Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 20 -

À despoluição dos  rios e cursos de água menores vem somar-se  a diminuição dos volumes ou até o esgotamento das fontes que  os alimentam. O desmatamento das cabeceiras dos rios e seus afluentes, tem nisso uma responsabilidade muito maior do que se pensa ou se quer admitir. Parece incrível, o reflorestamento das cabeceiras chega triplicar a vasão das fontes além de reativar as que secaram depois do deflorestamento. Uma experiência de boa envergadura nesse sentido na Serra da Mantiqueira, está a produzir resultados surpreendentes. Os donos das propriedades em vez de serem subsidiados para cultivar pastagens nas encostas íngremes recebem um “salario reflorestamento” de mais de um salario mínimo por mês. Esse tipo de iniciativas, como prova o projeto na Mantiqueira nas cabeceiras das  bacias fluviais do sudeste ampliado para outras regiões, as beneficiaria com o aumento da quantidade e qualidade da água fornecida à população. Nessas regiões a agricultura de enxada e arado de boi está sendo abandonada pela dificuldade de trabalhá-las somada à baixa produtividade e entregue às leis da natureza. Em algumas décadas uma magnífica floresta secundária foi cobrindo as encostas médias e altas dos vales. No fundo dessas florestas muito parecidas com as originais virgens, fontes voltam a brotar e as que resistiram têm seus volumes triplicados. Além de todos os demais benefícios ecológicos, quem mais se beneficia são os consumidores da água. O exemplo que mais cai em vista entre nós desse tipo de florestamento espontâneo e seus efeitos benéficos, pode ser observado nos cursos médios e superiores dos rios que formam o Guaíba. Há 50 anos as roças de milho e feijão subiam até uma estreita coroa de floresta original, remanescente na borda dos morros, totalmente impraticável mesmo à base da enxada. Hoje dá prazer em circular naqueles vales. As novas florestas descendo pelas encostas enchem os olhos e a sinfonia dos pássaros que retornaram dos seus refúgios, encanta os ouvidos. Córregos cristalinos murmurando na penumbra das árvores convidam a beber na concha da mão ou mergulhar a boca num dos muitos reservatórios minúsculos formados em seus leitos. Numa paisagem dessas a gente se flagra no meio do paraíso perdido, mas não esquecido do qual já falamos mais acima.

Já que  a natureza faz a sua parte quando deixada agir de acordo com seu ritmo e suas leis, está na hora de o homem assumir a sua. Tomemos o Rio dos Sinos como exemplo. Há 50 anos pescavam-se dourados na altura do Zoológico em Sapucaia do Sul. O dourado é sabidamente uma espécie de peixe exigente quanto à qualidade da água. Na década de 1960, por iniciativa da Faculdade de Economia de São Leopoldo, foi elaborado um projeto de desenvolvimento regional integrado para o vale do Rio dos Sinos. Prefeituras, empresários, conselhos comunitários, Estado e União interessaram-se pelo projeto. Numa tramitação surpreendentemente rápida foi aprovado pelo Itamaraty, para ser apresentado ao Governo da então República Federal da Alemanha, com solicitação de auxílio técnico para elaborar o projeto a ser executado. O governo alemão aderiu à proposta e contratou a Agrar und Hydrotechnik, especializada nesse tipo de projetos, para realizar um diagnóstico e propor ações concretas para otimizar as potencialidades da região. Uma equipe interdisciplinar formada por engenheiros com especialização em hidrologia e construção de barragens, geólogos, agrônomos, engenheiros florestais, topógrafos, economistas, urbanistas, passou um ano e meio fazendo diagnóstico e propondo soluções: sistema de diques de proteção contra as enchentes; uma projeto de abastecimento central de água para todos os municípios de Três Coroas até Canoas; sistema de tratamento dos esgotos domésticos e rejeitos industriais; proposta para incentivar a produção de fruti-horti-grangeiros; estímulo à pecuária de leite; reflorestamento das encostas; implantação de distritos industriais; disciplinamento da expansão urbana; estradas de circulação regional e outros. Tudo ficou minuciosamente detalhado num amplo relatório entregue às autoridades, para servir de base para futuras obras a cargo das administrações municipais, estaduais e federais. Se pelo menos a metade das ações propostas tivesse sido implementada, o Vale do Rio dos Sinos seria hoje uma referência de como  uma região em ritmo acelerado de urbanização e industrialização, deveria lidar com a inserção no seu cenário geográfico. E os resultados concretos? Pífios. Do sistema de diques apenas uma parte no município de São Leopoldo foi executada, com notáveis benefícios para a cidade. Todo o restante encalhou e estagnou na falta de visão e de modo especial, nos interesses bairristas dos que deveriam implementá-lo. O rio não passa de um cloaca, o reflorestamento ficou por conta da natureza, o saneamento básico não passa de iniciativas tópicas, enquanto a expansão dos bairros acontece ao sabor de uma ocupação que pouco difere de invasões e entregue a uma política e modelo imobiliário predatório.

Nessa  iniciativa global de 50 anos atrás, destaco o que foi a proposta de abastecimento de água já que é esse bem que motivou as reflexões que estamos fazendo inspirados na Encíclica do Papa Francisco. A proposta dos técnicos alemães resumia-se em ampliar a barragem já existente no rio Paranhana na altura de Três Coroas. Tecnicamente era viável pois, o volume de água era suficiente  para um reservatório capaz de abastecer 1.200.000 consumidores com 300 litros dia por pessoa. Exceto Porto Alegre todo o vale do Rio dos Sinos a jusante de Três Coroas poderia ser atendido com água numa estação central junto ao reservatório, dispensando subestações nos município. A água tratada descendo por gravidade exigia apenas conexões na tubulação central em pontos estratégicos para servir a população local. A implantação do projeto foi abortada pela visão acanhada das prefeituras e políticos dos municípios a serem beneficiados. Mais uma solução que caiu vítima do bairrismo e da falta de vontade política por parte dos que detinham o poder e a autoridade para implementá-la.

Na Encíclica o Papa chama a atenção para outro perigo que ronda o abastecimento de água. Multiplicam-se cada vez mais as manifestações em favor da privatização da água, opinião defendida   pelas redes sociais por personagens do porte do presidente da Nestlé. Não há necessidade de um esforço especial para perceber o lado perverso dessa proposta. O Papa chama a atenção: “Enquanto a qualidade a água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para privatizar  este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”. (Laudto si, 30).

Privatizar a água e condicionar o acesso a ela às leis do mercado fere o que de mais fundamental há nessa questão. A água é condição para a existência e a perpetuação  da vida em geral e da humana em particular. E assim voltamos ao começo das nossas reflexões sobre a água. Trata-se de um bem comum e o acesso livre a ele um direito moral para qualquer pessoa e um dever moral não o manipular por interesses comerciais. A gerência dos recursos hídricos é da competência e responsabilidade do poder público na condição de gestor dos bens comuns. Uma outra modalidade para gerenciar o abastecimento de água poderia ser  pela comunidade local. Poderia ser a solução para as comunidades no interior rural, acostumadas por tradição administrar comunitariamente os bens coletivos, como cemitério, estradas vicinais, hospital, escola, lazer, etc. Já que nos centros urbanos não vingam as relações comunitárias cabe ao município, ao estado ou à união providenciar também por esse recurso. Sob hipótese nenhuma os grandes mananciais de água, rios lagos, aquíferos subterrâneos deveriam ser passíveis de privatização e seu acesso regido pelas leis do mercado. O Papa alerta para as consequências da privatização da água.

Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares e milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflito deste século. (Laaudto si, 31)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 19 -

A água.

O último pedido de uma agricultor moribundo, por sinal meu padrinho, foi um gole de água fresca. Tomada a água pronunciou suas últimas palavras: “Se não fosse a água boa e fresca”. Esta frase pronunciada ao despedir-se da vida, resume todo o significado universal da água. “Se não fosse a boa e fresca água?” A resposta é taxativa. Inimaginável seria a vida na terra. O filósofo pré Socrático Tales de Mileto, há 2.500 anos passados, não duvidou em afirmar que “o todo é uno”; “o uno é múltiplo” e “a água é o princípio de tudo”. Sobre esses conceitos  construiu o edifício do seu pensamento filosófico.

“Se não fosse a boa e fresca água”, diz o agricultor moribundo. “A água é o princípio de tudo”, completa o filósofo. O senso comum do primeiro e a dedução lógica dos segundo, concluem na essência pela mesma verdade: sem água não há vida. Em outras palavras a água é condição sem a qual a vida não existe nem subsiste. Se as conclusões dos cientistas estão corretas, a vida começou, há bilhões de anos no fundo dos oceanos primordiais. Durante dezenas e centenas de milhões de anos evoluiu confinada nesse ambiente líquido. Na estrutura dos biontes,  dos unicelulares, na maioria das plantas e nos animais em geral, para lá de 90% do peso é água. Os líquidos que neles circulam, distribuem os nutrientes e eliminam os resíduos, são basicamente água. Sem necessidade de descer a detalhes fica evidente e indiscutível o papel da água  na vida na terra. Sem ela ou com seu desaparecimento, a biosfera desapareceria na sua totalidade. A terra passaria à categoria dos outros planetas  desertos e sem vida que orbitam em torno do sol. Concluindo. Sem água não há vida. e a lógica manda acrescentar: da qualidade da água depende a qualidade da vida. Soma-se assim ao papel  da água como condição da vida a qualidade da água como condição para a qualidade da vida. Dispensa-se um esforço mental complicado para concluir que a água como condição de vida e condição de qualidade de vida, é uma necessidade primária e como tal um bem comum. E, em sendo assim, todos, sem exceção tem o direito natural ao acesso à água de qualidade. Apenas para relembrar: o tratamento que se dá a água e sua disponibilidade implica numa questão de ética. Na Encíclica o Papa insiste:

Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse  recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência  das pessoas e, portanto, é condição para o exercício de outros direitos humanos.  Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na sua dignidade inalienável. (Laudato si, 30)

Nessa passagem da Encíclica o Papa aponta questões de fundamental importância quando o assunto é água. Já alertamos que sem água a vida não é possível e, por isso mesmo,  o acesso a ela é um direito de todos. Acontece que o acesso universal à água em si não basta. A água posta à disposição das pessoas precisa ser de qualidade pois, saúde e qualidade da água são sinônimos. Em outras palavras. O nível de saúde de uma população é diretamente proporcional à qualidade da água que bebe. O problema não reside tanto na escassez mas na qualidade da água.

A solução para o drama do abastecimento de água de qualidade é tão urgente quanto complexo. Sendo a água um bem comum e o acesso a ela uma direito natural e universal, a responsabilidade  da solução do problema cabe pela própria natureza ao poder público  e todas as suas instâncias de execução. Acontece que o problema não se resolve oferecendo água tratada à população. Gerenciar a água exige muito mais do que garantir abundância e qualidade. Paralelamente, melhor complementarmente, é preciso evitar, ou pelo menos  controlar e disciplinar os agentes responsáveis pela baixa qualidade da água que em inúmeros casos reduzem as reservas de água disponível a autênticas cloacas. A qualidade  de que falamos não exige  apenas estações de tratamento. A solução começa e se prolonga por todo o trajeto que a água percorre até as estações de tratamento. Relembrando as considerações que fizemos  ao tratarmos do clima, os agentes que então responsabilizamos pela má qualidade do ar, empestam também a água que bebemos. E por essa razão é responsabilidade do atual modelo de produção predatório movido a combustíveis de alto potencial de contaminação do ambiente.

A cultura do descarte vem a ser mais um fator de grande preocupação. Ao descarte em si soma-se a maneira irresponsável como os rejeitos são tratados. Por enquanto a reciclagem não passa de  ações ainda tímidas embora promissoras. Um volume ainda pouco significativo é convertido em adubo orgânico e devolvido à natureza como fertilizante do solo. A prática elementar de separar o lixo seco do orgânico ainda deixa muito a desejar. Centenas de milhares de toneladas de lixo não sortido acumulam-se em gigantescos lixões das cidades e metrópoles. Com a chuva os subprodutos da decomposição dos rejeitos orgânicos espalham-se nas redondezas, infiltram-se no solo afetando plantas, animais e o homem. Pior. Penetrando nas camadas mais profundas do solo contaminam o lençol freático e com isso todas as fontes que dele se alimentam. Um volume provavelmente ainda maior de lixo do que o recolhido aos lixões, é simplesmente jogado fora em terrenos, baldios, sarjetas córregos, arroios e rios. As consequências são óbvias. Empesta esses locais e ambientes  com a proliferação de agentes de transmissão de epidemias. As pessoas obrigadas a viver em tais circunstâncias não tem como se livrar dos efeitos da natureza doente, respirando o ar fétido de uma atmosfera saturada de poluentes. A lógica é implacável. As pessoas que vivem num ambiente doente terminam adoecendo. E nessas circunstâncias há um agravante com efeitos devastadores. Em países do terceiro mundo principalmente e nos em desenvolvimento o saneamento básico, se é que existe, é de uma precariedade gritante. Os rejeitos domésticos terminam no ambiente imediato infestando tudo: o chão, as plantas e a água. Sem acesso a água tratada a população recorre às fontes, córregos, arroios e rios. Uma verdadeira tragédia humana. O Papa adverte: “Este mundo tem uma grave dívida social para  com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na dignidade inalienável”. (Laudato si, 30)

Em seguida o Papa chama a atenção ao duplo desafio: o fornecimento de água potável a todas as pessoas e o desperdício da água potável pelos que a ela tem acesso.

Esta dívida (o acesso à água potável) é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento às populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de  desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade. (Laudato si, 30)

Três sinalizações  parecem  relevantes nessa passagem da Encíclica. Em primeiro lugar, as iniciativas e ações que dizem respeito à água tratada extensiva a toda a população. Esse é o drama que aflige em massa os cidadãos dos países subdesenvolvidos, com destaque para a África. Nos países em desenvolvimento os programas públicos de saneamento, embora declarados como prioritários nos discursos em períodos eleitorais, deixam muito a desejar. Nos países desenvolvidos o saneamento básico e com ele o item água está sendo resolvido a contento. Sem dúvida há ainda muito a ser equacionado também no primeiro mundo. Há uma questão complementar à demanda da água potável: a recuperação pela despoluição dos recursos hídricos nas proximidades e nos perímetros das grandes concentrações humanas nos centros urbanos. São Paulo é exemplo. Dois rios, o Pinheiros e o Tietê cortam a cidade mas transformados em autênticas cloacas. Nos complexos urbanos maiores e seus arredores concentram-se pequenos rios, arroios, córregos e fontes, proporcionalmente num estado de degradação semelhante ao Pinheiros ou Tietê.


  

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 18 -

O Clima

Em apenas duas frases o Papa Francisco resumiu o gigantesco  desafio que envolve o conceito “clima”. “O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global é um sistema complexo, que tem a ver com as muitas condições essenciais para a vida humana”. (Laudato se, 23).

No decorrer dessas reflexões já insistimos o bastante que os bens da natureza são bens comuns. Sendo comuns todos tem o direito natural de usufruí-los, com destaque para o clima. E, novamente, sendo assim, constitui-se numa obrigação ética permitir o uso e fruto a qualquer pessoa pelo simples fato de ser um ser humano. Seria redundante  insistir neste momento com mais comentários.

A complexidade que envolve o conceito “clima” e seu significado como condição sem a qual a espécie humana não existiria, menos ainda subsistiria, é um dos maiores desafios para quem lida com a ecologia. A análise da natureza, a extensão e profundidade da ameaça do aquecimento global, acha-se tão bem caracterizado na Encíclica, que merece ser oferecida ao público na sua versão original. Entre os números 23, 24, 25  e 26 a Encíclica fala da questão.

(23) O clima é um bem comum, um bem de todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem  a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não relacionar ainda com o aumento dos acontecimentos metereológicos extremos, embora não se possa  atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem em acentuam.. É verdade que há outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo polar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devido à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros). A sua concentração na atmosfera impede  que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.

(24) Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um círculo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção  de  parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e da decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos oceanos  e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser  testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida  do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.

(25) As mudanças climáticas são um problema global de graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente  os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e seus meios de subsistência dependem fortemente das  reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes permita adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar  situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais de proteção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e  dos filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações  diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal de perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.

26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem centrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos  poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e outros gases altamente  poluentes se reduza drasticamente,, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mais ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países, registraram-se avanços que começam a ser significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias primas, bem como em modalidades  de construção e restruturação de edifícios  para melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se tornar onipresentes.  (Laudato si, 23,24,25,26)

A intenção do Papa ao escrever a “Encíclica Verde” foi chamar a atenção para o clima como um bem comum, como os outros dons da natureza; que a sua qualidade é fundamental para uma vida saudável; que a sua degradação põe em risco crescente pessoas populações e a espécie humana como  um todo; que urge rever o atual modelo  de civilização industrial e produtivo movido a combustíveis fósseis com alto potencial  de poluentes, para sustar  e reverter o processo de degradação ambiental; que são urgentes medidas preventivas e corretivas para diminuir  e se possível interromper o ritmo do aquecimento global; que entre as medidas globais é fundamental partir para um modelo energético menos ou nada poluente. Este cenário refere-se às alterações climáticas diretamente relacionadas com a interferência humana no processo.
Mas no nº 23 da Encíclica, como que de passagem e entre parêntesis, o Papa enumera “outros fatores (tais como vulcanismo, variações da órbita e do eixo da terra, o ciclo solar”). A essas causas somam-se outras, não citadas no documento, porém, de impacto profundo sobre a vida na terra. Referimo-nos à queda de meteoros, a mudança de curso das correntes marítimas e as glaciações. Os meteoros ocasionam perturbações climáticas mais ou menos graves numa frequência irregular, enquanto as outras duas causas são cíclicas.

As glaciações são por natureza períodos de longa duração de 40.000 a 100.000 anos, nos quais a temperatura média mundial cai entre 8 e 10 graus C. No intervalo de dois ciclos glaciais intercalam-se períodos interglaciais de temperatura média semelhante à nossa e com duração  média de 10.000 anos.

A explicação desses fenômenos cíclicos parece relacionar-se com o fato de os mares e oceanos funcionarem como reguladores térmicos. Quanto maior é o volume de água acumulada, tanto maior e mais abrangente é o seu potencial  de manter o equilíbrio térmico. Em outras palavras a oscilação da temperatura é menor. Esses fenômeno pode ser observado nos assim chamados clima continentais e marítimos, O clima marítimo é característico nas faixas costeiras e nas ilhas e o clima continental no interior dos continentes. No primeiro caso os extremos não são tão acentuados quanto no segundo.

Os oceanos que no seu nível máximo,  que  corresponde ao atual, chegam a 100 metros acima do nível do pico da glaciação. Esse fenômeno leva a dois efeitos. Em primeiro lugar equilibra melhor a temperatura, pois  o  potencial estabilizador é diretamente proporcional ao volume de água acumulada, evitando extremos acentuados. Em segundo lugar, um volume maior e uma superfície de evaporação mais extensa carregam a atmosfera com aumento da umidade relativa do ar acompanhada com a saturação da atmosfera e a intensificação das precipitações. Uma porcentagem sempre maior das precipitações cai na forma de neve cobrindo as montanhas mais altas, com um manto de gelo de centenas de metros de espessura que desce lentamente as encostas na forma de geleiras, que nada mais são do gigantescos rios de gelo. Na sua passagem cavam vales característicos em forma de U.  Os fragmentos de rocha, as morainas,  arrancados das margens e do fundo do vale são carregadas e empurrados pelo caudal de gelo até os vales e planícies mais baixas, onde  as geleiras derretem dando  origem a arroios e rios. O material sólido fica depositado no local onde a geleira derrete. Em latitudes mais próximas ao  círculo polar os mantos de gelo descendo das montanhas cobrem também as planícies. Resultam daí campos ininterruptos de gelo e neve, cobrindo milhões de quilômetros, principalmente no hemisfério norte, onde as massas continentais avançam até além círculo polar ártico, emendando o gelo do continente com a calota polar propriamente dita. Com centenas de metros de espessura inviabilizam praticamente toda  vida terrestre. Animais e vegetais migram para o sul ou então são extintos. Na América do norte os campos de gelo avançaram até o centro norte dos Estados Unidos. Assim todo o centro norte do país, mais o Canadá, Alasca, as ilhas do Ártico e a Groenlândia, permaneceram sepultados sob uma espessa camada de neve e gelo de centenas de metros de espessura.  O mesmo aconteceu  com a Euro-Ásia central e do norte. Com tamanho volume de água retido na forma de gelo e neve, os mares e oceanos baixaram cerca de 100 metros em relação ao nível atual. Como consequência diminuiu a umidade da atmosfera e o aquecimento dos oceanos subiu com  diminuição significativo do volume das suas massas de água. Um ciclo glacial se fecha e começa outro. A maior parte das regiões onde hoje se concentram as assim chamadas civilizações do primeiro mundo, não passavam de gigantescos campos de gelo de centenas de metros de espessura. A fronteira sul desses territórios pode ser traçada com referência a blocos de rocha – os blocos  erráticos – carregados pelas geleiras de centenas de quilômetros de distância. Ficaram para trás quando os campos de gelo recuaram par o norte com o final da era glacial. Aos blocos erráticos são também marcadores do limite extremo do avanço do gelo, as morainas. Não são nada mais do que os entulhos dos vales cavados pelo avanço das geleiras e deixados para trás com seu recuo para o norte.

No decorrer do último milhão de anos sucederam-se quatro ciclos glaciais, ou quatro glaciações batizadas com nomes  de localidades na Europa e na América do norte. Da mais antiga à mais recente foram denominadas de Günz–Mindel-Riss-Würma na Europa. Nos Estados Unidos  também da mais antiga à mais recente receberam os nomes de Nebraska-Kansas-illinois-Wisconsin. A diferença média de temperatura entre o pico da glaciação e o interglacial oscilou em torno de 8 graus C. A soma da duração de um ciclo glacial  durou por um  espaço de tempo de em torno de 100.000 anos. As eras frias, ou era glaciais, prolongaram-se por  cerca de 90.000 anos e o interglacial quente por 10.000 anos. A primeira glaciação ocorreu por volta dos 700.000 anos; a segunda 500.000 anos; a terceira 230.000 anos; a quarta 70.000 anos com o pico máximo por volta dos 18.000 anos. A partir de 15.000 anos fala-se em pós glacial. Supondo que a lógica da natureza continue deveríamos estar entrando num período glacial. Ao que tudo indica, porém a temperatura média da terra ainda está subindo. Há certamente uma relação entre esse fenômeno e interferência do homem. A dúvida fica por conta de eventos naturais ainda não devidamente identificados.

No decorrer do último período glacial a humanidade ficou concentrada, na Europa em volta do Mediterrâneo, Norte da África, o Oriente Próximo e Médio, no centro sul do Oriente Remoto e na Indonésia. Vale lembrar que com o final da era glacial, por volta de 15.000 anos passados começa a expansão da agricultura. As aldeias dos agricultores multiplicaram-se a partir do Egito na África e da Mesopotâmia no Oriente Médio e, no Oriente Remoto, a partir do centro sul da China. A agricultura com seu potencial de alimentar com segurança populações mais numerosas concentradas em espaços geográficos menores, teve como consequência um constante superpovoamento. Os excedentes assim gerados avançavam sobre sempre novas fronteiras agrícolas. Na medida em que os campos de gelo do norte derretiam e deixavam descobertas mais e mais terras aráveis, os agricultores subiram para povoar todo o centro e norte da Europa, deitando as raízes da civilização ocidental. Mas não é esse assunto que pretendemos desenvolver aqui, A intenção é mostrar como as oscilações climáticas são um dos fatores determinantes mais decisivos, influenciando diretamente no rumo da evolução histórica das civilizações.

Acontece que as leis que regem a longo prazo as relações  do homem com seu habitat natural, são as mesmas que marcam o compasso nas situações de curto prazo. E é do curto prazo de que estamos falando que cobre os últimos dois séculos com destaque para os 100 anos finais. Nesse período foram desenvolvidas tecnologias cada vez mais eficientes postas a serviço das demandas que também se multiplicaram e tornaram-se mais complexas. Esta é a face indiscutivelmente positiva do modelo. Em contrapartida ele gerou um “senão” preocupante. Ele é movido por energias oriundas de combustíveis perigosamente agressivos ao meio ambiente pela emissão de gases e resíduos poluentes. De outra parte as tecnologias permitem a invasão e destruição em grande escala dos ecossistemas naturais, substituindo florestas e campos naturais por pastagens e plantações de soja, milho, sorgo, algodão cana de açúcar, mandioca e outras culturas. Também para esse setor vale a afirmação que os benefícios que essa atividade trás em favor do homem são benvindos. Não se pode deixar, porém, de reconhecer que também vem acompanhado de um “senão” cujas consequências somam-se ao “senão” anterior. Interferem  direta e indiretamente no meio ambiente na “nossa casa”, preocupação  maior do Papa nessa passagem da “Encíclica Verde”. É isso que causa uma das maiores dores de cabeça no atual momento histórico: o aquecimento global e seus reflexos sobre a vida na terra.

Sobre o aquecimento global em si os cientistas que a ele se dedicam são praticamente unânimes sobre a extensão dos danos que acompanha o processo. Há-os que suspeitam que a redução das áreas e volumes de gelo, principalmente do Ártico, alteraria o curso das correntes marítimas. O impacto a longo prazo sobre o clima no hemisfério norte terminaria num resfriamento exagerado  daquela metade da terra. O hemisfério sul, ao contrário, sofreria um aumento também excepcional de temperatura. Esse desequilíbrio terminaria de um lado em tornados e ciclones com chuvas catastróficas em outas regiões estiagens extremas. Uma outra suspeita dos cientistas consiste num possível retardamento de uma nova era glacial, prolongando o interglacial além do esperado. O argumento baseia-se no fato de, se o atual ciclo glacial for de duração  semelhante os do passado, a quinta era glacial já deveria estar em andamento. Especulações à parte, tudo isso não resolve a situação momentânea criada pelo aquecimento global.

Penso que seja oportuno lembrar que o clima é um dos grandes artistas responsáveis pela modelagem da fisionomia da terra e de todas as formas de vida. Para tal as marcas dos seus cinzeis são tão  antigos quanto a própria crosta sólida do planeta. Mais de uma dezena de bilhões de anos se passou para chegarmos ao momento atual. Nessa mega história o que significam os 200 anos de que falamos mais acima, mais ainda os últimos 100?  Considerando agora o último milhão de anos com suas eras glaciais e a humanidade vivendo e sobrevivendo aos extremos de temperatura, faz concluir que os 200 anos continuam sendo um momento da história e as possíveis catástrofes climáticas não passam de episódios pontuais que dificilmente interromperão a caminhada da humanidade ao encontro do seus destino.


É claro que o cenário muda radicalmente no momento em que imaginarmos mudanças tão drásticas que levam à extinção do último representante da espécie humana. Improvável mas não impossível. O impacto de um meteoro gigante reduzindo a terra a fragmentos ou um vulcanismo universal, poderiam levar a esse efeito. Como se pode concluir, a  hipótese da extinção global da vida é remota, improvável, mas não impossível. Significaria o fim do mundo em toda extensão do termo.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 17 -

Depois de tomar conhecimento mais genérico dos solos é oportuno refletir um pouco mais sobre o seu significado ecológico e a vida que  neles prospera. Em outras palavras. O que significa a invasão destruidora desse mundo fantástico com procedimentos agrícolas inadequadas valendo-se  indiscriminadamente de agrotóxicos, fertilizante, queimadas, etc. Na agenda dos debates sobre ecologia costumam predominar temas que chamam a atenção pelo apelo econômico, político, ideológico e outros politicamente corretos e não levam em conta o preço que o solo paga por isso. O Papa  chamou  em poucas linhas a atenção sobre essa perigosa bomba-relógio armada com a agressão irresponsável dos solos. “A isto vem ajuntar-se a poluição, que afeta a todos causada pelo transporte, pelo fumo  das indústria, pela descarga de substâncias que contribuem  para a acidificação dos solos e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral”).  (Laudato se, 20).

A seguir a Encíclica aponta para outros subprodutos  da atividade industrial, da concentração de milhares e milhões de seres humanos em poucos quilômetros quadrados. São nossos velhos conhecidos as inevitáveis realidades negativas do dia a dia.  A Encíclica enumera entre os principais vilões as centenas de milhões de toneladas de resíduos anualmente descartados para o meio ambiente. “Resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos. A terra, “nossa casa”, parece transformar-se num imenso depósito de lixo”. (Laudato se, 21)

A pergunta é; de que forma enfrentar os problemas causados pelo acúmulo assustador de resíduos de toda  espécie? Diminuir a curto prazo significativamente a sua produção até um nível aceitável, faria cair a oferta dos bens de consumo e serviços que alimentam o atual modelo de civilização. Interrompê-lo, nem pensar. Pelo visto o problema não tem solução a curto prazo. A médio e longo prazo a própria natureza ensina como agir. Basta observar como funciona um ecossistema natural. Num perpétuo “fieri – fazer-se”, a natureza edificada sobre seus ecossistemas, flui como um caudal sempre se renovando sem perder o equilíbrio. A Encíclica resumiu o círculo virtuoso que auto alimenta e preserva o equilíbrio da natureza como um  ecossistema global e cada um dos seus ecossistemas em particular. “Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros,  que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a nova geração de vegetais. (Laudato si, 22).

Esse é o círculo virtuoso que mantém indefinidamente a evolução renovadora e a estabilidade da biosfera como um sistema global e seus subsistemas. Ressalvadas as peculiaridades, esse poderia ser um bom modelo para a auto sustentabilidade das civilizações. Acontece  que a atividade humana, com destaque para a industrial, resume-se nas duas primeiras etapas do modelo oferecido pela natureza. Retira os recursos naturais, os transforma em bens de consumo, atende às necessidade das pessoas, mas deixa de reaproveitar volumes gigantescos amontoados nos lixões, ou simplesmente jogados na beira das estradas, nos rios e nos oceanos. Considerados os resíduos não orgânicos, o círculo virtuoso não fecha. O desafio maior consiste, portanto, num reaproveitamento pela reciclagem de mais de 80% desses resíduos. A Encíclica insiste na  urgência de “adotar um modelo circular que assegure recursos para todos e para as gerações futuras” (Laudato se, 22)

0 nó maior da questão está a curto e médio prazo nos resíduos não biodegradáveis como plásticos,  vidros, cerâmicas e similares. A esse complexo de poluentes vem somar-se as emissões de gases com destaque para o carbônico, considerado o maior vilão do aquecimento global. Esse quadro não deixa de ser preocupante. A soma de todos esses fatores  e seus efeitos sobre “a nossa casa”, reclamam medidas globais urgentes tanto preventivas quanto corretivas.  Pelo fato de estarmos  frente a uma ameaça global que implica na saúde da terra e da viabilidade da própria espécie humana, as medidas têm que ser de caráter também global. Não é aqui  o lugar para aprofundar a identificação dos responsáveis. Já que o problema é global o desafio para as iniciativas cabe às personalidades e organizações que exercem liderança em nível internacional. Incluem-se nessa cruzada governantes, detentores do poder político, econômico, religioso. De momento as iniciativas mostraram-se viciadas por interesses geopolíticos, geoeconômicos, militares, ideológicos. Os resultados estão sendo pífios como demonstram os protocolos assinados no Rio de Janeiro, Kyoto e Paris.

Apesar de todo esse quadro pouco animador, uma tênue luz indicando o fim do túnel faz com que não deixemos de acreditar no quase impossível. A justiça manda que em nível mundial não se pode deixar de mencionar o Papa Francisco. Como líder máximo na formação de opinião de mais de um bilhão de católicos vem prestando uma colaboração preciosa por meio da “Encíclica  Ludato se”. Já que este documento é o objeto central dessas reflexões nesse momento basta citá-lo. O Patriarca Bartolomeu líder de  400 milhões  de cristãos ortodoxos, soma  a sua maneira de ver a natureza à do Papa Francisco. Embora nenhum dos dois líderes religiosos estivesse presente no encontro de Paris, seu significado como formuladores de opinião de no mínimo um bilhão e meio de cristãos, não é nada desprezível.

Não se podem esquecer as muitas iniciativas em andamento sob o rótulo de “agricultura orgânica” em plena expansão. Merece destaque especial a horticultura orgânica que ganha sempre mais adeptos. Presta um serviço difícil de avaliar para a qualidade da alimentação de um lado e do outro para a saúde e o equilíbrio do solo. Temos aqui “um modelo circular de produção” (Laudato se, 22) sugerido pela Encíclica. O solo organicamente em equilíbrio e por isso mesmo fértil, alimenta as hortaliças, estas chegam sem agrotóxicos à mesa do consumidor e os resíduos e sobras  -  raízes, folhas, caules e outros - voltam a ser incorporados no solo. Fecha-se assim o círculo virtuoso ao qual nos referimos há pouco. Todos saem ganhando: os solos, a qualidade dos produtos, a alimentação do consumidor e de cobro a rentabilidade do horticultor. Já é um bom começo.

Uma terceira boa notícia vem do agronegócio um dos setores mais estigmatizados como agressor e degradador em grande escala do meio ambiente. O modelo vem conquistando terreno sob a sigla ILPF – integração lavoura - pecuária – floresta. O pesquisador João Kluthcouski, pesquisador da Emprapa e no meio rural conhecido como “João K”, para evitar confusão com “JK” – Juscelino Kubischeck. O modelo, depois dos primeiros resultados animadores, ainda se encontra em teste na fazenda Santa Brígida em Ipemeri – Goiás. Como muitas outras essa fazenda era mais uma dessas grandes propriedades – 900 hectares – da região, fortemente degradas e de baixa produtividade. A dona da propriedade, a dentista Marize Porto Costa assumiu-a com o falecimento do marido. Sem nenhum conhecimento nem experiência no ramo agropecuário, recorreu à Emprapa. O diretor da época entregou-lhe um livro sobre Integração Lavoura – Pecuária e apresentou-a ao autor o João K. Ele opinou que, para reverter a situação, tudo tinha que ser feto ao contrário do usual nas fazendas da região. Ela apostou no pesquisador e “o milagre” foi acontecendo. Em resumo: Ele mandou começar por revirar os pastos degradados e  corrigir a acidez dos solo. A primeira colheita foi de soja surpreendendo pela produtividade. Depois da soja veio o sorgo que depois de crescido serviu de pasto de engorda do gado. Na seguinte etapa a área foi semeada com milho associado à braquiária. Enquanto o milho se desenvolvia as raízes da braquiária vascularizavam o solo facilitando a penetração dos nutrientes para fertilizá-lo. Colhido o milho voltou o gado para a engorda no inverno, fechando o círculo virtuoso. Os resultados passaram de todas as expectativas, tanto na produção de soja e milho, quanto no rendimento de duas engordas de gado ao ano. O recurso a  defensivos agrícolas  baixou a um nível insignificante. Faltava incluir a floresta no experimento. João K sugeriu plantar eucalipto (poderia ser outra espécie) por toda a propriedade, em fileiras deixando corredores de 24 metros de largura, destinadas no verão para o milho e a braquiária e no inverno como pastagem de engorda para o gado.

João K explica que o modelo ILP – Integração-Lavoura-Pecuária – pode ser implantado em qualquer tipo de solo, de clima e tamanho de área. Para acrescentar o F – Floresta – o tamanho da área é um limitador. De outra parte, como é aplicável à grande propriedade e as propriedades familiares de poucos hectares, vem a ser um fator que contribui para superar a avaliação preconceituosa do mundo do agronegócio como predatório, explorador, capitalista e por aí a fora, enquanto a agricultura familiar se aproxima do ideal de uma situação socialmente mais justa e economicamente mais saudável. A lógica dessa linha de avaliação leva à conclusão que as duas modalidades não são mutuamente excludentes, quando de fato são mutuamente complementares, especialmente num país como o Brasil que dispõe de milhões e mais milhões de hectares de terras aráveis, localizadas em latitudes e características geográficas as mais variadas. Os bons resultados de ambos os modelos somam-se em vez de se excluir. A pequena propriedade com sua agricultura familiar atende à demanda interna. Abastece a mesa dos brasileiros com feijão, batata, aipim e hortaliças de tudo que variedade. A prioridade do agronegócio é a exportação de alimentos para cobrir  a demanda mundial. Contribui também com uma parte substancial para equilibrar a balança comercial com as exportações e reforçar o produto interno bruto. É irracional e suicida a pregação contra o agronegócio com os argumentos fortemente viciados com ideologias, com os quais normalmente se argumenta. O agronegócio e a agricultura familiar são complementares e somam-se quando do atendimento das duas necessidades prioritárias do país: o abastecimento interno e a pressão crescente  para geração de divisas externas.


Concluindo, há boas razões para não perder as esperanças perante os danos causados à natureza, à “nossa casa”.