À
despoluição dos rios e cursos de água
menores vem somar-se a diminuição dos
volumes ou até o esgotamento das fontes que
os alimentam. O desmatamento das cabeceiras dos rios e seus afluentes,
tem nisso uma responsabilidade muito maior do que se pensa ou se quer admitir.
Parece incrível, o reflorestamento das cabeceiras chega triplicar a vasão das
fontes além de reativar as que secaram depois do deflorestamento. Uma
experiência de boa envergadura nesse sentido na Serra da Mantiqueira, está a produzir
resultados surpreendentes. Os donos das propriedades em vez de serem
subsidiados para cultivar pastagens nas encostas íngremes recebem um “salario
reflorestamento” de mais de um salario mínimo por mês. Esse tipo de
iniciativas, como prova o projeto na Mantiqueira nas cabeceiras das bacias fluviais do sudeste ampliado para
outras regiões, as beneficiaria com o aumento da quantidade e qualidade da água
fornecida à população. Nessas regiões a agricultura de enxada e arado de boi
está sendo abandonada pela dificuldade de trabalhá-las somada à baixa produtividade
e entregue às leis da natureza. Em algumas décadas uma magnífica floresta
secundária foi cobrindo as encostas médias e altas dos vales. No fundo dessas
florestas muito parecidas com as originais virgens, fontes voltam a brotar e as
que resistiram têm seus volumes triplicados. Além de todos os demais benefícios
ecológicos, quem mais se beneficia são os consumidores da água. O exemplo que
mais cai em vista entre nós desse tipo de florestamento espontâneo e seus
efeitos benéficos, pode ser observado nos cursos médios e superiores dos rios
que formam o Guaíba. Há 50 anos as roças de milho e feijão subiam até uma
estreita coroa de floresta original, remanescente na borda dos morros,
totalmente impraticável mesmo à base da enxada. Hoje dá prazer em circular
naqueles vales. As novas florestas descendo pelas encostas enchem os olhos e a
sinfonia dos pássaros que retornaram dos seus refúgios, encanta os ouvidos.
Córregos cristalinos murmurando na penumbra das árvores convidam a beber na
concha da mão ou mergulhar a boca num dos muitos reservatórios minúsculos
formados em seus leitos. Numa paisagem dessas a gente se flagra no meio do
paraíso perdido, mas não esquecido do qual já falamos mais acima.
Já
que a natureza faz a sua parte quando
deixada agir de acordo com seu ritmo e suas leis, está na hora de o homem
assumir a sua. Tomemos o Rio dos Sinos como exemplo. Há 50 anos pescavam-se
dourados na altura do Zoológico em Sapucaia do Sul. O dourado é sabidamente uma
espécie de peixe exigente quanto à qualidade da água. Na década de 1960, por
iniciativa da Faculdade de Economia de São Leopoldo, foi elaborado um projeto
de desenvolvimento regional integrado para o vale do Rio dos Sinos.
Prefeituras, empresários, conselhos comunitários, Estado e União interessaram-se
pelo projeto. Numa tramitação surpreendentemente rápida foi aprovado pelo
Itamaraty, para ser apresentado ao Governo da então República Federal da
Alemanha, com solicitação de auxílio técnico para elaborar o projeto a ser
executado. O governo alemão aderiu à proposta e contratou a Agrar und
Hydrotechnik, especializada nesse tipo de projetos, para realizar um
diagnóstico e propor ações concretas para otimizar as potencialidades da
região. Uma equipe interdisciplinar formada por engenheiros com especialização
em hidrologia e construção de barragens, geólogos, agrônomos, engenheiros
florestais, topógrafos, economistas, urbanistas, passou um ano e meio fazendo
diagnóstico e propondo soluções: sistema de diques de proteção contra as enchentes;
uma projeto de abastecimento central de água para todos os municípios de Três
Coroas até Canoas; sistema de tratamento dos esgotos domésticos e rejeitos
industriais; proposta para incentivar a produção de fruti-horti-grangeiros;
estímulo à pecuária de leite; reflorestamento das encostas; implantação de
distritos industriais; disciplinamento da expansão urbana; estradas de
circulação regional e outros. Tudo ficou minuciosamente detalhado num amplo
relatório entregue às autoridades, para servir de base para futuras obras a
cargo das administrações municipais, estaduais e federais. Se pelo menos a
metade das ações propostas tivesse sido implementada, o Vale do Rio dos Sinos
seria hoje uma referência de como uma
região em ritmo acelerado de urbanização e industrialização, deveria lidar com a
inserção no seu cenário geográfico. E os resultados concretos? Pífios. Do
sistema de diques apenas uma parte no município de São Leopoldo foi executada,
com notáveis benefícios para a cidade. Todo o restante encalhou e estagnou na
falta de visão e de modo especial, nos interesses bairristas dos que deveriam
implementá-lo. O rio não passa de um cloaca, o reflorestamento ficou por conta
da natureza, o saneamento básico não passa de iniciativas tópicas, enquanto a
expansão dos bairros acontece ao sabor de uma ocupação que pouco difere de
invasões e entregue a uma política e modelo imobiliário predatório.
Nessa iniciativa global de 50 anos atrás, destaco o
que foi a proposta de abastecimento de água já que é esse bem que motivou as
reflexões que estamos fazendo inspirados na Encíclica do Papa Francisco. A
proposta dos técnicos alemães resumia-se em ampliar a barragem já existente no
rio Paranhana na altura de Três Coroas. Tecnicamente era viável pois, o volume
de água era suficiente para um
reservatório capaz de abastecer 1.200.000 consumidores com 300 litros dia por
pessoa. Exceto Porto Alegre todo o vale do Rio dos Sinos a jusante de Três
Coroas poderia ser atendido com água numa estação central junto ao
reservatório, dispensando subestações nos município. A água tratada descendo
por gravidade exigia apenas conexões na tubulação central em pontos
estratégicos para servir a população local. A implantação do projeto foi
abortada pela visão acanhada das prefeituras e políticos dos municípios a serem
beneficiados. Mais uma solução que caiu vítima do bairrismo e da falta de
vontade política por parte dos que detinham o poder e a autoridade para
implementá-la.
Na
Encíclica o Papa chama a atenção para outro perigo que ronda o abastecimento de
água. Multiplicam-se cada vez mais as manifestações em favor da privatização da
água, opinião defendida pelas redes
sociais por personagens do porte do presidente da Nestlé. Não há necessidade de
um esforço especial para perceber o lado perverso dessa proposta. O Papa chama
a atenção: “Enquanto a qualidade a água disponível piora constantemente, em
alguns lugares cresce a tendência para privatizar este recurso escasso, tornando-se uma
mercadoria sujeita às leis do mercado”. (Laudto si, 30).
Privatizar
a água e condicionar o acesso a ela às leis do mercado fere o que de mais
fundamental há nessa questão. A água é condição para a existência e a
perpetuação da vida em geral e da humana
em particular. E assim voltamos ao começo das nossas reflexões sobre a água.
Trata-se de um bem comum e o acesso livre a ele um direito moral para qualquer
pessoa e um dever moral não o manipular por interesses comerciais. A gerência
dos recursos hídricos é da competência e responsabilidade do poder público na
condição de gestor dos bens comuns. Uma outra modalidade para gerenciar o
abastecimento de água poderia ser pela
comunidade local. Poderia ser a solução para as comunidades no interior rural,
acostumadas por tradição administrar comunitariamente os bens coletivos, como
cemitério, estradas vicinais, hospital, escola, lazer, etc. Já que nos centros
urbanos não vingam as relações comunitárias cabe ao município, ao estado ou à
união providenciar também por esse recurso. Sob hipótese nenhuma os grandes
mananciais de água, rios lagos, aquíferos subterrâneos deveriam ser passíveis
de privatização e seu acesso regido pelas leis do mercado. O Papa alerta para
as consequências da privatização da água.
Uma maior escassez de água
provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do
seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de
água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os
impactos ambientais poderiam afetar milhares e milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme
numa das principais fontes de conflito deste século. (Laaudto si, 31)