A água.
O
último pedido de uma agricultor moribundo, por sinal meu padrinho, foi um gole
de água fresca. Tomada a água pronunciou suas últimas palavras: “Se não fosse a
água boa e fresca”. Esta frase pronunciada ao despedir-se da vida, resume todo
o significado universal da água. “Se não fosse a boa e fresca água?” A resposta
é taxativa. Inimaginável seria a vida na terra. O filósofo pré Socrático Tales
de Mileto, há 2.500 anos passados, não duvidou em afirmar que “o todo é uno”;
“o uno é múltiplo” e “a água é o princípio de tudo”. Sobre esses conceitos construiu o edifício do seu pensamento
filosófico.
“Se
não fosse a boa e fresca água”, diz o agricultor moribundo. “A água é o
princípio de tudo”, completa o filósofo. O senso comum do primeiro e a dedução
lógica dos segundo, concluem na essência pela mesma verdade: sem água não há
vida. Em outras palavras a água é condição sem a qual a vida não existe nem
subsiste. Se as conclusões dos cientistas estão corretas, a vida começou, há
bilhões de anos no fundo dos oceanos primordiais. Durante dezenas e centenas de
milhões de anos evoluiu confinada nesse ambiente líquido. Na estrutura dos
biontes, dos unicelulares, na maioria
das plantas e nos animais em geral, para lá de 90% do peso é água. Os líquidos
que neles circulam, distribuem os nutrientes e eliminam os resíduos, são
basicamente água. Sem necessidade de descer a detalhes fica evidente e
indiscutível o papel da água na vida na
terra. Sem ela ou com seu desaparecimento, a biosfera desapareceria na sua
totalidade. A terra passaria à categoria dos outros planetas desertos e sem vida que orbitam em torno do
sol. Concluindo. Sem água não há vida. e a lógica manda acrescentar: da
qualidade da água depende a qualidade da vida. Soma-se assim ao papel da água como condição da vida a qualidade da
água como condição para a qualidade da vida. Dispensa-se um esforço mental
complicado para concluir que a água como condição de vida e condição de qualidade
de vida, é uma necessidade primária e como tal um bem comum. E, em sendo assim,
todos, sem exceção tem o direito natural ao acesso à água de qualidade. Apenas
para relembrar: o tratamento que se dá a água e sua disponibilidade implica
numa questão de ética. Na Encíclica o Papa insiste:
Enquanto a qualidade da
água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para
se privatizar esse recurso escasso,
tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à
água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal,
porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício de outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para
com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o
direito à vida radicada na sua dignidade inalienável. (Laudato si, 30)
Nessa
passagem da Encíclica o Papa aponta questões de fundamental importância quando
o assunto é água. Já alertamos que sem água a vida não é possível e, por isso
mesmo, o acesso a ela é um direito de
todos. Acontece que o acesso universal à água em si não basta. A água posta à
disposição das pessoas precisa ser de qualidade pois, saúde e qualidade da água
são sinônimos. Em outras palavras. O nível de saúde de uma população é
diretamente proporcional à qualidade da água que bebe. O problema não reside
tanto na escassez mas na qualidade da água.
A
solução para o drama do abastecimento de água de qualidade é tão urgente quanto
complexo. Sendo a água um bem comum e o acesso a ela uma direito natural e
universal, a responsabilidade da solução
do problema cabe pela própria natureza ao poder público e todas as suas instâncias de execução.
Acontece que o problema não se resolve oferecendo água tratada à população.
Gerenciar a água exige muito mais do que garantir abundância e qualidade.
Paralelamente, melhor complementarmente, é preciso evitar, ou pelo menos controlar e disciplinar os agentes responsáveis
pela baixa qualidade da água que em inúmeros casos reduzem as reservas de água
disponível a autênticas cloacas. A qualidade
de que falamos não exige apenas
estações de tratamento. A solução começa e se prolonga por todo o trajeto que a
água percorre até as estações de tratamento. Relembrando as considerações que
fizemos ao tratarmos do clima, os
agentes que então responsabilizamos pela má qualidade do ar, empestam também a
água que bebemos. E por essa razão é responsabilidade do atual modelo de
produção predatório movido a combustíveis de alto potencial de contaminação do
ambiente.
A
cultura do descarte vem a ser mais um fator de grande preocupação. Ao descarte
em si soma-se a maneira irresponsável como os rejeitos são tratados. Por
enquanto a reciclagem não passa de ações
ainda tímidas embora promissoras. Um volume ainda pouco significativo é
convertido em adubo orgânico e devolvido à natureza como fertilizante do solo.
A prática elementar de separar o lixo seco do orgânico ainda deixa muito a
desejar. Centenas de milhares de toneladas de lixo não sortido acumulam-se em
gigantescos lixões das cidades e metrópoles. Com a chuva os subprodutos da
decomposição dos rejeitos orgânicos espalham-se nas redondezas, infiltram-se no
solo afetando plantas, animais e o homem. Pior. Penetrando nas camadas mais
profundas do solo contaminam o lençol freático e com isso todas as fontes que
dele se alimentam. Um volume provavelmente ainda maior de lixo do que o
recolhido aos lixões, é simplesmente jogado fora em terrenos, baldios, sarjetas
córregos, arroios e rios. As consequências são óbvias. Empesta esses locais e
ambientes com a proliferação de agentes
de transmissão de epidemias. As pessoas obrigadas a viver em tais
circunstâncias não tem como se livrar dos efeitos da natureza doente,
respirando o ar fétido de uma atmosfera saturada de poluentes. A lógica é
implacável. As pessoas que vivem num ambiente doente terminam adoecendo. E
nessas circunstâncias há um agravante com efeitos devastadores. Em países do
terceiro mundo principalmente e nos em desenvolvimento o saneamento básico, se
é que existe, é de uma precariedade gritante. Os rejeitos domésticos terminam
no ambiente imediato infestando tudo: o chão, as plantas e a água. Sem acesso a
água tratada a população recorre às fontes, córregos, arroios e rios. Uma
verdadeira tragédia humana. O Papa adverte: “Este mundo tem uma grave dívida
social para com os pobres que não têm
acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na
dignidade inalienável”. (Laudato si, 30)
Em
seguida o Papa chama a atenção ao duplo desafio: o fornecimento de água potável
a todas as pessoas e o desperdício da água potável pelos que a ela tem acesso.
Esta dívida (o acesso à
água potável) é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para
prover de água limpa e saneamento às populações mais pobres. Entretanto nota-se
um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em
vias de desenvolvimento que possuem
grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão
educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes
comportamentos num contexto de grande desigualdade. (Laudato si, 30)
Três
sinalizações parecem relevantes nessa passagem da Encíclica. Em
primeiro lugar, as iniciativas e ações que dizem respeito à água tratada
extensiva a toda a população. Esse é o drama que aflige em massa os cidadãos
dos países subdesenvolvidos, com destaque para a África. Nos países em
desenvolvimento os programas públicos de saneamento, embora declarados como
prioritários nos discursos em períodos eleitorais, deixam muito a desejar. Nos
países desenvolvidos o saneamento básico e com ele o item água está sendo
resolvido a contento. Sem dúvida há ainda muito a ser equacionado também no
primeiro mundo. Há uma questão complementar à demanda da água potável: a
recuperação pela despoluição dos recursos hídricos nas proximidades e nos
perímetros das grandes concentrações humanas nos centros urbanos. São Paulo é
exemplo. Dois rios, o Pinheiros e o Tietê cortam a cidade mas transformados em
autênticas cloacas. Nos complexos urbanos maiores e seus arredores
concentram-se pequenos rios, arroios, córregos e fontes, proporcionalmente num
estado de degradação semelhante ao Pinheiros ou Tietê.