Depois do Natal foi a vez de rever depois de longos anos a minha querência, a minha Heimat lá no alto do Morro da Manteiga em Tupandi. Viajei os em torno de 10 quilômetros de Harmonia até a então vila de Tupandi de ônibus. Pedi emprestado um cavalo a um parente próximo e subi pela estrada de chão com suas curvas emblemáticas, o córrego saindo da mata virgem onde costumávamos descansar ao voltarmos da missa nos domingos, um paredão de rocha com fama de lugar misterioso durante a noite. Uma trilha na faixa de floresta virgem na encosta do morro transitável apenas a pé ou a cavalo terminava na moradia do meu tio Antônio, irmão do meu pai, passava perto do grande potreiro com uma monumental araucária solitária e a bela casa do Pedro Hensel e pouco adiante a moradia do Frederico Sehnem. Mais ou menos duzentos metros além uma porteira franqueava a entrada no curral de porcos. Grandes ameixeiras (nêsperas), uma enorme touceira de Três Marias à esquerda e, um pouco além a casa de madeira bruta na qual nasci, rodeada de camélias, o enorme plátano nos fundos e um majestoso guabiju poupado por meu avô quando abriu a primeira clareira na mata virgem para construir aquela casa. Hoje a casa já não faz parte da paisagem assim como o plátano, o guabiju, as laranjeiras, as camélias, os marmeleiros e tantas outras árvores que fizeram parte do cenário da minha infância. Chegando mais perto levei um choque. A cozinha construída separada como mandava o costume da época, ligada à casa propriamente dita por uma passagem com telhado, fora demolida. Muitos outros detalhes emblemáticos para a minha infância já não estavam lá. Dei-me conta então que uma parcela importante do chão onde minha existência deitara raízes já não existia mais. Não consegui, por mais que esforçasse, sentir-me em casa. Sentia-me um estranho, um forasteiro, um transeunte naquele cenário onde nem tanto tempo passado encontrava-me em casa – “Zuhause”. Meu sobrinho e família conversamos na cozinha instalada na peça que fora meu quarto de dormir. Faltou-me ânimo para percorrer as demais dependências, muito menos o velho sótão com um enorme baú de carvalho trazido ainda da Europa por meu bisavô materno. Temia surpresas que seguramente não deixariam de machucar.
Da “minha casa”, irreconhecível, da qual praticamente tudo que pretendia reencontrar só sobraram vestígios, fui pernoitar na casa da minha cunhada viúva, 100 metros adiante. No dia seguinte esperava um compromisso muito importante, pelo menos na época, isto é, dar uma instrução preparatória para o matrimônio de duas sobrinhas, a Helena e a Marta com os respetivos noivos,conhecida como a “instrução para noivos”. Como marinheiro de primeira água nessa função dei o que achei de melhor. De acordo com a prática usual da época a “instrução “ terminou com a confissão dos noivos. Os noivos seguiram seu caminho e eu voltei para pernoitar na casa da minha cunhada Apolônia viúva do meu irmão Raimundo. Na manhã seguinte foi a vez de subirmos a cavalo até a Linha Babilônia onde me cabia presidir o matrimônio das duas sobrinhas. Obedecendo ao costume da época a cerimônia foi integrado na liturgia da missa. Para mim foi um acontecimento muito gratificante presidir o duplo matrimônio de duas sobrinhas filhas do meu irmão Raimundo, meu inseparável parceiro e modelo, como irmão maior, na infância. Naquela data, faziam 8 anos que ele “passara para o outro lado do caminho” como diria Santo Agostinho e com certeza abençoou lá da outra dimensão suas filhas e futuras famílias, junto com meu pai, minha irmã Ana e o Pe. Balduino.
Seguiu um almoço melhorado, porém, simples como costumavam ser os almoços dos casamentos da época em que, no interior colonial, o compromisso familiar e comunitário, os costumes frugais, e autenticidade do relacionamento das pessoas, ditava o ritmo do quotidiano. Hoje as duas sobrinhas, a Marta e a Helena são viúvas e os filhos bem sucedidos porque lhes souberam dar a educação que herdaram dos pais e avós. Em novembro de 2012 voltei para a Linha Babilônia para dar um abraço de solidariedade por ocasião do velório do marido da Helena, faltando dois meses para celebrarem as bodas de ouro.
Depois de pernoitar de novo na casa da cunhada Apolônia desci na tarde do dia seguinte o Morro da Manteiga para me hospedar na casa paroquial e no dia seguinte, domingo, celebrar a missa para a comunidade na igreja matriz de Tupandi. Por minha surpresa encontrei no caminho, na entrada da vila, meu antigo professor José Brandt, da escolinha do Morro da Manteiga. Tive um choque. Visivelmente envelhecido sua reação foi de um encontro com um desconhecido. Esse homem que fora o líder da comunidade, o regente do coral, respeitado pela integridade de caráter, o responsável por meu entusiasmo pelo saber e grande incentivador para entrar no seminário, entrar na Companhia de Jesus em busca de sempre mais conhecimento, parecia a sombra do que fora. Na manhã seguinte celebrei a missa na igreja matriz e fiz uma homilia em alemão para os presentes do alto do emblemático púlpito mandado esculpir pelo Pe. Mathias Pfluger, fundador da paróquia e seu pároco por mais de 30 anos, e no qual pregaram Johannes Rick, Johannes Hann, Stephan Gotzmann e outros mais, responsáveis pelo perfil da religiosidade daquela comunidade, um modelo do autêntico catolicismo de 60 anos passados. Quando, depois daquela missa caminhei a pé até Harmonia, cerca de 8 quilômetros, acometeu-me a desagradável sensação de ter passado uma semana como forasteiro nos espaços, lugares e caminhos que foram o palco da minha infância.
Sem grandes novidades demorei-me mais alguns dias em Harmonia com minha mãe, o irmão e família. Voltei de ônibus a São Leopoldo para apresentar-me a meu superior. O reencontro não foi nada agradável pois, em tom de reprimenda lembrou-me que me tinha demorado por perto de uma semana além do que na época previa a regulamentação relativa a permanência com a família e na terra natal por ocasião da primeira missa solene.