Da Enxada à Cátedra [ 74 ]

Depois dessas colocações de caráter mais teórico vem a pergunta: e, se consideradas as circunstâncias concretas, a realização do sonho de paisagens humanizadas inspiradas na combinação dos dois trinômios que formulamos acima, é exequível? Fiquei horas empacado procurando uma resposta para esse questionamento. A proposta feita há mais de 50 anos pelos técnicos alemães para a valorização do vale do rio dos Sinos prova a sua validade em dezenas de pequenos municípios emancipados de então para cá em todos os vales dos rios que confluem paraformaroGuaíba.Emboranãosetenhafeitoumplanejamento técnicocomoodescritoacima a maioria desses municípios desenvolveu-se de forma muito parecida com o modelo desenhado tecnicamente para o vale do Sinos. Têm em comum que sua população na média não chega aos 10.000 habitantes. As sedes urbanas contam com uma infraestrutura administrativa enxuta e eficiente confiada a prefeitos, vereadores, funcionários e técnicos, que têm como prioridade o progresso e o bem-estar da população. Os desvios desse objetivo e a prática de atos de corrupção, se ocorrem, são exceções e de proporções até absorvíveis. A população conta com postos de saúde bem equipados, a cargo de profissionais treinados e, em casos de cirurgias e situações de maior gravidade, as prefeituras dispõem de ambulâncias para levar os pacientes aos hospitais regionais e a Porto Alegre quando o caso o requer. A educação costuma ser, a par da saúde, a preocupação maior das administrações municipais e da população em geral. Para tanto dispõem de uma rede de escolas que vão do maternal até o ensino médio. O transporte escolar eficiente atende os alunos, as professoras e professores são relativamente bem pagos e os prédios e instalações adequadas a um ensino de qualidade. Ha exemplos em que municípios investem até 30% dos seus recursos na educação. Não podem faltar salões de festa, para casamentos bailes e comemorações de datas importantes como os aniversários das emancipações. Há municípios que dispõem de museus e centros de eventos. Os Kerbs fazem parte do calendário onde predominam os descendentes de imigrantes alemães. As estradas municipais em muitos casos costumam estar asfaltadas até os limites dos municípios, facilitando a circulação das mercadorias e pessoas. Mas, o que mais se destaca é o complexo da atividade econômica. Nas sedes dos municípios, as antigas casas de comércio, as lendárias “vendas”, foram substituídas por lojas especializadas bem ao estilo urbano. Pequenas, médias e até indústrias de porte maior oferecem um número significativo de postos de trabalho. No interior desses municípios a típica policultura familiar de subsistência deu lugar a atividades mais seletivas, tornando obsoleto todo o complexo de instrumentos e ferramentas tradicionais. Arados de bois, moendas de cana, carroças de bois, machados, serras manuais e até enxadas e machados, máquinas de costura manuais ou com pedais, são hoje, em grande parte, artigos de museu. Com a chegada da eletricidade tudo foi substituído por ferramentas que tornaram a produção rural muito mais produtiva e muito menos penosa do que das gerações passadas. Motosserras dispensaram o machadoeotraçador,roçadeiras,microtratorese tratoresdemaiorportedispensaramosarados e as juntas de bois, carros, motos e caminhões tomaram o lugar das carroças puxadas por bois, cavalos ou mulas. Em vez de montarias as pessoas deslocam-se em automóveis que já não são mais motivo de ostentação e riqueza mas, fazem parte das utilidades normais da imensa maioria das pessoas, também do meio rural. Como já afirmamos mais acima, a produção rural tornou-se mais seletiva e especializada para atender ao mercado regional, estadual, nacional e até internacional. Dezenas de aviários alinham-se nas encostas dos morros acomodados no meio de árvores nativas e em não poucos casos rodeados pela mata secundária. Abastecem o mercado estadual, nacional e internacional. Famílias inteiras, filhos e netos de antigos agricultores encontram trabalho rentável e, ao mesmo tempo, saudável nesse ramo de atividade amparados por tecnologias de última geração no manejo de frangos de corte e galinhas de postura. A suinocultura intensiva valendo-se também de tecnologias de ponta como a seleção genética de raças mais apuradas, inseminação artificial, alimentação balanceada, assistência veterinária, higiene e destino dos dejetos, substituíram a criação de suínos destinados a suprir as necessidades das famílias. Como no caso da avicultura a suinocultura destina-se ao atendimento das demandas regionais, nacionais e do mercado internacional em constante crescimento quantitativo e com exigências qualitativas mais rigorosas. Esse setor de atividade oferece um mercado de trabalho difícil de dimensionar além de perspectivas para evitar que muitos jovens nascidos no meio rural se deixem iludir com os encantos das oportunidades oferecidos pela vida urbana. Um ensino fundamental e médio que inclua em suas programações o alerta pelas oportunidades e a realização de uma vida sadia e digna no meio rural de hoje, pode evitar que muitos jovens traídos pela fantasia de uma vida fácil e cômoda nas cidades, terminem subempregados, mal empregados e desempregados, expostos a todos os riscos que infestam os bairros periféricos. Os administradores dos municípios, os conselhos comunitários, as autoridades e agremiações religiosas e outras tantas, têm condições de prestar um serviço de valor incalculável para as futuras gerações, conscientizando-as e propondo iniciativas e soluções concretas. As escolas agrícolas de nível médio podem ser multiplicadas formando técnicos na produção de hortigranjeiros orgânicos, fruticultura, suinocultura, avicultura, floricultura, silvicultura e por aí vai. E já que o público consumidor e a legislação e controle sanitário e o manejo dos reflorestamentos e a proteção da mata nativa, exigem conhecimentos especializados, abre-se espaço para egressos das escolas superiores de agronomia, veterinária, engenharia florestal e similares.

A educação, a conscientização, a formação técnica em todos os níveis e o acesso às tecnologias e métodos de última geração, não mudou apenas o rendimento e a qualidade dos produtos, como também uma paisagem físico geográfica inimaginável há 80 anos passados. A policultura à base da enxada e do arado de bois nas encostas pedregosas e muito íngremes foi abandonada e entregue ao avanço da vegetação nativa. Já nos referimos a esse fenômeno em outa ocasião mais acima. Vai se formando uma floresta secundária muito parecida na sua composição e formato da original e intocada que os imigrantes encontraram ao desembarcarem e se fixarem nessas paragens. Em não poucos casos, no fundo dos vales mais estreitos essa recuperação florestal já desceu até os arroios formados pelos muitos córregos que descem dos morros. Um outro efeito extremamente benéfico desse florestamento espontâneo consiste na retenção da água das chuvas aumentando a vasão das fontes e córregos e fazendo reaparecer fontes que haviam secado depois do desmatamento. Na medida em que a nova floresta avança horizontalmente e se avoluma verticalmente vai-se confundindo com as manchas de floresta virgem original que sobreviveram nas coroas e nos topos dos morros. E, na medida em que a floresta secundária se espalha e avoluma, as espécies de aves, mamíferos, répteis, batráquios e insetos, que não foram extintos, saem dos seus refúgios e voltam a povoar a nova “casa”, enchendo-a com a sinfonia dos seus cantos, assobios, gritos, pios, roncos e urros. A proibição da caça anima pássaros, mamíferos, répteis e outas espécies a se aproximarem das moradias e por assim dizer, conviver em harmonia e comunhão com o homem e seus animais domésticos. A grande maioria das espécies de aves originais e mamíferos, exceto a onça, o puma e a anta, encontram tranquilidade nos terrenos acidentados de inúmeras áreas abandonadas, impraticáveis para a produção agrícola nos moldes da demanda de alimentos de hoje. A floresta reconquistando o seu espaço nos declives dos morros e montanhas, as pastagens, a fruticultura e o reflorestamento artificial, nas encostas menos íngremes, as áreas mais planas ocupadas com a produção de hortaliças e legumes, as moradias acomodadas na sombra de grandes árvores, o traçado das estradas e caminhos acompanhando as características topográficas, as cidades em franco progresso no centro ou na saída dos vales, compõem paisagens que provam que o “jardim” confiado por Deus ao homem, quando “cultivado” racional e afetivamente resulta em panoramas de uma beleza singular.

Enquanto reflito sobre a realidade que acabo de pintar circulam nas redes sociais documentários que retratam pequenos municípios no interior do Rio Grande do Sul, todos contando com a mesma trajetória histórica. Derrubada a floresta virgem original, a terra foi cultivada durante 100 ou mais anos no mesmo molde da agricultura familiar de enxada e arado de bois descrito mais acima. De meio século para cá moldaram os seus perfis de acordo com as demandas dos mercados de consumo. Substituíram os tradicionais instrumentos de trabalho pelas ferramentas oferecidas pela tecnologia moderna. Os meios de comunicação ao alcance de qualquer colono na mais remota extremidade de um vale, mexeram e continuam mexendo fundo na maneira de ser dos produtores rurais, pondo-os em contato com o que há e acontece de novo, de bom, de discutível e/ou de deplorável no âmbito regional, nacional e internacional. Nesse cenário já não há mais lugar para as famílias numerosas de 10 ou mais filhos. Deram lugar a casais com um ou dois filhos e o próprio conceito do matrimônio tradicional indissolúvel convive tranquilamente com uniões consensuais, mães solteiras, separações e divórcios. A prática rigorosa e controlada da religião cedeu o lugar a uma opção mais pessoal e livre do que há duas ou três gerações passadas. Ficou no passado o agricultor que costumava percorrer apenas dois caminhos: o diário de ida e volta da roça e o dominical de ida e volta à igreja. Mas, não é aqui o lugar para uma análise antropológica e sociológica mais aprofundada. Resumindo, parece lícito afirmar que os pequenos municípios que surgiram no interior colonial e ocupam uma significativa parcela dos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e outros estados, moldaram um paradigma, diria civilizatório que, descontados os senões e mesmo críticas mais severas e contundentes, apontam o caminho para “cultivar” o “jardim” em que o Criador colocou homem para que tenha condições de realizar os seus anseios existenciais. Tendo sempre em vista que falo do modelo da pequena propriedade familiar dedicada à policultura de subsistência como horticultura, fruticultura e tantas outras modalidades, atrevo-me concluir nas linhas e sugerir nas entrelinhas, que o “agricultor” deu lugar ao “produtor rural”. Munido de um comportamento social e familiar urbano, cultivador de costumes e valores, hábitos religiosos, preocupações econômicas e políticas, sem pretensões de uma formação mais apurada, sem demora passará ser um personagem da história, como os artesãos e tantas outras ocupações. Os casamentos inter étnicos e inter confessionais tornaram-se rotineiros. Já não causam estranheza uniões entre pessoas louras e afro descendentes, entre católicos e outras confissões religiosas, entre alemães e italianos, poloneses, luso-brasileiros e afrodescendentes. Essa miscigenação resultou num cidadão brasileiro cuja origem remota é traída pelo sobrenome, muitas vezes associado a sobrenomes lusos, italianos e outros; um cidadão brasileiro que já não se serve mais dos seus dialetos em família, muito menos no relacionamento social; um cidadão brasileiro que pode ser encontrado em todos os níveis da hierarquia política, militar, econômica e social; um cidadão brasileiro que, apesar de tudo, bem ou mal, não se esqueceu de suas raízes remotas relembrando e cultivando os dialetos falados por seus avós, seja a nível acadêmico, seja a nível de grupos como os que cultivam os dialetos originários do Reno-Palatinado, ou relembrando nos “Kerb” e “Oktoberfest”, fragmentos de suas raízes ainda perceptíveis depois de 200 anos em terras brasileiras.

E, para concluir as reflexões que motivaram o terremoto que acabamos de caracterizar nas páginas acima, sugiro como opção de lazer circular em domingos ou feriados pelos vales dos rios que formam o Guaíba e admirar e degustar a paisagem étnico-geográfica moldada nos 200 anos pela presença dos imigrantes alemães, italianos, poloneses e outras procedências étnicas e seus descendentes no sul do Brasil: Santa Maria do Erval, Nova Petrópolis, Bom Princípio, São Vendelino, Tupandi, São Pedro da Serra, Salvador do Sul, Poço das Antas, Teutônia, Westfália, Imigrantes, Sinimbu, Sobradinho, Santa Cruz do Sul e tantos outros pequenos municípios na região das Missões, Alto Uruguai, Oeste, Centro e Leste de Santa Catarina e oeste do Paraná

Da Enxada à Cátedra [ 73 ]

Como se pode perceber, a partir do final da Segunda Guerra Mundial os tempos mudaram radicalmente afetando em cheio o personagem humano moldado pela pequena propriedade familiar com sua produção direcionada, antes de mais nada, para suprir as demandas da família. A última fronteira de colonização ao modelo consagrado pelos imigrantes alemães, italianos, poloneses e de outras procedências da Europa, encerrou-se com a ocupação das terras ainda disponíveis no oeste do Paraná. Paralelamente à industrialização tomou fôlego e multiplicou e diversificou as oportunidades e opções de trabalho nos centros urbanos para os excedentes das famílias ainda numerosas no interior colonial. Os meios de comunicação com o acesso ao rádio primeiro e da televisão um pouco mais tarde, impulsionados pela eletrificação também do meio rural, resultaram em dois efeitos complementares. Em primeiro lugar, o agricultor entrou em contato com o que acontecia além das fronteiras que delimitavam sua comunidade e tomou conhecimento dos avanços da industrialização, da disponibilidade de novas tecnologias e, de modo especial, das oportunidades de trabalho. Aconteceu com isso uma profunda transformação na percepção do mundo pelo agricultor. Costumes, hábitos, valores, todo um estilo de vida de “colono” transformou a cosmovisão dessa gente e moldou-a de acordo com o figurino urbano. Assistimos a uma autêntica urbanização das mentes. As famílias numerosas de 10 ou mais filhos foram dando lugar a casais com dois ou três filhos no máximo. A oferta de oportunidades de trabalho desencadearam uma crescente onda migratória do meio rural para o centros urbanos. Em poucas décadas inverteu-se a situação do Brasil de um país predominantemente rural para um país em urbanização acelerada. Hoje as tecnologias de comunicação permitem aos agricultores conectar-se com o mundo todo até nos intervalos dos trabalhos na lavoura. Aos filhos dos colonos ofereceram-se sempre mais oportunidades e facilidades para se formarem no ensino médio e terem acesso ao superior. Com os respectivos certificados e diplomas na mão, os leques de oportunidades de trabalho multiplicaram-se absorvendo uma porcentagem importante da mão de obra disponível no meio rural. Inúmeros filhos e filhas de agricultores encontraram trabalho na construção civil, no setor de serviços, no exercício de profissões liberais, no comércio, nas indústrias, no funcionalismo público, nas forças armadas e por aí vai. O processo de urbanização daí resultante exigiu e continua exigindo empenho crescente das administrações públicas responsáveis, no limite de suas competências, um empenho todo especial no disciplinamento da formação de novos bairros periféricos. São fundamentais nesse esforço políticas, ações e estratégias centradas no saneamento básico, abastecimento de água potável, mobilidade urbana, escolas e educação, saúde pública e, sobretudo, o acesso aos produtos que formam o complexo de uma alimentação qualitativa e quantitativamente adequada.

O “trabalho” é um dos pressupostos para a realização integral das pessoas, do “humano no homem. É importante refletir sobre essa questão não apenas de forma teórica e abstrata, mas inserida num contexto regional concreto, por ex., o vale do rio dos Sinos e os demais que formam a bacia do Guaiba. Requerem-se propostas tecnicamente elaboradas por equipes devidamente credenciadas e habilitadas para tanto. Depois de nos demorarmos em mostrar a dinâmica da urbanização do leito do rio dos Sinos impulsionada pela industrialização e seus reflexos sobre a infraestrutura, sobre a revolução social, cultural, econômica, etc., inerente ao próprio fenômeno da passagem da cosmovisão rural para a urbana, um outro complexo de potencialidades da região, chama a atenção. A geomorfologia dos curso médio e superior do Sinos como dos demais rios que terminam no Guaíba, não permitem monoculturas ao modelo do grande agro negócio. As florestas originais que cobriam as várzeas dos rios e arroios e subiam até as bordas dos Campos de Cima da Serra, deram lugar à pequena propriedade familiar, em torno de 70 hectares no começo. A produção diversificada destinava-se, em primeiro lugar, para o sustento da família. Passados 200 anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes, os lotes coloniais foram sucessivamente repartidos para 10 ou menos hectares. A agricultura familiar e a criação de animais domésticos caminha para a extinção. Nas encostas dos morros onde há 70 anos as roças de milho, feijão, batata e mandioca subiam até onde era possível a prática da agricultura de enxada, foram substituídas e estão sendo tomadas por uma floresta secundária parecida à original ou reflorestadas com acácia e/ou eucalipto. Por estranho que possa parecer, nesse cenário que vai tomando conta do espaço da agricultura familiar, abrem-se perspectivas para implantar um modelo de produção que encontra na expansão urbana um potencial de consumo sempre maior e mais exigente. Vai nessa perspectiva que aponta a solução tanto da produção de alimentos quanto da abertura de postos de trabalho para os que se sentem atraídos por um estilo de vida e, ao mesmo tempo, por uma realização profissional e pessoal fora da rotina e das opções que oferecem os centros urbanos. Isso vale tanto para os filhos dos agricultores, mesmo que concluam apenas o primeiro ou segundo grau, quanto para àqueles jovens que conquistam títulos universitários. Aliás são mais do que louváveis as escolas de agronomia, veterinária, engenharia florestal e outras que oferecem em seus currículos opções para os que os frequentam, se especializarem para atuar e assim melhorar os resultados nesse setor de vital importância para cobrir as demandas do quotidiano dos centros urbanos.

Essas observações aplicam-se por ex., às condições geomorfológicas, geográficas, demográficas, econômicas e demandas de abastecimento em geral, aos vales dos rios que convergem para a capital e terminam se fundindo, formando o lago Guaíba. Vale a pena comentar algumas das sugestões mais relevantes deixadas pela equipe de técnicos responsável pelo projeto de“Valorização do Vale do Rio dos Sinos” na década de 1960 do qual já nos ocupamos mais acima. O lugar da tradicional policultura de subsistência pode ser perfeitamente preenchido com a produção de hortaliças e legumes para suprir a demanda em franco crescimento com a expansão urbana. Para tanto há áreas disponíveis com solos adequados em toda a extensão do vale. A configuração topográfica, tipo de solos e variação climática, permitem o desenvolvimento da fruticultura de todas as espécies, menos as eminentemente tropicais, sempre bem vindas para o consumo local e regional. Nos espaços planos e nas meias encostas os cítricos, pêssegos, figos, uvas de mesa, abacate e outras variedades subtropicais, encontram condições propícias para render bons dividendos para quem os cultivar. Mais para o alto, de 500 metros ou mais podem ser cultivadas peras, maçãs, ameixas, marmelos e outros que exigem temperaturas mais baixas por um bom período do ano. Todas essas áreas oferecem condições favoráveis para pastagens e criação de gado leiteiro. Mas há um outro setor de não pouca importância. Falamos do reflorestamento com espécies de uso diário como acácia e eucalipto para lenha e tanino a primeira e madeira para a construção e lenha a segunda. Todas essas atividades, praticadas com o uso das modernas tecnologias de manejo oferecem um potencial difícil de dimensionar de mão obra e, portanto, perspectivas de trabalho saudável e retorno garantido para quem se interessar, independente do nível de formação escolar ou acadêmica. A posse do conhecimento teórico e prático da realidade agrária e o emprego da tecnologia abre espaço para técnicos e técnicas formadas em escolas de nível médio e agrônomos e agrônomas, veterinários e veterinárias, portadores de diploma universitário. A combinação do trinômio trabalho-produção-abastecimento com o trinômio natureza-preservação-cultivo temos em mãos o pressuposto para fazer do vale do Sinos e de muitos outros ecossistemas humanizados altamente produtivos, ecologicamente equilibrados, esteticamente belosChamo a atenção para o modelo de manejo que está rendendo excelentes resultados formulado pelo agrônomo da Embrapa João Klutkowski natural de Apucarana, conhecido como João K para evitar confusão com JK ex-presidente do Brasil. O sistema é conhecido IAPF – Integração Agricultura, Pecuária, Floresta. O sistema está sendo testado com excelentes resultados em fazendas degradadas no centro oeste do País. Adaptado atende até áreas menores de terra. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes pois, estão disponíveis no meu livro “A Nossa Casa”Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado, não só para cuidar e guardar o existente, como também para trabalhar nele e cultivá-lo afim de que produza frutos”, observou o Papa Francisco na “Encíclica Laudatdo si”, centrada na preservação do meio ambiente.

Da Enxada à Cátedra [ 72 ]

A Urbanização. No começo da década de 1950 a população brasileira rural predominava absolutamente sobre a urbana. Vivíamos num país rural com todas as suas características culturais, religiosas, hábitos familiares, hábitos sociais, valores morais, relacionamento solidário com os membros das comunidades, como referência do comportamento individual e coletivo. Em menos de 3 décadas aconteceu a inversão no nível demográfico. O País passou rapidamente de rural a urbano numa velocidade acelerada. Para esse fenômeno não contribuiu apenas a transferência física das pessoas, geralmente mais jovens para espaços urbanos e o abandono e ou modernização da agricultura familiar. Percebem-se também os primeiros sinais da entrada em cena do agronegócio a começar pelo Rio Grande do Sul com o cultivo do trigo e soja nos campos da Serra, Missões Alto Uruguai para depois avançar para o norte e centro oeste do País, sobre os campos naturais e cerrados, com a explosão da cultura mecanizada do trigo, soja, milho, sorgo, canola, batata inglesa, amendoim, girassol, algodão e por aí vai.

Um segundo fator que acelerou a transformação do Brasil dum país rural em um país urbano foi a popularização dos meios de comunicação em massa. Em outro momento já mencionei que dei o meu primeiro telefona quando tinha 20 anos, isto é, em 1950, num desses telefones de manivela hoje artigos de museu. Normalmente os distritos dos municípios, hoje muitos deles evoluídos para municípios, dispunham de um único telefone instalado em alguma casa de comércio, cartório ou residência. Os telefonemas ou fonogramas chegavam ao destinatário levados a pé ou a cavalo pelo responsável pela central. Quem quisesse telefonar para alguma pessoa ou cliente obrigava- se a procurar o telefone mais próximo disponível. Se estou bem lembrado já mencionei mais acima que meu irmão comprou em 1940 um Rádio Galena com dois fones de ouvido, o único no hoje município de Tupandi. Captava apenas as transmissões em ondas longas, como a rádio Farroupilha, Difusora e Gaúcha. Como a segunda guerra mundial estava em pleno andamento, esse meu irmão escutava os noticiários e ao escurecer os vizinhos vinham para tomar um chimarrão debaixo do enorme plátano em frente da casa, para se informarem e atualizarem sobre o andamento do conflito e outras notícias que lhes interessassem. Esse rudimentar rádio galena alargava a visão daqueles colonos exaustos pelo quotidiano da lavoura para além de suas plantações e do topo dos morros que delimitavam as fronteiras do seu pequeno e limitado mundo comunal. Notícias sobre as frentes de combate nas planícies da União Soviética começaram a povoar a imaginação dos colonos, como também sobre as batalhas na Normandia, os vinhedos da Borgonha, os vinhedos e castelos do Reno e Mosela, dos Alpes da Suíça, Áustria, Baviera e norte da Itália etc. Passada a guerra rádios de válvulas começaram a invadir as casas do interior colonial. Nas horas vagas dos intervalos do trabalho no meio dia e, principalmente, ao anoitecer e noite adentro as costumeiras conversas sobre assuntos do quotidiano, deram lugar para o ouvir os noticiários transmitidos pelo rádio, programas humorísticos, novelas, música etc. Começara sem retorno e em ritmo acelerado, paralelamente à urbanização demográfica, a “urbanização das mentes. A população do interior colonial entrou em contato com os costumes, as modas, os valores, a movimentação, as novidades oferecidas pelo grande comércio, a própria religiosidade entrou nessa dinâmica. O impacto sobre o estreito mundo e mente comunal foi de curiosidade, de susto, de espanto, de temor e até de rejeição na primeira fase do turbilhão causado pela popularização do rádio e o contato físico com o meio urbano. Em seus contos e cartas em dialeto endereçados aos colonos, em não poucas oportunidades o Pe Rambo descreveu a dinâmica dessa “abertura” para o grande mundo e a reação das comunidades no interior colonial. Permito- me reproduzir um excerto desses contos que tem como personagem o Joãozinho e o pai dele, o João, ambos à margem do padrão habitual dos demais colonos.

“Aconteceu assim. O Joãozinho completara quase quatro anos de frequência da escola e o padre começou com as instruções para preparar as crianças para a comunhão solene. O Joãozinho, no entanto, nunca estudava as lições do catecismo. Na igreja passava o tempo conversando, olhando para trás e, quando perguntado, dava respostas bobas e malcriadas. Quando as outras crianças rezavam ajoelhadas na mesa da comunhão, Joãozinho limpava a boca suja na toalha que a cobria.

O padre perdeu a paciência e mandou chamar o velho João. Como ele não apareceu resolveu descer o morro para conversar com ele. “Por meu filho eu garanto e que nenhum padre ou professor se meta. Se for impedido de participar da comunhão solene, mando-o para um colégio da cidade. Aí vocês vão ver como meu filho se tornará uma pessoa de valor”.

Não quero imaginar o marginal que resultará do seu filho, sentenciou o padre e voltou para casa. No dia seguinte, a picada já fora informada de que o velho João mandara o Joãozinho para a cidade. Por um longo tempo não se ouviu nada dele. Na época do Natal, porém, passou duas semanas em casa. Caramba, que menino elegante. Os sapatos reluziam de tanta graxa, as calças passadas e alisadas, o casaco e chapéu novos em folha. Quando colocava o chapéu na cabeça, aparecia o cabelo todo lambuzado de “glostora” e impecavelmente penteado. Sobre o nariz portava óculos azuis enormes, a gravata pintalgada parecia-se com penas do papa ovo. O Joãozinho parecia um doutor. Recusava o nome de Joãozinho. Exigia que o chamassem de João. Não queria mais falar alemão, só português. Nos domingos quando ia para a igreja, para se exibir, criticava a missa rezada em alemão assim como o sermão do padre em alemão. Na cidade, dizia, as coisas eram diferentes. Ninguém falava alemão e, se arriscasse fazê-lo, parava na cadeia.

E as outras maravilhas que o Joãozinho contava da cidade! Dizia que lá se trabalhava apenas oito horas por dia e nos sábados recebia-se, sem falta, o salário. Ninguém trabalhava na roça imunda. A maioria andava de automóvel e, à noite, havia cinema em toda a parte, custando apenas alguns centavos e, além de tudo, era a coisa mais divertida de se imaginar. Havia bailes todos os dias e mais ou menos cada mês uma grande festa, com música e foguetes e tudo de graça.

Só não contou nada da igreja. Perguntado a respeito, respondia apenas que na cidade só se pregava em português e havia tantos padres que era impossível conhece-los todos. Enquanto o Joãozinho falava, os outros paravam em sua volta, olhavam sua gravata e pensavam: quem nos dera viver também na cidade. O Joãozinho enfiava a mão no bolso, fazia tilintar as moedas, tirava os óculos azuis, os limpava com o lenço e continuava: A vocês rapazes posso garantir que quem quiser ver alguma coisa, precisa ir para a cidade. O colono cheirando a esterco não vale mais nada hoje em dia!

Para o Pedro que fora colega de escola do Joãozinho, a afirmação enchera todas as medidas. Agarrou-o pela gravata pintalgada e disse: O que disseste? Tu, um torresmo, um terneiro lambido! Falas em colono cheirando a esterco. Vou te mostrar o que é um colono cheirando a esterco! Sacudiu o Joãozinho com tamanha fúria que seus olhos saltaram das órbitas e os óculos pararam no meio da grama. No exato momento em que ia agarrá-lo para enchê-lo de pancadas, apareceu o professor e apartou os dois.

No mesmo domingo, o padre fez um violento sermão contra o ir para a cidade. Há pais, falou, que permitem aos filhos ainda quase crianças, irem para a cidade, onde trabalham como empregados e em questão de poucos anos naufragam física e espiritualmente. Há mães que não se envergonham e permitem que suas filhas, em troca de alguns mil réis, executem tarefas de escravas junto a famílias desconhecidas. Em não poucos casos tornam-se vítimas da sedução e da vergonha. Observai os rapazes que retornam da cidade, alisados e passados a ferro e corrompidos até a raiz, a cabeça cheia de cinema, de bailes, de deboche e desprezo pelos honrados colonos. Observai as meninotas que voltam da cidade, equilibrando-se sobre saltos absurdamente altos, o vestido curto demais, as unhas vermelhas, os lábios recém-pintados, parecendo voltar de um festim de antropofagia. Para a cidade são colonas demais, para a colônia muito finórias. Todas elas parecem aves caídas do ninho. Povo da minha comunidade, permaneça fiel ao honrado povo da colônia e abandone a cidade para a qual não foste feito.

O padre disse ainda mais. Naquele domingo, reinou na igreja um silêncio sepulcral. Apenas as senhoras de mais idade olhavam discretamente para se certificar se o João e seu doutorzinho se encontravam na igreja. Não estavam. (até aqui o conto do Pe. Rambo)

Como jovem vivenciei essa primeira fase da urbanização demográfica acompanhada da urbanização das mentes e 80 anos mais tarde tenho a graça de apreciar os seus resultados, uns muitos bons outros nem tanto. O Pe. Rambo foi um profundo conhecedor dos hábitos, costumes e valores dos colonos, onde se encontravam suas raízes, onde nasceu, viveu a infância e adolescência e acompanhou com preocupação essa reviravolta pela base desse mundo bucólico, com a abertura para o grande mundo que se perdia no horizonte além dos morros que delimitavam seu mundo comunal. Não falamos apenas de horizontes geográficos mas, principalmente, de horizontes onde a urbanização e a modernização, começavam a abalar toda uma tradição considerada sagrada e intocável, consolidada por séculos, para não falar em milênios.

A entrada triunfal dos meios de comunicação começando pelo telefone a manivela e passando pelo rádio, televisão somada à toda parafernália de comunicação de que dispomos hoje, o mundo rural de até a metade século XX, passou para os museus da história. Para a geração nascida a partir de 1960 toda essa história perde-se ou submerge nas brumas do tempo.

Entrando um pouco em detalhes, embora superficialmente, o impacto da urbanização demográfica e, especialmente, a urbanização das mentes, afetou em cheio a família como instituição, como base da organização religiosa, social, política econômica. Em resumo. Enfraqueceu a sua importância como fundamento das instituições humanas, para chegar ao ponto de se contestar a própria razão de ser da família ou degradá-la à condição de repositora de novas gerações de cidadãos para servir ao leviatã do Estado. Está sendo despojada da condição de base e embrião da educação no primeiro estágio da formação dos cidadãos. O princípios praticados nas escolas de comunidade, com ênfase para as confessionais católicas e protestantes, numa das quais adquiri minha formação elementar, encontra-se no jornalzinho “Mitteilungen”. No n° 4, p. 26 de 1901 pode-se ler o resumo sobre a quem cabem os direitos sobre a educação e formação dos filhos. O autor do artigo resume numa pergunta a questão: “A quem cabe, pela sua própria natureza, a educação da criança?” e responde:

Essa questão deve ficar bem clara antes de delimitar a quem cabe a tarefa de educar e em que nível de responsabilidade. Que os pais são depositários imediatos da educação dos filhos, ou que eles foram chamados por Deus parece tão óbvio que não requer prova. O homem entra livre na existência, mas já ao entrar no mundo vê-se rodeado de necessidades. Quem forneceu alimentos e dispensou cuidados aos filhos de Adão? Tiveram por acaso que clamar e esperar que a primeira comunidade ou o primeiro estado os assumisse? A família é anterior a qualquer comunidade ou qualquer estado. Ambos, comunidade e estado, vieram mais tarde impostos por novas necessidades e das exigências mais complexas, que acompanham a evolução normal de uma sociedade. Ou, o que vem antes, a casa ou o material com que foi construída?”.

Depois dessa reflexão introdutória o autor da matéria discrimina e justifica o direito da Família, a Igreja e do Estado no tocante à educação. Na escala dos direitos sobre a educação o direito primário pertence à família. Os argumentos a favor dessa tese foram assim resumidos.

“A criança ao nascer necessita do amparo dos pais para sobreviver. A condição de pai e mãe vem acompanhada das devidas obrigações. A própria ordem natural estabelece pois, que os pais acompanhem e garantam aos filhos os respectivos cuidados de ordem material e sedimentem neles os valores fundamentais indispensáveis para a formação da personalidade. Se Deus obriga os pais a prover os meios para a sobrevivência dos filhos, conclui-se que eles também gozam do direito primário de educá-los. Se aos pais for tirado o direito e a responsabilidade pelas bases da educação, não podem ser responsabilizados pelo comportamento futuro dos filhos. Esse raciocínio parece dar suporte à realidade antropológica, histórica e sociológica de que à família, nos seus diversos formatos: monogâmica, poligâmica, indissolúvel, consensual, comunitária e outras modalidades, pela sua própria natureza, cabe a tarefa e o direito de educar os filhos. Além da garantia material da alimentação, proteção, abrigo etc., o mais importante resume-se na consolidação dos valores indispensáveis para a formação da personalidade do adolescente, do jovem e do adulto: valores éticos e morais, o correto uso da liberdade, valores, costumes e hábitos indispensáveis para um convívio civilizado na família, na comunidade e ou sociedade, consciência dos direitos e deveres como cidadãos de um estado. Não por nada nas sociedades preconceituosamente chamadas de “primitivas” no nível da organização de hordas, clãs, tribos e outras formas, nômades ou sedentárias, os “mestres escola”, costumavam ser as pessoas de idade. Reunidos no aconchego do fogo das tendas ou acampamentos, no refúgio das cavernas e ou na sombra de uma árvore da floresta narravam para as crianças e adolescentes a história, os valores, hábitos e costumes e, assim, impediam que a tradição sofresse rupturas ou se corrompesse. Como seria gratificante se nos fosse dado assistir uma “aula” desse feitio numa caverna, num acampamento ou simplesmente à luz de uma noite de lua cheia. A memória das tradições relembradas pelos mais velhos, o relacionamento e comportamento entre os membros da família, e esses no convívio social com os demais membros do clã ou tribo, educavam para formar uma sociedade solidária e comprometida com o bem estar e a sobrevivência do grupo. Classificar essa forma de educação característica da fase de “baixa, média ou alta barbárie”, não passa de um insulto ao humano no homem de 15.000 anos passados e, pasme-se, às tribos no interior da floresta amazônica algumas ainda hoje vivendo no neolítico da pedra polida ou de alguma comunidade humana numa ilha isolada e perdida nos confins do Pacífico.

Suponho que essa digressão contribua de alguma forma para ilustrar que a questão da educação exige uma reflexão séria, antes de mais nada, sobre a sua natureza como um dado que faz parte da perenidade que perpassa a história como uma referência diacrônica. O panorama que acabamos de desenhar pede o destaque e aprofundamento de alguns dos traços que marcam de uma forma mais visível as características da fisionomia civilizatória na entrada da terceira década do século

Antes de mais nada é preciso não confundir os dois conceitos: religiosidade e religião, para evitar compreensões equivocadas. A religiosidade refere-se à preocupação de as pessoas encontrarem respostas para explicar os mistérios da natureza e, principalmente, os que dizem respeito ao “donde” vem a humanidade como um todo e as pessoas como indivíduos, o “para que” estamos neste mundo e “para onde” vamos. Os dados etnográficos e etnológicos de que dispomos confirmam que esses questionamentos foram e continuam ocupando o centro das preocupações dos indivíduos e dos povos da história da humanidade de alguma forma conhecida. E se foi a preocupação do homem historicamente conhecido permite projetar essa mesma preocupação acompanhando a humanidade desde que o primeiro da espécie, deu o passo inicial para a caminhada que soma milênios, quem sabe milhões de anos.

Da Enxada à Cátedra [ 71 ]

O Mapa Mundi redesenhado. Depois de terminada a segunda guerra mundial a história da humanidade enveredou, por assim dizer, para uma adaptação às novas realidades, consequências do conflito de dimensões planetárias. O mapa do mundo foi redesenhado pelos acordos dos vencedores Estados Unidos, Inglaterra, França e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Países foram repartidos e tratados como troféus de guerra, como a Alemanha, metade sob o domínio soviético e a outra sob o dos demais vencedores. Berlim foi zoneada em quatro partes, províncias inteiras foram arbitrariamente incorporados em estados fronteiriços. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes do que aconteceu em outros países e continentes. O exemplo da Alemanha vem a ser emblemático para inúmeras outras situações. Neste contexto em que evidentemente as razões geoestratégicas ditaram os acordos, as populações, culturas e etnias derrotadas envolvidas nesse jogo de xadrez, não tiveram voz. Para encurtar. Nesse caldo de interesses e conveniências dos “donos do mundo” ficou aos poucos evidente que aqueles senhores tinham celebrado alianças com a finalidade de por de joelhos o Nacional Socialismo e varrer da Europa a ditadura perversa de Hitler e seus comparsas. Não demorou que interesses geopolíticos, geoeconômicos e geoestratégicos subjacentes fizessem valer seus postulados. Ficou evidente que a União Soviética comandada pela voracidade insaciável em ampliar o mais possível o espaço de sua dominação e influência, abocanharia o maior número possível de países e territórios localizados nas suas fronteiras ou próximos a elas. Ao definir-se a linha “Oder-Neisse” como delimitadora entre o ocidente inglês, americano e francês e o oriente soviético, a Alemanha foi cortada ao meio, Áustria, Iugoslávia, Hungria, Bulgária, Romênia, Polônia, a República Theca e as Repúblicas do Báltico: Letônia, Estônia e Lituânia passaram para o domínio soviético. Nesse nível estagnou a aliança entre essas grandes potências ao derrotarem a Alemanha nazista. No fundo no fundo a visão do mundo soviético e a visão dos países do mundo ocidental não passava de água e óleo que até podem servir para encher um recipiente comum, porém, jamais se misturam. Essa animosidade, melhor, incompatibilidade estrategicamente posta de lado durante a guerra, subliminarmente vinha à tona em determinadas ocasiões. Lembro duas que não deixam dúvidas. Ambas contaram como personagem emblemático o general americano Jorge Paton. Consta que ao alcançar a margem esquerda do Reno na ponte de Remaghen, recebeu ordem superior de não atravessar o rio porque os russos já ocupavam margem direita. Paton teria reagido à ordem com a observação: “já que chegamos até aqui com todo nosso poderio militar em homens, blindados e artilharia, porque estamos perdendo tempo e não avançamos para fazer recuar o verdadeiro inimigo que são as tropas russas?”. O mesmo ânimo oposto ficou evidente num banquete do alto comando dos aliados para comemorar a vitória. Novamente coube a Paton deixar claro o conceito que tinha dos comandantes russos. O marechal Jukov propôs um brinde à vitória. Paton negou-se com a frase “Não brindo com um f. p.” Jukov respondeu“És um f. p. também”. Paton respondeu: “Nesses termos aceito brindar”. Não me lembro em que publicação tive conhecimento desse episódio. Mas, gravei na memória a foto que ilustrava a reportagem Paton e Jukov em pé erguendo a taça do brinde.

Não vou me alongar em lembrar o que aconteceu nas décadas que se seguiram. A criação da ONU, o mundo literalmente partido em dois. O ocidente sob a influência e a tutela dos Estados Unidos, Europa Ocidental e no Oriente Remoto e Pacífico: Japão, Coreia, Filipinas, Indonésia, a revolução comunista de Mao Tse Tung na China continental e a implantação da República da China Nacionalista na ilha de Formosa comandada por Chiang Kai-Shek. Simultaneamente celebraram-se os pactos militares do Atlântico Norte (NATO), em contraposição ao Pacto de Varsóvia sob o comando da União Soviética. Não é minha intenção escrever uma história do final da segunda guerra mundial e suas consequências pelo mundo afora. Historiadores muito mais credenciados já se ocuparam com o tema. O objetivo resume-se aqui no desenho de um panorama de fundo, para entender o turbilhão que se abateu, junto com resto do mundo, também sobre o Brasil. Mais, acima já lembrei que o término da guerra marcou também o final da ditadura de Vargas e do Estado Novo com todas as suas aberrações. A redemocratização consolidada pela eleição pelo voto popular do marechal Eurico Gaspar Dutra e a proclamação da Constituição em 20 de setembro de 1946, ditou o rumo político do País até a intervenção militar em 1964. Minha formação acadêmica incluindo os quatro últimos anos do ensino do ginásio, o bacharelado em Línguas e Literaturas clássicas, o bacharelado em Filosofia, o bacharelado em História Natural e Geologia e, finalmente, a licenciatura em Teologia concluída em 1963, aconteceu nesse período. Paralelamente a partir de 1960 comecei a lecionar Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Geologia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo. Não entro em maiores detalhes pois, já foram contemplados mais acima. Nesse período de menos de duas décadas começaram a desenhar-se no horizonte da história os prenúncios do “temporal”, conceito que serviu de título para o capítulo em pauta.

Enumero alguns dos fatores que considero mais relevantes nessa guinada histórica cujas consequências terminaram em moldar em ritmo sempre mais acelerado a civilização do começo do terceiro milênio. E, pelo visto, seu potencial “revolucionário” não dá sinais de arrefecimento a curto e médio prazo. Lembrando a metáfora inspirada em Nietzche que a história da humanidade vem a ser igual à travessia de um abismo equilibrando-se sobre uma corda, pode-se afirmar que no momento histórico em que vivemos, o balançar da corda assumiu uma intensidade preocupante. As raízes desse fenômeno remontam ao ano de 1922 e foram-se consolidando aqui no Brasil, de forma sutil nos 10 ou quinze anos do após guerra, para irromper como um temporal a partir do começo da década de 1960. De tão sutil foi esse fenômeno que os nascidos há 80 ou mais anos falam de 1950 como “a década dos anos de ouro”. Não nos passava pela cabeça que, na verdade, vivíamos numa calmaria que prenunciava uma tempestade na qual se gestava uma nova era histórica. Ainda é cedo para afirmar se melhor ou pior. Embora o fenômeno fosse de proporções planetárias em linhas gerais, nessas minhas recordações pretendo dar ênfase ao reflexo sobre minha trajetória de 60 anos para cá e sobre o entorno histórico cultural em que atuei com docente em duas universidades, sobre a evolução da minha personalidade, sobre a minha visão do mundo e sobre a minha produção como pesquisador e escritor. Vamos aos fatores que considero de maior impacto nesse autêntico terremoto em que a humanidade se debate.

Da Enxada à Cátedra [ 70 ]

O outro instrumento paralelo e complementar às agremiações de Ação católica mencionados há pouco, foi a educação de nível médio nos muitos colégios e instituições de ensino a cargo de ordens e congregações, masculinas e femininas, espalhadas pelas capitais e cidades maiores do interior do estado. Nesse nível de formação cabe aos jesuítas o mérito maior. Não é aqui o momento oportuno para escrever, mesmo resumidamente, a importância dos jesuítas na implantação de colégios pelo Brasil afora, desde sua presença na então colônia portuguesa, durante o Império e a República. Limitamo-nos a destacar a sua obra educacional no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no período em pauta. Como é do conhecimento geral a primeira instituição de nível médio foi o Colégio Nossa Senhora da Conceição sediado em São Leopoldo sob responsabilidade do Pe. Clemens Faller e Ferdinand Feldhaus em 1869. Já em 1972 as irmãs franciscanas da Penitência e Caridade, vindas da Alemanha, ofereceram para o mundo feminino o Colégio São José também em São Leopoldo. Seguiram-se na década de 1890 o Colégio Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande e em 1905 o Colégio Catarinense em Florianópolis, o Colégio Anchieta em 1910 em Porto Alegre, todos dos jesuítas. O alto nível dessas instituições de ensino médio foi reconhecido pela equiparação ao Colégio D. Pedro II, referência de avaliação para o ensino médio em todo o País. No começo do século XX entram em cena congregações masculinas, como os irmãos Maristas, os Irmãos das Escolas Cristãs ( Lassalistas), as irmãs de Santa Catarina, as irmãs de São José, Divina Providência e outras, tanto masculinas quanto femininas que deram o tom à educação no nível médio no sul do Brasil. Quando se fala hoje em educação no Brasil a importância e o papel que tiveram essas instituições nas décadas finais do século XIX e na primeira metade do século XX, senão ignorada pelo menos não se lhes reconhece a devida importância, quem sabe porque formavam as elites responsáveis pelo bom andamento das instituições públicas e privadas. Aliás falar em “formação de elites” soa hoje como uma aberração politicamente incorreta, pelo clima que hoje domina e alimenta a crise da educação. Numa época em que o nivelamento por baixo do que oferece o ensino em todos os níveis, a começar pelo infantil, passando pelo fundamental e pelo médio, o de nível superior, da pós graduação, dos mestrados e doutorados e os assim chamados pós doutorados, a formação naquelas instituições, se muito merecem um lugar nos museus da história da educação. Sinto-me em condições de falar com conhecimento de causa desse imbróglio pois, vivi, atuei e participei de tudo que aconteceu na educação nos últimos 80 anos.

Depois desse desvio retornemos à formação das elites intelectuais de Porto Alegre junto ao Colégio Anchieta. Acima já lembrei que a modalidade de Ação Católica dos jesuítas vinham a ser as Congregações Marianas nos colégios, inclusive nas paróquias sob sua responsabilidade nas quais costumavam agregar os rapazes e as moças solteiras, as famosas associações das “Filhas de Maria”. Não entro em detalhes desse instrumento pastoral pois, já o desenvolvi e outras publicações sobre os jesuítas no sul do Brasil. Às Congregações Marianas vieram somar-se Apostolado da Oração, os Retiros Espirituais de Sto. Inácio, as associações para crianças os Kinder Jesus Vereine, associações das mães (Müttervereine) e outras mais. O resultado mais importante pode ser resumido na consolidação de uma militância católica de nítido caráter missionário alimentado pela frequência dos sacramentos, pela guarda e defesa da ortodoxia doutrinária e a observância dos preceitos disciplinares ditados pelas autoridades eclesiásticas. Em resumo. Ser católico significava colaborar de alguma forma com a expansão e o sucesso da “Igreja Militante” marcando o seu espaço e sua razão de ser numa civilização laica. Nas manifestações públicas e coletivas como a comemoração de “Corpus Christi”, “Congressos Eucarísticos” e eventos similares contavam obrigatoriamente com a presença dos alunos dos colégios católicos, tanto femininos quanto masculinos, somados aos filiados às organizações católicas das mais diversas categorias. “Os cantos de guerra”, cantados com convicção nas procissões que tomavam conta da Independência desde a altura dos Moinhos de Vento, continuando pela Duque de Caxias para terminar na praça em frente à catedral, ecoavam por todo o centro de Porto Alegre: “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras, cerremos as fileiras, soldados do Senhor!”, ou então cantado em latim, língua oficial da Igreja e constante no currículo de todas as instituições do ensino médio: “Papam protege, hostes reprime, stet Petri Cátedra salutis regula!”. (Protege o Papa, reprime os inimigos, a cátedra de Pedro permaneça como guia da salvação).

Essa efervescência religiosa festejou o seu maior vigor e influência nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950. O Colégio Anchieta sediava as diversas Congregações Marianas: a dos alunos, a dos estudantes universitários, a dos formados no ensino superior e da que congregava comerciantes, militares, prestadores de serviço, funcionários públicos e outros mais. Das congregações destinadas ao aperfeiçoamento religioso dos alunos e demais segmentos da sociedade emergiu um laicato católico, somada à Ação Católica, também desdobrada em níveis de formação, com já apontado mais acima, que permeava a atmosfera religiosa da capital e em grande parte do interior do Estado, como também Santa Catarina, principalmente Florianópolis. O Colégio Anchieta, ao lado da sua tarefa de instituição de excelência na formação no nível do ensino médio, foi o epicentro de uma elite católica combativa que marcou o período há pouco delimitado. Nele plasmou-se uma geração de intelectuais católicos que além de atuarem como fermento na condição de profissionais liberais, como magistrados, como funcionários públicos, como militares, como políticos, influíram fortemente nos rumos da então Universidade do Rio Grande do Sul Federalizada em começos de 1950. A reitoria de orientação positivista passou em 1937, o comando ao Dr. Armando Pereira Câmara figura proeminente da intelectualidade católica. Quando, no começo da década de 1940, foi criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um número expressivo dos catedráticos fundadores pertencia ou tinha pertencido à Congregação Mariana com sede no Anchieta e munidos de uma boa formação filosófica e teológica pelo Pe. Werner von und zur Mühlen. Predominava naquele período entre os jesuítas mais influentes no meio intelectual do sul do Brasil a convicção de que a docência numa universidade pública, em termos de influência na formação humana e cristã, daria melhores resultados do que manter uma universidade própria que exigiria o comprometimento de preciosas reservas de energias absorvidas pela burocracia administrativa. Deduzo que esse deve ter sido um dos motivos de maior peso na não aceitação por parte dos jesuítas da oferta do arcebispo para assumir a Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a PUCRGS, fundada em 1942.

Da Enxada à Cátedra [ 69 ]

Década de 1960 na UFRGS.

Depois de registradas as lembranças da década de 1960 relativas aos meus compromissos acadêmicos, administrativos, somados ao envolvimento de projetos de extensão na Unisinos, não posso deixar de lembrar o que ocorreu de importante, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os fatos dignos de menção em 1960 e 1961, já foram objeto de anotações mais acima. Em linhas gerais de 1962 a 1970 meus compromissos limitaram-se a dar conta das 12 horas de preleções previstas no meu contrato como professor assistente, nos cursos de História, Geografia e Ciências Sociais. Vale, porém, comentar e analisar o autêntico terremoto que mudaria para o futuro o universo acadêmico, sem grandes perspectivas por enquanto de uma reviravolta para valer, com reflexos profundos sobre a academia em si e sobre cosmovisão que continua predominante até hoje. Vários fatores combinados contribuíram cada um à sua maneira com esse fenômeno. Começo por tentar identificá-los e mostrar a porção que lhes coube nesse processo, sem pretensão de classifica-los em ordem de importância.

A Reforma do Ensino

No contexto em que estou escrevendo não cabe uma análise da Reforma do Ensino de 1960 na sua abrangência sobre todos os níveis. Limito-me à mudança da estrutura acadêmica das universidades. Até entrar em vigor a reforma do ensino as poucas universidades existentes no Brasil ostentavam um perfil mais ou menos semelhante. De uma forma ou outra a “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”, correspondia, por assim dizer à “alma”, a “alma mater” das universidades no jargão corrente quando se falava em universidade. A “alma mater”, de fato, significava a própria universidade. À Filosofia, Ciências Humanas, Ciências Naturais, Letras e Artes, numa perspectiva de concepção interdisciplinar, cabia o papel de fundamento pensante” das faculdades, escolas técnicas, centros de pesquisa responsáveis pela formação especializada nas mais diversas áreas: engenharia, medicina, direito, arquitetura, economia, jornalismo, publicidade e propaganda e tantas outras. À “alma mater” cabia, pelo menos teoricamente, a responsabilidade de consolidar os valores culturais fundamentais para sobre eles consolidar uma cosmovisão coerente e fundamentada, da razão de ser de uma universidade. No começo da década de 1960 havia poucas universidades no Brasil, com destaque para a USP em São Paulo, Universidade federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, além de uma dúzia de outas espalhadas pelos principais centros do País. Todas elas apresentavam, com variações, o perfil que descrevi acima. Muitas delas, por falta de docentes e pesquisadores à altura no Brasil, contaram no começo com o reforço de profissionais habilitadas por universidades da França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e outras procedências. O mais familiar para mim foi o modelo da UFRGS, onde conquistei meu bacharelado em História Natural e Geologia entre 1957 e 1959, fazendo parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Todos os meus professores haviam sido formados nessa universidade. Acontece, entretanto, que, quando em 1957 foi criado o Curso de Geologia, na época praticamente uma especialização da História Natural, foi preciso buscar reforços nos Estados Unidos pois, no Brasil os geólogos com formação acadêmica e prática de pesquisa na área, vinham ser uma raridade e a demanda da Petrobras em plena expansão pedia com urgência a formação de geólogos nativos. Mais acima já fiz referência a esse recurso a estrangeiros e o significado para mim por me interessar por esse fascinante campo das ciências Naturais. Pois, a reforma do ensino incluindo a de nível superior terminou por dividir em áreas autônomas a Filosofia e Ciências Humanas, as Ciências Naturais em Biologia, Botânica, Zoologia, geologia e outras especialidades afins, a Física, Química e Matemática e, finalmente as Letras e Artes.

Paralelamente ao desmonte da estrutura acadêmica, isto é, na prática diluindo e dispersando a “alma mater” da universidade por praticamente todas as suas atividades docentes e de pesquisa. A “alma” da universidade deixou de existir, muito menos fazer sentido como incubadora do conhecimento balizado por uma cosmovisão interdisciplinar, integradora e holística, tanto das Ciências Humanas, quanto das Ciências Naturais, Letras e Artes. Salvo melhor juízo começou a partir desse momento a fragmentação da estrutura acadêmica em departamentos e centros de pesquisa. Consolidaram-se em bolhas isoladas em vez de vasos comunicantes intercambiando e complementando conhecimentos e experiências em busca da Verdade. O conceito “alma mater” foi arquivado nos museus da história. O método interdisciplinar perdeu gradativamente espaço para o multidisciplinar e transdisciplinar e as universidades tornaram-se presas fáceis, melhor talvez, campos férteis para proliferarem movimentos intelectuais que foram contaminando a mente e ação dos gerações de docentes e egressos das instituições de ensino superior com reflexos que resultaram na atual civilização errática, fruto do relativismo que minou a própria essência do “humano no homem”, a consciência moral do certo e do errado e, ao mesmo tempo, o correto entendimento da liberdade e seu exercício. O filósofo Alexandro S. Caldera, nosso já conhecido em referências mais acima, caracterizou em poucas palavras essa realidade e nela o papel da universidade: “Vivemos num mundo e nele especificamente a universidade, cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação. A universidade tem que reunir os fatores dispersos, numa unidade que é o ser humano; numa nova síntese, que é o homem, a mulher e o sujeito histórico”. (Caldera, 2004, p. 106)

Mas, não se pode esquecer que o movimento de desmonte da universidade já vinha sendo preparado desde o final do século XIX pelos movimentos anarquistas que culminaram com a greve geral de 1917. O marco decisivo e a adesão ao marxismo-leninismo foi a criação do Partido Comunista Brasileiro em março de 1922, filiado à Internacional Comunista. Nessa condição recebia ordens diretamente de Moscou e não poderia ser tolerado como um partido brasileiro. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes da trajetória do partido comunista nas décadas que se seguiram: as sucessivas extinções e reaberturas até hoje, a Intentona fracassada em 1935, sua atividade no pós guerra, nos episódios da Legalidade, a intervenção militar de 1964, na redemocratização depois dos governos militares até o presente. Em linhas gerais o foco das minhas recordações têm como pano de fundo o começo da década de 1960 e 1970, quando o marxismo começou a infiltrar-se sorrateiramente nas organizações católicas, de modo especial na JUC (Juventude Universitária Católica) e nas demais como a JEC (Juventude estudantil Católica, JAC (Juventude agrária Católica) e a JIC (Juventude independente Católica). Essas organizações e similares como as Congregações Marianas, Círculos Operários e outras, foram instrumentos de importância vital para fortificar e realimentar a assim chamada “Igreja Militante” nos papados de Pio XI e Pio XII, reunidas sob o conceito de “Ação Católica”. Nelas se preparavam as elites católicas para cumprirem o papel de salvaguardas da ortodoxia, disciplina e hierarquia da Igreja no contexto leigo e profissional em que atuavam. A presença e atuação da Ação Católica, de modo especial no nível acadêmico e intelectual muito atuante encontramos nesse período na Itália. Aqui no Brasil as diversas ramificações da Ação Católica acima referidas, encontravam-se sob a autoridade direta da hierarquia eclesiástica. A arquidiocese de Porto Alegre designava um assistente eclesiástico específico para acompanhar o andamento das associações, cuidando para que não se desviassem do caminho da reta doutrina e disciplina católica. Programavam seus encontros regulares na Casa dos Estudantes que também servia de moradia de estudantes vindos do interior do Estado e até fora dele.

As Congregações Marianas, a modalidade preferida pelos jesuítas para a formação religiosa dos leigos, tinha a sua sede no Colégio Anchieta, então localizado na Duque de Caxias, perto da Catedral. Em 1911 o Pe. Estevão Muser fundou a Congregação “Mater Salvatoris” destinada à formação religiosa e humana dos alunos da universidade. Na ocasião só existiam as faculdades que mais tarde formariam a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no começo da década de 1950 elevada à categoria de Universidade Federal, a atual UFRGS. Desde a sua fundação a “Mater Salvatoris” foi conquistando um número crescente de filiados matriculados nas diversas faculdades. Sem maiores percalços superou a primeira guerra mundial e sua fama de formadora de elites católicas de intelectuais e profissionais liberais de nível superior, tornou-se referência para o Rio Grande do Sul e além de suas fronteiras. Em começos de 1920 o Pe. Muser passou o comando da Congregação para o Pe. Werner von und zur Mühlen. Como sugere o próprio nome esse jesuíta dono de uma aprimorada formação filosófica e teológica, nascera de uma família da alta nobreza de Münster na Vestfália. Abandonara as benesses as honrarias e o poder do seu castelo natal para entrar na Companhia de Jesus e terminou destinado para a Missão que a Ordem mantinha no sul do Brasil. Nas circunstâncias de 100 anos passados o Pe. Werner foi o personagem mais que talhado para assumir a “Mater Salvatoris”, até o seu falecimento em agosto de 1939, isto é, um intelectual de primeira linha educado numa família da nobreza alemã e, acima de tudo, um religioso jesuíta da velha guarda, ouso dizer, da autêntica cepa de Santo Inácio de Loiola, hoje uma raridade senão perdida no crepúsculo do tempo. Naquelas quase duas décadas na direção da Mater Salvatoris esse homem despojado da sua herança secular, que dormia sobre um estrado de tábuas, que levava uma vida tão austera que marcou como ferro em brasa as personalidades dos seus pupilos. Com o intuito de mostrar o que o Pe. Werner significou para os jovens formados e os ainda em fase de formação, reproduzo o introito do discurso pronunciado pelo médico Dr. Antônio Botini, um dos pupilos do Pe. Werner por ocasião do primeiro aniversário da sua morte, dando ênfase, mais nas entrelinhas do que nas próprias linhas, à personalidade que plasmou em Porto Alegre uma elite intelectual que, por décadas fez dessa cidade uma referência.

Chovia. O céu era plúmbeo. Um vento agressivo e álgido soprava inclemente, com lamentos doridos de suspiros angustiados. Dir-se-ia que a natureza mergulhada em tristeza, chorando e soluçando. Era assim aquele domingo, vinte de agosto de 1939. Era a hora do crepúsculo, a hora do recolhimento, a hora em que o homem se volta para dentro de si, só com sua alma para meditar e refletir.

Foi justamente a essa hora que a alma cândida e pura do nosso grande benfeitor e Santo Padre Werner voou aos céus, aos páramos da luz, ao gozo da eterna visão beatífica. Eu sinto-me pequeno, sinto-me obumbrado, sinto-me como que aniquilado diante da grandeza sublime deste varão insigne e notável pela austeridade de sua vida, plena de santidade que o aureolava, pela sabedoria profunda que irradiava. Embora dentro deste paradoxo, eu vos devo falar hoje do Barão Werner von um zur Mühlen, natural de Münster, capital da Wesphalia. Homem de sangue azul, nascido entre tufos de rendas, sedas e flores, na maior opulência, entre grandezas da terra, num magnífico castelo de majestosas linhas arquitetônicas. Nada faltou ali, tudo ele teve a hora e a tempo: conforto, carinhos, flores, desvelos, sorrisos e criadagem. Numa radiosa esperança, a seus pés todas as glórias palpáveis do mundo. Diante de seus olhos grandes, azuis, profundamente serenos, agudamente penetrantes, seus preceptores fizeram desfilar os feitos heroicos da cavalaria alemã. Ao lado das lendas dos Nibelungen que inspiraram o gênio de Wagner, não escaparam por certo à argúcia, a suntuosidade de suas artes e a profundidade de sua ciência. Enfim, o gênio germânico sob todas as modalidades e aspectos. E como remate de tudo isso, um brilhante, um esplendoroso futuro cheio de deslumbramentos, de honrarias diante dos brasões e dos fastos de seus avoengos. Era isso tudo para ele, e, era também num admirável paradoxo, nada!

Escolhi esse depoimento do Dr. Botini como ponto de partida para algumas considerações sobre o Pe. Werner, porque me parece que nele se encontra enunciado e principalmente dito nas entrelinhas, o que esse jesuíta significou nos anos 20 e 30 do século passado, para a formação das elites intelectuais católicas do nosso Estado.

Para de alguma maneira compreender o alcance da atuação do Pe.Werner é preciso, antes de mais nada, ter uma noção das circunstâncias históricas em que desenvolveu a sua atividade. A proclamação da República implantara no País o Estado Laico, consagrando definitivamente a separação do Estado da Igreja. Declarou todas e quaisquer religiões com direitos e deveres iguais, enquanto se empenhava em mantê-las o mais longe possível dos negócios públicos. O Trono e o Altar, a Igreja e o Estado haviam-se divorciado e cada qual fechara-se sobre seus próprios negócios e, não raro, num clima de franca oposição. Esse clima alimentado pelo iluminismo, pelo racionalismo, pelo cientificismo, pelo positivismo, pelo materialismo, pelos socialismo, pelo comunismo e por tantos outros ismos, já orientara antes a institucionalização dos regimes republicanos nas três Américas e liquidara os regimes de cristandade e de padroado na Europa.

Os movimentos modernizadores que comandavam o processo de laicização dos Estados, a separação do Estado e da Igreja, o profano e o religioso e, em não poucos casos, a guerra declarada entre as duas instituições, levou a Igreja a responder com o seu projeto de renovação interna: o Projeto da Restauração Católica. Para marcar a sua posição clara e inequívoca com o retorno à ortodoxia doutrinária e disciplinar do Concílio de Trento, ao mesmo tempo em que definia como autoridade máxima o Papa em Roma e consolidava uma convivência pacífica com os Estados Laicos, ou a rejeição pura e simples de qualquer tipo de composição ou, como foi no Brasil, de convivência civilizada e útil. Na implementação da Restauração Católica a Igreja mobilizou todas as suas reservas, tanto humanas como institucionais, e pôs a seu serviço todos os instrumentos e estratégias de que dispunha.

Aqui no Brasil a restauração Católica assumiu uma feição menos belicosa do que, por ex., na França, Alemanha, México e outros países. As orientações que foram traçadas nesse sentido para a Igreja do Brasil, tiveram como inspirador o Cardeal D. Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. Pautava-se ele pelo princípio da convivência pacífica e civilizada, produtiva e solidária com as autoridades do Estado Laico. Todos os recursos humanos e institucionais foram mobilizados: o ensino religioso, as agremiações de caráter religioso em todos os níveis sociais, as organizações classistas como os Círculos Operários e, sobretudo, a Ação católica inspirada no modelo de L. Cardjin fundador da Juventude Operária Católica na Bélgica. Aqui no Brasil a Ação Católica, sempre diretamente subordinada às autoridades eclesiásticas, foi organizada em setores tendo como base o estamento social dos associados. Distinguiram-se, como já lembrado mais acima, a JOC – Juventude Operária Católica; a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JAC – Juventude agrária Católica; a JIC – Juventude independente Católica.