Bacharelado em Filosofia
Depois de concluído o bacharelado em Línguas e Literatura clássica no Instituto São José em Pareci Novo em 1953, esperava uma nova etapa da minha formação acadêmica para o ano de 1954: o bacharelado em Filosofia no Colégio Cristo Rei em São Leopoldo. A minha turma seria a primeira a integrar o bacharelado de Filosofia oficializado em outubro do ano anterior pelo Ministério da Educação. Até então os estudos de Filosofia, embora de alto nível, atendiam apenas às exigências de formação acadêmica dos jesuítas. Não posso deixar de render, como dever de justiça, uma homenagem especial de reconhecimento ao Pe. Urbano Thiesen, o responsável maior pela tramitação exitosa do processo de reconhecimento junto às instâncias federais, com destaque para o Ministério da Educação sob o comando de Antônio Balbino.
Em 18 de janeiro de 1954 despedimo-nos do Instituto São José em Pareci Novo com destino para o Colégio Máximo Cristo Rei em São Leopoldo. Fomos alojados em quartos individuais amplos com cama, escrevaninha uma estante, além de um roupeiro e duas cadeiras. Meu quarto foi o primeiro logo na subida da escada no segundo andar. Com isso dispúnhamos de privacidade total coisa que não tínhamos em Pareci Novo. Lá dormíamos em espaços delimitados por biombos e estudávamos numa sala comum. As novas condições permitiam-nos a organização do ambiente de estudo e a tranquilidade para descansar sem sermos perturbados. Pois, esse quarto no começo e nos três anos que se seguiram, foi o mundo que me permitiu mergulhar fundo nos diversos campos da Filosofia e entrar em contato com conhecimentos complementares, valendo-me da excelente biblioteca de que dispúnhamos. Mais abaixo pretendo detalhar as atividades a que me estou referindo. Em resumo. Encontrava-me no limiar para me familiarizar, nos três anos seguintes, com as escolas do pensamento filosófico e seus respetivos formuladores e com isso conquistar meu segundo bacharelado.
Mais acima já lembrei que a Faculdade de Filosofia, reconhecida no ano anterior pelo Ministério da Educação, entraria no seu primeiro semestre. Acontece que a nova situação vinha acompanhada de uma série de demandas de natureza formal, para atender as normas ditadas pelo Ministério da Educação. A secretaria e os arquivos da faculdade em fase de instalação não dispunham dos históricos escolares do tempo do ginásio em Salvador do Sul dos, se bem me lembro, de pouco mais de 20 candidatos. Essa documentação, devidamente rubricada pelo superior provincial, fazia parte dos pressupostos para prestar o exame vestibular. O Pe Thiesen encarregou-me da coleta desses registros nos arquivos do Colégio Santo Inácio. Não lembro exatamente do dia, mas deve ter sido lá pelo dia 20 de janeiro embarquei no trem em São Leopoldo e viajei para Salvador do Sul. Recolhi-me num quarto que me foi indicado e copiei à mão um por um o currículo ginasial dos candidatos. Em questão de três dias dei conta a tarefa. Voltei realizado para São Leopoldo. O Pe. Thiesen providenciou a assinatura do superior provincial, na época o Pe. Jorge Steiger. O vestibular somente oral ocorreu em meados do mês de fevereiro presidida por uma comissão examinadora de professores de filosofia da instituição. Pelo que me recordo resumiu-se, antes de mais nada, num ritual burocrático do que propriamente seletivo. De qualquer maneira todos os inscritos cursariam a filosofia obrigatoriamente por integrar a formação de um jesuíta. O início do primeiro semestre letivo foi precedido por um retiro espiritual de 8 dias.
As preleções tiveram início em começos de março. O currículo para os três anos previa um conjunto de disciplinas que formavam, por assim dizer, o tronco-mestre da formação filosófica: Lógica, Ontologia, Metafísica, Cosmologia, Ética, História da Filosofia. As preleções sobre essas disciplinas eram dadas em latim como também as dúvidas formuladas pelos alunos e as explicações dos professores. Os principais professores desse conjunto básico foram o Pe. Antônio Steffen responsável pela lógica, ontologia e metafísica, o Pe. Luiz Müller pela cosmologia; o Pe. Ruff pela ética; o Pe. Thiesen pela história da filosofia. Para enriquecer o currículo e consequentemente a amplitude, diversificação e aprofundamento do conhecimento filosófico, ofereciam-se conteúdos conhecidos no nosso meio acadêmico como “questiones selectae”, isto é, “questões seletas”. O número delas e as especialidades abordadas variavam de acordo com os interesses e, principalmente, pela disponibilidade de especialistas. Nos meus três anos de filosofia lembro-me de duas dessas disciplinas. A primeira versou sobre questões seletas de Psicologia ministradas pelo Pe. Walter Hofer que, na década de 1940, tinha sido o superior provincial da Província Sul Brasileira dos jesuítas. Confesso que aqueles conteúdos e a maneira como foram apresentados não me entusiasmaram por aquela área do conhecimento que naquela altura começava a entrar na moda como uma promissora especialidade a ser explorada pela academia. Um impacto incomparavelmente maior, para não dizer decisivo para a minha caminhada acadêmica posterior, foi o semestre de “questões seletas” ministrado pelo estudante de teologia Josef Hauser, um dos muitos jesuítas expulsos da Hungria pela ocupação soviética. Vinha com o doutorado em biologia pela universidade de Innsbruck na Áustria. Entusiasta e profundo conhecedor das pesquisas sobre o funcionamento dos organismos vivos de Ludwig von Bertalanffy, ministrou-nos um seminário num semestre, se não me falha a memória em 1955. Num linguajar pitoresco de uma mistura de espanhol com português, teve o efeito de um estopim que despertou em mim uma curiosidade que me alimenta até hoje pelo “como” da estrutura e funcionamento dos organismos. Ele me emprestou as duas obras: “Theoretische Biologie” e “Biologisches Weltbild”, do cientista acima referido publicados o segundo em 1949 e o primeiro em 1951. Depois desse seminário o Hauser e eu consolidamos, por assim dizer, uma parceria científica que durou até o seu falecimento em 2004. Mais abaixo pretendo me alongar mais sobre a parceria científica consolidada com o Pe. Hauser.
Um exame oral perante uma banca examinadora, evidentemente em latim, marcou o encerramento do ano acadêmico. Um detalhe merece ser lembrado. O exame final do terceiro ano incluía os conhecimentos acumulados nos três anos anteriores. O aluno que conquistasse um plenamente aprovado ou acima disso, seria candidato a cursar mais tarde a “Teologia Maior”, quem ficava aquém desse nível de aprovação entraria, também mais tarde, na “Teologia Menor”. Obtive um resultado mais que suficiente para entrar na “Teologia Maior”. Fica a pergunta: qual a diferença entre Teologia Maior e Teologia Menor? Tento explicar. Em poucas palavras, as preleções no nível da Teologia Maior direcionavam-se para um aprofundamento mais teórico e científico dos conteúdos dogmáticos, da História da Igreja, da Exegese, do Direito Canônico e outros. As preleções no nível da Teologia Menor ofereciam as disciplinas num formato mais prático para facilitar a atividade pastoral, educacional, assistencial, etc., em princípio campos do trabalho futuro dos estudantes. Mais abaixo ao comentar a minha formação teológica pretendo lembrar mais detalhadamente as diferenças entre os dois níveis.
Os três anos de Filosofia, como em todos os estágios da minha formação anterior, renderam experiências e vivências valiosas à margem da formação filosófica, razão de ser daquele período. Assim como em Pareci Novo durante o Noviciado e o Juniorado, a quarta-feira continuava a ser o “dia de chácara”, isto é, dia reservado para atividades de livre escolha: piqueniques, passeios pelas redondezas, leituras, dedicação a algum hobby da preferência individual. Na parte da manhã do primeiro ano assumi a catequese numa escola elementar pública em Três Portos, localizada nas margens da Br 116, na descida do viaduto para a lateral em direção a São Leopoldo. Naquele remoto 1954 a Br 116 encontrava-se em fase de duplicação a partir de Porto Alegre e aquele viaduto que liga Sapucaia a Gravataí evidentemente não existia e a estrada que leva àquela cidade não passava de uma sequência de lodaçais em período de chuva e de buracos e areia solta nos meses de verão mais secos. Fazia todo o trajeto de ida e volta a pé no mau e no bom tempo, vestindo batina e chapéu clerical na cabeça caminhando na margem da Br 116. Não há como comparar o baixo fluxo do trânsito daquela época com os congestionamentos e monumentais engarrafamentos de hoje. Com um pouco de sorte algum caminhoneiro parava no acostamento e oferecia carona e a caminhada monótona cedia lugar a um bom papo com aqueles personagens emblemáticos e simpáticos na boleia, a maioria circulando entre Porto Alegre e a região italiana do planalto: Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Veranópolis, Garibaldi, Farroupilha, etc. Em começos de dezembro a missão como catequista em três Portos estava cumprida.