Da Enxada à Cátedra [ 70 ]

O outro instrumento paralelo e complementar às agremiações de Ação católica mencionados há pouco, foi a educação de nível médio nos muitos colégios e instituições de ensino a cargo de ordens e congregações, masculinas e femininas, espalhadas pelas capitais e cidades maiores do interior do estado. Nesse nível de formação cabe aos jesuítas o mérito maior. Não é aqui o momento oportuno para escrever, mesmo resumidamente, a importância dos jesuítas na implantação de colégios pelo Brasil afora, desde sua presença na então colônia portuguesa, durante o Império e a República. Limitamo-nos a destacar a sua obra educacional no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no período em pauta. Como é do conhecimento geral a primeira instituição de nível médio foi o Colégio Nossa Senhora da Conceição sediado em São Leopoldo sob responsabilidade do Pe. Clemens Faller e Ferdinand Feldhaus em 1869. Já em 1972 as irmãs franciscanas da Penitência e Caridade, vindas da Alemanha, ofereceram para o mundo feminino o Colégio São José também em São Leopoldo. Seguiram-se na década de 1890 o Colégio Gonzaga em Pelotas, o Stella Maris em Rio Grande e em 1905 o Colégio Catarinense em Florianópolis, o Colégio Anchieta em 1910 em Porto Alegre, todos dos jesuítas. O alto nível dessas instituições de ensino médio foi reconhecido pela equiparação ao Colégio D. Pedro II, referência de avaliação para o ensino médio em todo o País. No começo do século XX entram em cena congregações masculinas, como os irmãos Maristas, os Irmãos das Escolas Cristãs ( Lassalistas), as irmãs de Santa Catarina, as irmãs de São José, Divina Providência e outras, tanto masculinas quanto femininas que deram o tom à educação no nível médio no sul do Brasil. Quando se fala hoje em educação no Brasil a importância e o papel que tiveram essas instituições nas décadas finais do século XIX e na primeira metade do século XX, senão ignorada pelo menos não se lhes reconhece a devida importância, quem sabe porque formavam as elites responsáveis pelo bom andamento das instituições públicas e privadas. Aliás falar em “formação de elites” soa hoje como uma aberração politicamente incorreta, pelo clima que hoje domina e alimenta a crise da educação. Numa época em que o nivelamento por baixo do que oferece o ensino em todos os níveis, a começar pelo infantil, passando pelo fundamental e pelo médio, o de nível superior, da pós graduação, dos mestrados e doutorados e os assim chamados pós doutorados, a formação naquelas instituições, se muito merecem um lugar nos museus da história da educação. Sinto-me em condições de falar com conhecimento de causa desse imbróglio pois, vivi, atuei e participei de tudo que aconteceu na educação nos últimos 80 anos.

Depois desse desvio retornemos à formação das elites intelectuais de Porto Alegre junto ao Colégio Anchieta. Acima já lembrei que a modalidade de Ação Católica dos jesuítas vinham a ser as Congregações Marianas nos colégios, inclusive nas paróquias sob sua responsabilidade nas quais costumavam agregar os rapazes e as moças solteiras, as famosas associações das “Filhas de Maria”. Não entro em detalhes desse instrumento pastoral pois, já o desenvolvi e outras publicações sobre os jesuítas no sul do Brasil. Às Congregações Marianas vieram somar-se Apostolado da Oração, os Retiros Espirituais de Sto. Inácio, as associações para crianças os Kinder Jesus Vereine, associações das mães (Müttervereine) e outras mais. O resultado mais importante pode ser resumido na consolidação de uma militância católica de nítido caráter missionário alimentado pela frequência dos sacramentos, pela guarda e defesa da ortodoxia doutrinária e a observância dos preceitos disciplinares ditados pelas autoridades eclesiásticas. Em resumo. Ser católico significava colaborar de alguma forma com a expansão e o sucesso da “Igreja Militante” marcando o seu espaço e sua razão de ser numa civilização laica. Nas manifestações públicas e coletivas como a comemoração de “Corpus Christi”, “Congressos Eucarísticos” e eventos similares contavam obrigatoriamente com a presença dos alunos dos colégios católicos, tanto femininos quanto masculinos, somados aos filiados às organizações católicas das mais diversas categorias. “Os cantos de guerra”, cantados com convicção nas procissões que tomavam conta da Independência desde a altura dos Moinhos de Vento, continuando pela Duque de Caxias para terminar na praça em frente à catedral, ecoavam por todo o centro de Porto Alegre: “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras, cerremos as fileiras, soldados do Senhor!”, ou então cantado em latim, língua oficial da Igreja e constante no currículo de todas as instituições do ensino médio: “Papam protege, hostes reprime, stet Petri Cátedra salutis regula!”. (Protege o Papa, reprime os inimigos, a cátedra de Pedro permaneça como guia da salvação).

Essa efervescência religiosa festejou o seu maior vigor e influência nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950. O Colégio Anchieta sediava as diversas Congregações Marianas: a dos alunos, a dos estudantes universitários, a dos formados no ensino superior e da que congregava comerciantes, militares, prestadores de serviço, funcionários públicos e outros mais. Das congregações destinadas ao aperfeiçoamento religioso dos alunos e demais segmentos da sociedade emergiu um laicato católico, somada à Ação Católica, também desdobrada em níveis de formação, com já apontado mais acima, que permeava a atmosfera religiosa da capital e em grande parte do interior do Estado, como também Santa Catarina, principalmente Florianópolis. O Colégio Anchieta, ao lado da sua tarefa de instituição de excelência na formação no nível do ensino médio, foi o epicentro de uma elite católica combativa que marcou o período há pouco delimitado. Nele plasmou-se uma geração de intelectuais católicos que além de atuarem como fermento na condição de profissionais liberais, como magistrados, como funcionários públicos, como militares, como políticos, influíram fortemente nos rumos da então Universidade do Rio Grande do Sul Federalizada em começos de 1950. A reitoria de orientação positivista passou em 1937, o comando ao Dr. Armando Pereira Câmara figura proeminente da intelectualidade católica. Quando, no começo da década de 1940, foi criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um número expressivo dos catedráticos fundadores pertencia ou tinha pertencido à Congregação Mariana com sede no Anchieta e munidos de uma boa formação filosófica e teológica pelo Pe. Werner von und zur Mühlen. Predominava naquele período entre os jesuítas mais influentes no meio intelectual do sul do Brasil a convicção de que a docência numa universidade pública, em termos de influência na formação humana e cristã, daria melhores resultados do que manter uma universidade própria que exigiria o comprometimento de preciosas reservas de energias absorvidas pela burocracia administrativa. Deduzo que esse deve ter sido um dos motivos de maior peso na não aceitação por parte dos jesuítas da oferta do arcebispo para assumir a Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a PUCRGS, fundada em 1942.

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