No segundo ano da Filosofia, isto é em 1955, fui destacado para dar catequese no grupo escolar Ipiranga, também à beira da Br. 116, porém em São Leopoldo, na subida do atual viaduto e em frente ao antigo restaurante Tirolesa. Por um semestre ou dois ainda ministrei aulas de história, geografia e ciências para os rapazes internos num anexo do Colégio Cristo Rei. Chamavam essainstituição de Escola de Santo Afonso e os internos de “afonsinos”. Os meninos e adolescentes, os “afonsinos” preparavam-se para entra na Companhia de Jesus como irmãos leigos. Eles veneravam como padroeiro Santo Afonso Rodrigues, irmão leigo jesuíta, nascido em Segóvia na Espanha em 1532.
Depois disso encerrei minha caminhada de catequista, para dedicar-me todo tempo disponível além da Filosofia, à iniciação à pesquisa científica sob a orientação do Pe. Hauser. Pela importância dessa orientação, que se transformaria numa parceria para o resto da vida com o húngaro expulso do seu país por ser jesuíta, merece ser registrada em detalhes. A primeira imagem do Pe. Hauser que gravei na memória data de maio de 1954. Toda a comunidade do Cristo Rei, professores, irmãos leigos, teólogos e filósofos acabavam de se reunir no refeitório comum para o almoço. Foi então que acompanhado pelo superior entrou aquela figura de estatura abaixo da média ostentando uma calvície precoce. O reitor o apresentou como sendo o Frater Josepf Hauser, húngaro que vinha para terminar os estudos de teologia e ordenar-se sacerdote. Mais tarde viriam mais três jesuítas da diáspora húngara da Ordem com sede provisória no exílio no Canadá: o Pe. Gésa Köveces, o Pe. João Ruff e o estudante de teologia Homorodi. Poucos dias depois recebi o pedido para me encontrar com o Hauser. Acontece que ele não conseguia comunicar-se com os colegas de teologia porque ninguém entendia o “portunhol”, um espanhol precário misturado com fragmentos de português. De outra parte nenhum dos estudantes de teologia se dispunha a conversar com ele em alemão. Daquele dia em diante costumava encontrar-me com ele no tempo livre, no recreio depois do almoço. Nos primeiros encontros o pus a par das minhas intenções de dedicar-me a alguma área das Ciências Naturais. Ainda não definira em qual. Meu “faro” me direcionava na direção de uma especialidade relacionada com a compreensão da natureza, sua estrutura e funcionamento e nela o lugar de Deus e do homem.
Como já lembrei mais acima o Pe. Hauser se doutorara na Universidade de Innsbruck, referência em várias áreas do conhecimento: filosofia, teologia, biologia e outras. Naquela época, meados de 1950 o biólogo Ludwig von Bertalanffy entrou em cena com seus estudos sobre sistemas. Na década de 1920 quando von Bertalanffy dava os primeiros passos na sua trajetória científica predominava entre os cientistas das mais diversas especialidades a visão mecanicista na compreensão dos seres vivos. Partia-se da convicção de que decompondo o ser vivo até as últimas minúcias dos seus componentes morfológicos e químicos, era possível identificar a própria natureza da vida e a infinidade de modalidades em que se manifesta. Pois, o jovem biólogo von Bertalanffy, como não poucos outros convenceu-se de que por essa via de abordagem não se dava importância ou até se negava o essencial, isto é, em que consiste o essencial da vida, melhor o “que é a vida”. Essa mesma preocupação e questionamento perpassa as publicações de Erich Wassmann, ainda hoje referência no estudo de como se dá a simbiose entre fungos e formigas e térmites. Por coincidência o veterano Wassmann que conquistara o respeito e a admiração domundo científico e filosófico com sua obra referência “Theoretische Biologie” e os memoráveis embates com Ernst Haeckel no começo do século XX, publicou suas conclusões sobre o fenômeno da vida em “Stimmen der Zeit”, no 100, 1921. Com a evolução das pesquisas e reflexões sobre o que vem a ser na sua essência o estofo da vida e como funciona um ser vivo, levaram Bertlanffya condensar suas conclusões nas duas obras acima lembradas: “Biologisches Weltbild” e Theoretische Biologie”. Para o Seminário de Questões Seletas de Biologia o Pe. Hauser escolhera proposta no “Biologisches Weltbild, isto é, a compreensão de que a vida funciona como um organismo, à maneira de um sistema e não de uma máquina”. Esse Seminário provocou um efeito colateral que mexeu com a orientação da disciplina da Cosmologia ministrada pelo Pe. Luiz Müller. Este fundamentava suas preleções em Hans Driesch e suas experiências com ouriços do mar. Driesch chegou à conclusão que pelo Darwinismo não havia como responder os fenômenos mais complexos da natureza como por. ex., a estrutura e, de modo especial, o funcionamento do organismo vivo. Como tentativa de superar esse impasse teórico propôs a teria do Vitalismo como alternativa ao Darwinismo. Em resumo o Vitalismo concebe o organismo, de um lado formado pelas estruturas e funções orgânicas e, do outro pela “Entelequia” ou “Princípio Vital”. A relação entre as duas realidades acontece à semelhança de um navio comandado por um capitão. O organismo biológico corresponde ao navio e à Entelequia, ao Princípio Vital, cabe a função de comandá-lo e imprimir-lhe a rota certa. Assim, Driesch não logrou superar o velho dualismo que perpassava em grande parte o pensamento ocidental: corpo e alma, espírito e matéria, princípio vital estrutura orgânica, entelequia e funções orgânicas. Por ter chegado a essas conclusão via pesquisa científica e não especulação filosófica e racional, forneceu a munição para o nosso professor de Cosmologia para refutar com dados científicos o evolucionismo, em particular a versão darwinista. A proposta organísmica, mais tarde, enriquecida e complementada com mais dados e com o recurso a modelos matemáticos, levou Bertalanffy a propor “Teoria Geral dos Sistemas” publicado no original em inglês em1968 e sua tradução para o português pela Vozes de Petrópolis em 1977 a primeira edição e a segunda em 2008. Aconteceu então o inevitável. O seminário de Hauser bateu de frente com as preleções do professor de cosmologia. Para uma boa parte de nós jovens estudantes de filosofia ficou claro que o titular da cátedra, com todos os méritos que a justiça lhe manda contabilizar, estagnara no tempo. Nas últimas décadas as Ciências Naturais tinham penetrado fundo nos arcanos da vida e vinham oferecendo evidências cada vez mais definitivas de que os organismos vivos não eram apenas máquinas no entender dos materialistas seguidores de Ernest Haeckel e Julião Huxley, apelidado de o “buldogue de Darwin” e outros. De outra parte também não se resumiam em máquinas operadas por um princípio vital, uma entelequia, uma alma, um “capitão” mantendo o navio na rota certa, com que argumentavam os filósofos e teólogos alinhados com compromissos doutrinários. Chegou ao ponto de um dos meus colegas mais afoitos resolver enfrentar em público o nosso professor de cosmologia.
Prolonguei-me de propósito um pouco mais nesse seminário de “Questões Seletas” para chamar a atenção que foi ministrado na época em que As Ciências Naturais, a Filosofia, a Exegese e a Teologia encontravam-se em franca aproximação e alinhamento. Pio XI criara em 1937 a Pontifícia Academia de Ciências posta a funcionar a todo vapor por Pio XII, integrada por cientistas das mais diversas orientações confessionais, inclusive agnósticos e ateus. Pio XII publicara em setembro de 1943 a Encíclica Divino Afflante Spiritu insistindo na interpretação das Sagradas Escrituras de acordo com as circunstâncias temporais e espaciais em que foram escritas. O mesmo Pio XII publicara em 1950 também a Encíclica Humani Generis, na qual definiu as competências das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito no que tange à origem e evolução do homem.
Compreende-se nesse contexto a repercussão que teve o Seminário de Hauser abrindo as janelas para nós jovens estudantes de filosofia para um panorama renovado, senão revolucionário, do conhecimento a partir das descobertas científicas nos mais diversos campos especializados com destaque para a genética.
Nas nossas conversas quase que diárias fui-me informando sobre a trajetória do Pe. Hauser. Combateu como oficial na Segunda Guerra Mundial incorporado no exército alemão contra as forças soviéticas. Deste período levou para o resto da vida sequelas que marcaram a sua personalidade e a sua maneira de ser. Não entro em detalhes pois, não me sinto com credenciais para tanto. O que, entretanto, valeu foi o fato de que, em questão de pouco tempo, amadureceu a ideia de montar um laboratório de pesquisas. Acontece que, depois da oficialização do Curso de Filosofia os superiores maiores dos jesuítas no sul do Brasil, decidiram dar um passo adiante no lançamento das bases para uma futura universidade. Não demorou para que o Curso de Línguas Clássicas que eu concluíra em 1953 em Pareci Novo, também fosse oficializado pelo Ministério da Educação. Ao Pe. Theobaldo Franz, como “Prefeito dos Estudos”, isto é, responsável pelo bom andamento e ampliação do ensino médio e superior sob a jurisdição da Província Sul brasileira da Companhia de Jesus, decidira implantar o Curso de História Natural pois, o cultivo das Ciências Naturais, fazia parte importante da história da Província. Foi com essa finalidade que convidou o Pe. Hauser com doutorado na área na universidade de Innsbruck como já lembramos acima. Em sua bagagem ele trouxera um microscópio binocular de última geração, uma lupa e um micrótomo da famosa indústria ótica “Zeiss”, além de reagentes básicos para a preparação de lâminas. O reitor do Colégio Cristo Rei cedeu um quarto no segundo andar para instalar o “laboratório”. Foi oembrião para que mais tarde, já implantados o bacharelado em Filosofia, Línguas Clássicas e Pedagogia além de, em 1957, esses cursos fossem abertos ao público leigo e instalados nos antigos prédios no centro de São Leopoldo e em 1958 implantado o bacharelado em História Natural e Ciências Sociais. Só para não haver mal entendidos. Na época obtinha-se o bacharelado cursando primeiro as disciplinas dos conteúdos específicos da área e a licenciatura numa etapa posterior de dois semestres de disciplinas didático-pedagógicas para obter a licenciatura.