Para os imigrantes alemães e seus descendentes a casa em que nasceram (Heim – Vaterhaus), na qual tiveram suas experiências infantis, em que cresceram e tornaram-se adultos, assumia as proporções do sagrado. Representava à sua maneira um santuário no qual não se permitia a entrada do lado escuso do homem. Dele se bania tudo o que era baixo, tudo o que era sórdido, tudo o que era mentiroso, tudo o que era pérfido. Quando alguém se reportava à sua casa paterna (Heim), sempre o fazia com respeito e com veneração. Entre suas quatro paredes, por mais modestas que tivessem sido, viveram e lutaram as pessoas a quem mais queria e devia: os pais. Foi lá que aprenderam a amar e a rezar, o que é certo e o que é errado e a sentir-se membros da micro sociedade que é a família. Na casa paterna (no seu Heim) cresceram e se tornaram adultos e, por fim, partiram para a vida, carregando consigo uma rica bagagem de valores humanos e religiosos e dispostos a perpetuá-los onde quer que fossem instalar o “em casa” (das Zuhause) dos seus filhos. Como se pode ver esses valores eram essenciais na preservação da identidade. Preservá-los nada mais significou do que manter vivas as raízes culturais. A quem, por uma razão ou outra, faltassem essas raízes, carecia da ligação mais importante para com o passado cultural. Ficava separado da cepa que o vivificava com a seiva vital da sua história.
Enquanto na família a assimilação dessa realidades acontecia pelo vivenciar diário no relacionamento com os pais e irmãos, na escola a questão era tratada de maneira mais sistemática. Não se recorria a grandes discursos para garantir os resultados, a dramatizações do tipo ético, apontando para os castigos e os prêmios reservados aos faltosos e os cumpridores das suas obrigações. Obtinha-se um resultado excelente com a leitura de histórias, de contos, de fábulas, com a declamação de poesias, com execução de cantos que se ocupavam com o tema. Os livros de leitura adotados nas escolas costumavam preencher uma dupla finalidade: exercitar a leitura e consolidar os valores culturais da tradição dos antepassados.
O espaço formal reservado para a disciplina “Realia” não passava de meia hora por semana. Nem Havia necessidade para mais pois, seus conteúdos permeavam todas as outras disciplinas. Serviam de pano de fundo para histórias, fábulas, poesias, cantos, contos etc., como serviam para exercícios de redação e de composição.
Como extensão da casa destacava-se uma segunda “realidade”, não menos vital. Na tradição germânica ficou designada como “Hof” ou em tradução livre “pátio”. Esse vocábulo, entretanto, não se aproxima nem de longe do conceito que os alemães e seus descendentes lhe atribuíam. Os elementos físicos do “Hof” compreendiam a casa de moradia (das Haus), os celeiros, os estábulos e as demais benfeitorias. Não podia faltar o jardim com flores na frente da casa. Entre as construções cresciam árvores de sombra, árvores frutíferas. Soltos andavam galinhas, patos, gansos e obviamente cães e gatos. Tudo estava convenientemente cercado por arame farpado ou uma taipa de pedras. Não raro a área ultrapassava vários mil metros quadrados. Todo esse complexo formava o pequeno mundo imediato do colono. A criança, ao sair do recinto sagrado da casa, entrava nesse espaço ainda perfeitamente delimitado e circunscrito. Este seria o seu mundo até os seis ou sete anos. Neste espaço vivenciava as alegrias e as realizações, as tristezas e as frustrações da infância. Esse minúsculo universo proporcionava-lhe o contato com as plantas e os animas. Nele descobria as primeiras incógnitas oferecidas pela natureza. Nele passava os dias brincando, divertindo-se e tentando entender os mistérios que evolviam a vida e a natureza.
Essas experiências e essas vivências todas faziam com que o colono lançasse raízes profundas e existenciais no chão sagrado do “Hof”. Cada árvore contava uma história, cada pássaro recordava uma emoção, cada flor sugeria um símbolo, cada telhado evocava um acontecimento, enfim, tudo que existia, vivia e se movimentava neste recinto, vinha carregado de significados e de simbolismos. Nem a distância, nem a idade, nem os descaminhos da vida fariam com que qualquer autêntico filho dessa estirpe se esquecesse do seu “Hof”. Retornava a ele quando possível. E não havia nada mais triste e mais decepcionante para o forasteiro do que, voltando ao local onde ficara o seu “Hof” e não encontrar mais nada, nem a casa em que nascera, nem as árvores em cuja sombra brincara e cujos frutos apreciara, nem os muros que marcavam as fronteiras do seu universo de criança, nem os celeiros, nem as estrebarias, nem as flores, nem os animais amigos. O palco desfeito do seu mundo infantil aperta-lhe o peito e faz doer o coração, com uma dor profunda pelo paraíso perdido mas não esquecido. As ervas desordenadas, os arbustos selvagens, os cipós e as árvores estranhas, que tomaram conta de tudo, parecem chamar-lhe a atenção que suas raízes já não se encontram naquele lugar. Foram apagadas e se perderam no passado. E o viajante perdido no chão que já não reconhece como o seu, tenta com tristeza e nostalgia, reconstruir na memória aquilo que um dia fora o seu “Hof”. Sente-se estrangeiro e estranho em sua própria terra e partindo, convence-se de que algo de existencial lhe foi roubado.
Também na preservação de mais esse componente importante da identidade, a escola participava de forma decisiva. As histórias dos livros de leitura, as poesias, os contos e os cantos, não se cansavam de chamar a atenção para as realidades integrantes do minimundo do “Hof”. Enquanto na vivência diária aprendiam reconhecer os limites práticos e as realidades concretas do “Hof”, na escola se lhes despertava a consciência da necessidade de apreciá-lo e amá-lo com todas as energias da alma. O descendente autêntico dos imigrantes alemães cultivava um verdadeiro caso de amor com o seu “Hof”.
Mais tarde, com sete ou oito anos, a criança chegava na idade de freqüentar a escola. Chegara o momento de transpor os limites do minúsculo universo que era o “Hof”. A partir daí tomava pé numa realidade circunstancial mais ampla, mas que não deixava de ser uma extensão das duas anteriores, a casa paterna, o “Heim” e o “Hof”. Começava a viver e conviver com a terra natal, a “querência natal”, a “Heimat”. Falamos novamente de um espaço geográfico e de uma experiência de vida. As fronteiras da comunidade limitavam o espaço geográfico. Como realidade humana a sociedade local polarizava-se em torno da escola, da igreja, do cemitério, da casa de comércio, dos artesanatos e demais elementos da infra-estrutura comunal. Até a década de 1950 a existência dos colonos, de fato, esgotava-se e se consumia no perímetro da terra natal, da “Heimat”. Nela nasciam, viviam e morriam. Por essa razão o convívio na comunidade da terra natal, assumia em termos a mesma importância da casa paterna, do “Hof”. O menino e a menina identificavam aos poucos esse espaço e aprendiam a orientar-se por todas as trilhas e caminhos que interligavam os moradores. Sabiam onde cada um morava, quem era, quais suas virtudes e quais seus defeitos. Assim, aos domingos, na igreja, nos encontros festivos, nos bailes periódicos, só encontravam rostos conhecidos. Algum forasteiro eventual caía logo em vista. Consolidava-se a consciência do mundo comunal no qual um pacto tácito, porém, sagrado, convidava as pessoas a se comprometerem mutuamente e a se engajarem nos objetivos comuns.
Consolidava-se aí um convívio que retratava com absoluta fidelidade uma comunidade colonial Todas as pessoas conheciam-se pelo nome. O vizinho e o parente significavam muito mais do que um mero acidente geográfico ou uma simples fatalidade biológica. A trama das relações interpessoais encontrava na proximidade e na vizinhança geográfica e no parentesco biológico, toda a sua motivação e toda a sua vitalidade. Essa realidade transformou-se no critério elementar para definir os direitos e os deveres mútuos. Vizinho tinha deveres e direitos por serem vizinho e parente tinha deveres e direitos por sere parente.
Entende-se assim a não existência de certos serviços de assistência prestados hoje por repartições públicas ou por empresas especializadas. Não se conhecia, pro ex., a figura do coveiro, funcionário da prefeitura ou da comunidade. Providenciar o atestado de óbito, combinar a hora da encomendação, abrir a sepultura, velar o falecido, leva-lo até o cemitério e, finalmente, sepulta-lo, cabia como obrigação aos vizinhos. Da mesma forma solidária procedia-se em outras situações. A maioria das obras de utilidade da comunidade, eram encaradas e assumidas como obrigação pessoal. Desta forma ficava fácil mobilizar um grande número de pessoas em se tratando de construir uma escola, uma igreja, uma capela, ou limpar e enfeitar o cemitério, preparar as festas ou cuidar da construção e manutenção das estradas.
Em algum lugar muito especial da terra natal o jovem ou a jovem encontraria a pessoa que seria o grande amor da sua vida e com quem construiria um novo lar (Heim), organizaria seu próprio “Hof”, na terra natal (Heimat) que seria a dos seus filhos. A terra natal, a querência (die Heimat), portanto, significou sempre um lugar concreto e único, no qual convivia uma micro sociedade, também concreta e única, comprometida e mobilizada em torno de um propósito e de um projeto também comum, concreto e único. A terra natal não representava uma conceito abstrato, uma categoria teórica criada por intelectuais. Significou, como significa ainda hoje, um dado concreto, uma realidade geográfica e humana que os olhos podem apreciar, que o observador pode descrever, que o poeta pode cantar. É uma realidade que, antes de mais nada, faz parte existencial da vida das pessoas. Chega ser um verdadeiro estado de espírito e, por isso mesmo, objeto obrigatório das reminiscências do viajante sozinho e em terra estranha.
Basta percorrer a poética e o cancioneiro popular para encontrar abundantes provas. Um ou outro exemplo para comprovar. O viajante longe da sua terra natal, recordando-se dela canta:
Im Schönsten Wiesengrunde
Ist meiner Heimat Land
Ich Schaut’ so manche Stunde
Ins Tal hinaus.
Em tradução livre: “No mais belo dos prados, encontra-se a minha terra natal. Durante horas e mais horas eu contemplo o vale”.
O mercenário só e entregue à rude sorte cantarola em suas vigílias solitárias: “Difícil para o legionário é o caminho de retorno para casa. E muitos jamais de verão de nono a terra natal”:
Der Weg nach Haus ist Schwer
Für einen Legionär
Und viele, viele sehen die Heimat,
Die Heimat niemals mehr.
Embarcado em seu navio, o marinheiro pega da viola, recolhe-se ao convés e, embalado pelas ondas, bafejado pela brisa salgada, inspirado pela lua e pelas estrelas, canta:
“Um barco branco navega para Hongkong. As terras estranhas me atraem. Eu sinto saudades de casa. Eu disse aos ventos e às nuvens: levai-me convosco. Com muito prazer eu troco os muitos países estranhos, por uma única viagem para casa”:
Fährt ein weises Schiff nach Hongkong
Hab’ ich Sehnsucht nach zu Haus
Hab’ ich Sehnsucht nach der Ferne.
Und ich sagt’ zu Wind und Wolken,
Nimmt mich mit ich tausche gerne,
All die vielen fremden Länder,
Für eine Heimfahrt aus.
Depois é o forasteiro desgarrado, longe do torrão natal, da sua querência, da sua Heimat, que canta:
Heimatlos sind viele auf der Welt,
Heimatlos und einsam wie ich.
Ùberall verdine ich mein Geld,
Doch es wartet keiner auf mich.
Keine freunde, keine Liebe, kein “Zuhause”,
Wie es Früher, Früher einmal war.
Ein par Freunde, eine Liebe, ein Zuhause, ein Glück,
Ou seja: Muitos há que não têm terra natal. Como eu, solitário, não têm terra natal. Nos muitos lugares onde passo, ganho o meu dinheiro, mas ninguém espera por mim. Nenhum amigo, nenhum amor, como foi antigamente. Preciso de amigos, sinto falto de um amor, de um “em casa”.
Folheando qualquer livro de cantos, o tema “Heimat”, terra natal, impõe-se com freqüência impressionante. Observando com mais atenção constata-se que vem relacionado com outros valores que o complementam e enriquecem de forma extraordinária. O que mais se destaca é o amor. A terra natal, a querência, a “Heimat”, é o palco onde o amor desperta, onde amor floresce, onde o amor amadurece, onde o amor se perpetua. Fora deste contexto esse sentimento, esse valor não é capaz de lançar raízes e muito menos prosperar. Vão aí algumas amostras: “Onde encontrei a bem amada, lá se encontra a minha terra natal, lá eu me senti em casa:
Wo ich die Liebste fand,
Dort ist mein Heimatland,
Dort war ich einmal Zuhause.
À mesma relação terra natal-amor reporta-se o legionário em outra passagem do canto há pouco citado:
Fremd ist die Erde,
Fremd der Himmel,
Fremd sind die Reden,
Fremd die Lieder,
Fremd sind die Herzen,
Und keines Schlägt für ihn:
“Estranha é a terra - estranho o firmamento - estranhas são as falas - estranhas as canções - estanhos os corações e nenhum pulsa por ele.”
A terra Natal (die Heimat), o “em casa” (das Zuhause), a pessoa amada (die Liebste), simbolizam tudo o que desfila pela recordação da pessoa que, por obra do destino, encontra-se longe. Trata-se de um cenário concreto, elaborado pela vivência e sublimado ao ponto de acompanhar o homem como um estado de espírito.