Férias em São Francisco de Paula
Mais acima já lembrei que as férias maiores, isto é, as duas primeiras semanas ou um pouco mais, incluindo as festas de fim de ano, com término em 6 de janeiro, dia dos Reis Magos, costumavam ser gozadas em algum lugar especial. Durante o bacharelado em Línguas Clássicas o local escolhido foi o Santuário de Caravaggio. O local das férias no período da Filosofia foi a fazenda da família Groeff no interior de São Francisco de Paula, na descida para a Serra do Umbu, também conhecida como o Rincão dos Groeff. Localizada na extremidade sul dos Campos de Cima da Serra em torno de 900 metros de altitude. O campo natural com seus típicos capões de mato branco e araucárias que tinham escapado do machado dos madeireiros, ocupava maior parte da área. A mata fechada que, pelo oeste descia encosta abaixo em direção a Riosinho e Rolante, no sul e oeste em direção a Santo Antônio da Patrulha e Osório, cobria as bordas do Rincão dos Groeff. Com as nascentes no campo desciam quatro ou cinco arroios de montanha de volume considerável e água cristalina, saltando em cascatas paradisíacas da borda do planalto para os vales cobertos de floresta virgem praticamente intata. A queda livre da cascata do Napoleão, a mais volumosa e mais alta, media em torno de 100 metros. As demais desciam pelos vales rochosos formando sequências de mais quedas de menor altitude. Instalamo-nos na casa de moradia, nos depósitos e demais benfeitorias acomodados junto a um belo arroio e uma ponta da mata fechada que subia até o alto vinda da encosta que vai dar no rio dos Sinos na altura de Rolante. O local nos foi oferecido pela mãe de um dos meus colegas, o Paulo Englert, da família Groeff, herdeira daquela propriedade. Para o meu gosto aquele foi o cenário ideal para arejar a cabeça depois de um ano de preleções filosóficas em latim sobre lógica, ontologia, metafísica, ética, cosmologia e por aí vai.
Para mim pessoalmente, porém, aquelas férias, final de 1954 e começo de 1955 exigiram um esforço que me levou quase à exaustão. Acontece que o reitor do Cristo Rei designou-me como “bedel das férias”. Explico rapidamente em que implicava essa incumbência. A figura do bedel fazia parte das instituições acadêmicas também leigas. Suas atribuições resumiam-se em cuidar, por ex., que a sala de aula da sua turma estivesse arrumada, limpa, o quadro negro com giz, mapas no seu lugar etc. Ao bedel de férias, entretanto, cabia providenciar tudo que fosse necessário para as duas semanas. A grosso modo reunir os mantimentos básicos não perecíveis e embalá-los para o transporte no caminhão, roupa de cama, utensílios de cozinha, louça, talheres, etc., etc. E por último acomodá-los no caminhão de tal maneira que sobrasse lugar na carroceria para instalar os bancos para os “passageiros”, isto é, para acomodar as cerca de duas dúzias de candidatos às férias. Passei uma boa parte da noite da véspera da viagem carregando caixas, sacos e pacotes distribuindo-os racionalmente na carroceria do caminhão. Obviamente contei com a colaboração de colegas, entretanto, a responsabilidade era toda minha e se alguma coisa desse errado ou faltasse a cobrança cairia sobre mim. No dia marcado partimos ao clarear do dia, a carga e o pessoal acomodado na carroceria do caminhão e no volante o bem disposto, simpático e confiável irmão Anselmo Renner. Na época a estrada São Leopoldo, Gravatai, Taquara, São Francisco de Paula até o Rincão dos Groeff, não tinha um metro de pavimentação. Não me lembro quantas horas levamos mas, lá pelo meio dia e pouco chegamos no destino. O irmão cozinheiro que nos acompanhou, não me recordo do nome, preparou um almoço “quebra galho” enquanto cada qual escolhia o seu canto e arrumava a cama e guardava seus pertences. O resto da tarde circulava de um canto para o outro para me assegurar que tudo estivesse em ordem e no seu devido lugar. Enquanto a maioria dos colegas se dispersou pelos arredores ou cuidava dos seus alojamentos, o irmão cozinheiro e eu terminamos por deixar tudo pronto para começar tranquilamente o período de férias. Exausto e entregue fui tomar um banho frio no arroio e dormi como um tronco a primeira noite naquele ar fresco e leve e o silêncio telúrico, marca registrada dos campos de cima da serra. Na manhã seguinte depois do desjejum caminhei até uma casa de comércio e açougue distante uns dois quilômetros para comprar carne e outros gêneros para a cozinha. Aquela primeira temporada de férias no Rincão dos Groeff, foram para mim um período tudo menos do que uma ocasião de descanso. Além de todas as obrigações na condição de “bedel”, duas outras eventualidades me deixaram de ânimo abalado. Lá pelo dia 20 de dezembro entregaram-me uma carta do Pe. Balduino. Depois de ler o conteúdo fui sentar-me nas raízes de uma árvore aí perto e desandei a chorar. Minha irmã Ana, aquela mencionada mais acima que ficara com a bacia deformada por causa da paralisia infantil, minha confidente e melhor amiga, tinha falecido no dia 17 de dezembro com apenas 32 anos. Essa notícia me derrubou a tal ponto que perdi a vontade de explorar aquele cenário ideal para contemplar, ouvir, cheirar, farejar, apalpar e degustar a mãe natureza em todas as cores e nuances. Daquele episódio levei para o resto da vida uma profunda mágoa com meus superiores da época que não foram capazes de me mandar buscar pois, carro o colégio tinha, para pelo menos depositar uma flor no túmulo da Ana e prestar consolo para minha mãe viúva. A carga foi pesada lembrando que em 11 de janeiro do mesmo ano falecera meu irmão Raimundo, quando também não consegui participar do velório e sepultamento. Logo depois do Natal fui surpreendido por uma gripe e febre alta, dor de garganta e tosse. Um colega meu foi buscar um xarope e sem se dar conta trocou o frasco por um que continha iodo. Engoli uma colherada que me queimou até o estômago. Além de uma dor quase insuportável perdi o gosto por mais de uma semana. Depois de todos esses contratempos não tive condições de participar da excursão que todo grupo fez até o Taimbezinho apesar de toda a vontade de conhecer aquela maravilha da natureza da qual tanto ouvira falar. Fiquei em casa sozinho comigo mesmo o que me rendeu preciosas reflexões.
Na semana depois do Ano Novo planejamos uma excursão até a praia do Barco. Um vizinho ofereceu-se para nos levar no seu velho caminhão de carga, descendo a Serra do Pinto, obviamente toda de chão batido e uma curva fechada emendada na outra. Ao nos aproximarmos da praia do Barco admirei pela primeira vez o oceano que lá longe se confundia com a linha do horizonte. Desembarcamos e armamos as barracas para passar a noite. Sem perder tempo vestimos o calção de banho e fomos até a praia. Pouco me interessei pelo banho. Entrei na água, pulei uma ou outra onda e fui sentar-me fora do alcance da água e por um bom tempo fiquei observando aquele incansável rolar das ondas que há milhões de anos se repete mas nunca cansa. Pelo contrário. O belo grandioso, magnífico e poderoso vem inspirando os poetas desde que o primeiro deles cantou um louvor à magnificência do Criador desse espetáculo da “beleza sempre antiga e sempre nova” de Santo Agostinho, ou o poeta dos poetas Homero deixou há 2500 anos o verso: “To polú pélagos tú kalu ́”- “o imenso mar do belo”. Passamos duas noites acampados nas dunas para subirmos novamente pela velha estrada a Serra do Pinto. Com isso as “férias grandes” estavam indo para o final. Nesses últimos dias o Pe. Balduino veio no seu jeep para me levar com ele até o Taimbezinho. Saímos de manhã e voltamos antes da noite. O impacto, quase susto, que me empolgou com primeira visão do oceano, repetiu-se em termos aqui sentado na borda daquela obra impressionante, façanha das forças telúricas que moldaram e continuam moldando e retocando a face do nosso planeta. O Taimbezinho voltará ser objeto de reflexões mais abaixo em circunstâncias mais próprias. O Pe. Balduino percebeu que eu estava exausto, mais cansado do que antes das férias. Ofereceu-se para, na volta de São Francisco de Paula, levar-me a Vila Oliva para passar 10 dias na Casa da Juventude que lá acolhia alunos do Colégio Anchieta para passarem um mês de férias. Ele já combinara tudo com o Pe. Pouquet, diretor daquela casa. Ele me levou até a Casa da Juventude e me instalei num quartinho isolado logo abaixo do telhado. Nos primeiros dias dormi à vontade e depois passei a conhecer os arredores daquele pedaço de paraíso perdido nos confins daquele planalto terminando nas cabeceiras do rio Caí. Foram dias de isolamento, quase de monge, que me fizeram um bem enorme e me temperaram para enfrentar o novo ano de Filosofia que me esperava em São Leopoldo.