Bacharelado em História Natural na UFRGS
Concluído o tirocínio dos 3 anos de Filosofia encontrava-me em condições de partir para uma nova etapa da formação como jesuíta, isto é, 3 anos de “magistério”. Em outras palavras. Os egressos da Filosofia costumavam ser destinados para as mais diversas instituições de ensino a cargo dos jesuítas. O meu destino foi o Colégio Anchieta em Porto Alegre, então situado na rua Duque de Caxias, com a dupla missão de ministrar aulas no colégio e frequentar o Curso de História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em fins de novembro veio a mudança para o Colégio Anchieta. Levei na minha bagagem o microscópio Baush&Lomb, presente do Carlos Roberto Cirne Lima, como já mencionei mais acima, além da máquina de escrever Erika cedida pelo Pe. Balduino, também já referida. Para morar foi-me indicado um quarto no terceiro andar logo abaixo do telhado com a janela para a rua Duque de Caxias. Foi o meu canto durante os três anos que morei no Anchieta. Não havia algazarra na rua durante a noite nem ronco de automóveis pois o trânsito era tranquilo e muito distante da loucura de hoje, mais se 60 anos depois. A única perturbação, se é que se pode classificar assim, vinha da passagem do bonde pela rua Duque de Caxias. Bem na frente da minha janela havia uma conexão dos trilhos e cada passada de bonde ouvia-se um estalo quando as rodas passavam por aquele ponto. Par evitar confusão no registro relativos ao magistério no colégio e a frequência as preleções na universidade no bacharelado de História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, começo pelo segundo.
Logo depois de me instalar e tomar conhecimento das dependências do colégio e me familiarizar com a rotina diária, o “prefeito geral”, Pe. Emílio Hartmann convocou-me para integrar a comissão dos exames orais, se não me falha a memória da 3a série do ginásio, sob a presidência do prof. Agostinho Thiesen. Essa primeira tarefa ocupou uma semana inteira. Concluídos os exames e as solenidades de encerramento com a colação de grau do ginásio e do Colégio – Científico e Clássico, chegara a hora de partir para as férias na casa de retiros que os jesuítas mantinham no Morro das Pedras, no sul da Ilha de Santa Catarina, bem em frente à Ilha do Campeche. A maioria optou por enfrentar a viagem de ônibus na empresa “Anjo da Guarda” que cobria o itinerário entrePorto Alegre e Florianópolis, levando em torno de 20 horas. Não se pode esquecer que na época todo o trajeto a partir de Gravataí, acontecia em estrada de chão batido somado a todos os inconvenientes e contratempos imagináveis nessas condições. Meu colega Ivo Etges e eu optamos por uma outra modalidade na época oferecida pela FAB. Além de aproveitar a oportunidade de voar pela primeira vez de avião, o serviço era gratuito. Em resumo. Tratava-se do transporte do pessoal da força aérea e seus familiares. Sobrando vagas admitiam para o voo civis, previamente inscritos numa lista de espera. Ocorrendo uma vaga avisavam o primeiro ou os primeiros para se apresentarem para o embarque. Essa estratégia implicava que os candidatos ficassem atentos para a qualquer momento serem avisados da existência de uma vaga em algum voo. Deixamos a nossa bagagem pronta e esperamos até que recebemos o comunicado que havia duas vagas no voo a Florianópolis no dia 21 de dezembro de manhã às 7h. Levantamos cedo, pegamos a bagagem que não era grande coisa e um táxi nos levou até o aeroporto Salgado Filho. Lá nos esperava um velho DC 3 com uma aparência lá não muito agradável ao lado dos sempre com a pintura impecável aviões de carreira da VARIG. A primeira surpresa foi que, em vez de poltronas alinhavam-se ao longo da fuselagem dois compridos bancos de alumínio, munidos de cintos de segurança e jornais velhos sobre o alumínio. Mas tudo bem. Valeria pela aventura. A segunda surpresa veio quando o piloto acionou o arranque dos motores. Um deles pegou sem problema e continuou rodando. O segundo arrancou mas, cuspindo fumaça pelo cano de descarga empacou e não houve como fazê-lo arrancar de novo. O piloto não perdeu tempo. Chamou um dos integrantes da tripulação e pediu para ir até as oficinas da VARIG e conseguir um distribuidor recondicionado. O velho foi trocado pelo recondicionado numa operação que levou mais de meia hora. Tudo no seu devido lugar o piloto acionou o arranque e o motor respondeu na primeira tentativa. Rolamos até a pista e o velho DC 3 gemendo e chacoalhando por todos os poros decolou sem problema e foi ganhando altura. Pela primeira vez na vida contemplei o mundo do alto. Uma visão magnífica deslisava sob as asas do velho DC 3, provavelmente veterano de muitas peripécias anteriores. Primeiro a grande planície do rio Gravatai, depois do médio e alto Rio dos Sinos, emendando na encosta da Serra em Direção a São Francisco de Paula. O campo que me era familiar por terra desde as férias no Rincão dos Kroeff, exibia toda a sua majestade, beleza e multiplicidade de descampados, capões sobressaindo as araucárias sobreviventes do machado dos madeireiros, a borda do planalto coberta de floresta escura. Quando voávamos na altura de Cambará o piloto avisou que decidira mudar de rota, isto é, descer a serra e continuar a viagem perto da praia, com observação que naquela rota dispunha de mais locais propícios para um eventual pouso de emergência. Essa decisão naturalmente nos deixou apreensivos principalmente a nós dois voadores de primeira viagem. Felizmente não aconteceu nenhum contratempo e lá pela meia manhã pousamos no aeroporto de Florianópolis. Como a distância até a casa de retiro do Morro das Pedras não é grande e nós éramos jovens de 26 e 27 anos, arregaçamos as batinas e fomos caminhando para chegar no destino pouco antes do meio dia.
A Casa de Retiros localiza-se num promontório que avança sobre o mar aberto, a base formada por enormes blocos de granito avançando para dentro do oceano, cobertos na parte submersa por milhões de mexilhões. Na frente, a poucos quilômetros oceano adentro a paradisíaca ilha do Campeche, à direita, mais para os fundos um arco de montanhas de boa altura coberta com mata virgem e ao pé uma praia também em forma de arco, naquela época totalmente isolada, nas duas extremidades possantes blocos de granito entrando mar adentro. Poucos aventureiros acampavam e pescavam naquele pedaço de paraíso. Mais abaixo volto àquele recanto delicioso com seu arroio de montanha cristalino descendo do alto e milhares de palmitos sobressaindo à vegetação nativa. À esquerda quem sobe ao Morro das Pedras a superfície da Lagoa do Pery cintilava como um espelho de prata refletindo a moldura de morros e florestas que a emolduravam pelos fundos. Os morros dos fundos da lagoa prolongavam-se atrás da Casa de Retiros e subiam a uma considerável altura também tomados pela mata virgem. Em resumo esse foi o cenário em que gozei duas semanas de férias especiais. Elas se repetiriam mais tarde no mesmo cenário como estudante de Teologia. Para evitar repetições remeto para as anotações das férias no mesmo local de 1960-1961 e 1961-1962, as lembranças em detalhes das inúmeras ocasiões e modalidades para cultivar a “mens sana in corpore sano”, isto é, “a mente sadia num corpo sadio” naquele recanto do mundo hoje profanado e desfigurado pela fúria da voracidade imobiliária a serviço de um turismo de lazer predatório. Com isso concluo as lembranças das férias de 1956- 1957. Lá pelo dia 10 de janeiro de 1957 estava na hora de voltar para o Colégio Anchieta e me preparar para o vestibular de História Natural da UFRGS em fevereiro. Para a volta optei pela mesma modalidade da ida: a carona num avião da FAB. Desta vez meu companheiro foi o Pe. Marcus Bach. Não houve inscrição em lista de espera. Fomos de manhã cedo até o aeroporto e esperamos até que um avião com destino à base aérea de Canoas dispusesse de dois lugares para civis. No meio da tarde embarcamos num Beach Kraft da força aérea e, em questão de uma hora e pouco pousamos em Canoas. Embarquei num ônibus que me deixou no centro de Porto Alegre depois subi até o Colégio Anchieta na rua Duque de Caxias. A parir do dia seguinte dediquei-me em tempo integral na preparação para o vestibular para entrar na UFRGS e conquistar o meu terceiro bacharelado, isto é, o de História Natural que, no formato de hoje, abrangia o que englobava a Biologia, Botânica, Zoologia e Geologia. O vestibular consistia numa prova escrita com questões referentes às Ciências Naturais, uma prova de português e outra de inglês. Na semana seguinte esses mesmos conteúdos foram objeto de provas orais. Para falar a verdade, terminados os exames fui para o meu sótão no Colégio Anchieta com uma péssima impressão do meu desempenho. Cheguei a chorar com a possibilidade de reprovação e a consequente frustração dos meus sonhos. Mas, qual não foi o meu espanto quando da publicação dos resultados. Não quis acreditar. Lá constava que fora aprovado com a segunda média mais alta. Meu primo Odilo (in memoriam) ficara com o terceiro lugar. Os dois pegamos o ônibus e fomos festejar o resultado inesperado num dos matinhos perto do lago do Cristo Rei em São Leopoldo. Na semana seguinte cumprimos os rituais da matrícula e na primeira semana de março de 1957 teve início o primeiro semestre na ala logo à direita de quem vem pela Osvaldo Aranha e dobra para a Paulo Gama.