Posta essa base Teilhard vai em busca da natureza dos mecanismos e processos responsáveis pela estrutura do universo. A “agregação” que responde pelo “crescimento” de uma pilha de tijolos e a “repetição geométrica” que faz “crescer” um cristal, não oferecem maior problema para a sua compreensão. Já a complexificação que se dá por combinação oferece dificuldades bem maiores. Não há dúvida de que, tanto a agregação quanto a repetição geométrica, colaboram como mecanismos auxiliares na combinação. Tanto o crescimento por agregação quanto por repetição geométrica, por si só, resultam numa estrutura que, pela sua natureza nunca estará acabada, permitindo ao infinito novos acréscimos. Um pilha de tijolos formada por 100 ou 100.000 unidades, sempre será uma pilha de tijolos, assim como não muda a natureza do cristal de um milhão ou um trilhão de átomos. No processo de complexificação por combinação as coisas se passam de maneira bem diferente. Na curva ascendente dessa complexicação há dois momentos, melhor talvez, duas passagens, duas superações de etapas, ou, recorrendo à metáfora de Teilhard, dois níveis em que a temperatura em elevação, torna perceptíveis, características até então latentes. Assim como a partir de uma determinada gradação a elevação da temperatura, faz brilhar uma barra de ferro, assim a complexificação por combinação, alcançado um determinado nível, faz manifestar-se a vida.
Estamos chegados num momento crucial. Teilhard chamou-o de o “Passo da Vida”. Em outras palavras a “passagem do não vivo para o vivo”, o “salto para a vida”, ou outras formulações que se poderiam empregar. Na história da evolução do Universo já houve outro momento similar, análogo: “o Passo da Matéria”, para ficar com a terminologia de Teilhard. No avanço da evolução um terceiro momento nos desafiará: “o Passo da Hominização” ou “o Passo da Antropogênese”. A gênese da matéria, a biogênese e a antropogênese, representam os três momentos na história da evolução do Universo que ainda deixam muito mais perguntas não respondidas do que as que já têm resposta. Neste momento o que preocupa e, ao mesmo tempo desafia, é entender o “Passo da Vida”.
Para Teilhard a biogênese confunde-se com a citogênese. A célula é a realidade viva fundamental. Nela podem ser observados os fenômenos essenciais que caracterizam a vida. É, portanto, na história e nos processos de sua gênese que se ocultam as respostas para as peculiaridades e a própria natureza da vida.
É fantástico o que se pesquisou e o que já se descobriu sobre a estrutura, composição, funcionamento e funções, como se processa a divisão, qual a relação com a hereditariedade, com o equilíbrio funcional do organismo. O aprimoramento dos métodos e tecnologias cada vez mais refinadas, permite penetrar sempre mais fundo nas entranhas misteriosas da célula. Cada dia que passa novas e inesperadas revelações surpreendem os pesquisadores. Passo a passo identificam-se nesse micro-universo as trilhas que levam a desvendar processos que permitem decifrar o que acontece nas raízes mais profundas do fenômeno da vida. Conhecimentos consolidados, métodos confiáveis e tecnologias seguras permitem com êxito crescente, a sua utilização na medicina, na esfera legal, no plano da saúde e em muitos outros campos práticos. Está aí para prová-lo o mapeamento dos códigos genéticos, o desenvolvimento de transgênicos, a identificação pelo DNA, a esperança já em vias de se tornar realidade do tratamento de doenças hereditárias ou de predisposição hereditária. O ritmo e a profundidade da investigação no âmago da célula, melhor talvez, nos arcanos da vida, promete incontáveis e insuspeitadas surpresas.
Milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares, milhões de páginas escritas contam a história das incursões dos cientistas, nesta fantástica e promissora fronteira de exploração que é a célula.
A essa altura Teilhard de Chardin recomenda uma pausa, uma parada para a reflexão. Não se trata de um convite para frear o entusiasmo e o ritmo da pesquisa ou, quem sabe, uma atitude “estraga prazer”.
Cientista como foi e como filósofo e teólogo que também foi, deixou seguinte reflexão:
Escreveram-se já volumes e volumes sobre a célula. Bibliotecas inteiras já não são suficientes para conter as observações minuciosamente acumuladas sobre a sua textura, sobre as funções relativas do seu “citoplasma” e do seu núcleo, sobre o mecanismo da sua divisão, sobre as relações com a hereditariedade. E, no entanto, considerada em si mesma, ela continua aos nossos olhos exatamente tão enigmática, tão fechada como sempre. É como se, tendo chegado a uma certa profundidade de explicação, girássemos, sem avançar mais, em torno de algum impenetrável reduto.
Não seria que os métodos histológicos e fisiológicos de análise já nos deram o que deles podíamos esperar, devendo o ataque agora, para progredir, ser retomado sob um novo ângulo?
De fato, e por razões óbvias, até aqui, a Citologia construiu-se quase inteiramente, a partir de um ponto de vista biológico: sendo a célula considerada como um micro-organismo ou um proto-vivo que cumpria interpretar em relação às suas formas e às suas associações mais elevadas.
Ora, assim procedendo, deixamos pura e simplesmente na sombra a metade do problema. Como um planeta no seu crescente, o objeto de nossa pesquisa iluminou-se na face voltada para os cumes da vida. Mas, nas camadas inferiores do que chamamos a Pré-Vida, ele continua a flutuar na noite. Eis provavelmente o que, cientificamente falando, prolonga indevidamente para nós o mistério. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 84-85)
De fato o que a Ciência conseguiu realizar nos pouco mais de 50 anos que se seguiram à morte de Teilhard de Chardin, foi penetrar fundo “na metade do problema”. Isto é a célula foi e está sendo vasculhada até nos seus componentes estruturais mais ínfimos, nas funções de cada um deles, nas relações mútuas e no significado de cada um deles em particular e no seu todo. A composição do citoplasma, dos mitocôndrios com suas respectivas funções são do conhecimento da Ciência. O mesmo pode afirmar-se dos cromossomas. Sua composição, estrutura e funcionamento já não são mistério. Tanto assim que o mapeamento do código genético humano e de uma outra série de animais, plantas e micro organismos, já foi concluído. E com este importante passo franquearam-se as portas para interferir nas micro estruturas e manipular e controlar as suas funções. De momento não há como avaliar o tamanho do caminho a ser percorrido ainda, até que neste plano tudo esteja esclarecido. Entretanto, o ritmo em que as investigações avançam, permite prever não só a possibilidade de chegar até lá, como não deixar mais dúvidas sobre a natureza biológica da célula como a sede da vida.
Acontece que no momento em que a Ciência estiver em condições de anunciar mais essa façanha: “a metade do problema” estará solucionado. A “outra metade” a que Teilhard se reporta, vem a ser muito mais complexa e muito mais problemática para ser resolvida. Até aqui a célula foi dissecada, seus mecanismos de funcionamento identificados e, até certo ponto, postos sob controle. Mas, conforme Teilhard
Como qualquer outra coisa no mundo, a célula por mais maravilhosa que nos apareça no seu isolamento entre outras construções da Matéria, não poderia ser compreendida (isto é, incorporada num sistema coerente do Universo) senão recolocada entre um Futuro e um Passado, numa linha de evolução. (Teilhard de Chardin. 1986, p. 85)
Situar a célula na sua devida dimensão entre um Passado e um Futuro, significa passar a iluminar e começar a entender a “outra metade”. Esse passo implica em responder a duas questões, tão ou mais cruciais, do que entender a composição, estrutura e funcionamento de um lado e, do outro, procurar uma compreensão objetiva da sua gênese, do seu fazer-se na perspectiva da evolução. Na verdade é neste plano que se interpõem desafios de difícil enfrentamento. Teilhard resumiu nos seguintes termos a questão:
Em oposição ao que a Ciência nos ensina em todos os outros domínios, habituamo-nos ou resignamo-nos demais a conceber a célula como um objeto sem antecedentes. Procuramos ver o que ela vem a ser, se a olharmos e tratarmos, devidamente, como uma coisa ao mesmo tempo longamente preparada e profundamente original, isto é, como uma coisa nascida. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 85)
Na perspectiva da sua inserção no Universo, a célula é uma realidade “longamente preparada”. Vista sob esse prisma a célula situa-se, como realidade de transição, entre o plano das macromoléculas e os protozoários e metazoários. O que importa à essa altura é vislumbrar e entender de alguma forma, essa transição, essa superação de plano, de estágio, de etapa. Em outras palavras, é o momento de acompanhar desde o nascedouro o acontecer desse elo entre o orgânico e o vivo, entre o pré-vivo e a vida propriamente dita.