se conhecia, pro ex., a figura do coveiro, funcionário da prefeitura ou da comunidade. Providenciar o atestado de óbito, combinar a hora  da encomendação, abrir a sepultura, velar o falecido, leva-lo até o cemitério e, finalmente, sepulta-lo, cabia como obrigação aos vizinhos. Da mesma forma solidária procedia-se em outras situações. A maioria das obras de utilidade da comunidade, eram encaradas e assumidas como obrigação pessoal. Desta forma ficava fácil mobilizar um grande número de pessoas em se tratando de construir uma escola, uma igreja, uma capela, ou limpar e enfeitar o cemitério, preparar as festas ou cuidar da construção e manutenção das estradas. 

Em algum lugar muito especial da terra natal o jovem ou a jovem encontraria a pessoa que seria o grande amor da sua vida e com quem construiria um novo lar (Heim), organizaria seu próprio “Hof”, na terra natal (Heimat) que seria a dos seus filhos. A terra natal, a querência (die Heimat), portanto, significou sempre um lugar concreto e único, no qual convivia uma micro sociedade, também concreta e única, comprometida e mobilizada em torno de um propósito e de um projeto também comum, concreto e único. A terra natal não representava uma conceito abstrato, uma categoria teórica criada por intelectuais. Significou, como significa ainda hoje, um dado concreto, uma realidade geográfica e humana que os olhos podem apreciar, que o observador  pode descrever, que o poeta pode cantar. É uma realidade que, antes de mais nada, faz parte existencial da vida das pessoas. Chega ser um verdadeiro estado de espírito e, por isso mesmo, objeto obrigatório das reminiscências do viajante sozinho e em terra estranha.

Basta percorrer a poética e o cancioneiro popular para encontrar abundantes provas. Um ou outro exemplo para comprovar. O viajante longe da sua terra natal, recordando-se dela canta:

Im Schönsten Wiesengrunde
Ist meiner Heimat Land 
Ich Schaut’ so manche Stunde 
Ins Tal hinaus.

Em tradução livre: “No mais belo dos  prados,  encontra-se a minha terra natal. Durante horas e mais horas eu contemplo o vale”. 

O mercenário só e entregue à rude sorte cantarola em suas vigílias solitárias: “Difícil para o legionário é o caminho de retorno para casa. E muitos jamais de verão de nono a terra natal”:

Der Weg nach Haus ist Schwer
Für einen Legionär
Und viele, viele sehen die Heimat,
Die Heimat niemals mehr.

Embarcado em seu navio, o marinheiro pega da viola, recolhe-se ao convés e, embalado pelas ondas, bafejado pela brisa salgada, inspirado pela lua e pelas estrelas, canta:

“Um barco branco navega para Hongkong. As terras estranhas me atraem. Eu sinto saudades de casa. Eu disse aos ventos e às nuvens: levai-me convosco. Com muito prazer eu troco os muitos países estranhos, por uma única viagem para casa”:

Fährt ein weises Schiff nach Hongkong
Hab’ ich Sehnsucht nach zu Haus
Hab’ ich Sehnsucht nach der Ferne.
Und ich sagt’ zu Wind und Wolken, 
Nimmt mich mit ich tausche gerne, 
All die vielen fremden Länder, 
Für eine Heimfahrt aus. 

Depois é o forasteiro desgarrado, longe do torrão natal, da sua querência, da sua Heimat, que canta:


Heimatlos sind viele auf der Welt, 
Heimatlos und einsam wie ich. 
Ùberall verdine ich mein Geld,
Doch es wartet keiner auf mich.
Keine freunde, keine Liebe, kein “Zuhause”,
Wie es Früher, Früher einmal war.
Ein par Freunde, eine Liebe, ein Zuhause, ein Glück,

Ou seja: Muitos há que não têm terra natal. Como eu, solitário, não têm terra natal.  Nos muitos lugares onde passo, ganho o meu dinheiro, mas ninguém espera por mim. Nenhum amigo, nenhum amor, como foi antigamente. Preciso de amigos, sinto falto de um amor, de um “em casa”. 

Folheando qualquer livro de cantos, o tema “Heimat”, terra natal, impõe-se com freqüência impressionante. Observando com mais atenção constata-se que vem relacionado com outros valores que o complementam e enriquecem de forma  extraordinária. O que mais se destaca é o amor. A terra natal, a querência, a “Heimat”, é o palco onde o amor desperta, onde amor floresce, onde o amor amadurece, onde o amor se perpetua. Fora deste contexto esse sentimento, esse valor não é capaz de lançar raízes e muito menos prosperar. Vão aí algumas amostras: “Onde encontrei a bem amada, lá se encontra a minha terra natal, lá eu me senti em casa:


Wo ich die Liebste fand,
Dort ist mein Heimatland,
Dort war ich einmal Zuhause.

À mesma relação terra natal-amor reporta-se o legionário em outra passagem do canto há pouco citado:

Fremd ist die Erde,
Fremd der Himmel,
Fremd sind die Reden,
Fremd die Lieder,
Fremd sind die Herzen,
Und keines Schlägt für ihn:

“Estranha é a terra - estranho o firmamento - estranhas são as falas - estranhas  as canções  -  estanhos os corações e nenhum pulsa por ele.”  

A terra Natal (die Heimat), o “em casa” (das Zuhause), a pessoa amada (die Liebste), simbolizam tudo o que desfila pela recordação da pessoa que, por obra do destino, encontra-se longe. Trata-se de um cenário concreto, elaborado pela vivência e sublimado ao ponto de acompanhar o homem como um estado de espírito. 

Bicentenário da Imigração - 29

A primeira providência tomada pelos pioneiros ao atacarem uma nova fronteira de colonização e à formação de mais uma comunidade, consistia em abrir uma trilha de acesso aos lotes. Denominavam-na “picada”. Começava de modo geral na entrada de um vale e prolongava-se até a propriedade mais afastada. Mais tarde essas picadas transformavam-se em caminhos, em estradas vicinais, em estradas municipais, dependendo da localização, do tamanho e da importância estratégica. Por terem sido as responsáveis pela circulação interna no espaço comunal e por isso possibilitado a sua integração, essas trilhas ou picadas, incorporaram com o tempo o sentido de uma unidade humana. Terminaram por significar a comunidade como um todo. Assim, quando alguém dizia, ou usava  a expressão “a minha picada”, “a minha linha”, queria significar a comunidade natal. Do significado original, meramente prático passou a conceituar a própria unidade comunal. 

No arranjo comunal as moradias não costumavam concentrar-se em aldeias, como acontecia na Europa. Cada agricultor construía a mordia e as demais benfeitorias  no próprio lote. Tomava o cuidado de instalar-se próximo ao caminho ou estrada vicinal. Daí resultava em geral uma linha de casas, estábulos, depósitos e paióis, percorrendo o vale. A partir dessa “linha” popularizou-se “a linha” como outro conceito  familiar na região de colonização. “A linha”, um dado originariamente físico como a “picada”, terminaria significando a própria comunidade. Linha Santa Fé, Linha Comprida, Linha Bonita, Linha Imperial e tantas outras “linhas”, significam, na verdade comunidades com este nome.

Os cursos de água das áreas colonizadas costumavam apresentar leitos rochosos, acidentados, cheios de corredeiras e de pedras. Deram-lhe o nome de “lajeados”. Também este conceito veio a significar uma unidade geográfica e humana, como por ex., a comunidade de “Lajeado Grande”. Assim como cada um dos compartimentos geográficos menores costumava marcar os limites da unidade comunal, assim também uma região mais ampla, apresentando características  semelhantes e formando uma unidade maior, como por exemplo, a bacia de um rio, formava uma unidade regional. Pontos estratégicos no seu interior atuavam como polarizadores da vida social,  econômica e religiosa.  Como exemplo tomemos a bacia do Rio Caí. Poderia ser também a do Rio dos Sinos, Taquari, Jacuí ou Pardo. 

A bacia do Rio Caí é relativamente pequena. Estende-se por cerca de 100 quilômetros para o norte de Porto Alegre. O eixo central, formado pelo rio é servido por meia dúzia  de cursos de porte médio e pequeno, demarcando uma bacia topograficamente muito bem definida. Nas várzeas contíguas ao rio e nos vales adjacentes dos seus afluentes, instalaram-se dúzias de comunidades de colonos.  Duas cidades desenvolveram-se, desde cedo, às margens do rio: Montenegro e São Sebastião do Caí, ambas junto a portos fluviais. Montenegro, além do porto beneficiava-se  da estrada de ferro Porto Alegre – Caxias do Sul. A cidade de Caí evoluiu junto ao porto que marcava o termino da navegabilidade do rio. De uma forma ou de outra todas as vias de circulação interna do vale, terminavam confluindo para os dois portos. Uma boa infraestrutura assegurava um bom funcionamento, em termos de época. Serviam de ponto de embarque para os produtos coloniais oriundos do interior das colônias mais afastadas. Dos portos, os mesmos veículos que levavam feijão, batata, banha, etc., distribuíam as mercadorias procedentes das casas importadoras de Porto Alegre, para as vendas nas comunidades mais afastadas. Além das embarcações de carga, outras destinavam-se o transporte de passageiros.  

Até a década de 1930, a forma mais rápida de chegar à capital do Estado, consistia em deslocar-se, a pé ou a cavalo, até Montenegro, Maratá ou Salvador do Sul e embarcar no trem. Quem dispusesse de mais tempo e preferisse outra modalidade  de transporte, embarcava numa lancha de passageiros em São Sebastião do Caí ou Montenegro. Ao formarem-se, mais tarde, cooperativas, associações regionais de colonos, dioceses, associações de municípios, os mesmos critérios geográficos foram adotados. A Cooperativa dos Suinocultores do Caí Superior, a Associação  dos Prefeitos do Vale do Rio dos Sinos, são exemplos característicos.  

É evidente que a partir da década de 1950, com a abertura  de rodovias federais e estaduais de longo curso e melhor construídas,  o fator identidade geográfica fosse perdendo cada vez  mais a importância inicial. Mais um fator contribuiu  para a mudança nas áreas recentemente colonizadas no oeste do Paraná. A topografia daquela região é pouco acidentada. O relevo suavemente ondulado e em grandes extensões praticamente plano, orientou a formação das unidades comunais de outra forma. As designações de “picada”, “linha” e “lajeado”, tão comuns no Rio Grande do Sul e no Centro Oeste de Santa Catarina, perderam em grande parte o seu significado no oeste do Paraná.

Mesmo que os colonizadores alemães do Sul morassem dispersos em suas propriedades, isso em nada  afetou a sua coesão e a sua integração comunitária. No ponto mais central da “linha” ou da “picada”, reservavam uma área considerável para a instalação da infraestrutura comunal indispensável: a escola, a igreja, o cemitério e demais complementos que viriam a ser necessários para o bom andamento da vida comunitária. Por razões estratégicas funcionava aí  também a venda, a ferraria, a serraria, o moinho, a carpintaria, a sapataria, a alfaiataria. Uma organização desse tipo oferecia uma série de vantagens e contribuiu, em grande parte, para que as comunidades coloniais fossem capazes de manter, e por longo tempo, a sua índole peculiar. Conservaram o caráter de comunidades solidamente  estruturadas  em torno dos seus objetivos materiais e espirituais comuns. E os propósitos comuns voltavam-se para a escola e a educação, para a Igreja e a religiosidade, para a prática do lazer e da sociabilidade e, enfim, todos os meios necessários para impulsionar a vida social, econômica e cultural. 

O fato de cada colono morar na sua propriedade resultou, ao menos em termos, numa vantagem adicional. Como já se afirmou acima, cada família agia em seu lote como se fosse uma microempresa familiar. No dia-a-dia da atividade agrícola, portanto, predominava a absoluta autonomia e independência. Cada qual se assemelhava mais  a um pequeno reino ou uma minúscula república. Todas as decisões sobre o que plantar, como plantar, que animais domésticos criar, qual o destino a ser dado  para a produção, como gerenciar essa “empresa”, emanavam de dentro dela. As cooperativas e as associações de agricultores, quando traçavam linhas de conduta, quando sugeriam novas  técnicas ou novos produtos, não tinham o poder de impor. Limitavam-se a aconselhar e a orientar. Não raro o colono mantinha sua autonomia com sérios prejuízos. Essas circunstâncias, peculiares à própria natureza do sistema da pequena propriedade, formaram um camponês fanaticamente agarrado à sua propriedade e à sua independência. Costumavam auto denominar-se “reis em sua gleba”. Quando o sucesso acontecia, reivindicavam-no todo para si. No caso de fracasso, se não por razões alheias à sua vontade, eram obrigados a assimila-lo sozinhos. 

A relativa dispersão geográfica dos colonos em suas glebas reforçou o espírito de autonomia e independência. Nas comunidades do tipo europeu, concentradas em aldeias, o inevitável contato mais frequente   com os vizinhos gerava uma intromissão mútua nos negócios e nas preocupações muito mais frequentes, afetando, não raro, a própria privacidade. 

É evidente que a dispersão dos moradores por toda a área ocupada por uma comunidade tinha as suas dificuldades. Obrigava as crianças a caminhadas diárias, às vezes de vários quilômetros, para ir e voltar da  escola. Para muitos a igreja ficava longe, impedindo a frequência com a assiduidade desejada por muitos. Da mesma forma era preciso percorrer distâncias significativas para ir ao moinho, à ferraria, à carpintaria ou sapataria. Apesar desses empecilhos, a comunidade continuou a significar, além da família, a grande motivadora da vida dos colonos. Nela haviam nascido, nela encontravam praticamente tudo do que precisavam, nela tinham o seu mundo de relacionamento humano, nela enfim, se esgotava a existência da grande maioria. Importava, por isso, preserva-la de tudo quanto pudesse ameaçar a sua integridade. E a integridade comunal era posta a perigo cada vez que algum dos elementos polarizadores fosse mal estruturado, mal conduzido ou atacado por inimigos externos. 

Os colonos alemães elegeram, desde muito cedo, a escola e a educação como um dos meios mais eficazes  no combate à decadência cultural e religiosa.   Em todas as comunidades coloniais cuidou-se, por isso,  da instalação e funcionamento de uma escola, antes mesmo de construir-se uma capela. A primeira providência consistia em constituir a comunidade escolar (Schulgemeinde). Integrada por todos os membros de uma comunidade, chamava a si  tudo que fosse necessário para instalar e fazer funcionar a escola. Dentre os membros da comunidade escolar escolhia-se a diretoria da escola (Schulvorstand). Composta de poucas pessoas, a diretoria encarregava-se diretamente da construção do prédio, com a instalação interna e com o material didático. A função mais importante relacionava-se com o professor. Cabia à diretoria procurar e escolher o professor, contratá-lo, pôr-lhe à disposição a moradia e uma área de terra na qual sua família pudesse produzir. Fiscalizava o desempenho do professor, vigiava-lhe a conduta e garantia-lhe a remuneração. No caso de não satisfazer cabia ainda à diretoria a sua substituição.

Dessa forma, foi possível, desde o começo, atender aos requisitos mínimos  exigidos pela educação dos filhos dos colonos. Se as comunidades coloniais tivessem esperado pelas autoridades locais ou provinciais, as primeiras gerações de colonos teriam ficado sem escola, com as conseqüências óbvias. Em vez de se firmarem, em lugar de progredirem, teriam estagnado, regredido e sofrido um retrocesso econômico, social, cultural e religioso irreversível. Conscientes de semelhante risco, canalizaram  a parcela mais significativa de sua energia comunitária em favor da escola e da educação. 

O resultado não podia ser outro. No final da década de 1930, no momento em que o Estado, em nome de um nacionalismo no mínimo discutível, interveio no sistema, poucas eram as comunidades que não se podiam orgulhar da sua escola. A importância dada à escola pelos colonos alemães, ultrapassou em muito o simples dado de poder contar com uma. Fizeram dela o elemento estratégico fundamental para a sobrevivência e o progresso.  O lugar comum defendido levianamente por muitos, segundo o qual a escola comunitária colonial alemã, não passava de um meio de enquistamento sócio-cultural e a grande responsável pela resistência dos imigrantes ao abrasileiramento, no mínimo não passa de um equívoco. 

Com a finalidade de fazer da escola o instrumento estratégico de maior importância para a sua sobrevivência, dotaram-na de uma organização  didático-pedagógica coerente. Fizeram dela uma instituição em que os filhos dos colonos, além de serem alfabetizados, familiarizavam-se com o manejo da língua falada e escrita. As crianças recebiam na escola um sólido conhecimento de aritmética, cálculo de juros e porcentagens, alem de informações sobre medidas, volumes, pesos, etc. A escola esmerava-se em tudo que pudesse contribuir para que o filho do colono fosse capaz de gerenciar com segurança as suas atividades como agricultor. 

O número insuficiente de curas de alma fez com que a escolas assumissem também o papel principal no ensino religioso. No currículo escolar reservou-se um espaço significativo para o Catecismo e a leitura da Bíblia. Nessas escolas a religião ocupava uma posição tão importante quanto a língua e o cálculo. Não tivesse sido assim o nível religioso aliado à assiduidade na freqüência à missa e aos sacramentos não se teria mantido em nível tão elevado. Nos 25 primeiros anos da imigração, quando a assistência religiosa por parte de sacerdotes era praticamente nula pelo menos entre os católicos, sem a escola  a religiosidade teria sofrido danos irreparáveis. 

A escola fora concebida também como garantia e continuidade de uma série de valores básicos da cultura e do interesse direto dos colonos em particular e das comunidades em geral. Por esta razão foi incluída no Currículo, uma disciplina destinada a tratar de “coisas reais”, como sugere o nome latino adotado “Realia”. Pelo seu sentido didático-pedagógico distinguia-se do aprendizado da língua, da leitura, aritmética, cálculo e religião. O que se pretendia com essa disciplina? Contemplava, antes de mais nada, conteúdos que faziam parte da vivência diária dos colonos e integravam uma parcela muito rica da própria germanidade. Insistia-se na importância da pessoa como valor básico de uma sociedade. Alertava-se para o fato de que uma comunidade ou uma família somente podem cumprir corretamente a sua missão, quando há respeito mutuo, quando se observam os limites entre os direitos e deveres e se aceita o lugar que compete à autoridade. 

A disciplina “Realia” ocupava-se  com noções elementares  sobre as circunstâncias da vida do colono. Destacavam-se as estações do ano, a importância do solo, a utilidade da floresta e suas madeiras, dos animais úteis e benéficos, dos animais nocivos. Em resumo procurava-se situar a criança no seu entorno e informa-la de como melhor viver e conviver nele. Acompanhavam esse aprendizado noções elementares  de conservação e recuperação dos solos, o alerta sobre as conseqüências do desmatamento exagerado indiscriminado e noções sobre  florestamento e reflorestamento. No que, porém, a disciplina “Realia”  se preocupava mais era com a assimilação  de certos valores responsáveis pela inserção existencial do colono na sua comunidade. 

Bicentenário da Imigração - 28

O Sul Muda de Fisionomia

Da América Latina, o Brasil é o pais que ostenta o quadro étnico-cultural mais heterogêneo e mais diversificado. Encontram-se presentes  grupos significativos, representando diversas raças e culturas. Embora uns se concentrem mais numa região e outros em outra, encontramo-los em todo o território nacional. Para onde quer que se viaje, topa-se com o negro, com o asiático, com o branco e com todos os matizes de cor da pele e de cabelos que a miscigenação foi capaz de engendrar. Formas de vida as mais diversificadas, costumes e cosmovisões divergentes, filosofias de vida às vezes exóticas, encontraram guarida  em solo brasileiro e ao mesmo tempo clima favorável para se manifestarem livremente.

O que todos possuem em comum é a esperança de que aqui, apesar de todas as dificuldades momentâneas, existem condições reais e objetivas para construir um futuro melhor. E como objetivo de  construir um porvir mais promissor do que o oferecido pelas terras de origem, afluíram para o Brasil  representantes dos povos e das culturas mais diversas. Foi essa perspectiva que atraiu  portugueses,  açorianos,  alemães,  italianos,  europeus em geral,  japoneses e  todos os outros orientais. A grande presença negra infelizmente acha-se ligada à escravatura. Mesmo assim, embora a duras penas, o negro está começando a conquistar o seu espaço neste pais imenso e heterogêneo. 

A presença alemã nos estados do Sul seguiu em grandes linhas a mesma lógica. A partir do começo do século XIX, a administração colonial e depois a imperial, decidiu garantir  a soberania sobre as províncias do Sul. Esparsamente habitadas por estancieiros e alguns bolsões de colonos açorianos, esses territórios representavam uma tentação constante para as repúblicas castelhanas vizinhas. Por falta absoluta de súditos da Coroa portuguesa que pudessem povoar essas regiões vazias, o Conselho Ultramarino decidiu convidar europeus  do Centro e do Norte do continente. A preferência incidiu sobre alemães e italianos. Os motivos dessa preferência foram vários. Em poucas palavras, os mais importantes  parecem ter sido o fato de, tanto uns como os outros, terem praticado durante séculos a agricultura familiar em pequenas propriedades; de nunca terem criado problemas com a Coroa de Portugal, como fora o caso  dos franceses, ingleses e holandeses; de não terem representado perigo imediato para as fronteiras  do Sul, como os espanhóis. No caso específico dos alemães pesou o casamento de D. Pedro I com a princesa austríaca Dona Leopoldina. Um motivo adicional foi a disponibilidade  de colonos alemães em número suficiente, já que as províncias donde procediam achavam-se superpovoadas. As terras esgotadas já não ofereciam  grandes perspectivas e a incipiente industrialização, não tinha condições de absorver os agricultores empobrecidos. Para eles, a emigração significava a única saída  promissora para a situação. Para o Brasil, resolveria o problema da ocupação dos espaços vazios no Sul, motivo de contínuas  disputas e escaramuças de fronteira com os castelhanos do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. 

Um outro pormenor  importante não pode ser esquecido. Até então os estados do Centro e do Norte haviam sido incorporados  à base do latifúndio  escravocrata. Foi assim na atividade canavieira, nas plantações  de algodão e nas fazendas de café. Para os estados do Sul foi projetado  uma outra modalidade de faze-los produtivos, implantando neles  uma agricultura diversificada, fundamentada na pequena propriedade de caráter familiar. A concretização desse modelo fora tentado durante a segunda metade do  século dezoito, com famílias de agricultores emigrados dos Açores. O número de casais açorianos disponíveis, entretanto,  foi muito pequeno para povoar  os espaços disponíveis no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A solução veio com os imigrantes alemães, italianos e poloneses principalmente. 

O propósito desta contribuição resume-se  em mostrar o que os imigrantes alemães, com sua identidade peculiar, trouxeram contribuições novas e diferentes e que marcaram indelevelmente grandes extensões da fisionomia humano do Brasil Meridional. Pretende, de outra parte, acompanhar de alguma forma a trajetória da integração deles e dos seus descendentes na sociedade nacional. 

Falemos em primeiro lugar da fisionomia humana peculiar que os colonizadores alemães imprimiram na paisagem das regiões em que se  estabeleceram no sul do Brasil. O elemento mais significativo, em termos de estrutura agrária, foi o regime da pequena propriedade de terra. Nos primeiros anos os lotes coloniais mediam em torno de 70 hectares. Mais tarde essa media foi diminuindo para 50, para 40, fixando-se entre 25 e 30 hectares, nas últimas fronteiras de colonização no centro oeste de Santa Catarina e no oeste do Paraná. É fácil  imaginar que em módulos tão reduzidos o máximo que se podia instalar e fazer render não passava os limites do sustento de uma família e, na melhor das hipóteses, a produção de alguns excedentes. 

Essa realidade leva a uma segunda constatação. Se a ocupação das pequenas propriedades se resumia, em última análise, numa empresa familiar com o objetivo principal de assegurar a subsistência  dessas famílias, a agricultura praticada tinha que ser diversificada. E foi o que ocorreu. Para suprir as necessidades diárias cultivava-se milho, feijão, batata, arroz, mandioca, aipim, amendoim, etc. Havendo excedentes esses eram comercializados. E, após os primeiros anos, superadas as dificuldades do começo, o feijão comercializado nas praças de São Paulo e do Rio de Janeiro, procedia na sua quase totalidade do Rio Grande do Sul. Ao lado dos produtos agrícolas os colonos  criavam suínos, bovinos, eqüinos, galináceos, ovelhas e outros. A banha de porco rendia bons ganhos adicionais e não faltava espaço para a colocação nos principais mercados do país. 

No Rio Grande do Sul, centro e oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná, o regime da pequena propriedade  e a economia baseada na policultura transformaram vastas regiões  numa paisagem humanizada inconfundível. As terras tinham sido repartidas sempre de acordo com o mesmo esquema. Um rio, um arroio, um dorso de morro, serviam como referência para alinhar os lotes. Uma trilha no mato no início, um caminho depois e muitas vezes uma estrada no final, permitiam a circulação de pessoas, animais e produtos. As moradias dos agricultores costumavam ser  construídas perto das estradas, cada qual no respectivo lote. No centro de um espaço geográfico desses, a igreja, a escola, o cemitério, a casa de comércio tinham o seu  lugar garantido. Dessa forma tem-se uma idéia de como se formaram as unidades comunais na região de imigração alemã, italiana, polonesa e outras. 

A configuração topográfica e a superfície  do espaço comunal variavam de acordo com as características locais. Quando um vale ou um altiplano oferecia uma área suficiente para um número maior de módulos rurais locais, abrigava mais moradores,  servia de sede para a formação de uma comunidade também maior. Se a área disponível era menor, as comunidades compunham-se de um número pequeno de unidades familiares. É lógico que se exigiam áreas mínimas. Nas menores organizava-se, além da escola uma capela. Um número menor ou maior de capelas reuniam-se em volta da sede paroquial, situada na comunidade mais ampla e com maior número de moradores. Com o correr do tempo essas sedes paroquiais eram contempladas  com a infraestrutura necessária para o funcionamento regular da burocracia local, como subprefeitura, subdelegacia de polícia, agência do correio, cartório de registros, etc. A grande maioria das sedes paroquiais  do começo da colonização, evoluíram com o tempo para sedes  de municípios. Assim, designações essencialmente  geográficas na sua origem, transformaram-se, com o correr do tempo, em conceitos mais abrangentes. 

Bicentenário da Imigração - 27

A dinâmica da expansão colonial

Depois de vencidas as dificuldades iniciais, os imigrantes alemães e seus descendentes, que se instalaram a partir de 1824 na Real Feitoria do Linho Cânhamo em São Leopoldo, não demoraram  em implantar suas comunidades em áreas próximas.. O processo da expansão colonial começara. Essa dinâmica foi impulsionada por dois poderosos fatores.  Em primeiro lugar, pesou a intensificação da vinda de novos imigrantes até 1831, ano em que os incentivos para a imigração foram cancelados. O segundo fator, ao que parece o mais forte tem a ver com o forte crescimento vegetativo da população na região de imigração alemã desde 1850. A partir desta data a primeira geração nascida no Brasil, completara a idade de procurar o seu lote de terra. Ora, é por todos conhecido que as famílias eram numerosas e a mortalidade infantil relativamente baixa para a época. Ao mesmo tempo, os lotes coloniais com suas dimensões reduzidas, não permitiam mais do que uma ou no máximo duas divisões. Levantamentos feitos sobre aquela época, mostram  que na média cada 1000 famílias geravam, anualmente, nada menos do que 200 excedentes, candidatos natos a novos lotes de terra. Como o crescimento populacional cresceu em progressão geométrica, fica fácil imaginar  a movimentação no seio das colônias alemãs durante mais de um século.

A fase inicial da expansão
O final da primeira década apos o começo da imigração alemã, fato que coincidiu com o início da Guerra dos Farrapos, marcou o começo da ocupação das terras cobertas de mata, além dos limites  da área destinada inicialmente para a colonização. Na obra “Cem anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, o Pe. Theodor Amstad assim descreveu a situação.

No começo da Guerra dos Farrapos, como já foi dito, estava ocupada a parte anterior e plana da colônia governamental de São Leopoldo e a primeira parcela  das três picadas: Dois Irmãos, Picada dos Berghan (Ivoti) e Picada dos Portugueses (São José do Hortêncio). Poucos povoadores, como por exemplo, M. Mombach, arriscaram-se a cruzar o topo dos primeiros morros. Na Picada dos Portugueses, já em 1832, foi preciso desistir dos postos avançados do Fritzenberg e Rosental e concentrar-se na parte baixa, por causa do ataque dos bugres. Somente na década de 1840, ao terminar a Guerra dos Farrapos, arriscou-se a ocupação das áreas mais afastadas das picadas. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 103) 

O término da Guerra dos Farrapos marcou o começo da ocupação  sistemática das áreas periféricas do núcleo original da imigração. Nos 10 anos, entre 1845 e 1855, o avanço da colonização teve como alvos preferenciais o vale do rio Feitoria, afluente do rio Caí, com Dois Irmãos como ponto de irradiação e o rio Cadeia, também afluente do rio Caí, com a  Picada dos Portugueses como referência. Sucessivamente foram sendo povoados o Bugerberg ou Bucherberg, Jammertal e Walachei. Em seguida o avanço seguiu em direção ao Herval. 

Uma dinâmica semelhante impulsionou o povoamento das porções posteriores das Picadas dos Berghan (Ivoti) e dos Portugueses. Neste processo destacaram-se  Bohnental, Linha Nova, Schneiderstal, Holanda e Picada Café, com suas diversas ramificações. A obra que acabamos de citar “Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul”, resumiu assim os 25 primeiros anos da expansão colonial.

É licito afirmar então que em meados dos anos cinquenta as terras postas à disposição para a colonização pelo governo imperial nas três picadas antigas, estavam em linhas gerais povoadas. A Picada Feliz, que veio somar-se em 1845, contava na época com 90 a 100 famílias, podendo ser considerada ocupada, tomando como base as condições populacionais da época. Nada mais natural então  que muitos pais com família numerosa e muitos jovens empreendedores da colônia, procurarem terras favoráveis em outra parte. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 108)

As áreas colonizadas até aqui tinham sido de propriedade do Governo Imperial. Em torno delas, localizavam-se extensões maiores ou menores em mãos de particulares, tanto no curso médio e superior do rio dos Sinos e seus afluentes, como do Caí. Foi sobre essas matas que a lógica do avanço orientou o fluxo da colonização. As terras de ambas as margens do Santa Maria (Paranhana) pertenciam a Tristão Monteiro. Quando começou a coloniza-las com imigrantes alemães, batizou-as com o sugestivo nome de Mundo Novo. O povoamento do Mundo Novo começou efetivamente em 1847 e prolongou-se até o final da década de 1870, quando contava com 284 famílias, das quais apenas 10 não eram alemãs. Vizinha ao Mundo Novo localizava-se a fazenda Padre Eterno, vendida em lotes pelo proprietário, o Barão do Jacuí. Idêntico caminho tomou na época  a família Leão, proprietária do Leonerhof  (Sapiranga e arredores). O prolongamento da colônia da Feitoria, o Morro Pelado na margem do Rio dos Sinos, foi colonizado por seus donos, Chico Santos e Fialho. 

Simultaneamente às colonizações a leste do núcleo inicial de São Leopoldo, no vale do Rio dos Sinos, intensificou-se o avanço para o oeste e para o norte, para dentro do vale do Caí. Todas essas terras, dotadas de alta fertilidade, encontravam-se em mãos de particulares e estendiam-se ao longo das margens do Caí e dos seus quatro principais afluentes: O Forromeco, o Salvador e o Maratá na margem direita e o  Cadeia na margem esquerda. Os  donos dessas terras as dividiram e as venderam aos colonos procedentes, na sua grade maioria, das áreas mais antigas de colonização no vale do Rio dos sinos e, em menor número, diretamente imigrados da Alemanha.

Na mesma época  em que no vale do Rio Caí, iniciou-se o povoamento do vale do Taquari. Na grande maioria, também esses colonos saíram das colônias mais antigas do Sinos. O avanço se deu num ritmo impressionante. Todo o vale do Caí e todo o vale do Taquari foram, por assim dizer, tomados de assalto e conquistados ao mesmo tempo. Assim como aconteceu no Caí, também no Taquari, as terras pertenciam  a proprietários particulares. Os dois mais conhecidos no Taquari foram Vito Mena Barreto, na margem esquerda, e  Antônio Fialho na margem direita. Não demorou que as terras férteis  do Rio Forqueta fossem incorporadas na frente de colonização. O mesmo se repetiria mais para o interior, na margem esquerda do Taquari, com a colonização de Teutônia. Na margem direita, o avanço tomou a direção de Santa Clara do Sul, Sampaio, Venâncio Aires, Santa Emília, Mato Leitão e arredores. As terras do Governo de Monte Alverne foram colonizadas na mesma época e serviram de ligação para a colônia de Santa Cruz no Rio Pardinho. 

O avanço da colonização, a começar em Taquara do Mundo Novo até Santa Cruz do Sul, incorporaram as terras mais planas dos cursos médios dos rios. Os vales mais afastados e as encostas da Serra, em mão de proprietários menores entraram, a partir de 1875, no mesmo processo. Em questão de 20 anos, todas as terras de algum modo disponíveis, haviam sido ocupadas. Apesar das dificuldades da topografia e da distância dos centros maiores, contribuíram  com uma parcela significativa dos produtos básicos da época: feijão, banha de porco e, na região de Santa Cruz e Venânco Aires, o tabaco. Neste avanço incluíram-se também as colonizações mais para o sul, como Rincão del Rei e as de Candelária até Santa Maria. 

A Expansão para o Norte e o Noroeste.
Com achegada da década de 1880 as últimas reservas de terras nas bacias do Sinos,  Caí,  Taquari, Pardo e Jacuí estavam ocupadas. Nas colônias aí presentes, porém, a demanda por mais terras aumentava dia por dia. Na época a única válvula capaz de aliviar a pressão populacional, encontrava-se no avanço sobre novas fronteiras de colonização. Desta vez a lógica apontava em direção ao norte e noroeste, em direção às áreas cobertas de mata virgem da Serra, das Missões e do Alto Uruguai. E foi nesta direção que se orientou o fluxo migratório a partir da década de 1880.

Em 1890 abriram-se as primeiras clareiras na mata, onde hoje floresce Ijuí, a metrópole da Serra. O Pe. Amstad comparou Ijuí com São Leopoldo. Assim como São Leopoldo foi centro de irradiação das chamadas colônias antigas, ou “colônias velhas”, assim Ijuí seria o centro de irradiação para as “colônias novas”, no norte e noroeste do Estado. A partir daí, a região transformou-se num grande laboratório de experiências de colonização. Entre os anos de 1890 e 1930, foram implantados no mínimo quatro modelos. Ijuí foi uma iniciativa do governo federal, Santa Rosa do governo estadual, Santo Ângelo um projeto municipal. Todas as demais colonizações foram empreendimentos particulares, ou de empresas, ou de associações, ou de pessoas físicas. O Pe Amstad resumiu assim  a colonização de toda essa região.

Com essas colonizações abrira-se o espaço para os excedentes populacionais das colônias antigas. E no fim da revolução em 1895, começou um novo e alegre movimento migratório. As mudanças aconteciam via trem, a cavalo, de carro até com carroças de boi. Não raro podia-se assistir ao espetáculo inusitado, como pessoas que até aquele momento mal haviam ultrapassado os marcos de fronteira do seu município, carregaram com toda a naturalidade  seus pertences numa carroça, passando três ou quatro semanas peregrinando, até alcançarem o extremo noroeste do nosso Estado, em Serro Azul, Pirapó ou Serro Pelado, para aí construírem a sua nova querência. 

Tempos difíceis esperavam para breve pelas aves de arribação. Gafanhotos, seca e por fim ratos migratórios, tornaram a vida amarga. Mas o tempo de penúria passou e, quando os pioneiros e os mais pobres tinham aberto a brecha, seguiu um reforço financeiramente mais  bem dotado, gente com dinheiro. Adquiriram, muitas vezes, complexos de terras maiores na colônia de Guarani pertencente ao governo. Em questão de 10 a 15 anos o Rio Ijuí, de Serro Azul até a desembocadura no rio Uruguai, numa extensão de 70 quilômetros fora ocupado. Acabara-se de fundar a São Leopoldo do século vinte.

Fato semelhante verifica-se com as colônias de Passo Fundo e Cruz Alta. A diferença é que nelas  reside uma população étnica e confessionalmente mais mesclada. Mesmo assim encontram-se nessa região distrito coloniais de exclusiva descendência alemã, como  a Colônia Selbach, Barra do Colorado, Neu Wirtemberg, General Osório e outros. Desta forma também aí os excedentes das colônias antigas encontraram assentamentos novos fechados. Quem hoje visita as colônias de Passo Fundo, Palmeira, Cruz Alta, Santo Ângelo e São Luiz, pode estar certo  de encontrar aí assentados conhecidos procedentes das antigas colônias. Já se desenvolveu um ativo intercâmbio entre o norte e o sul e o leste e o oeste e não se constitui numa raridade que famílias inteiras das colônias  novas, locomovendo-se em carroças, vão fazer visitas nas colônias velhas. E exatamente nessas visitas que, muitas vezes, os hóspedes das colônias velhas adquirem terras para si e seus filhos, quando as circunstâncias das novas colônias agradam. Em muitas dessas visitas segue então, num prazo mais curto ou mais longo, a correspondente transferência para os novos assentamentos, os quais tomam rapidamente um acelerado ritmo de crescimento, impulsionado pelos colonos acostumados ao trabalho. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 129-130)

Um pouco mais adiante o Pe. Amstad chega a falar de um verdadeira febre migratória que teria acometido os colonos de todas as regiões do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1890 e 1920.

Havia duas razões principais  que explicam o surgimento do fenômeno nada desejável da febre de emigração: o sistema de colonização do governo estadual do Rio Grande do Sul e a especulação dos compradores e vendedores de terras.

Já que a maioria das colônias particulares e das pertencentes a companhias de colonizadoras havia sido ocupadas, restavam aos colonos à procura de terra para assentamentos, as colônias do governo. O sistema de colonização dos atuais governantes positivistas, consiste em abrir colônias mistas, nas quais são assentadas misturadas pessoas das mais diversas nacionalidades. Esse sistema não agrada nem aos colonos de descendência alemã, nem aos de descendência italiana, nem aos de descendência polonesa. Isto fez com que, durante os últimos anos, os melhores elementos, possuidores de mais capital, fossem fixar-se  fora do nosso Estado em colônias confessional e etnicamente separadas, em Santa Catarina, Paraná ou Argentina. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 131)

A expansão para fora do Rio Grande do Sul
Depois da Primeira Guerra Mundial, a febre migratória empurrara os excedentes, tanto das colônias alemãs como das italianas, até a barranca do Rio Uruguai, em toda extensão norte e noroeste do Estado. As matas virgens praticamente intactas da margem direita do rio, tanto no vizinho estado de Santa Catarina como também na Argentina, estimularam ainda mais o ímpeto da nova geração à procura de terra.

Três foram as áreas que canalizaram as atenções  dos novos pioneiros: o vale do Rio do Peixe na região central de Santa Catarina, o extremo oeste do mesmo estado e a Província de Missiones na Argentina. Colonos procedentes das mais diversas localidades das antigas colônias do Rio grande do Sul, povoaram toda a área que atualmente tem como centro a cidade de Joaçaba. Outros ultrapassaram essa região para irem fundar Porto União e União da Vitória, em ambas  as margens do Rio Iguaçu, no extremo norte de Santa Catarina e no sul do Paraná. No extremo oeste, a colonização irradiou-se de núcleos iniciais mais importantes: Porto Feliz, hoje Mondai e Porto Novo, hoje Itapiranga. A partir deles, em questão de 30 anos, todo oeste de Santa Catarina foi incorporado no fluxo da colonização.

Já no final da década de 1950, a ordem “vamos às colônias novas”, que impulsionara a colonização do norte e noroeste do Rio Grande do Sul e grande parte do estado de Santa Catarina, foi substituída por outra palavra: “vamos para o Paraná”. Milhares de colonos procedentes de todas as regiões do Rio Grande do Sul, somados à primeira geração de excedentes de Santa Catarina, avançaram sobre as novas fronteiras de colonização no oeste do Paraná. O ritmo foi ainda mais intenso e mais acelerado do que nas etapas anteriores. Em praticamente uma geração, as áreas disponíveis na região estavam colonizadas. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, o fluxo migratório  avançou pelos dois Mato Grosso, Rondônia e Acre, para, enfim, alcançar a fronteira norte do Pais em Roraima. Na mesma época, aconteceu a participação de agricultores vindos do sul em projetos agrícolas na Bahia, Maranhão, Goiás, Pará e Amapá. 

Encerramos aqui esse esboço muito sumário sobre a expansão da colonização alemã no Brasil. Tivemos como objetivo mostrar como em 200 anos, os efeitos da imigração alemã, desencadeada em 1824 em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, marcou indelevelmente regiões inteiras dos estados do sul, a fronteira da região centro-oeste e bolsões isolados em vários outros estados. 

Esse processo de expansão foi alimentado por dois fatores mais decisivos: a pequena propriedade ocupada por famílias numerosas, gerando constantemente situações de superpovoamento, somada à vontade  dos colonos de construir neste Pais um lar habitável. 

A saga dessa  expansão pode ser dividida nas seguintes etapas: a primeira de 1824 a 1850, consolidou a colonização no vale do Rio dos Sinos, e parte do Caí, formando as assim chamadas “colônias velhas”; 1850-1880, aconteceu o restante da ocupação do vale do Caí e dos vales do Taquari, Pardo e Jacuí ou as “colônias médias”; de 1890-1920, aconteceu a ocupação da Serra, das Missões e do Alto Uruguai com as “colônias novas”.  

Mais acima já lembrei o fato de que a região das Missões e Alto Uruguai ter sido fruto em larga escala da migração interna. Para lá confluíram contingentes significativos de todas as vertentes étnicas importantes que participaram da moldagem do perfil humano hoje presente no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XIX vivia na região uma população esparsa e dispersa de remanescentes do tempo das Missões e posteriores. Eram descendentes dos bandeirantes apresadores de indígenas, aventureiros e comerciantes espanhóis e lusos, mestiços “missioneiros” e fragmentos das tribos de índios dispersos pelos campos e matas adjacentes. 

Instalou-se então, a partir da segunda metade do século XIX a ocupação e colonização definitiva de toda a região. Para lá confluíram alemães, italianos, poloneses, teuto-russos, judeus, etc. das antigas áreas de colonização nas bacias do Sinos, Caí, Taquari, Antas, Pardo, Jacuí, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Veranópolis e demais localidades 

 De 1920-1950, aconteceu a colonização do centro-oeste de Santa Catarina; 1950-1970 seguiu a colonização do oeste do Paraná; 1970-1990 fundaram-se núcleos coloniais nos dois Mato grosso, em Rondônia, no Acre e em pontos isolados em outros estados.

O processo certamente não está encerrado e, não há a menor dúvida, de que os herdeiros das conquistas dos 200 anos da colonização alemã marcarão presença ativa na incorporação de muitas outras áreas no contexto produtivo do Pais.

Bicentenário da Imigração - 26

Modelos de Colonização

História da colonização dos estados do sul do Brasil, a partir de 1824,  por imigrantes europeus: alemães, italianos, poloneses e outros, oferece ao pesquisador uma série de facetas importantes e interessantes a serem analisadas. Há toda uma questão relativa ao próprio potencial geográfico das regiões a eles destinadas, às questões relativas à ocupação, à posse e legitimação das terras, à identidade e idoneidade dos colonizadores, etc. Além desses e de outros há um ângulo nesta história que normalmente  não merece muito destaque e que é possível identificar nas linhas e entrelinhas tanto da documentação oficial como privada, relativa à colonização. Refiro-me  à colonização como instrumento de política étnica, cultural e religiosa. 

Partindo desse viés como base é possível distinguir vários modelos. Coincidem em linhas gerais com os objetivos dos diversos agentes colonizadores presentes  em todas as frentes pioneiras: o poder público imperial ou republicano federal, provincial ou do estado e municipal, mais as colonizações empreendidas por grandes organizações associativas e as colonizações tocadas pela iniciativa privada, empresas ou pessoas físicas. No anexo de nº 5 da obra comemorativa do primeiro centenário da Imigração Alemã no Rio Grande do Sul, encontra-se uma lista dos colonizadores  até o começo de 1920. Constam aí 17 colonizações promovidas pelo governo imperial, cinco pelo governo provincial, sete pelo governo federal, 16 pelo governo estadual, três por governos municipais, 27 por empresas de colonização, 186 por pessoas físicas e duas pela Associação Riograndense de Agricultores. 

Começando pelas 17 colônias promovidas pela governo imperial, entre as quais salientam-se São Leopoldo, Três Forquilhas, São Pedro de Alcântara  e Feliz para os imigrantes alemães e as quatro colônias para imigrantes italianos: Caxias, Garibaldi, Bento Gonçalves e Silveira Martins, observa-se um perfil mais ou menos comum. Os assentamentos foram feitos em glebas do governo imperial e concretizaram-se  de acordo com os objetivos originais do projeto colonizador, isto é, povoar as terras públicas com imigrantes europeus não lusos em pequenas propriedades de menos de 100 hectares. O que realmente interessava era implantar um novo modelo fundiário combinado com uma produção agrícola diversificada tendo a família como base. Não houve,  pelo menos ao que parece, uma preocupação explícita em promover assentamentos étnicos e confessionais identificados. As circunstâncias da época e a própria natureza do processo, somada à procedência dos imigrantes da Europa, determinaram que fossem etnicamente  caracterizados. No caso dos imigrantes alemães o fator confessional não foi determinante, a não ser em alguns casos isolados. Católicos e protestantes costumavam ter livre acesso aos lotes  nas frentes de colonização. Uma exceção aconteceu com a colonização de Tupandi, antigo 8º distrito de Montenegro. Juca Inácio Teixeira dono das terras, confiou a corretagem de uma parte de sua estância ao longo do arroio Salvador a João Heck e João Kuhn de São José do Hortênsio. Como católicos fervorosos levaram para a nova fronteira de colonização somente alemães católicos. A situação consolidou-se com a  implantação da paróquia e a nomeação do Pe. Mathias Pfluger, um jesuíta bávaro que a administrou durante 30 anos. Casos desses, porém, foram exceções. A dinâmica normal determinou a organização de comunidades católicas e protestantes nas mesmas linhas ou picadas, geralmente sem maiores problemas de convivência. O mesmo se deu a partir de 1875 com as quatro colônias italianas acima citadas. A diferença entre elas e as alemãs foi o fato de não terem imigrado italianos protestantes, por isso  a coincidência do fator étnico e confessional não tem nada a ver com um pré-requisito exigido pelos agentes de colonização. 

O que se acaba de afirmar  das colônias promovidas pelo governo imperial, em linhas gerais, vale também para as colônias  de iniciativa provincial: Santa Cruz, Agudo, Nova Petrópolis, Monte Alverne e São Feliciano.

O fator étnico e confessional tão pouco aparece como determinante na maioria dos  assentamentos  promovidos pelo governo federal e estadual a partir da implantação da República. Houve, porém, casos em que o fator étnico fez parte da política de colonização. O exemplo mais emblemático foi a colonização de Santa Rosa e arredores, começada em 1915 pelo governo estadual.

Noventa anos já se haviam passado desde o início da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Toda a faixa de terras de em torno de 300 quilômetros de comprimento  e de  e de 50 a 100 de largura, começando por Taquara do Mundo Novo para terminar em Santa Maria da Boca do Monte, fora ocupada por descendentes de alemães. Paralelamente as colônias italianas de Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves, haviam-se estendido pelo planalto até Passo Fundo, Erechim e Lagoa Vermelha. Em meio às duas colonizações maiores, da alemã e italiana, ou na periferia delas, instalaram-se comunidades de poloneses. Uma avaliação superficial dava a impressão que regiões da Alemanha, Áustria ou Suíça, tinham sido transplantadas para o Sinos, Caí, Pardo e Jacuí. Da mesma forma  Caxias, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Nova Prata, Guaporé, Muçum, Marau, no planalto e Silveira Martins perto de Santa Maria, se pareciam como réplicas de regiões do norte da Itália e Guarani das Missões um enclave polonês.

De modo especial os descendentes dos imigrantes alemães  concentravam-se em regiões exclusivas. Destacavam-se na paisagem humana do Rio Grande do Sul pela organização comunitária, pela laboriosidade, pelo apego às tradições, pela língua que falavam, pela alta escolaridade, pelo progresso econômico, pela intensa vida associativa. Davam assim, para não poucos, a falsa impressão de enclaves étnicos renitentes à assimilação. Entre todos esses elementos um sobressaía de modo especial. Sua taxa de alfabetização passava dos 90% quando a média nacional andava pelos 40%. A resposta encontra-se nas escolas criadas, administradas e controladas pelas comunidades, tanto sob o aspecto administrativo quanto curricular e a própria filosofia pedagógica e métodos praticados pelos professores. O resultado final desse estado de coisas foi uma população na sua quase totalidade alfabetizada, dada à leitura de jornais, almanaques, periódicos e livros, gozando de um elevado nível de formação e informação, uma população em condições de emitir julgamentos de valor sobre questões políticas, econômicas, culturais e religiosas. 

Se de um lado esse estado de coisas costumava ser visto como algo de positivo até o começo da primeira guerra mundial, para outros podia parecer um tanto estranho. Mas, de qualquer forma, até aquele momento, não causara maior problema na convivência com os demais grupos étnicos. Cá e lá podiam ser ouvidas vozes de alerta chamando a atenção para o fato como uma anomalia e os mais exaltados falavam em “perigo alemão”. Entende-se que ficava difícil para um luso-brasileiro acreditar que pessoas cultivando uma língua e costumes estranhos, não se comunicando ou comunicando-se mal em português, merecessem ser aceitos como cidadãos brasileiros no sentido pleno do termo. 

Esse panorama somado ao fato de que, a partir da década de 1920, começaram a circular as vozes em favor de um nacionalismo crescente que deveria ter como base um Estado fortemente centralizado, impondo a “brasilidade” como objetivo, tornavam-se cada vez mais evidentes os sinais apontando para políticas e ações públicas no sentido de diminuir e, finalmente, apagar as diferenças étnicas. Mas foi a partir da “Semana de Arte Moderna” em São Paulo em 1922 que o “abrasileiramento” transformou-se em bandeira do nacionalismo e os “alienígenas” como um estorvo a ser neutralizado. 

Entende-se assim que a partir de então as estratégias nas colonizações controladas pelo governo, além dos critérios geoeconômicos, entrassem também critérios de natureza étnica. Significa em outras palavras que os novos assentamentos deveriam ser planejados e implantados, misturando os elementos das diversas etnias. Partia-se da ilusão de que a simples justaposição física levaria a assimilação mútua e em uma, ou no máximo, duas gerações as diferenças desaparecessem normalmente. A experiência demonstrou que não era bem essa a lógica que orientava os migrantes a escolherem as fronteiras de colonização. 

Nessas colonizações predominou, via de regra, o povoamento étnico levando alemães, italianos, poloneses e outros a organizarem suas comunidades em  linhas e picadas etnicamente definidas. As características dos povoadores frustrou  assim, de alguma maneira, as intenções do governo estadual. No atacado ficava a impressão de uma região étnica e religiosamente mista, fato que não se verificava no varejo da formação das comunidades.

Um modelo oposto de colonização foi patrocinado pela Associação Riograndense de Agricultores. Fundada em 1899 em Santa Catarina da Feliz. Essa organização foi, na verdade, um ambicioso projeto  de  desenvolvimento econômico e promoção humana, pensado de forma  interconfessional e inter-étnica. Embora surgida numa assembléia geral dos católicos e seu mentor principal ter sido o padre jesuíta Theodor Amstad, pelos estatutos estava aberta  à filiação de protestantes e aos integrantes de outras etnias representadas no Estado. Entre os muitos e grandes desafios que a Associação teve que enfrentar, figurava a necessidade crônica de providenciar por novos assentamentos. A situação dos excedentes da antiga região colonial chegara a um ponto tal que foi preciso partir para um empreendimento de grandes proporções, fora da região original destinada aos imigrantes. A opção foi pela região das Missões e Alto Uruguai, com o seu ponto de partida em Serro Azul, atual Cerro Largo, então sob a jurisdição do município de São Luiz Gonzaga.

Na assembleia anual da Associação dos Agricultores em 1902, estabeleceram-se alguns princípios a serem observados pelos povoadores de novas fronteiras de colonização. Para cada distrito foram nomeadas uma ou mais pessoas encarregadas para orientar os candidatos à emigração. Esse tipo de providência tinha suas razões. Tratava-se de um empreendimento de grande envergadura. Os candidatos às novas fronteiras  de colonização eram, na sua totalidade, filhos de agricultores, simples e confiantes, movidos por uma enorme vontade de construir o futuro em terras virgens e não poucos animados por um tal ou qual espírito de aventura. Compreende-se assim que se formara um clima propício para que todo o tipo de espertalhões tentasse aproveitar-se da situação. Como é comum em tais circunstâncias, apresentaram-se aqueles que ofereciam terras quase de graça, outros vendiam terras inexistentes, outros ainda vendiam a dois ou mais compradores o mesmo lote. Prometiam vantagens e  facilidades impossíveis e os desavisados deixavam-se enganar.

Mais duas recomendações foram acrescentadas. Em primeiro lugar, insistiu-se que os colonizadores formassem grupos maiores de pessoas conhecidas entre si, evitando a dispersão entre colonos estranhos. Essa providência facilitaria em muito o começo da nova vida em situações  muitas vezes difíceis e precárias e, ao mesmo tempo,  diminuía o tempo necessário para  formação de comunidades bem integradas. 

A resolução de nº 9 da assembleia geral de 1902, previa também assentamentos em comunidades separadas por confissão religiosa e identidade étnica. “A assembleia geral previu em colonizações, bem conduzidas, a garantia do bem-estar material e espiritual das futuras gerações dos excedentes gerados nas áreas antigas da colonização. Ao tratar-se de assentamentos novos apontou-se para o desejo generalizado que se sugerisse o critério da separação de acordo com  confissão religiosa”  e identidade étnica - (Einheitskolonien).

A justificativa para tomar o critério confessional como determinante na fundação de colônias, explica-se  pelos inconvenientes que resultavam na época para a prática pastoral, tanto católica quanto protestante. Estava-se a 50 ano do Concílio Vaticano II, numa época, portanto, em que uma série de barreiras canônicas separavam as duas confissões. O casamento de um católico com um protestante ou vice-versa, acarretava numa série de inconvenientes e obrigava o cônjuge da outra confissão  a sujeitar-se a cláusulas canônicas inegociáveis. O católico era proibido servir de padrinho num batizado de protestante assim como convidar um protestante para ser o padrinho num batizado católico. Num casamento misto o cônjuge protestante era obrigado a prometer que os filhos seriam batizados e educados na Igreja Católica e não impedir que a parte católica praticasse a sua religião, o que significava na pratica a renúncia da parte protestante à sua confissão para os descendentes. Em muitas dessas situações as promessas não passavam de meras formalidades e se a parte católica contraía matrimônio com um protestante sem se sujeitar à regra canônica, passava ser excluída da Igreja. Tenho na minha família uma caso exemplar dessa situação. Um tio bisavô  casou com uma protestante e não se sujeitou às exigências canônicas. Foi por isso considerado herético e a sua descendência, são hoje os protestantes com o meu sobrenome ou um pouco alterado de Rambor our Rambow. Não faltam depoimentos de curas de alma católicos referindo-se aos casamentos mistos com uma praga e um dos grandes problemas na sua atividade pastoral. Evidentemente essas preocupações estão superadas e podem causar estranheza a quem não se situa nas circunstâncias de então. De qualquer forma, sobre esse pano de fundo, as orientações adotadas  nas colonizações da primeira metade do século XX, fazem sentido. 

A experiência feita em Serro Azul serviu de estímulo para ser reeditada na colonização de Santo Cristo. A respeito dessa experiência cito o comentário do Pe. Balduino Rambo:

Não demorou e ficou claro que não era preciso colonizar somente de acordo com as confissões religiosas como também das nacionalidades. As colônias  formadas por alemães, italianos e poloneses não conseguiram formar comunidades organizadas. Em muitos casos o segmento mais fraco partia para outras regiões com graves consequências para o desenvolvimento econômico. Profetas tranquilamente  acomodados  em seus gabinetes, acusaram os velhos jesuítas de terem impedido a “nacionalização” dos descendentes de alemães em suas colônias fechadas. Mas esses homens encanecidos na pastoral colonial sabiam da própria experiência para onde conduz a teoria da mistura nacionalista. (Rambo, Balduino, Johannes Rick, SJ, Sonderdruck aus der Zeitschrift “Montfort”, Heft ½, 1958)

As experiências de Serro Azul e Santo Cristo serviram mais tarde de inspiração para a colonização de Porto Novo (Itapiranga) e Porto Feliz (Mondai) e San Alberto e Puerto Rico no norte da Argentina. Nos dois casos foi adotado o modelo étnico combinado com o confessional. Porto Novo desenvolveu-se como uma colonização exclusivamente de alemães católicos e Porto Feliz de alemães protestantes. A mais emblemática foi a de Porto Novo, devido em primeiro lugar ao Pe. Johannes Rick, que moldou a Colônia à imagem do velho  catolicismo da Restauração Católica. Preservou até perto dos nossos dias uma fisionomia exclusivamente alemã e católica. 

Para o observador de hoje, valer-se da confissão religiosa e identidade étnica como critério para orientar assentamentos de agricultores, parecerá no mínimo estranho, sem cabimento e inaceitável. Nas primeiras décadas do século XX, entretanto, podia ser considerado normal ou pelo menos explicável. A prática pastoral ensinara que  comunidades identificadas pela confissão facilitavam o atendimento religioso. Ao mesmo tempo reduzia em muito o risco de desencontros no dia a dia do convívio entre confissões diferentes, de modo especial em pontos críticos como casamentos mistos e padrinhos de batizados. De outra parte a identificação étnica, que na época implicava no uso quotidiano de línguas diferentes e usos e costumes também diversos, facilitava a formação de comunidades e a própria convivência comunal.

Merece destaque o fato de que a região das Missões e Alto Uruguai ter sido fruto em larga escala da migração interna. Para lá confluíram contingentes significativos de todas as vertentes étnicas importantes que participaram da moldagem do perfil humano hoje presente no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XIX vivia na região uma população esparsa e dispersa de remanescentes do tempo das Missões e posteriores. Eram descendentes dos bandeirantes apresadores de indígenas, aventureiros e comerciantes espanhóis e lusos, mestiços “missioneiros” e fragmentos das tribos de índios dispersos pelos campos e matas adjacentes. 

Instalou-se então, a partir da segunda metade do século XIX a ocupação e colonização definitiva de toda a região. Para lá confluíram alemães, italianos, poloneses, teuto-russos, judeus, etc. Nas antigas áreas de colonização nas bacias do Sinos, Caí, Taquari, Antas, Pardo, Jacuí, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Veranópolis e demais localidades daquela região do planalto, predominara o povoamento etnicamente identificado. Nas Missões e no Alto Uruguai todas essas vertentes  vão encontrar-se aos poucos, pondo em marcha os mais diversos mecanismos de contato, de intercâmbio e de progressiva integração. A partir de então a região transformou-se num autêntico laboratório de integração étnica, cultural, social, econômica e religiosa. A vizinhança geográfica, a mútua aceitação, o intercâmbio, a assimilação e aculturação mútua, entretanto, não fez esquecer as raízes históricas da população. Mesmo que hoje não se observem mais sinais importantes de rejeição e mesmo que a língua, a economia, a visão social, as concepções  religiosas sinalizem para uma unidade étnico-cultural, verifica-se contudo um sadio e entusiástico retorno às raízes e uma preocupação generalizada de, na unidade, preservar e cultivar as diferenças. São exemplos a “casas alemãs”, “polonesas” e “italianas”  em Santo Ângelo. 

Assim como a região das Missões e do Alto Uruguai foi e continua sendo um magnífico laboratório que permite observar de como acontecem os encontros inter-étnicos de uma maneira mais genérica, oferece também material abundante para os estudiosos interessados no mundo das ideias que aí se encontraram. Uma avaliação objetiva dessa problemática seria impossível se o historiador não estivesse de posse de uma compreensão mínima do universo da cosmovisão e do imaginário indígena. A ele sobrepôs-se, e de alguma forma, mesclou-se a proposta missionária das reduções jesuíticas de promoção humana do indígena, inserindo-o numa civilização nos moldes do cristianismo ibérico e de uma organização social inspirada no solidarismo. Oposta, sem dúvida, foram as motivações que levaram os paulistas e espanhóis à região, depois do banimento dos missionários e a dispersão dos indígenas. 

A partir da colonização definitiva que começou na segunda metade do século XIX,  responsável pela fisionomia étnica e cultural de hoje da Região, é possível detectar, sem maior esforço os outros modelos. O projeto colonizador de Cerro Largo e Santo Cristo foi orientado pelo princípio do solidarismo comunitário, tendo como lema o princípio pregado pela Sagrada Escritura “Viribus Unitis – Somando forças”, orientado pela separação das comunidades pelo critério étnico e confessional. Nas colônias patrocinadas pelo Estado prevaleceu a intenção de induzir e acelerar o caldeamento étnico e cultural e estimular a formação de novos polos de produção agrícola. As empresas colonizadoras privadas e colonizadores individuais, orientavam-se por uma filosofia bem mais prosaica: fazer negócios com as terras. 

Mas há um outro aspecto a ser considerado. A região das Missões e do Alto Uruguai  de 1880 a 1950, serviu de desafogo para a constante superpopulação das regiões coloniais mais antigas. O modelo de pequenos e médios estabelecimentos rurais não demorou por mostrar seus efeitos também nessa região. Os excedentes começaram, a partir de 1920, a procurar terras fora dela e desencadearam  um fluxo migratória sempre mais acelerado para o Centro e o Oeste de Santa Catarina, para o Oeste do Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e mais para o norte, Acre, Rondônia e até para Roraima, Amapá, Centro Oeste, Maranhão e Bahia. Paralelamente ocorreram  movimentos de organização interna  de natureza econômica como a implantação de cooperativas de produção, comercialização, consumo e crédito, iniciativas para levar a efeito feiras e festas como Festa Nacional da Soja em Santa Rosa, a Festa Nacional do Milho em Santo Ângelo, movimentos de reorganização social e religiosa, o retorno às raízes e por aí vai. 

Bicentenário da Imigração - 25

Contribuições dos imigrantes alemães

Neste capítulo pretendo resgatar algumas das principais contribuições dos imigrantes vindos da Europa Central e do Norte, que começaram a fixar-se no Brasil a partir da década de 1820. Na maioria das ocasiões, quando o assunto é tratado, concentra-se a atenção no projeto colonizador intencionado pelas autoridades brasileiras e confiado a imigrantes europeus não ibéricos. Essa imigração imprimiu contornos inconfundíveis em áreas significativas nos estados do sul. Com o assentamento dos agricultores alemães no rio Grande do Sul desde 1824, no leste de Santa Catarina a partir de 1850 e, desde 1870 poloneses e 1875 italianos, algo de inédito foi implantado no Pais. 

Entre as muitas contribuições quero destacar as seguintes: o novo modelo colonizador, a organização comunal, a educação, a religiosidade, o trabalho, o associativismo, o teuto-brasileirismo de hoje. 

Novo  Modelo colonizador
Percorrendo as áreas em que predominou e ainda predomina a presença alemã e sua descendência, constata-se que eles ostentam peculiaridades não encontráveis nas demais regiões do Brasil. Destacam-se, neste sentido,  de maneira mais evidente, no Rio Grande do Sul, as bacias fluviais do Sinos,  Cai, Taquari,  Pardo,  Jacuí, da região das Missões e do Alto Uruguai, além do leste  e do centro oeste de Santa Catarina e o oeste do Paraná. Transita-se por centenas e milhares de pequenos núcleos coloniais, vilas e pequenas cidades. Centros urbanos maiores formam as sedes dos municípios. Alguns deles, localizados em pontos estratégicos, evoluíram para polos regionais de importância crescente. Apopulação viveu e, em parte, vive ainda hoje, da agricultura fundamentada na pequena propriedade rural familiar. 

Os estabelecimentos rurais sobressaem todos por um perfil comum. Constituem-se em micro empresas familiares de produção agrícola. Resultaram historicamente de uma característica colonização de povoamento. Sob esse prisma e, sob muitos outros, inauguraram no Pais um modelo de ocupação territorial e um paradigma inédito de organização social e de atividade econômica. Comparando-os com o paradigma que orientou os grandes ciclos econômicos do algodão, da cana, da mineração, do café e do gado com seus latifúndios, suas fazendas, suas estâncias e sua escravaria, impõe-se a pequena propriedade familiar, dedicada à agricultura diversificada. 

Examinando o projeto colonizador, tanto da parte das autoridades brasileiras, quanto da parte dos imigrantes em foco, subjaz a ele uma filosofia de povoamento que conferiu à sociedade daí resultante, características que a distinguiam do restante do Pais.

Os imigrantes alemães  e os demais  grupos procedentes da Europa Central e do Norte encaminharam-se para o Novo Mundo, no caso para o Brasil, com o intuito de, como agricultores, aí se estabelecerem em caráter permanente, armar uma tenda definitiva  numa nova pátria, enfim, colocar as bases para que seus filhos e netos pudessem construir o futuro que as terras de origem já não tinham condições de oferecer. 

A mentalidade com que os espanhóis e portugueses desembarcaram na América ficou explícita na declaração de um dos conquistadores espanhóis: “Eu vim pelo ouro e não para lavrar a terra como um camponês!” Pois os alemães, italianos, poloneses e demais imigrantes vindos da Europa Central e do Norte vieram como camponeses, lavrar a terra,  organizar um lar seguro e uma Querência promissora para si e para os seus. Chegaram para, com todas as suas potencialidades e toda a sua obstinação de camponeses, contribuir com a edificação de uma nova pátria. Em relação à antiga, politicamente falando, tinham “queimado os navios” ou “cruzado o Rubicão.” Não desembarcaram em companhia de sócios de empreitada, para enriquecer  o mais rapidamente possível, “fazer o seu Brasil” e retornar abastados para as terras de origem. 

Esses imigrantes ao se estabelecerem como agricultores, não apenas obedeceram a uma tarefa que eles próprios se tinham imposto mas, simultaneamente, atenderam ao convite das autoridades brasileiras que se propunham incorporar na economia nacional produtiva as áreas de florestas devolutas do sul e garantir as fronteiras por meio de um povoamento sistemático e definitivo .

A intenção de que os imigrantes e seus descendentes se dedicassem exclusivamente à agricultura transformar-se-ia, a partir do final do século XIX, num dos primeiros motivos de desencontro entre eles e os luso-brasileiros. O crescimento numérico, a expansão e a dispersão geográfica, somados à crescente vontade de participação ativa no comércio, na indústria, nas profissões liberais, na política e na burocracia e administração pública, serviu de alerta para o segmento luso, detentor exclusivo do controle político-administrativo local, regional e nacional. Difundiu-se aos poucos uma tal ou qual preocupação por um suposto “perigo alemão”. Por motivos óbvios os momentos de maior efervescência que azedaram seriamente as relações mútuas entre luso-brasileiros e teuto-brasileiros, aconteceram durante as duas guerras mundiais, mais na segunda do que na primeira. 

A organização comunal.
Com a imigração alemã foi inaugurado no pais um novo paradigma de organização social e comunitária. A natureza mesma da colonização por povoamento e a tradição multissecular dos imigrantes convergiam para a formação de comunidades rurais bem integradas e sólidas. As dificuldades iniciais causadas por um contexto geográfico hostil, pelo entorno social e cultural luso-brasileiro, pela difícil comunicação com as autoridades em todos os  níveis, pelas promessas em parte não cumpridas, fizeram da cooperação comunal uma condição de sobrevivência no início, para a consolidação da colonização e, finalmente, para o êxito do empreendimento.

Na base dessa organização comunal encontramos os lotes coloniais de proporções modestas, considerando o restante do país, cerca de 70 hectares no começo e entre 25 a 30 mais tarde. Sobre essa base desenvolveu-se a colonização fundamentada na pequena propriedade familiar. A família funcionou como micro empresa ou micro unidade de produção agrícola. As unidades familiares organizaram-se em comunidades, delimitadas geograficamente por um vale, uma planície, uma várzea ou um planalto. Essas comunidades organizadas em forma de “linhas”, “picadas” ou “lajeados” formavam a base dessa colonização de povoamento. Cada comunidade  dessas formava uma unidade até certo ponto autônoma e auto suficiente pois, cada qual dispunha de uma infraestrutura mínima para garantir-lhe uma relativa independência, como ferrarias, sapatarias, carpintarias, alfaiatarias, moinhos. Em muitas delas havia alguém que entendia de doenças, remédios e tratamentos mais simples. As escolas, as igrejas, os cemitérios, as casas de comércio, as sociedades, os clubes  e associações, garantiam a coesão e a integração comunal. 

A autonomia de meios e estrutura asseguravam as condições  mínimas para uma relativa auto suficiência. É evidente que não se pretende atribuir a essas comunidades características de autonomia total. O que se quer afirmar é que os problemas, os desafios e os empreendimentos comuns, tinham perfeitas condições de gerenciamento pela própria comunidade. Cada uma delas  representava, por assim dizer, uma mini-república com sua igreja, sua escola, seu comércio local, sua produção agrícola e artesanal e dispondo de meios mínimos de governo e controle interno. Resumindo pode-se dizer que elas representavam uma réplica das aldeias das terras de origem adaptadas às circunstâncias locais. O que aconteceu foi um tal ou qual transplante  da Europa para o Brasil, sem que  houvesse uma ruptura, menos ainda uma desagregação cultural mais profunda. 

A estrutura implantada nessas comunidades, as estratégias postas a funcionar e o gerenciamento  comunal foram decisivos na construção desse projeto de colonização.

Escola e educação
Conscientes de que os interesses de uma comunidade pressupunham um nível cultural mínimo, os colonos alemães se uniram, por conta e risco próprios, a criarem os meios necessários. Assim, já na primeira década da imigração, implantaram as primeiras escolas, antes mesmo de construírem capelas e igrejas. No começo as escolas serviam também para a celebração dos cultos e missas aos domingos. Multiplicaram-se assim as “escolas-capela” tão características das primeiras décadas. Para esses imigrantes a escola e a educação figuravam entre os interesses prioritários ao se instalar uma nova picada nas fronteiras de colonização. A fim de entender  o valor dado à escola pelos colonizadores alemães, é preciso prestar atenção às várias funções que lhe cabiam.

Esperava-se, em primeiro lugar, que o aluno aprendesse a ler, a escrever e a apropriar-se das noções básicas do cálculo. Na escola os filhos dos colonos municiavam-se com os instrumentos essenciais para estabelecerem as relações intra e inter comunais e, ao mesmo tempo, administrar com segurança as propriedades e os negócios da família. 

Em segundo lugar a escola fazia o papel de instrumento  permanente da preservação dos valores  religiosos tanto entre os católicos quanto entre os protestantes. Como até 1850 a assistência religiosa prestada pelos pastores protestantes foi precária e entre os católicos inexistente, a escola supria os ensinamentos religiosos essenciais, prevenindo desta forma, uma perigosa decadência. E, de fato, a escola assegurou um nível mínimo à religiosidade e, fez com que não acontecesse uma degeneração mais séria, até que a assistência pastoral se tornasse regular e qualificada a partir de 1850, com a vinda de jesuítas para o atendimento aos católicos e os pastores ordenados para os protestantes. As associações e as diretorias das escolas responsáveis pela educação escolar, serviram de modelo para os sacerdotes católicos e os pastores protestantes organizarem as paróquias. Estabeleceu-se, desta forma uma íntima colaboração e uma complementariedade mútua entre a comunidade e diretoria da escola e a comunidade e diretoria da igreja, entre o professor e o sacerdote, entre o professor e pastor.

Em terceiro lugar a escola foi importante para a preservação dos valores culturais como a língua e a maneira de ser alemães.

Em quarto lugar a escola foi a incentivadora do despertar da consciência da cidadania brasileira. Tornara-se lugar comum, aceito sem a menor preocupação critica, que essa escola se transformara num dos focos mais renitentes à assimilação do imigrante alemão na sociedade nacional. Entretanto muitos documentos, testemunhos, declarações de princípios  e a própria maneira de proceder dos agentes da educação, apontam na direção oposta. Quando da implantação do currículo comum para as escolas católicas no começo do século XX, constavam nele como disciplinas obrigatórias o português, a história e a geografia do Brasil. 

A Religiosidade
Paralelamente  à preocupação com a escola e a educação, os colonos alemães e italianos cultivavam uma sincera e profunda religiosidade, que perpassava todos os momentos do seu quotidiano. Os sinos das igreja e capelas convidavam  para um momento de oração pela manhã e à hora do meio dia.  No entardecer chamavam para o “ângelus.” Sem constrangimento os colonos se católicos se descobriam, seguravam o cabo da enxada e cansados do trabalho do dia, recitavam três Ave Marias. Não poucos, principalmente mulheres e crianças, ajoelhavam-se sobre a terra fecunda que o arado acabara de sulcar. As orações da noite costumavam ser o último ato do dia. 

Para essa gente, o trabalho e a oração formavam uma simbiose perfeita. Uma dava sentido à outra. O trabalho sem a oração assumia as feições de um castigo. A oração sem o trabalho transformava-se num ato vazio e sem sentido. Fizeram do lema “reza e trabalha” o norte de suas vidas. 

Sendo assim, é evidente que a missa ou o culto aos domingos e dias santificados, assumisse um significado todo especial. Nessas ocasiões recebiam-se os sacramentos, revigorava-se  a fé e, ao mesmo tempo, renovava-se o ânimo para enfrentar mais uma semana de luta e de trabalho. Nas sua prédicas e nas suas homilias, sacerdotes e pastores encarregavam-se de manter acesa a chama da fé, recordar os princípios doutrinários e chamar a atenção para as  obrigações morais e disciplinares. 

Até um tempo que não vai muito longe, a igreja, além de propiciar  encontros estritamente religiosos, oferecia o espaço para reuniões comunitárias. Antes e depois dos  atos religiosos formais, acontecia o convívio comunitário tendo como foco preocupações profanas, trocas de ideias e experiências e até realização de negócios.

A religião perpassava todos os acontecimentos e neles, não raro, se confundia, ao ponto de se tornar difícil estabelecer a fronteira entre o profano e o sagrado. Na verdade, a religião e suas manifestações individuais e coletivas, representavam uma das faces e, as atividades profanas, a outra face da mesma realidade: a vida do colono com suas lutas, alegrias, sofrimentos, sucessos e frustrações. E como produto final forjou  uma estirpe de homens e mulheres dotados de fé inabalável, de uma indômita vontade de progredir, levando na maioria dos casos uma vida frugal, mas condimentada com frequentes intervalos, em que a alegria de viver irrompia com vigor e espontaneidade. 

Nas proximidades das igrejas encontrava-se invariavelmente o cemitério. Nesse local, envolto numa atmosfera de solene tranquilidade, a memória e a veneração dos antepassados assumia as proporções do sagrado. Em longas fileiras, em túmulos bem cuidados, descansavam as gerações de homens e mulheres que haviam precedido no vitorioso empreendimento colonizador. Com suas virtudes, com seu  amor à família, sua dedicação constante, com seu trabalho duro, sua perseverança e obstinação, colocaram as pedras do fundamento de uma modalidade de civilização nova em terras brasileiras. Foram autênticos pioneiros, protagonistas de uma saga heróica, cuja história até hoje só foi contada em fragmentos. O anonimato em que costumavam viver e lutar, avessos ao barulho e à retórica vazia, fez com que levassem para a sepultura as provas do heroísmo do quotidiano e os lances, por vezes épicos, que cá e lá marcaram a aparente singeleza dessa história. 

O que essa gente pensava de Deus, do mundo e dos homens, encontra-se perpetuado em fragmentos e expresso nos epitáfios entalhados nas cruzes de seus túmulos.

O exemplo dos antepassados em todas as dimensões  existenciais motivava essa veneração. Não se tratava de um culto apenas nostálgico. Significava, isto sim, uma tomada de posição, uma reafirmação de sua história pessoal e um juramento de fidelidade às raízes. 

O trabalho
Se  a organização comunal, se a escola e a educação e sua prática foram marcas registradas dos imigrantes alemães, um outro fator igualmente decisivo para o êxito  do projeto colonizador foi o trabalho. O trabalho aqui entendido no seu sentido mais amplo. Os imigrantes, tanto os alemães quanto italianos e outros, não refugavam tarefa de espécie alguma, quando se tratava de conquistar o sucesso e melhorar as condições de vida. Porque o trabalho se constituía na condição sem a qual o êxito e o progresso estariam comprometidos. Ele se transformou num dos valores mais caros, embora trajasse muitas vezes as  roupas da dureza, da persistência, da luta sem trégua. Entre os colonizadores a execução de qualquer tipo de trabalho, por mais ingrato, humilde e desprezível que pudesse parecer, transformava-se em motivo de orgulho. A certeza de que o trabalho significava a via obrigatória rumo ao sucesso, fez dele motivo de satisfação, de enobrecimento e lhe conferia as características de um postulado ético e de um mandamento de vida. Ao trabalhador incansável, à mulher atarefada desde o amanhecer até a noite, prometia-se  a prosperidade, assegurava-se o respeito dos homens e a certeza das bênçãos dos céus.

Neste ponto os imigrantes alemães, italianos e poloneses e outros distinguiram-se em muito dos seus vizinhos lusos. Para esses últimos o trabalho braçal, as lides domésticas e  similares eram desprezíveis. Quem se prezava tratava de ficar longe delas. Para executá-las recorriam aos escravos ou peões. O senhor do engenho não comprometia as mãos operando a parafernália destinada à fabricação do açúcar. O estancieiro não criava bolhas nas mãos plantando postes de cerca e não se arriscava rasgá-las esticando arame farpado. Ficava à distancia. Ele supervisionava, o capataz comandava e os peões  pegavam no pesado.

Não fora essa a concepção e a valorização do trabalho, os imigrantes com certeza teriam naufragado em meio aos inúmeros e ingentes obstáculos que encontraram. Tomando ao pé da letra o mandamento bíblico: “comerás  o pão de cada dia com o suor do teu rosto”, enfrentaram a floresta prenhe de surpresas. E o resultado não se fez esperar. Em questão de poucas décadas, a paisagem que até então acoitara foragidos e bandoleiros, abrigara tribos indígenas dispersas e servira de covil para as feras, cedera lugar a centenas  de núcleos agrícolas nos quais labutava, de sol a sol, uma linhagem de homens e mulheres, dispostos a tudo, quando a meta era progredir.

O trabalho aliado a outras virtudes e outros valores impulsionou essa gente sempre para frente. Como um rolo compressor a que nada resistia, ultrapassaram a primeira região de colonização no Sinos, no Caí, no Taquari, no Pardo e no Jacuí, para, no final do século XIX, tomarem de assalto a Serra, as Missões e o Alto Uruguai. Entre 1925 e 1960, passaram o rio Uruguai para colonizar o centro-oeste de Santa Catarina e, entre 1960 e 1980, desbravar também o oeste do Paraná. E o avanço dos descendentes desses imigrantes não parou no Paraná. Hoje é possível encontrar descendentes remotos deles no Mato Grossos do Sul, no Mato Grosso do Norte, em Rondônia, no Acre, no Cerrado do Brasil Central, na Bahia, no Maranhão, no Amapá, em  Roraima e, não em último lugar, nas repúblicas vizinhas da Argentina e do Paraguai. Onde chegaram e armaram acampamento brotaram, de um ano para outro, nas circunstâncias mais difíceis, lavouras de milho, mandioca, soja, arroz e trigo.

Não foi por acaso que as coisas se deram e ainda continuam acontecendo dessa maneira. É que, apesar da distância de tempo e  espaço que separava  os descendentes dos imigrantes das suas raízes europeias, souberam guardar e transmitir esse fantástico valor que é o trabalho e com toda a mística e motivação ética que o envolve.

Associativismo
O associativismo praticado pelos teuto e ítalo brasileiros coloca-nos frente a mais uma das grandes contribuições que eles legaram. Demonstraram uma capacidade incomum de  criar formas associativas e uma inesgotável versatilidade em praticá-las. A imagem bíblica do feixe de varas que a tudo resiste, o lema do mutuo engajamento. “viribus unitis” – “unindo forças”, aliado ao apelo cristão “omnibus omnia” – “ tudo para todos”, alimentaram a filosofia, os meios e estratégias do sucesso. 

O associativismo sob suas mais diversas formas, transformou-se no meio mais eficaz de os imigrantes praticarem o lazer, cultivarem a arte, desenvolverem o esporte, manterem-se fieis ao espírito religioso, promoverem a educação e a cultura, de dinamizarem, enfim, a atividade econômica. A capacidade de se associarem e a facilidade de se engajarem em empreendimentos comuns foram de importância decisiva na conquista do sucesso. É nisso que consiste um dos legados mais importantes e uma das contribuições mais valiosas. 

NB - Informações exaustivas sobre o Associativismo encontra-s em duas obras do autor desses “Flagrantes”; “O Associativismo Teuto-Brasileiro e os Primórdios do Cooperativismo no Brasil” e “Somando Forças – O projeto social dos jesuítas no sul do Brasil”. Ambas essas obras foram publicadas pela Editora da Unisinos, o primeiro em 1988 e o segundo em 2011.

O Teuto-Brasileiro de hoje
No período entre as duas guerras mundiais operou-se entre os alemães do sul do Brasil, um fenômeno de grande importância. Correu paralelo e, até certo ponto, em direção oposta ao desejo dos imigrantes de aprenderem a língua portuguesa e firmarem-se como cidadãos. Pode-se dizer que funcionou em muitos casos como freio, baixando aparentemente o ritmo da integração definitiva. Falamos da fidelidade que  mantiveram aos seus dialetos e às tradições dos seus antepassados. A incapacidade de as autoridades estaduais e federais entender somado à recusa de aceitar esse aparente paradoxo, terminou por gerar no final dos anos de 1930, a Campanha de Nacionalização de  triste memória. 

Essa atitude, contraditória e conflitante na aparência, foi o resultado das próprias peculiaridades históricas em que se plasmou a identidade germânica. Auto definir-se como alemão não significava referenciar-se a fronteiras nacionais. Não significava servir a um regime político ou filiar-se a uma ideologia. O elemento síntese estava na unidade étnico-cultural, real ou presumida. Tanto podia alguém ser alemão e cidadão do estado alemão, como também cidadão austríaco, suíço ou russo. O que antes de mais nada os unia, eram os laços de sangue, de etnia e de cultura. Para todos os efeitos práticos eram alemães aqueles que tinham emigrado de algum dos territórios em que predominava a “ordem alemã”. Neles fora gerada a germanidade - o “Deutschtum”. Aí  encontravam-se suas raízes e se consolidara a sua identidade. A cidadania jurídica e as fronteiras nacionais, por mais importantes que fossem, não passavam, em última análise, de eventualidades históricas. Podiam mudar e, de fato, mudavam, no ritmo em que mudavam os regimes políticos e se alternavam os governos. O que permanecia, apesar de tudo, era o fato de serem “alemães”. 

Ora, esse elemento iria necessariamente entrar como fator decisivo, quando da sua inserção definitiva como cidadãos na nacionalidade brasileira. Para eles era a coisa mais óbvia e mais  coerente assumir essa cidadania com todas as consequências legais, permanecendo, contudo, alemães como seus antepassados o haviam feito na Alsácia, em Luxemburgo, na Hungria ou na Rússia. Esse entendimento do conceito de cidadania, desvinculada da raça, da etnia, da cultura, para muitos foi e é ainda difícil de entender. Coerentes consigo mesmos e fieis à sua história, trataram de pôr em prática essa concepção também no Brasil. 

Da atitude diária somada  ao atendimento dos requisitos formais do exercício da cidadania, os teuto-brasileiros souberam também recorrer à retórica, ao discurso para expressar  as suas intenções. Falando a um plateia de lideranças teuto-brasileiras em Santa Cruz do Sul, em 1936, Franz Metzler deixou o seguinte testemunho:

Sou brasileiro. Eu me confesso fiel a minha pátria. Amo-a com todo o ardor do meu coração e com toda a força da minha personalidade, não menos que qualquer outro, a quem a pátria é sagrada, ama e deve amar a sua.

Entretanto  declaro-me fiel à etnia alemã, aos hábitos alemães e à maneira de ser alemã.

Todos conhecem a afirmação: mantemo-nos fieis à cultura alemã, à maneira de  ser alemã, porque desta maneira serviremos melhor ao Brasil. Ouvimos  este depoimento em qualquer discurso festivo e em qualquer declaração de princípios por parte de teuto-brasileiros. Eu o subscrevo com todas as letras no sentido de que permanecendo fiéis à germanidade temos condições de desenvolver plenamente a nossa personalidade para desta forma nos transformarmos em membros úteis da sociedade nacional ( ... ).  (Metzler , 1836, p. 8)

Desde as primeiras horas em que aqui chegaram,  os  alemães prepararam  a nova terra para ajusta-la à sua maneira de encarar esse desafio. Organizaram suas comunidades, seus serviços, sua infraestrutura, seus negócios e o lazer de acordo com a tradição. Como alemães haviam embarcado para o Brasil e como alemães pretendiam continuar ao indefinido, no tocante à cultura sem, entretanto deixar de agir como cidadãos brasileiros. Assim continuaram procedendo sem imaginar que, algum dia, alguém pudesse julga-los menos brasileiros por isso.  Não suspeitaram que os  dialetos que falavam e os costumes que praticavam, pudessem  servir de motivo para suspeitar da  autenticidade  das suas reais intenções aqui no Brasil.

Continuaram, portanto, agindo como o fizeram nos primeiros setenta ou oitenta anos. A diferença que foi-se impondo com o correr dos anos, resumiu-se no aprendizado da língua vernácula, na tomada definitiva da consciência que eram cidadãos brasileiros e na adaptação às peculiaridades circunstanciais daqui. E o resultado foi e é, ainda em grande parte, o personagem conhecido como teuto-brasileiro. 

Essa atitude resultou em episódios curiosos, mas certamente muito significativos. Alguns antigos escravos negros que haviam  convivido durante anos com os colonos alemães, não falavam português mas o dialeto dos colonos. No período mais agudo da Campanha de Nacionalização, em plena segunda guerra mundial, um deles chegou a declarar com muita convicção: “Nós alemães temos que nos unir”.