A Urbanização. No começo da década de 1950 a população brasileira rural predominava absolutamente sobre a urbana. Vivíamos num país rural com todas as suas características culturais, religiosas, hábitos familiares, hábitos sociais, valores morais, relacionamento solidário com os membros das comunidades, como referência do comportamento individual e coletivo. Em menos de 3 décadas aconteceu a inversão no nível demográfico. O País passou rapidamente de rural a urbano numa velocidade acelerada. Para esse fenômeno não contribuiu apenas a transferência física das pessoas, geralmente mais jovens para espaços urbanos e o abandono e ou modernização da agricultura familiar. Percebem-se também os primeiros sinais da entrada em cena do agronegócio a começar pelo Rio Grande do Sul com o cultivo do trigo e soja nos campos da Serra, Missões Alto Uruguai para depois avançar para o norte e centro oeste do País, sobre os campos naturais e cerrados, com a explosão da cultura mecanizada do trigo, soja, milho, sorgo, canola, batata inglesa, amendoim, girassol, algodão e por aí vai.
Um segundo fator que acelerou a transformação do Brasil dum país rural em um país urbano foi a popularização dos meios de comunicação em massa. Em outro momento já mencionei que dei o meu primeiro telefona quando tinha 20 anos, isto é, em 1950, num desses telefones de manivela hoje artigos de museu. Normalmente os distritos dos municípios, hoje muitos deles evoluídos para municípios, dispunham de um único telefone instalado em alguma casa de comércio, cartório ou residência. Os telefonemas ou fonogramas chegavam ao destinatário levados a pé ou a cavalo pelo responsável pela central. Quem quisesse telefonar para alguma pessoa ou cliente obrigava- se a procurar o telefone mais próximo disponível. Se estou bem lembrado já mencionei mais acima que meu irmão comprou em 1940 um Rádio Galena com dois fones de ouvido, o único no hoje município de Tupandi. Captava apenas as transmissões em ondas longas, como a rádio Farroupilha, Difusora e Gaúcha. Como a segunda guerra mundial estava em pleno andamento, esse meu irmão escutava os noticiários e ao escurecer os vizinhos vinham para tomar um chimarrão debaixo do enorme plátano em frente da casa, para se informarem e atualizarem sobre o andamento do conflito e outras notícias que lhes interessassem. Esse rudimentar rádio galena alargava a visão daqueles colonos exaustos pelo quotidiano da lavoura para além de suas plantações e do topo dos morros que delimitavam as fronteiras do seu pequeno e limitado mundo comunal. Notícias sobre as frentes de combate nas planícies da União Soviética começaram a povoar a imaginação dos colonos, como também sobre as batalhas na Normandia, os vinhedos da Borgonha, os vinhedos e castelos do Reno e Mosela, dos Alpes da Suíça, Áustria, Baviera e norte da Itália etc. Passada a guerra rádios de válvulas começaram a invadir as casas do interior colonial. Nas horas vagas dos intervalos do trabalho no meio dia e, principalmente, ao anoitecer e noite adentro as costumeiras conversas sobre assuntos do quotidiano, deram lugar para o ouvir os noticiários transmitidos pelo rádio, programas humorísticos, novelas, música etc. Começara sem retorno e em ritmo acelerado, paralelamente à urbanização demográfica, a “urbanização das mentes”. A população do interior colonial entrou em contato com os costumes, as modas, os valores, a movimentação, as novidades oferecidas pelo grande comércio, a própria religiosidade entrou nessa dinâmica. O impacto sobre o estreito mundo e mente comunal foi de curiosidade, de susto, de espanto, de temor e até de rejeição na primeira fase do turbilhão causado pela popularização do rádio e o contato físico com o meio urbano. Em seus contos e cartas em dialeto endereçados aos colonos, em não poucas oportunidades o Pe Rambo descreveu a dinâmica dessa “abertura” para o grande mundo e a reação das comunidades no interior colonial. Permito- me reproduzir um excerto desses contos que tem como personagem o Joãozinho e o pai dele, o João, ambos à margem do padrão habitual dos demais colonos.
“Aconteceu assim. O Joãozinho completara quase quatro anos de frequência da escola e o padre começou com as instruções para preparar as crianças para a comunhão solene. O Joãozinho, no entanto, nunca estudava as lições do catecismo. Na igreja passava o tempo conversando, olhando para trás e, quando perguntado, dava respostas bobas e malcriadas. Quando as outras crianças rezavam ajoelhadas na mesa da comunhão, Joãozinho limpava a boca suja na toalha que a cobria.
O padre perdeu a paciência e mandou chamar o velho João. Como ele não apareceu resolveu descer o morro para conversar com ele. “Por meu filho eu garanto e que nenhum padre ou professor se meta. Se for impedido de participar da comunhão solene, mando-o para um colégio da cidade. Aí vocês vão ver como meu filho se tornará uma pessoa de valor”.
Não quero imaginar o marginal que resultará do seu filho, sentenciou o padre e voltou para casa. No dia seguinte, a picada já fora informada de que o velho João mandara o Joãozinho para a cidade. Por um longo tempo não se ouviu nada dele. Na época do Natal, porém, passou duas semanas em casa. Caramba, que menino elegante. Os sapatos reluziam de tanta graxa, as calças passadas e alisadas, o casaco e chapéu novos em folha. Quando colocava o chapéu na cabeça, aparecia o cabelo todo lambuzado de “glostora” e impecavelmente penteado. Sobre o nariz portava óculos azuis enormes, a gravata pintalgada parecia-se com penas do papa ovo. O Joãozinho parecia um doutor. Recusava o nome de Joãozinho. Exigia que o chamassem de João. Não queria mais falar alemão, só português. Nos domingos quando ia para a igreja, para se exibir, criticava a missa rezada em alemão assim como o sermão do padre em alemão. Na cidade, dizia, as coisas eram diferentes. Ninguém falava alemão e, se arriscasse fazê-lo, parava na cadeia.
E as outras maravilhas que o Joãozinho contava da cidade! Dizia que lá se trabalhava apenas oito horas por dia e nos sábados recebia-se, sem falta, o salário. Ninguém trabalhava na roça imunda. A maioria andava de automóvel e, à noite, havia cinema em toda a parte, custando apenas alguns centavos e, além de tudo, era a coisa mais divertida de se imaginar. Havia bailes todos os dias e mais ou menos cada mês uma grande festa, com música e foguetes e tudo de graça.
Só não contou nada da igreja. Perguntado a respeito, respondia apenas que na cidade só se pregava em português e havia tantos padres que era impossível conhece-los todos. Enquanto o Joãozinho falava, os outros paravam em sua volta, olhavam sua gravata e pensavam: quem nos dera viver também na cidade. O Joãozinho enfiava a mão no bolso, fazia tilintar as moedas, tirava os óculos azuis, os limpava com o lenço e continuava: A vocês rapazes posso garantir que quem quiser ver alguma coisa, precisa ir para a cidade. O colono cheirando a esterco não vale mais nada hoje em dia!
Para o Pedro que fora colega de escola do Joãozinho, a afirmação enchera todas as medidas. Agarrou-o pela gravata pintalgada e disse: O que disseste? Tu, um torresmo, um terneiro lambido! Falas em colono cheirando a esterco. Vou te mostrar o que é um colono cheirando a esterco! Sacudiu o Joãozinho com tamanha fúria que seus olhos saltaram das órbitas e os óculos pararam no meio da grama. No exato momento em que ia agarrá-lo para enchê-lo de pancadas, apareceu o professor e apartou os dois.
No mesmo domingo, o padre fez um violento sermão contra o ir para a cidade. Há pais, falou, que permitem aos filhos ainda quase crianças, irem para a cidade, onde trabalham como empregados e em questão de poucos anos naufragam física e espiritualmente. Há mães que não se envergonham e permitem que suas filhas, em troca de alguns mil réis, executem tarefas de escravas junto a famílias desconhecidas. Em não poucos casos tornam-se vítimas da sedução e da vergonha. Observai os rapazes que retornam da cidade, alisados e passados a ferro e corrompidos até a raiz, a cabeça cheia de cinema, de bailes, de deboche e desprezo pelos honrados colonos. Observai as meninotas que voltam da cidade, equilibrando-se sobre saltos absurdamente altos, o vestido curto demais, as unhas vermelhas, os lábios recém-pintados, parecendo voltar de um festim de antropofagia. Para a cidade são colonas demais, para a colônia muito finórias. Todas elas parecem aves caídas do ninho. Povo da minha comunidade, permaneça fiel ao honrado povo da colônia e abandone a cidade para a qual não foste feito.
O padre disse ainda mais. Naquele domingo, reinou na igreja um silêncio sepulcral. Apenas as senhoras de mais idade olhavam discretamente para se certificar se o João e seu doutorzinho se encontravam na igreja. Não estavam”. (até aqui o conto do Pe. Rambo)
Como jovem vivenciei essa primeira fase da urbanização demográfica acompanhada da urbanização das mentes e 80 anos mais tarde tenho a graça de apreciar os seus resultados, uns muitos bons outros nem tanto. O Pe. Rambo foi um profundo conhecedor dos hábitos, costumes e valores dos colonos, onde se encontravam suas raízes, onde nasceu, viveu a infância e adolescência e acompanhou com preocupação essa reviravolta pela base desse mundo bucólico, com a abertura para o grande mundo que se perdia no horizonte além dos morros que delimitavam seu mundo comunal. Não falamos apenas de horizontes geográficos mas, principalmente, de horizontes onde a urbanização e a modernização, começavam a abalar toda uma tradição considerada sagrada e intocável, consolidada por séculos, para não falar em milênios.
A entrada triunfal dos meios de comunicação começando pelo telefone a manivela e passando pelo rádio, televisão somada à toda parafernália de comunicação de que dispomos hoje, o mundo rural de até a metade século XX, passou para os museus da história. Para a geração nascida a partir de 1960 toda essa história perde-se ou submerge nas brumas do tempo.
Entrando um pouco em detalhes, embora superficialmente, o impacto da urbanização demográfica e, especialmente, a urbanização das mentes, afetou em cheio a família como instituição, como base da organização religiosa, social, política econômica. Em resumo. Enfraqueceu a sua importância como fundamento das instituições humanas, para chegar ao ponto de se contestar a própria razão de ser da família ou degradá-la à condição de repositora de novas gerações de cidadãos para servir ao leviatã do Estado. Está sendo despojada da condição de base e embrião da educação no primeiro estágio da formação dos cidadãos. O princípios praticados nas escolas de comunidade, com ênfase para as confessionais católicas e protestantes, numa das quais adquiri minha formação elementar, encontra-se no jornalzinho “Mitteilungen”. No n° 4, p. 26 de 1901 pode-se ler o resumo sobre a quem cabem os direitos sobre a educação e formação dos filhos. O autor do artigo resume numa pergunta a questão: “A quem cabe, pela sua própria natureza, a educação da criança?” e responde:
“Essa questão deve ficar bem clara antes de delimitar a quem cabe a tarefa de educar e em que nível de responsabilidade. Que os pais são depositários imediatos da educação dos filhos, ou que eles foram chamados por Deus parece tão óbvio que não requer prova. O homem entra livre na existência, mas já ao entrar no mundo vê-se rodeado de necessidades. Quem forneceu alimentos e dispensou cuidados aos filhos de Adão? Tiveram por acaso que clamar e esperar que a primeira comunidade ou o primeiro estado os assumisse? A família é anterior a qualquer comunidade ou qualquer estado. Ambos, comunidade e estado, vieram mais tarde impostos por novas necessidades e das exigências mais complexas, que acompanham a evolução normal de uma sociedade. Ou, o que vem antes, a casa ou o material com que foi construída?”.
Depois dessa reflexão introdutória o autor da matéria discrimina e justifica o direito da Família, a Igreja e do Estado no tocante à educação. Na escala dos direitos sobre a educação o direito primário pertence à família. Os argumentos a favor dessa tese foram assim resumidos.
“A criança ao nascer necessita do amparo dos pais para sobreviver. A condição de pai e mãe vem acompanhada das devidas obrigações. A própria ordem natural estabelece pois, que os pais acompanhem e garantam aos filhos os respectivos cuidados de ordem material e sedimentem neles os valores fundamentais indispensáveis para a formação da personalidade. Se Deus obriga os pais a prover os meios para a sobrevivência dos filhos, conclui-se que eles também gozam do direito primário de educá-los. Se aos pais for tirado o direito e a responsabilidade pelas bases da educação, não podem ser responsabilizados pelo comportamento futuro dos filhos. Esse raciocínio parece dar suporte à realidade antropológica, histórica e sociológica de que à família, nos seus diversos formatos: monogâmica, poligâmica, indissolúvel, consensual, comunitária e outras modalidades, pela sua própria natureza, cabe a tarefa e o direito de educar os filhos. Além da garantia material da alimentação, proteção, abrigo etc., o mais importante resume-se na consolidação dos valores indispensáveis para a formação da personalidade do adolescente, do jovem e do adulto: valores éticos e morais, o correto uso da liberdade, valores, costumes e hábitos indispensáveis para um convívio civilizado na família, na comunidade e ou sociedade, consciência dos direitos e deveres como cidadãos de um estado. Não por nada nas sociedades preconceituosamente chamadas de “primitivas” no nível da organização de hordas, clãs, tribos e outras formas, nômades ou sedentárias, os “mestres escola”, costumavam ser as pessoas de idade. Reunidos no aconchego do fogo das tendas ou acampamentos, no refúgio das cavernas e ou na sombra de uma árvore da floresta narravam para as crianças e adolescentes a história, os valores, hábitos e costumes e, assim, impediam que a tradição sofresse rupturas ou se corrompesse. Como seria gratificante se nos fosse dado assistir uma “aula” desse feitio numa caverna, num acampamento ou simplesmente à luz de uma noite de lua cheia. A memória das tradições relembradas pelos mais velhos, o relacionamento e comportamento entre os membros da família, e esses no convívio social com os demais membros do clã ou tribo, educavam para formar uma sociedade solidária e comprometida com o bem estar e a sobrevivência do grupo. Classificar essa forma de educação característica da fase de “baixa, média ou alta barbárie”, não passa de um insulto ao humano no homem de 15.000 anos passados e, pasme-se, às tribos no interior da floresta amazônica algumas ainda hoje vivendo no neolítico da pedra polida ou de alguma comunidade humana numa ilha isolada e perdida nos confins do Pacífico.
Suponho que essa digressão contribua de alguma forma para ilustrar que a questão da educação exige uma reflexão séria, antes de mais nada, sobre a sua natureza como um dado que faz parte da perenidade que perpassa a história como uma referência diacrônica. O panorama que acabamos de desenhar pede o destaque e aprofundamento de alguns dos traços que marcam de uma forma mais visível as características da fisionomia civilizatória na entrada da terceira década do século
Antes de mais nada é preciso não confundir os dois conceitos: religiosidade e religião, para evitar compreensões equivocadas. A religiosidade refere-se à preocupação de as pessoas encontrarem respostas para explicar os mistérios da natureza e, principalmente, os que dizem respeito ao “donde” vem a humanidade como um todo e as pessoas como indivíduos, o “para que” estamos neste mundo e “para onde” vamos. Os dados etnográficos e etnológicos de que dispomos confirmam que esses questionamentos foram e continuam ocupando o centro das preocupações dos indivíduos e dos povos da história da humanidade de alguma forma conhecida. E se foi a preocupação do homem historicamente conhecido permite projetar essa mesma preocupação acompanhando a humanidade desde que o primeiro da espécie, deu o passo inicial para a caminhada que soma milênios, quem sabe milhões de anos.