Da Enxada à Cátedra [ 69 ]

Década de 1960 na UFRGS.

Depois de registradas as lembranças da década de 1960 relativas aos meus compromissos acadêmicos, administrativos, somados ao envolvimento de projetos de extensão na Unisinos, não posso deixar de lembrar o que ocorreu de importante, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os fatos dignos de menção em 1960 e 1961, já foram objeto de anotações mais acima. Em linhas gerais de 1962 a 1970 meus compromissos limitaram-se a dar conta das 12 horas de preleções previstas no meu contrato como professor assistente, nos cursos de História, Geografia e Ciências Sociais. Vale, porém, comentar e analisar o autêntico terremoto que mudaria para o futuro o universo acadêmico, sem grandes perspectivas por enquanto de uma reviravolta para valer, com reflexos profundos sobre a academia em si e sobre cosmovisão que continua predominante até hoje. Vários fatores combinados contribuíram cada um à sua maneira com esse fenômeno. Começo por tentar identificá-los e mostrar a porção que lhes coube nesse processo, sem pretensão de classifica-los em ordem de importância.

A Reforma do Ensino

No contexto em que estou escrevendo não cabe uma análise da Reforma do Ensino de 1960 na sua abrangência sobre todos os níveis. Limito-me à mudança da estrutura acadêmica das universidades. Até entrar em vigor a reforma do ensino as poucas universidades existentes no Brasil ostentavam um perfil mais ou menos semelhante. De uma forma ou outra a “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”, correspondia, por assim dizer à “alma”, a “alma mater” das universidades no jargão corrente quando se falava em universidade. A “alma mater”, de fato, significava a própria universidade. À Filosofia, Ciências Humanas, Ciências Naturais, Letras e Artes, numa perspectiva de concepção interdisciplinar, cabia o papel de fundamento pensante” das faculdades, escolas técnicas, centros de pesquisa responsáveis pela formação especializada nas mais diversas áreas: engenharia, medicina, direito, arquitetura, economia, jornalismo, publicidade e propaganda e tantas outras. À “alma mater” cabia, pelo menos teoricamente, a responsabilidade de consolidar os valores culturais fundamentais para sobre eles consolidar uma cosmovisão coerente e fundamentada, da razão de ser de uma universidade. No começo da década de 1960 havia poucas universidades no Brasil, com destaque para a USP em São Paulo, Universidade federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, além de uma dúzia de outas espalhadas pelos principais centros do País. Todas elas apresentavam, com variações, o perfil que descrevi acima. Muitas delas, por falta de docentes e pesquisadores à altura no Brasil, contaram no começo com o reforço de profissionais habilitadas por universidades da França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e outras procedências. O mais familiar para mim foi o modelo da UFRGS, onde conquistei meu bacharelado em História Natural e Geologia entre 1957 e 1959, fazendo parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Todos os meus professores haviam sido formados nessa universidade. Acontece, entretanto, que, quando em 1957 foi criado o Curso de Geologia, na época praticamente uma especialização da História Natural, foi preciso buscar reforços nos Estados Unidos pois, no Brasil os geólogos com formação acadêmica e prática de pesquisa na área, vinham ser uma raridade e a demanda da Petrobras em plena expansão pedia com urgência a formação de geólogos nativos. Mais acima já fiz referência a esse recurso a estrangeiros e o significado para mim por me interessar por esse fascinante campo das ciências Naturais. Pois, a reforma do ensino incluindo a de nível superior terminou por dividir em áreas autônomas a Filosofia e Ciências Humanas, as Ciências Naturais em Biologia, Botânica, Zoologia, geologia e outras especialidades afins, a Física, Química e Matemática e, finalmente as Letras e Artes.

Paralelamente ao desmonte da estrutura acadêmica, isto é, na prática diluindo e dispersando a “alma mater” da universidade por praticamente todas as suas atividades docentes e de pesquisa. A “alma” da universidade deixou de existir, muito menos fazer sentido como incubadora do conhecimento balizado por uma cosmovisão interdisciplinar, integradora e holística, tanto das Ciências Humanas, quanto das Ciências Naturais, Letras e Artes. Salvo melhor juízo começou a partir desse momento a fragmentação da estrutura acadêmica em departamentos e centros de pesquisa. Consolidaram-se em bolhas isoladas em vez de vasos comunicantes intercambiando e complementando conhecimentos e experiências em busca da Verdade. O conceito “alma mater” foi arquivado nos museus da história. O método interdisciplinar perdeu gradativamente espaço para o multidisciplinar e transdisciplinar e as universidades tornaram-se presas fáceis, melhor talvez, campos férteis para proliferarem movimentos intelectuais que foram contaminando a mente e ação dos gerações de docentes e egressos das instituições de ensino superior com reflexos que resultaram na atual civilização errática, fruto do relativismo que minou a própria essência do “humano no homem”, a consciência moral do certo e do errado e, ao mesmo tempo, o correto entendimento da liberdade e seu exercício. O filósofo Alexandro S. Caldera, nosso já conhecido em referências mais acima, caracterizou em poucas palavras essa realidade e nela o papel da universidade: “Vivemos num mundo e nele especificamente a universidade, cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação. A universidade tem que reunir os fatores dispersos, numa unidade que é o ser humano; numa nova síntese, que é o homem, a mulher e o sujeito histórico”. (Caldera, 2004, p. 106)

Mas, não se pode esquecer que o movimento de desmonte da universidade já vinha sendo preparado desde o final do século XIX pelos movimentos anarquistas que culminaram com a greve geral de 1917. O marco decisivo e a adesão ao marxismo-leninismo foi a criação do Partido Comunista Brasileiro em março de 1922, filiado à Internacional Comunista. Nessa condição recebia ordens diretamente de Moscou e não poderia ser tolerado como um partido brasileiro. Não é aqui o lugar para entrar em detalhes da trajetória do partido comunista nas décadas que se seguiram: as sucessivas extinções e reaberturas até hoje, a Intentona fracassada em 1935, sua atividade no pós guerra, nos episódios da Legalidade, a intervenção militar de 1964, na redemocratização depois dos governos militares até o presente. Em linhas gerais o foco das minhas recordações têm como pano de fundo o começo da década de 1960 e 1970, quando o marxismo começou a infiltrar-se sorrateiramente nas organizações católicas, de modo especial na JUC (Juventude Universitária Católica) e nas demais como a JEC (Juventude estudantil Católica, JAC (Juventude agrária Católica) e a JIC (Juventude independente Católica). Essas organizações e similares como as Congregações Marianas, Círculos Operários e outras, foram instrumentos de importância vital para fortificar e realimentar a assim chamada “Igreja Militante” nos papados de Pio XI e Pio XII, reunidas sob o conceito de “Ação Católica”. Nelas se preparavam as elites católicas para cumprirem o papel de salvaguardas da ortodoxia, disciplina e hierarquia da Igreja no contexto leigo e profissional em que atuavam. A presença e atuação da Ação Católica, de modo especial no nível acadêmico e intelectual muito atuante encontramos nesse período na Itália. Aqui no Brasil as diversas ramificações da Ação Católica acima referidas, encontravam-se sob a autoridade direta da hierarquia eclesiástica. A arquidiocese de Porto Alegre designava um assistente eclesiástico específico para acompanhar o andamento das associações, cuidando para que não se desviassem do caminho da reta doutrina e disciplina católica. Programavam seus encontros regulares na Casa dos Estudantes que também servia de moradia de estudantes vindos do interior do Estado e até fora dele.

As Congregações Marianas, a modalidade preferida pelos jesuítas para a formação religiosa dos leigos, tinha a sua sede no Colégio Anchieta, então localizado na Duque de Caxias, perto da Catedral. Em 1911 o Pe. Estevão Muser fundou a Congregação “Mater Salvatoris” destinada à formação religiosa e humana dos alunos da universidade. Na ocasião só existiam as faculdades que mais tarde formariam a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no começo da década de 1950 elevada à categoria de Universidade Federal, a atual UFRGS. Desde a sua fundação a “Mater Salvatoris” foi conquistando um número crescente de filiados matriculados nas diversas faculdades. Sem maiores percalços superou a primeira guerra mundial e sua fama de formadora de elites católicas de intelectuais e profissionais liberais de nível superior, tornou-se referência para o Rio Grande do Sul e além de suas fronteiras. Em começos de 1920 o Pe. Muser passou o comando da Congregação para o Pe. Werner von und zur Mühlen. Como sugere o próprio nome esse jesuíta dono de uma aprimorada formação filosófica e teológica, nascera de uma família da alta nobreza de Münster na Vestfália. Abandonara as benesses as honrarias e o poder do seu castelo natal para entrar na Companhia de Jesus e terminou destinado para a Missão que a Ordem mantinha no sul do Brasil. Nas circunstâncias de 100 anos passados o Pe. Werner foi o personagem mais que talhado para assumir a “Mater Salvatoris”, até o seu falecimento em agosto de 1939, isto é, um intelectual de primeira linha educado numa família da nobreza alemã e, acima de tudo, um religioso jesuíta da velha guarda, ouso dizer, da autêntica cepa de Santo Inácio de Loiola, hoje uma raridade senão perdida no crepúsculo do tempo. Naquelas quase duas décadas na direção da Mater Salvatoris esse homem despojado da sua herança secular, que dormia sobre um estrado de tábuas, que levava uma vida tão austera que marcou como ferro em brasa as personalidades dos seus pupilos. Com o intuito de mostrar o que o Pe. Werner significou para os jovens formados e os ainda em fase de formação, reproduzo o introito do discurso pronunciado pelo médico Dr. Antônio Botini, um dos pupilos do Pe. Werner por ocasião do primeiro aniversário da sua morte, dando ênfase, mais nas entrelinhas do que nas próprias linhas, à personalidade que plasmou em Porto Alegre uma elite intelectual que, por décadas fez dessa cidade uma referência.

Chovia. O céu era plúmbeo. Um vento agressivo e álgido soprava inclemente, com lamentos doridos de suspiros angustiados. Dir-se-ia que a natureza mergulhada em tristeza, chorando e soluçando. Era assim aquele domingo, vinte de agosto de 1939. Era a hora do crepúsculo, a hora do recolhimento, a hora em que o homem se volta para dentro de si, só com sua alma para meditar e refletir.

Foi justamente a essa hora que a alma cândida e pura do nosso grande benfeitor e Santo Padre Werner voou aos céus, aos páramos da luz, ao gozo da eterna visão beatífica. Eu sinto-me pequeno, sinto-me obumbrado, sinto-me como que aniquilado diante da grandeza sublime deste varão insigne e notável pela austeridade de sua vida, plena de santidade que o aureolava, pela sabedoria profunda que irradiava. Embora dentro deste paradoxo, eu vos devo falar hoje do Barão Werner von um zur Mühlen, natural de Münster, capital da Wesphalia. Homem de sangue azul, nascido entre tufos de rendas, sedas e flores, na maior opulência, entre grandezas da terra, num magnífico castelo de majestosas linhas arquitetônicas. Nada faltou ali, tudo ele teve a hora e a tempo: conforto, carinhos, flores, desvelos, sorrisos e criadagem. Numa radiosa esperança, a seus pés todas as glórias palpáveis do mundo. Diante de seus olhos grandes, azuis, profundamente serenos, agudamente penetrantes, seus preceptores fizeram desfilar os feitos heroicos da cavalaria alemã. Ao lado das lendas dos Nibelungen que inspiraram o gênio de Wagner, não escaparam por certo à argúcia, a suntuosidade de suas artes e a profundidade de sua ciência. Enfim, o gênio germânico sob todas as modalidades e aspectos. E como remate de tudo isso, um brilhante, um esplendoroso futuro cheio de deslumbramentos, de honrarias diante dos brasões e dos fastos de seus avoengos. Era isso tudo para ele, e, era também num admirável paradoxo, nada!

Escolhi esse depoimento do Dr. Botini como ponto de partida para algumas considerações sobre o Pe. Werner, porque me parece que nele se encontra enunciado e principalmente dito nas entrelinhas, o que esse jesuíta significou nos anos 20 e 30 do século passado, para a formação das elites intelectuais católicas do nosso Estado.

Para de alguma maneira compreender o alcance da atuação do Pe.Werner é preciso, antes de mais nada, ter uma noção das circunstâncias históricas em que desenvolveu a sua atividade. A proclamação da República implantara no País o Estado Laico, consagrando definitivamente a separação do Estado da Igreja. Declarou todas e quaisquer religiões com direitos e deveres iguais, enquanto se empenhava em mantê-las o mais longe possível dos negócios públicos. O Trono e o Altar, a Igreja e o Estado haviam-se divorciado e cada qual fechara-se sobre seus próprios negócios e, não raro, num clima de franca oposição. Esse clima alimentado pelo iluminismo, pelo racionalismo, pelo cientificismo, pelo positivismo, pelo materialismo, pelos socialismo, pelo comunismo e por tantos outros ismos, já orientara antes a institucionalização dos regimes republicanos nas três Américas e liquidara os regimes de cristandade e de padroado na Europa.

Os movimentos modernizadores que comandavam o processo de laicização dos Estados, a separação do Estado e da Igreja, o profano e o religioso e, em não poucos casos, a guerra declarada entre as duas instituições, levou a Igreja a responder com o seu projeto de renovação interna: o Projeto da Restauração Católica. Para marcar a sua posição clara e inequívoca com o retorno à ortodoxia doutrinária e disciplinar do Concílio de Trento, ao mesmo tempo em que definia como autoridade máxima o Papa em Roma e consolidava uma convivência pacífica com os Estados Laicos, ou a rejeição pura e simples de qualquer tipo de composição ou, como foi no Brasil, de convivência civilizada e útil. Na implementação da Restauração Católica a Igreja mobilizou todas as suas reservas, tanto humanas como institucionais, e pôs a seu serviço todos os instrumentos e estratégias de que dispunha.

Aqui no Brasil a restauração Católica assumiu uma feição menos belicosa do que, por ex., na França, Alemanha, México e outros países. As orientações que foram traçadas nesse sentido para a Igreja do Brasil, tiveram como inspirador o Cardeal D. Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. Pautava-se ele pelo princípio da convivência pacífica e civilizada, produtiva e solidária com as autoridades do Estado Laico. Todos os recursos humanos e institucionais foram mobilizados: o ensino religioso, as agremiações de caráter religioso em todos os níveis sociais, as organizações classistas como os Círculos Operários e, sobretudo, a Ação católica inspirada no modelo de L. Cardjin fundador da Juventude Operária Católica na Bélgica. Aqui no Brasil a Ação Católica, sempre diretamente subordinada às autoridades eclesiásticas, foi organizada em setores tendo como base o estamento social dos associados. Distinguiram-se, como já lembrado mais acima, a JOC – Juventude Operária Católica; a JUC – Juventude Universitária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica; a JAC – Juventude agrária Católica; a JIC – Juventude independente Católica.

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