Da Enxada à Cátedra [ 56 ]

Ano de 1962

O ano de 1962 veio a significar um marco que, apesar da correção radical da rota 10 anos mais tarde, foi de uma importância existencial difícil de avaliar. A docência na universidade não trouxe grandes novidades durante todo esse ano. Nas terças feiras à tarde meus alunos vinham do curso de Geografia, por sinal não passavam de uma dezena; nas quartas-feiras de manhã vinham do Curso de História; nas quartas-feiras à tarde do Curso de Ciências Sociais. Foi um ano tranquilo sob o aspeto acadêmico. Como estudante do terceiro ano de Teologia a lógica da formação do jesuíta previa a ordenação sacerdotal para o dia 7 de dezembro. Ainda no primeiro semestre, não me lembro exatamente da data, fui ordenado subdiácono. Em fins de novembro prestei o exame de Teologia com um ótimo resultado o que valeu continuar na “Teologia Maior” no quarto e último ano. Em começos de dezembro sobreveio a ordenação como diácono. E, no dia 7 de dezembro, o coroamento de 12 anos de vida religiosa como jesuíta, fui ordenado sacerdote junto com meus colegas na capela do Colégio Cristo Rei. O arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer, presidiu a cerimônia. Minha mãe, o irmão Bertoldo e o Pe. Roberto prestigiaram o acontecimento. Meus sobrinhos do Morro da Manteiga compareceram num ônibus alugado. Concluída a cerimônia litúrgica seguiram os cumprimentos do arcebispo, dos professores de Filosofia e Teologia, dos irmãos leigos, dos colegas de curso, amigos, para, por fim, reunir-me com minha mãe, meus dois irmãos e demais parentes e vizinhos presentes. Ao meio dia encontramo-nos no refeitório para o almoço festivo oferecido aos novos sacerdotes e seus familiares. Pela meia tarde minha mãe e o Bertoldo voltaram para casa na Harmonia e demais parentes no ônibus para Tupandi e o Morro da Manteiga. Quanto me recordo não apareceu nenhum dos meus colegas professores da universidade, nem uma manifestação de simpatia da parte dos meus superiores daquela instituição. Na manhã seguinte, 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, celebrei a primeira missa no altar mor da capela do Cristo Rei, tendo como assistente meu irmão, o Pe. Roberto.

Não me lembro ao certo do dia, se foi 22 ou 23 de dezembro, celebrei a primeira missa solene na matriz de Harmonia. Meu primo, o Pe. Germano, pároco da Glória em Porto Alegre, levou-me até lá. Esperavam-me minha mãe, o Bertoldo, o Pe. Roberto, o tio Roberto, irmão da mãe, sobrinhos e outros parentes. A cerimônia de recepção pela comunidade aconteceu às 15 h. na frente da igreja paroquial. Foi singela e sem o aparato que descrevi mais acima quando da primeira missa solene dos meus dois irmãos mais velhos, na terra natal de Tupandi. Como mandava o costume da época, minha mãe colocou uma grinalda de flores na minha cabeça. Entramos na igreja e depois da bênção Santíssimo, estava concluída a programação para aquela tarde de sábado. No final da tarde a mãe e familiares reunimo-nos na sombra das árvores no pátio da casa do Bertoldo para um chimarrão e uma conversa entre os familiares mais próximos. Uma visível atmosfera de melancolia, para não dizer tristeza fez com que aquele encontro, que deveria ser de festa, se gravou na minha memória como um momento de frustração. Sonhara a vida toda com aquele dia tendo como pano de fundo as primeiras missas solenes dos meus dois irmãos mais velhos. Começou pelo fato de o acontecimento não ter acontecido na terra natal, Tupandi mas em Harmonia, uma comunidade para quem eu não passava de um estranho e ela estranha para mim. Por não ter morado lá não conhecia quase ninguém. Meus conhecidos e amigos de infância residiam em Tupandi. Mas o fator mais determinante desse clima foi a ausência do meu pai, falecido em 1947, meu irmão Raimundo e minha irmã e confidente Ana, ambos falecidos em 1954, o Pe. Balduino falecido em setembro do ano anterior, o Fridolino morando lá longe em São João do Oeste, sem condições de estar presente devido à distância e à precariedade das estradas e meios de comunicação. Na manhã seguinte às 9 h. celebrei a primeira missa solene cantada em latim e gregoriano pois, ainda estamos no período pré conciliar. O Pe. Roberto esmerou-se num sermão simples, porém, carregado de significado por duas razões: pela reflexão que apresentou e por substituir o Pe. Balduino que tanto minha mãe, meus irmãos e familiares e não em último lugar a comunidade estava esperando e eu tinha escolhido para pregar naquela solenidade. Minha madrinha de batismo, Bárbara Both, presenteara-me com os paramentos vestidos na solenidade. A atmosfera que ofuscou e em parte frustrou a minha espectativa contou com mais um agravante. O pároco de Harmonia há muitos anos naquele posto muito pouco se empenhou para preparar os paroquianos para um acontecimento tão significativo para a vida religiosa comunitária, pelo menos naquela época. Tive a impressão que eu não passava de uma espécie de intruso pois, não era filho de Harmonia. Também o coral deixou muito a desejar. Soube mais tarde do Bertoldo que, por um nada o regente com o coral se negara a colaborar porque não tinham sido convidados para o almoço festivo. Acontece que nem minha mãe, nem o Bertoldo tinham condições de bancar um almoço para pessoas que não fossem parentes próximos. Conhecendo essa situação deixei para minha mãe a soma em dinheiro que parentes de mais posse me deram como presente e assim ajudar a cobrir a despesa com o almoço no salão dos Fink. Para a noite, no mesmo salão do Fink, meus sobrinhos tinham preparado um encontro aberto ao público com poesias, cantos, um teatrinho como encerramento. Em poucas linhas é nesses termos que me recordo do momento mais esperado e mais ainda, sonhado desde os anos da remota infância lá no Morro da Manteiga, quase um pesadelo depois uma noite mal dormida.

Véspera do Natal 24 de dezembro. Naquele remoto ano de 1962 ainda vigorava o costume de as pessoas se confessarem em peso em duas ocasiões: na véspera do Natal e na Quinta-Feira da Semana Santa. O pároco convocou-me para estar a postos no confessionário às 7 horas da manhã. Apresentei-me pontualmente e me deparei com uma fila de duas dezenas de penitentes esperando. Acomodei-me no confessionário munido de um contador de confissões, um aparelhinho acionado com o dedo depois de cada confissão. A soma tinha que ser anotada no livro de registros da paróquia. Tirando duas ou três interrupções de cinco minutos fiquei trancado naquele móvel abafado até a hora do meio dia, ouvindo os “pecados”, no mínimo 95% sem importância maior. Às 13 horas estava de volta para mais uma jornada até pelas 18. Ao sair da igreja para um rápido lanche, esperava uma viatura para levar-me até o “Gauereck”, hoje São José do Sul. Passei literalmente a noite inteira trancado no confessionário. Pelas 4 h. da madrugada o sono me derrubou e dei uma breve cochilada. O penitente esperou pacientemente e quando percebeu que me recompusera, educadamente perguntou: “padre, posso continuar?”. Às 8 h. celebrei missa na capela do Gauereck. Ao sair da capela uma viatura me esperava para às 10 h. celebrar outra missa na capela do Despique. Perto de meio dia me deixaram na casa do Bertoldo, desejei um feliz Natal para a minha mãe e ao Bertoldo e família. Depois do almoço minha mãe ofereceu-me a sua cama para dormir. Foi o meu batismo de fogo como sacerdote. Com meus 32 anos 4 horas bem dormidas na cama da mãe, estava pronto para outra. Nas entrelinhas percebe- se facilmente que o pároco se recolheu para sua casa canônica tranquila largando nas costas de um novato de primeira viagem a parte ingrata dos compromissos pastorais do Natal. De qualquer maneira sempre considerei esse episódio como mais uma parcela importante no delineamento da minha trajetória. Mesmo há mais de 50 anos afastado da condição clerical, lembro-me com carinho daquele tempo pois, tenho certeza, que contribuiu significativamente na minha postura perante as eventualidades da vida que iria enfrentar nas mais diversas situações posteriores.

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