Nesse esforço para entender a ascensão evolutiva de tamanho significado, duas incógnitas dificultam o caminho. A primeira relaciona-se com a cronologia terrestre. Em primeiro lugar é preciso livrar-se da armadilha de pensar em categorias cronológicas do nosso quotidiano, quando se trata de lidar com durações que cobrem eras geológicas.
As evidências apontam para um fato que a cada dia que passa, reúne um número crescente de constatações científicas a seu favor. As passagens de um patamar de complexidade química e ou biológica não acontecem aos saltos. Só se dão no mais autêntico modelo e ritmo evolutivo. No bojo de um determinado estágio, da macromolécula, por ex., estabelecem-se condições favoráveis para o desencadear de uma complexificação em direção a um nível mais elevado. No âmbito molecular e, a partir do seu próprio potencial, começa, por assim dizer, um pulsar novo da matéria, que acelera a complexificação e, com o correr do tempo, leva a um estágio mais elevado e mais adiantado. No nosso caso do estágio macromolecular, não é ele no seu todo que ascende a um novo patamar, mas uma parte ativada por um novo impulso evolutivo, gerado no seu interior. Em outras palavras, o patamar do universo macromolecular continua existindo. O que aconteceu é que em suas entranhas gestou-se o gérmen de uma nova dinâmica. Pela complexificação acelerada e ascendente, resultou um novo patamar, o Celular. Se essa mudança implicou numa transformação de natureza no sentido filosófico, é uma questão a ser analisada mais adiante. Constata-se nesse processo que as raízes de um patamar de complexidade da natureza mergulham, a perder de vista, no anterior. Ao mesmo tempo, em algum momento e, em condições a serem identificadas, desencadeia-se um novo fermentar em busca de um novo patamar mais acima e mais além: da macromolécula à célula, da célula ao protozoário, do protozoário ao vegetal e animal, do animal ao mamífero, do mamífero ao antropóide e, finalmente, do antropóide ao homem. Teilhard comentando essa dinâmica, assim se expressou:
Sem exagero, tal como o homem se funda, anatomicamente, aos olhos dos paleontólogos, na massa dos mamíferos que o precederam, assim também, no sentido descendente, a célula se afunda, qualitativamente e quantitativamente, no mundo dos edifícios químicos. Prolongada imediatamente atrás de sim mesma, converge visivelmente para a molécula. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 86)
Uma série de evidências objetivas reforçam a convicção de que as raízes da célula descem, até as profundezas dos patamares de complexificação ascendente e que neles devem procurar-se os dados para explicá-la. Em outras palavras. Tomando como referência o nível atual dos conhecimentos empíricos, a célula, quanto à sua estrutura e funcionamento, não é uma realidade insólita. Não entrou em cena sem se anunciar, sem ser preparada durante longas eras. Não é um “deus ex machina” que, num passe de mágica preencheu mais uma lacuna na lógica que comandou e comanda ainda os processos evolutivos da natureza. Não se trata também de mais um momento em que a solução dever ser buscada no “design inteligente”. Há evidências suficientes para afirmar com relativa margem de segurança de que os fundamentos, as pedras de construção do edifício celular, devem ser procurados no universo da química inorgânica e orgânica. Em algum momento num passado telúrico distante e nebuloso, o processo da complexificação envolveu na sua dinâmica, parte dessa matéria prima. É exatamente assim que Teilhard entendeu este “novum” surpreendente:
Com esta expressão significarei, precisamente, a “combinação”; ou seja essa forma particular e superior de agrupamento cuja missão é ligar a si mesmo um certo número fixo de elementos (poucos ou muitos não importa), com ou sem o contributo auxiliar da agregação ou da repetição, num conjunto fechado, com raio determinado: o átomo, a molécula, a célula, o metazoário, etc.” (Teilhard de Chardin. 1956, p. 28)
A lógica da complexificação ascendente interrompida por Teilhard na altura do “metazoário”, permite completar o esquema com os vegetais e suas ramificações, os animais e seus desdobramentos, os símios e suas ramificações, os símios antropóides e, finalmente, o homem. Refletindo sobre essa questão persiste, como pano de fundo, uma pergunta insistente: Em que momento e, antes de mais nada, o que causou o desencadear da “complexificação” da matéria, envolvendo um número fixo de elementos, a terminar num conjunto fechado? Uma tentativa de resposta fica para mais adiante.
Depois de constatar, amparado em experiências científicas objetivas, chegou o momento de identificar e alinhar no tempo a sequência dos elos dessa cadeia. É neste esforço que os cientistas se deparam com obstáculos no momento pelo menos insuperáveis.
O primeiro relaciona-se com a noção do tempo. As referências das quais nos costumamos valer para ordenarmos a vida no seu quotidiano, ou dividirmos a história do homem, em nada nos podem ser úteis. A complexificação da matéria, a começar pelo átomo, passando pela molécula e a macromolécula e terminando na célula, consumiu um espaço de tempo gigantesco. Se já é difícil a percepção real da duração de um século ou milênio, o que dizer de um, dez ou cem milhões de anos? E, quando as cifras passam de um bilhão de anos, a capacidade de a mente humana de lidar com tamanho espaço de tempo, reduz-se ao mínimo. Acontece que a gênese da complexificação e o completar de cada etapa, prolonga-se por inimagináveis dezenas e centenas de milhões de anos. Um exemplo. A elevação da cordilheira do Andes começou há 60 milhões de anos, a razão de um milímetro por ano. Ora, 60 milhões de milímetros somam seis mil metros, o que vem a coincidir com a média dos segmentos mais altos da cordilheira. Temos aqui uma pálida noção da velocidade das transformações em ritmo geológico. É óbvio que a velocidade das transformações que ocorreram no decorrer da compllexificação químico-biológica, só têm valor como analogia pois, são de natureza diferente. Mas de qualquer forma servem para ilustrar a dificuldade para situar-se em outras categorias temporais, daquelas em que estamos acostumados a nos movimentar. Cada passagem de um nível a outro nessa evolução por “complexificação” ascendente, consumiu milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões de anos. Fácil de registrar no papel mas quase impossível de a mente e a imaginação, acostumados a movimentar-se em ciclos mensais e anuais, formar uma ideia, vaga do que seja ou do que significa.
Os períodos de longuíssima duração vêm acompanhados por um outro problema insolúvel. Simplesmente não foram conservados registros materiais, como fósseis, que permitem uma reconstituição confiável de como se deram os fatos. Restam, portanto, suposições, especulações, ilações, conclusões, que deixam o cientista responsável e sério com as mãos atadas e obrigado a resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus”. Há também aqueles que não hesitam em pular essas páginas em branco de centenas de milhões de anos da história da terra, como se fossem de menos valia. Os milhões de anos apagaram inexoravelmente os arquivos materiais que registravam aquela história. Recorrendo a uma analogia imagine-se o seguinte cenário. Se a humanidade desaparecesse hoje do planeta, o que se poderia esperar dos registros da sua história, daqui a um milhão de anos? Muito pouco além de algum artefato de pedra ou metal não oxidável ou alguma peça óssea petrificada. Tratando-se da história da transição do estado molecular para o nível da célula, a própria natureza da matéria prima em jogo, faz da procura de provas materiais para recuperá-la, “a priori” uma iniciativa condenada ao insucesso.
Embora a historia da “complexifiação” que precedeu a formação da célula e com ela introduziu o fenômeno da vida no cenário universal não tenha deixado vestígios, as vias indiretas de aproximação são muito precárias. Entre elas a simulação em laboratório talvez seja a mais promissora. Acontece que esse “promissor” é novamente algo muito relativo. O nível em que se encontram os métodos e as técnicas de pesquisa, não permite vislumbrar uma forma de simular em laboratório o processo da complexificação que levou milhões de anos. De qualquer forma, suponhamos que essa possibilidade se concretize, a pergunta-chave fica ainda sem uma resposta definitiva e convincente.
A complexificação acrescida ou não da “agregação” e ou da “incorporação”, resultou, sem dúvida, numa forma de revolução na maneira “externa” de a matéria organizar-se. Teilhard fala nesta “revolução externa”:
De um ponto de vista exterior, perspectiva na qual se coloca ordinariamente a biologia, a originalidade essencial da célula parece consistir em ter encontrado uma massa maior de Matéria. Descoberta longamente preparada sem dúvida, pelos tenteios de que saíram pouco a pouco as megamoléculas. Mas descoberta brusca e revolucionária o bastante para haver encontrado imediatamente na natureza um êxito prodigioso. (Theilard de Chardin. 1986. p. 89)
Examinando mais de perto a citação, duas observações caem em vista. “A originalidade da célula parece consistir em ter encontrado um método novo de englobar utilitariamente um massa maior de matéria”. O que vem a ser esse “método novo”, essa forma inédita de agir da matéria organizada na complexa estrutura da célula? Fica faltando uma resposta conclusiva. Percebe-se um esforço permanente da parte de Teilhard, cientista que era, além de filósofo e teólogo, na procura de respostas a nível científico, até o ponto em que de alguma forma é possível. Já que a falta de dados empíricos objetivos não permite conclusões seguras, valeu-se da estratégia de insistir na evidência que salta aos olhos e deixar sem identificar os processos que foram responsáveis pelas evidências. Na condição de filósofo e teólogo não se deixou levar pela tentação de resignar-se com um cômodo “ignoramus et ignorabimus” e entregar a responsabilidade da resposta a uma saída pelo “design inteligente” mais cômodo ainda, ou mandar procurar a resposta no Gênesis. Na falta de uma resposta a nível científico e frente às respostas pouco convincentes oferecidas pelo “design inteligente” ou as Sagradas Escrituras, o melhor mesmo deixar a resposta em aberto. Mas Teilhard não se contentou e não entregou os pontos. Arriscou imaginar como uma sucessão de “tenteios”, “erros e acertos” terminou na estruturação das mega moléculas e essas agrupando-se no formato de “sistemas, como dirá Bertalanffy, biólogo contemporâneo de Teilhard, terminaram na célula. E na célula operou-se a “descoberta brusca e revolucionaria o bastante para haver encontrado na natureza um êxito prodigioso”.