Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 18 -

O Clima

Em apenas duas frases o Papa Francisco resumiu o gigantesco  desafio que envolve o conceito “clima”. “O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global é um sistema complexo, que tem a ver com as muitas condições essenciais para a vida humana”. (Laudato se, 23).

No decorrer dessas reflexões já insistimos o bastante que os bens da natureza são bens comuns. Sendo comuns todos tem o direito natural de usufruí-los, com destaque para o clima. E, novamente, sendo assim, constitui-se numa obrigação ética permitir o uso e fruto a qualquer pessoa pelo simples fato de ser um ser humano. Seria redundante  insistir neste momento com mais comentários.

A complexidade que envolve o conceito “clima” e seu significado como condição sem a qual a espécie humana não existiria, menos ainda subsistiria, é um dos maiores desafios para quem lida com a ecologia. A análise da natureza, a extensão e profundidade da ameaça do aquecimento global, acha-se tão bem caracterizado na Encíclica, que merece ser oferecida ao público na sua versão original. Entre os números 23, 24, 25  e 26 a Encíclica fala da questão.

(23) O clima é um bem comum, um bem de todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem  a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não relacionar ainda com o aumento dos acontecimentos metereológicos extremos, embora não se possa  atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem em acentuam.. É verdade que há outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo polar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devido à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros). A sua concentração na atmosfera impede  que o calor dos raios solares refletidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.

(24) Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um círculo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção  de  parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e da decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos oceanos  e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser  testemunha de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida  do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.

(25) As mudanças climáticas são um problema global de graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente  os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e seus meios de subsistência dependem fortemente das  reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes permita adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar  situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais de proteção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e  dos filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações  diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal de perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.

26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem centrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos  poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e outros gases altamente  poluentes se reduza drasticamente,, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mais ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países, registraram-se avanços que começam a ser significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias primas, bem como em modalidades  de construção e restruturação de edifícios  para melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se tornar onipresentes.  (Laudato si, 23,24,25,26)

A intenção do Papa ao escrever a “Encíclica Verde” foi chamar a atenção para o clima como um bem comum, como os outros dons da natureza; que a sua qualidade é fundamental para uma vida saudável; que a sua degradação põe em risco crescente pessoas populações e a espécie humana como  um todo; que urge rever o atual modelo  de civilização industrial e produtivo movido a combustíveis fósseis com alto potencial  de poluentes, para sustar  e reverter o processo de degradação ambiental; que são urgentes medidas preventivas e corretivas para diminuir  e se possível interromper o ritmo do aquecimento global; que entre as medidas globais é fundamental partir para um modelo energético menos ou nada poluente. Este cenário refere-se às alterações climáticas diretamente relacionadas com a interferência humana no processo.
Mas no nº 23 da Encíclica, como que de passagem e entre parêntesis, o Papa enumera “outros fatores (tais como vulcanismo, variações da órbita e do eixo da terra, o ciclo solar”). A essas causas somam-se outras, não citadas no documento, porém, de impacto profundo sobre a vida na terra. Referimo-nos à queda de meteoros, a mudança de curso das correntes marítimas e as glaciações. Os meteoros ocasionam perturbações climáticas mais ou menos graves numa frequência irregular, enquanto as outras duas causas são cíclicas.

As glaciações são por natureza períodos de longa duração de 40.000 a 100.000 anos, nos quais a temperatura média mundial cai entre 8 e 10 graus C. No intervalo de dois ciclos glaciais intercalam-se períodos interglaciais de temperatura média semelhante à nossa e com duração  média de 10.000 anos.

A explicação desses fenômenos cíclicos parece relacionar-se com o fato de os mares e oceanos funcionarem como reguladores térmicos. Quanto maior é o volume de água acumulada, tanto maior e mais abrangente é o seu potencial  de manter o equilíbrio térmico. Em outras palavras a oscilação da temperatura é menor. Esses fenômeno pode ser observado nos assim chamados clima continentais e marítimos, O clima marítimo é característico nas faixas costeiras e nas ilhas e o clima continental no interior dos continentes. No primeiro caso os extremos não são tão acentuados quanto no segundo.

Os oceanos que no seu nível máximo,  que  corresponde ao atual, chegam a 100 metros acima do nível do pico da glaciação. Esse fenômeno leva a dois efeitos. Em primeiro lugar equilibra melhor a temperatura, pois  o  potencial estabilizador é diretamente proporcional ao volume de água acumulada, evitando extremos acentuados. Em segundo lugar, um volume maior e uma superfície de evaporação mais extensa carregam a atmosfera com aumento da umidade relativa do ar acompanhada com a saturação da atmosfera e a intensificação das precipitações. Uma porcentagem sempre maior das precipitações cai na forma de neve cobrindo as montanhas mais altas, com um manto de gelo de centenas de metros de espessura que desce lentamente as encostas na forma de geleiras, que nada mais são do gigantescos rios de gelo. Na sua passagem cavam vales característicos em forma de U.  Os fragmentos de rocha, as morainas,  arrancados das margens e do fundo do vale são carregadas e empurrados pelo caudal de gelo até os vales e planícies mais baixas, onde  as geleiras derretem dando  origem a arroios e rios. O material sólido fica depositado no local onde a geleira derrete. Em latitudes mais próximas ao  círculo polar os mantos de gelo descendo das montanhas cobrem também as planícies. Resultam daí campos ininterruptos de gelo e neve, cobrindo milhões de quilômetros, principalmente no hemisfério norte, onde as massas continentais avançam até além círculo polar ártico, emendando o gelo do continente com a calota polar propriamente dita. Com centenas de metros de espessura inviabilizam praticamente toda  vida terrestre. Animais e vegetais migram para o sul ou então são extintos. Na América do norte os campos de gelo avançaram até o centro norte dos Estados Unidos. Assim todo o centro norte do país, mais o Canadá, Alasca, as ilhas do Ártico e a Groenlândia, permaneceram sepultados sob uma espessa camada de neve e gelo de centenas de metros de espessura.  O mesmo aconteceu  com a Euro-Ásia central e do norte. Com tamanho volume de água retido na forma de gelo e neve, os mares e oceanos baixaram cerca de 100 metros em relação ao nível atual. Como consequência diminuiu a umidade da atmosfera e o aquecimento dos oceanos subiu com  diminuição significativo do volume das suas massas de água. Um ciclo glacial se fecha e começa outro. A maior parte das regiões onde hoje se concentram as assim chamadas civilizações do primeiro mundo, não passavam de gigantescos campos de gelo de centenas de metros de espessura. A fronteira sul desses territórios pode ser traçada com referência a blocos de rocha – os blocos  erráticos – carregados pelas geleiras de centenas de quilômetros de distância. Ficaram para trás quando os campos de gelo recuaram par o norte com o final da era glacial. Aos blocos erráticos são também marcadores do limite extremo do avanço do gelo, as morainas. Não são nada mais do que os entulhos dos vales cavados pelo avanço das geleiras e deixados para trás com seu recuo para o norte.

No decorrer do último milhão de anos sucederam-se quatro ciclos glaciais, ou quatro glaciações batizadas com nomes  de localidades na Europa e na América do norte. Da mais antiga à mais recente foram denominadas de Günz–Mindel-Riss-Würma na Europa. Nos Estados Unidos  também da mais antiga à mais recente receberam os nomes de Nebraska-Kansas-illinois-Wisconsin. A diferença média de temperatura entre o pico da glaciação e o interglacial oscilou em torno de 8 graus C. A soma da duração de um ciclo glacial  durou por um  espaço de tempo de em torno de 100.000 anos. As eras frias, ou era glaciais, prolongaram-se por  cerca de 90.000 anos e o interglacial quente por 10.000 anos. A primeira glaciação ocorreu por volta dos 700.000 anos; a segunda 500.000 anos; a terceira 230.000 anos; a quarta 70.000 anos com o pico máximo por volta dos 18.000 anos. A partir de 15.000 anos fala-se em pós glacial. Supondo que a lógica da natureza continue deveríamos estar entrando num período glacial. Ao que tudo indica, porém a temperatura média da terra ainda está subindo. Há certamente uma relação entre esse fenômeno e interferência do homem. A dúvida fica por conta de eventos naturais ainda não devidamente identificados.

No decorrer do último período glacial a humanidade ficou concentrada, na Europa em volta do Mediterrâneo, Norte da África, o Oriente Próximo e Médio, no centro sul do Oriente Remoto e na Indonésia. Vale lembrar que com o final da era glacial, por volta de 15.000 anos passados começa a expansão da agricultura. As aldeias dos agricultores multiplicaram-se a partir do Egito na África e da Mesopotâmia no Oriente Médio e, no Oriente Remoto, a partir do centro sul da China. A agricultura com seu potencial de alimentar com segurança populações mais numerosas concentradas em espaços geográficos menores, teve como consequência um constante superpovoamento. Os excedentes assim gerados avançavam sobre sempre novas fronteiras agrícolas. Na medida em que os campos de gelo do norte derretiam e deixavam descobertas mais e mais terras aráveis, os agricultores subiram para povoar todo o centro e norte da Europa, deitando as raízes da civilização ocidental. Mas não é esse assunto que pretendemos desenvolver aqui, A intenção é mostrar como as oscilações climáticas são um dos fatores determinantes mais decisivos, influenciando diretamente no rumo da evolução histórica das civilizações.

Acontece que as leis que regem a longo prazo as relações  do homem com seu habitat natural, são as mesmas que marcam o compasso nas situações de curto prazo. E é do curto prazo de que estamos falando que cobre os últimos dois séculos com destaque para os 100 anos finais. Nesse período foram desenvolvidas tecnologias cada vez mais eficientes postas a serviço das demandas que também se multiplicaram e tornaram-se mais complexas. Esta é a face indiscutivelmente positiva do modelo. Em contrapartida ele gerou um “senão” preocupante. Ele é movido por energias oriundas de combustíveis perigosamente agressivos ao meio ambiente pela emissão de gases e resíduos poluentes. De outra parte as tecnologias permitem a invasão e destruição em grande escala dos ecossistemas naturais, substituindo florestas e campos naturais por pastagens e plantações de soja, milho, sorgo, algodão cana de açúcar, mandioca e outras culturas. Também para esse setor vale a afirmação que os benefícios que essa atividade trás em favor do homem são benvindos. Não se pode deixar, porém, de reconhecer que também vem acompanhado de um “senão” cujas consequências somam-se ao “senão” anterior. Interferem  direta e indiretamente no meio ambiente na “nossa casa”, preocupação  maior do Papa nessa passagem da “Encíclica Verde”. É isso que causa uma das maiores dores de cabeça no atual momento histórico: o aquecimento global e seus reflexos sobre a vida na terra.

Sobre o aquecimento global em si os cientistas que a ele se dedicam são praticamente unânimes sobre a extensão dos danos que acompanha o processo. Há-os que suspeitam que a redução das áreas e volumes de gelo, principalmente do Ártico, alteraria o curso das correntes marítimas. O impacto a longo prazo sobre o clima no hemisfério norte terminaria num resfriamento exagerado  daquela metade da terra. O hemisfério sul, ao contrário, sofreria um aumento também excepcional de temperatura. Esse desequilíbrio terminaria de um lado em tornados e ciclones com chuvas catastróficas em outas regiões estiagens extremas. Uma outra suspeita dos cientistas consiste num possível retardamento de uma nova era glacial, prolongando o interglacial além do esperado. O argumento baseia-se no fato de, se o atual ciclo glacial for de duração  semelhante os do passado, a quinta era glacial já deveria estar em andamento. Especulações à parte, tudo isso não resolve a situação momentânea criada pelo aquecimento global.

Penso que seja oportuno lembrar que o clima é um dos grandes artistas responsáveis pela modelagem da fisionomia da terra e de todas as formas de vida. Para tal as marcas dos seus cinzeis são tão  antigos quanto a própria crosta sólida do planeta. Mais de uma dezena de bilhões de anos se passou para chegarmos ao momento atual. Nessa mega história o que significam os 200 anos de que falamos mais acima, mais ainda os últimos 100?  Considerando agora o último milhão de anos com suas eras glaciais e a humanidade vivendo e sobrevivendo aos extremos de temperatura, faz concluir que os 200 anos continuam sendo um momento da história e as possíveis catástrofes climáticas não passam de episódios pontuais que dificilmente interromperão a caminhada da humanidade ao encontro do seus destino.


É claro que o cenário muda radicalmente no momento em que imaginarmos mudanças tão drásticas que levam à extinção do último representante da espécie humana. Improvável mas não impossível. O impacto de um meteoro gigante reduzindo a terra a fragmentos ou um vulcanismo universal, poderiam levar a esse efeito. Como se pode concluir, a  hipótese da extinção global da vida é remota, improvável, mas não impossível. Significaria o fim do mundo em toda extensão do termo.

This entry was posted on quarta-feira, 11 de outubro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.