Da Enxada à Cátedra [ 55 ]

Falecimento do Pe. Balduino Rambo – 12/09/1961

Para o segundo semestre esperava-me um autêntico temporal que repercutiria por muitos anos na minha jornada, tanto como docente na universidade, quanto como estudante de Teologia e não menos sobre a condição de jesuíta. No dia 11 de setembro pelo fim da tarde fui surpreendido com um telefonema do Colégio Anchieta informando que o Pe. Balduino fora encontrado sentado na sua mesa de trabalho, cabeça apoiada na mesa semi consciente. Foram-lhe administrados os sacramentos dos enfermos graves e internado no pavilhão Eliseu Paglioli junto à Santa Casa de Misericórdia, especializado no atendimento a pacientes acometidos de acidente vascular e outros problemas cerebrais e neurológicos. Uma combi do Cristo Rei levou-me até o hospital em Porto Alegre. Ao entrar no quarto deparei-me com um cenário que se fixou na minha memória com uma nitidez como poucas mais tarde. Lá jazia sobre a cama do hospital aquele homem dinâmico e indomável, cientista de renome internacional, professor catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do sul, respeitado pelos alunos e colegas, amante da natureza e idealizador do Parque dos Aparados da Serra e da Fundação Zoo-botânica, diretor do Museu de História Natural do Estado, fervoroso defensor do seu amado povo colonial e sua cultura cujo futuro lhe rendia sérias preocupações e, sobretudo, meu irmão maior que me franqueara as portas para uma bela e frutuosa carreira como professor universitário. Demorei-me por uma boa meia hora junto a ele no quarto. Pelo que pude avaliar não me reconheceu. Passei a noite no Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias e na manhã do dia 12 de setembro desci até a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na época ainda situada na Paulo Gama. No caminho aproveitei para passar no hospital. O médico assegurou-me que durante a noite foram percebidas sensíveis sinais de melhora e a pressão voltara ao normal. Informei o diretor da Faculdade, prof. Luiz Pilla sobre a situação para, em seguida retornar ao Anchieta e aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Na portaria do Colégio encontrei o Reitor, Pe. José H. Nunes que, sem outro comentário, apenas disse: ele acaba de falecer. Soube depois que, logo após a minha visita, sobreviera um novo derrame, dessa vez fatal. Começaram então os preparativos para o velório na capela do Anchieta. Minha mãe e meus irmãos foram informados por telefone e lá pelo meio dia o corpo chegou à capela. Começou então o desfile dos professores da Universidade, alunos e ex-alunos, amigos e colaboradores na atividade científica, do Museu do Estado, da fundação do Parque dos Aparados da Serra da Fundação Zoo-botânica, da Sociedade União Popular, da SEF (Socorro à Europa Faminta), além de muitos outros. Pela meia tarde meu irmão Bertoldo trouxe a mãe. O velório ficou aberto a noite toda e a procissão de pessoas continuou ininterrupta até a manhã seguinte. Acompanhei a mãe até o Orfanato da Piedade nos fundos do Colégio Sevingué, onde as irmãs franciscanas providenciaram o pernoite. Na manhã do dia 13 o bispo auxiliar, D. Edmundo Kunz, o arcebispo não apareceu, celebrou a missa de corpo presente na catedral. Em seguida o cortejo fúnebre se movimentou até o cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Ao subirmos a meia dúzia de degraus para o cemitério o superior provincial dos jesuítas conversava em meio a gargalhadas sentado num dos degraus. Fiquei chocado, ainda mais que nem no velório no Anchieta aparecera, nem participara da missa de corpo presente na catedral. Outra surpresa desagradável estava por vir. Pedira ao regente do coral do Cristo Rei, por sinal um colega meu de Teologia, para cantar em alemão um canto tradicional para essa ocasião, em consideração à minha mãe que não entendia, muito menos falava português. O pedido foi ignorado e com isso privaram essa mulher viúva, mãe de três jesuítas e uma filha religiosa franciscana, de uma manifestação de valorização e carinho tão importante num momento como aquele. Sem querer veio-me à memória a inveja, o ciúme, a maldita invidia clericalis” que amargurou o relacionamento do Balduino com não poucos dos seus irmãos de ordem e terminou por um envelhecimento precoce. Nos registros do seu diário referências a essa situação tornam-se cada vez mais frequentes no decorrer da última década da sua vida. O mesmo pude notar nas conversas informais como irmão de sangue e de ordem religiosa. A negação de um canto em alemão para minha mãe fez-me relembrar a “suástica” acompanhando a minha foto no painel de boas-vindas aos novos teólogos no ano anterior. Guardo comigo uma foto tirada junto ao túmulo coberto de flores, depois de concluído o cerimonial litúrgico. Nessa fotografia aparecem os amigos e colaboradores do Pe. Balduino_ Alexander Gecke, Antônio Campani, Fritz Rotermund, Albano Volkmer, meu irmão Bertoldo, o Pe Roberto, minha mãe e eu.

O falecimento inesperado do Pe. Balduino resultou num impasse de não pequenas proporções na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras com a vacância da cátedra de Etnografia e Etnologia da qual ele fora o titular fundador. A congregação da faculdade composta pelos catedráticos, entendeu que o Pe. Pe. Ignácio Schmitz, docente desde 1959 e eu desde 1960, como assistentes carecíamos de experiência para assumir a cátedra. Nesse jogo entraram, sem dúvida também interesses pessoais de titulares de outras cátedras. Tinham em mãos uma bela oportunidade para acomodar um candidato de sua preferência. Não poucos nomes circularam nas altas rodas da faculdade, inclusive de docentes de outras universidades federais, como a do Paraná. No frigir dos ovos os senhores do Conselho da faculdade chegaram ao um acordo e propuseram o nome do Pe. I. Schmitz o mais antigo dos assistentes, para a promoção a catedrático. Opção foi aceita pelos altos escalões da universidade e o impasse resolvido. Acontece que tanto o Pe. Schmitz quanto eu trabalhávamos no regime de 12 horas e as demandas da disciplina pediam um reforço. De acordo com o ritual burocrático da contratação de novos docentes, o Pe. Schmitz convidou o prof. Sérgio Teixeira para preencher a vaga. Depois de dois semestres de experiência com Instrutor de Ensino Superior submeteu-se ao concurso prescrito e foi efetivado como assistente.

O segundo semestre de Teologia não trouxe grandes novidades. Fui aprovado com folga no exame final e, para 1962 continuei no nível da Teologia Maior. Como no verão anterior acompanhei meus colegas de teologia para uma temporada de duas semanas de férias no Morro das Pedras em Florianópolis. No dia 8 de dezembro o Ignácio Schmitz foi ordenado sacerdote. Convidou-me para as solenidades da primeira missa solene em Bom Princípio no domingo antes do Natal. Para o sermão festivo ele escolhera o Pe. Balduino, famoso pelas suas prédicas nessas ocasiões. A sua morte inesperada levou-o a optar pelo Pe. Emílio Hartmann coordenador pedagógico do Colégio Anchieta. Naquela ocasião hospedei-me na casa de um prima moradora de Bom Princípio.

O cenário político nacional foi sacudido no segundo semestre por um autêntico vendaval provocado pela espalhafatosa renúncia do Presidente da República, Jânio Quadros. Acontece que o vice-presidente João Goulart, o Jango, encontrava-se em viagem na China. O presidente da Câmara Rainieri Masilli, assumiu a interinidade como mandava a constituição. Lideranças políticas importantes, apoiadas por segmentos militares não menos decididos tentaram impedir a posse de Jango na sua volta da China. Sob a liderança de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, apoiado pelo comandante do Sul, general José Machado Lopes, desencadeou o movimento da “Legalidade” que se estendeu de 25 de agosto até 7 de setembro de 1961. Os quartéis do terceiro exército, com destaque para o Rio Grande do Sul, entraram em prontidão e mobilizados para enfrentar as tropas do segundo exército favoráveis ao impedimento do vice-presidente. O então décimo nono regimento de infantaria de São Leopoldo recebeu ordem de marchar em direção ao centro do País, para enfrentar as tropas que avançavam para o sul. Um ou dois colegas meus de teologia acompanharam a tropa na condição de capelães militares. Nesse meio tempo o Congresso Nacional em sintonia com o Alto Comando das forças armadas negociaram uma solução intermediária. Implantaram o Parlamentarismo e Jango assumiu na condição de Presidente e Francisco Brochado da Rocha como primeiro ministro. Um pouco mais de um ano depois, um plebiscito restaurou o regime presidencialista e Jango governou nessa condição até 31 de março de 1964, quando, em companhia de Leonel Brisola fugiu para Porto Alegre para organizar a resistência. Percebendo a inutilidade dessa empreitada em função da pressão militar, refugiou-se no Uruguai. O Congresso Nacional declarou vaga a Presidência da República e o presidente da Câmara, Reinieri Masilli assumiu provisoriamente como Presidente interino. No dia 15 de abril o Congresso elegeu o marechal Castelo Branco como Presidente. Computando as datas observa-se que o falecimento do Pe. Balduino ocorreu poucos dias após o episódio da Legalidade. Não é aqui o lugar para me demorar numa abordagem mais detalhada desse episódio. Inúmeros historiadores já se debruçaram sobre o assunto e, de mais a mais, impactou muito pouco, para não dizer quase nada, na minha rotina de estudante de teologia e docente na universidade.

Um detalhe que não posso deixar de lembrar foi a troca da batina clerical pelo clargyman há muito adotado pelos jesuítas norte-americanos. Em poucas palavras resumia-se num terno comum da moda, com um colete munido dum colarinho clerical que distinguia os religiosos católicos dos de outras confissões cristãs. O chapéu clerical jocosamente apelidado de “torrador de café” foi banido definitivamente entre os religiosos comuns. Continuou sendo emblemático para as categorias mais elevadas na hierarquia eclesiástica como bispos e cardeias. Meu primo Roberto, alfaiate em Porto Alegre, confecionou-me um terno de tergal cinza e o colete com colarinho clerical, o “Clergyman”. Lembro-me como se tivesse sido ontem que numa terça-feira depois do meio dia desci até o ponto de ônibus, atravessando a horta do Cristo Rei, onde hoje se localiza o Bairro Cristo Rei, até a altura do Centro Clínico Estadual, então “Alumínio Ecnômico de Augusto Meyer. Ao me apresentar aos alunos com essa metamorfose fui saudado com uma sonora salva de palmas. Tempos novos com seus prós e contras alinhavam-se na linha do horizonte da história, no meu caso, tanto na história da academia quanto na condição de religioso jesuíta. Remeto para mais abaixo a análise aprofundada dessa guinada com seus lances de maior significado.

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