Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 19 -

A água.

O último pedido de uma agricultor moribundo, por sinal meu padrinho, foi um gole de água fresca. Tomada a água pronunciou suas últimas palavras: “Se não fosse a água boa e fresca”. Esta frase pronunciada ao despedir-se da vida, resume todo o significado universal da água. “Se não fosse a boa e fresca água?” A resposta é taxativa. Inimaginável seria a vida na terra. O filósofo pré Socrático Tales de Mileto, há 2.500 anos passados, não duvidou em afirmar que “o todo é uno”; “o uno é múltiplo” e “a água é o princípio de tudo”. Sobre esses conceitos  construiu o edifício do seu pensamento filosófico.

“Se não fosse a boa e fresca água”, diz o agricultor moribundo. “A água é o princípio de tudo”, completa o filósofo. O senso comum do primeiro e a dedução lógica dos segundo, concluem na essência pela mesma verdade: sem água não há vida. Em outras palavras a água é condição sem a qual a vida não existe nem subsiste. Se as conclusões dos cientistas estão corretas, a vida começou, há bilhões de anos no fundo dos oceanos primordiais. Durante dezenas e centenas de milhões de anos evoluiu confinada nesse ambiente líquido. Na estrutura dos biontes,  dos unicelulares, na maioria das plantas e nos animais em geral, para lá de 90% do peso é água. Os líquidos que neles circulam, distribuem os nutrientes e eliminam os resíduos, são basicamente água. Sem necessidade de descer a detalhes fica evidente e indiscutível o papel da água  na vida na terra. Sem ela ou com seu desaparecimento, a biosfera desapareceria na sua totalidade. A terra passaria à categoria dos outros planetas  desertos e sem vida que orbitam em torno do sol. Concluindo. Sem água não há vida. e a lógica manda acrescentar: da qualidade da água depende a qualidade da vida. Soma-se assim ao papel  da água como condição da vida a qualidade da água como condição para a qualidade da vida. Dispensa-se um esforço mental complicado para concluir que a água como condição de vida e condição de qualidade de vida, é uma necessidade primária e como tal um bem comum. E, em sendo assim, todos, sem exceção tem o direito natural ao acesso à água de qualidade. Apenas para relembrar: o tratamento que se dá a água e sua disponibilidade implica numa questão de ética. Na Encíclica o Papa insiste:

Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse  recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência  das pessoas e, portanto, é condição para o exercício de outros direitos humanos.  Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na sua dignidade inalienável. (Laudato si, 30)

Nessa passagem da Encíclica o Papa aponta questões de fundamental importância quando o assunto é água. Já alertamos que sem água a vida não é possível e, por isso mesmo,  o acesso a ela é um direito de todos. Acontece que o acesso universal à água em si não basta. A água posta à disposição das pessoas precisa ser de qualidade pois, saúde e qualidade da água são sinônimos. Em outras palavras. O nível de saúde de uma população é diretamente proporcional à qualidade da água que bebe. O problema não reside tanto na escassez mas na qualidade da água.

A solução para o drama do abastecimento de água de qualidade é tão urgente quanto complexo. Sendo a água um bem comum e o acesso a ela uma direito natural e universal, a responsabilidade  da solução do problema cabe pela própria natureza ao poder público  e todas as suas instâncias de execução. Acontece que o problema não se resolve oferecendo água tratada à população. Gerenciar a água exige muito mais do que garantir abundância e qualidade. Paralelamente, melhor complementarmente, é preciso evitar, ou pelo menos  controlar e disciplinar os agentes responsáveis pela baixa qualidade da água que em inúmeros casos reduzem as reservas de água disponível a autênticas cloacas. A qualidade  de que falamos não exige  apenas estações de tratamento. A solução começa e se prolonga por todo o trajeto que a água percorre até as estações de tratamento. Relembrando as considerações que fizemos  ao tratarmos do clima, os agentes que então responsabilizamos pela má qualidade do ar, empestam também a água que bebemos. E por essa razão é responsabilidade do atual modelo de produção predatório movido a combustíveis de alto potencial de contaminação do ambiente.

A cultura do descarte vem a ser mais um fator de grande preocupação. Ao descarte em si soma-se a maneira irresponsável como os rejeitos são tratados. Por enquanto a reciclagem não passa de  ações ainda tímidas embora promissoras. Um volume ainda pouco significativo é convertido em adubo orgânico e devolvido à natureza como fertilizante do solo. A prática elementar de separar o lixo seco do orgânico ainda deixa muito a desejar. Centenas de milhares de toneladas de lixo não sortido acumulam-se em gigantescos lixões das cidades e metrópoles. Com a chuva os subprodutos da decomposição dos rejeitos orgânicos espalham-se nas redondezas, infiltram-se no solo afetando plantas, animais e o homem. Pior. Penetrando nas camadas mais profundas do solo contaminam o lençol freático e com isso todas as fontes que dele se alimentam. Um volume provavelmente ainda maior de lixo do que o recolhido aos lixões, é simplesmente jogado fora em terrenos, baldios, sarjetas córregos, arroios e rios. As consequências são óbvias. Empesta esses locais e ambientes  com a proliferação de agentes de transmissão de epidemias. As pessoas obrigadas a viver em tais circunstâncias não tem como se livrar dos efeitos da natureza doente, respirando o ar fétido de uma atmosfera saturada de poluentes. A lógica é implacável. As pessoas que vivem num ambiente doente terminam adoecendo. E nessas circunstâncias há um agravante com efeitos devastadores. Em países do terceiro mundo principalmente e nos em desenvolvimento o saneamento básico, se é que existe, é de uma precariedade gritante. Os rejeitos domésticos terminam no ambiente imediato infestando tudo: o chão, as plantas e a água. Sem acesso a água tratada a população recorre às fontes, córregos, arroios e rios. Uma verdadeira tragédia humana. O Papa adverte: “Este mundo tem uma grave dívida social para  com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na dignidade inalienável”. (Laudato si, 30)

Em seguida o Papa chama a atenção ao duplo desafio: o fornecimento de água potável a todas as pessoas e o desperdício da água potável pelos que a ela tem acesso.

Esta dívida (o acesso à água potável) é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento às populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de  desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade. (Laudato si, 30)

Três sinalizações  parecem  relevantes nessa passagem da Encíclica. Em primeiro lugar, as iniciativas e ações que dizem respeito à água tratada extensiva a toda a população. Esse é o drama que aflige em massa os cidadãos dos países subdesenvolvidos, com destaque para a África. Nos países em desenvolvimento os programas públicos de saneamento, embora declarados como prioritários nos discursos em períodos eleitorais, deixam muito a desejar. Nos países desenvolvidos o saneamento básico e com ele o item água está sendo resolvido a contento. Sem dúvida há ainda muito a ser equacionado também no primeiro mundo. Há uma questão complementar à demanda da água potável: a recuperação pela despoluição dos recursos hídricos nas proximidades e nos perímetros das grandes concentrações humanas nos centros urbanos. São Paulo é exemplo. Dois rios, o Pinheiros e o Tietê cortam a cidade mas transformados em autênticas cloacas. Nos complexos urbanos maiores e seus arredores concentram-se pequenos rios, arroios, córregos e fontes, proporcionalmente num estado de degradação semelhante ao Pinheiros ou Tietê.


  

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