Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 20 -

À despoluição dos  rios e cursos de água menores vem somar-se  a diminuição dos volumes ou até o esgotamento das fontes que  os alimentam. O desmatamento das cabeceiras dos rios e seus afluentes, tem nisso uma responsabilidade muito maior do que se pensa ou se quer admitir. Parece incrível, o reflorestamento das cabeceiras chega triplicar a vasão das fontes além de reativar as que secaram depois do deflorestamento. Uma experiência de boa envergadura nesse sentido na Serra da Mantiqueira, está a produzir resultados surpreendentes. Os donos das propriedades em vez de serem subsidiados para cultivar pastagens nas encostas íngremes recebem um “salario reflorestamento” de mais de um salario mínimo por mês. Esse tipo de iniciativas, como prova o projeto na Mantiqueira nas cabeceiras das  bacias fluviais do sudeste ampliado para outras regiões, as beneficiaria com o aumento da quantidade e qualidade da água fornecida à população. Nessas regiões a agricultura de enxada e arado de boi está sendo abandonada pela dificuldade de trabalhá-las somada à baixa produtividade e entregue às leis da natureza. Em algumas décadas uma magnífica floresta secundária foi cobrindo as encostas médias e altas dos vales. No fundo dessas florestas muito parecidas com as originais virgens, fontes voltam a brotar e as que resistiram têm seus volumes triplicados. Além de todos os demais benefícios ecológicos, quem mais se beneficia são os consumidores da água. O exemplo que mais cai em vista entre nós desse tipo de florestamento espontâneo e seus efeitos benéficos, pode ser observado nos cursos médios e superiores dos rios que formam o Guaíba. Há 50 anos as roças de milho e feijão subiam até uma estreita coroa de floresta original, remanescente na borda dos morros, totalmente impraticável mesmo à base da enxada. Hoje dá prazer em circular naqueles vales. As novas florestas descendo pelas encostas enchem os olhos e a sinfonia dos pássaros que retornaram dos seus refúgios, encanta os ouvidos. Córregos cristalinos murmurando na penumbra das árvores convidam a beber na concha da mão ou mergulhar a boca num dos muitos reservatórios minúsculos formados em seus leitos. Numa paisagem dessas a gente se flagra no meio do paraíso perdido, mas não esquecido do qual já falamos mais acima.

Já que  a natureza faz a sua parte quando deixada agir de acordo com seu ritmo e suas leis, está na hora de o homem assumir a sua. Tomemos o Rio dos Sinos como exemplo. Há 50 anos pescavam-se dourados na altura do Zoológico em Sapucaia do Sul. O dourado é sabidamente uma espécie de peixe exigente quanto à qualidade da água. Na década de 1960, por iniciativa da Faculdade de Economia de São Leopoldo, foi elaborado um projeto de desenvolvimento regional integrado para o vale do Rio dos Sinos. Prefeituras, empresários, conselhos comunitários, Estado e União interessaram-se pelo projeto. Numa tramitação surpreendentemente rápida foi aprovado pelo Itamaraty, para ser apresentado ao Governo da então República Federal da Alemanha, com solicitação de auxílio técnico para elaborar o projeto a ser executado. O governo alemão aderiu à proposta e contratou a Agrar und Hydrotechnik, especializada nesse tipo de projetos, para realizar um diagnóstico e propor ações concretas para otimizar as potencialidades da região. Uma equipe interdisciplinar formada por engenheiros com especialização em hidrologia e construção de barragens, geólogos, agrônomos, engenheiros florestais, topógrafos, economistas, urbanistas, passou um ano e meio fazendo diagnóstico e propondo soluções: sistema de diques de proteção contra as enchentes; uma projeto de abastecimento central de água para todos os municípios de Três Coroas até Canoas; sistema de tratamento dos esgotos domésticos e rejeitos industriais; proposta para incentivar a produção de fruti-horti-grangeiros; estímulo à pecuária de leite; reflorestamento das encostas; implantação de distritos industriais; disciplinamento da expansão urbana; estradas de circulação regional e outros. Tudo ficou minuciosamente detalhado num amplo relatório entregue às autoridades, para servir de base para futuras obras a cargo das administrações municipais, estaduais e federais. Se pelo menos a metade das ações propostas tivesse sido implementada, o Vale do Rio dos Sinos seria hoje uma referência de como  uma região em ritmo acelerado de urbanização e industrialização, deveria lidar com a inserção no seu cenário geográfico. E os resultados concretos? Pífios. Do sistema de diques apenas uma parte no município de São Leopoldo foi executada, com notáveis benefícios para a cidade. Todo o restante encalhou e estagnou na falta de visão e de modo especial, nos interesses bairristas dos que deveriam implementá-lo. O rio não passa de um cloaca, o reflorestamento ficou por conta da natureza, o saneamento básico não passa de iniciativas tópicas, enquanto a expansão dos bairros acontece ao sabor de uma ocupação que pouco difere de invasões e entregue a uma política e modelo imobiliário predatório.

Nessa  iniciativa global de 50 anos atrás, destaco o que foi a proposta de abastecimento de água já que é esse bem que motivou as reflexões que estamos fazendo inspirados na Encíclica do Papa Francisco. A proposta dos técnicos alemães resumia-se em ampliar a barragem já existente no rio Paranhana na altura de Três Coroas. Tecnicamente era viável pois, o volume de água era suficiente  para um reservatório capaz de abastecer 1.200.000 consumidores com 300 litros dia por pessoa. Exceto Porto Alegre todo o vale do Rio dos Sinos a jusante de Três Coroas poderia ser atendido com água numa estação central junto ao reservatório, dispensando subestações nos município. A água tratada descendo por gravidade exigia apenas conexões na tubulação central em pontos estratégicos para servir a população local. A implantação do projeto foi abortada pela visão acanhada das prefeituras e políticos dos municípios a serem beneficiados. Mais uma solução que caiu vítima do bairrismo e da falta de vontade política por parte dos que detinham o poder e a autoridade para implementá-la.

Na Encíclica o Papa chama a atenção para outro perigo que ronda o abastecimento de água. Multiplicam-se cada vez mais as manifestações em favor da privatização da água, opinião defendida   pelas redes sociais por personagens do porte do presidente da Nestlé. Não há necessidade de um esforço especial para perceber o lado perverso dessa proposta. O Papa chama a atenção: “Enquanto a qualidade a água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para privatizar  este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”. (Laudto si, 30).

Privatizar a água e condicionar o acesso a ela às leis do mercado fere o que de mais fundamental há nessa questão. A água é condição para a existência e a perpetuação  da vida em geral e da humana em particular. E assim voltamos ao começo das nossas reflexões sobre a água. Trata-se de um bem comum e o acesso livre a ele um direito moral para qualquer pessoa e um dever moral não o manipular por interesses comerciais. A gerência dos recursos hídricos é da competência e responsabilidade do poder público na condição de gestor dos bens comuns. Uma outra modalidade para gerenciar o abastecimento de água poderia ser  pela comunidade local. Poderia ser a solução para as comunidades no interior rural, acostumadas por tradição administrar comunitariamente os bens coletivos, como cemitério, estradas vicinais, hospital, escola, lazer, etc. Já que nos centros urbanos não vingam as relações comunitárias cabe ao município, ao estado ou à união providenciar também por esse recurso. Sob hipótese nenhuma os grandes mananciais de água, rios lagos, aquíferos subterrâneos deveriam ser passíveis de privatização e seu acesso regido pelas leis do mercado. O Papa alerta para as consequências da privatização da água.

Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares e milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflito deste século. (Laaudto si, 31)


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