Da Enxada à Cátedra [ 44 ]

Já que estou recordando férias passo às recordações do período de “férias maiores” entre o segundo e o terceiro do bacharelado em Filosofia, entre dezembro de 1955 e janeiro de 1956, gozadas novamente no Rincão dos Groeff. Dessa vez o “bedel de férias” foi um colega meu. Sem compromissos resolvi aproveitar ao máximo as oportunidades que aquele cenário único oferecia. Costumava levantar cedo e ao clarear do dia o Pe. Marcus Bach e mais algum colega tomávamos um banho na água fria e cristalina de uma cascata a meio quilômetro distante na beira do campo. Rejuvenescidos com aquela ducha gelada, assistíamos à missa num depósito fechado com uma porta de entrada e duas aberturas só com tampões. Durante uma daquelas missas uma vaca resolveu participar. Enfiou a cabeça pela abertura e nos brindou com um daqueles mugidos de despertar defunto. Depois de dar a sua contribuição no ato litúrgico foi pastar tranquilamente no campo próximo à capela improvisada. Em companhia de um ou dois colegas saíamos todos os dias para vasculhar a floresta virgem na beira do campo e na encosta do planalto. Três magníficas cascatas costumavam servir de ponto de parada para tomar um lanche e às vezes para almoçar. Cada dia nos esperava com uma surpresa. Naqueles idos de 1955 para 1956 aqueles campos, capões isolados e mata virgem na borda permaneciam quase intatos. Apenas manadas de gado engordavam naquelas passagens nativas, porém, sem agredir a beleza da natureza. Muito pelo contrário, acrescentando-lhe mais um elemento significativo que a partir de meados do século XVII transformou os Campos de Cima da Serra na historicamente conhecida e lendária “Vacaria dos Pinhais. Um senão de não pouco significado paisagístico e ecológico não pode ser esquecido. Nos 10 anos que precederam as nossas férias no Rincão dos Groeff, centenas, milhares e atrevo- me a afirmar, milhões de araucárias, copas encostando umas nas outras, formando como que um guarda-chuva cinco ou mais metros acima do mato branco, deixaram de existir. Por toda a parte nos capões e, de modo especial, na faixa de floresta na beira do planalto, os esqueletos de nós das copas deixadas para trás testemunhavam a sanha e ganância dos madeireiros. Em questão de uma década, salvo bolsões dispersos, a majestade das florestas de araucárias foi varrida da paisagem do planalto. Reboques e mais reboques parecendo carreiros de formigas transportando tábuas desciam de São Francisco de Paula em direção ao porto de Porto Alegre. O Pe. Balduino chamava-os de “coveiros dos pinhais”. Hoje protegidos pelas leis ambientais os novos complexos de araucárias vão-se recuperando, pelo menos em parte. Uma mancha intocada da floresta original pode ser observada na encosta à direita onde o Taimbé muda de direção. Exemplares isolados podem ser observados em locais onde não foi impossível tirá-los como na descida do Taimbé perto da sede do parque.

Camufladas nos tufos mais altos do capim do campo as perdizes e perdigões escondiam seus ninhos. Chegando perto levantavam voo e, desenhando um arco elegante, aterrissavam e sumiam no capim 30 ou mais metros adiante. Encontravam-se por toda parte tocas de tatu. Ao escurecer saíam dos esconderijos para se alimentarem de minhocas e frutinhas espalhadas pelo chão da mata. Sabendo onde se escondia a toca e flagrando seu inquilino esgueirando-se pelo campo ou no campo aberto, de preferência em noites de luar, era fácil capturá-lo. Bastava alguém ficar de espreita ao lado da toca com um saco colocado na entrada e os demais surpreender o tatu. Este corria direto para a toca e caía na armadilha. Lembro-me de ter capturado um deles e levado para São Leopoldo onde terminamos por soltá-lo onde hoje se encontra o campus da Unisinos, então coberto de eucaliptos com alguns restos de mata nativa. Numa dessas explorações nos deparamos com um casal de filhotes meio crescidos de cachorros selvagens conhecidos como “raposas” pelos colonos e fazendeiros. Estes também nos acompanharam na volta das férias. Depois de já bem crescidos foram soltos também no mesmo lugar do tatu. Mais tarde foram seguidamente vistos ao entrarmos naqueles refúgios onde inclusive havia um córrego com uma cascatinha e um belo bambusal onde hoje passa a avenida e está localizada a rodoviária do campus e o estacionamento da Escola de Humanidades. Acontece que a captura de espécies silvestre não acabou com as que acabo de citar. Certo dia, ao explorar a mata nos fundos das benfeitorias da fazenda topamos com uma enorme caneleira do mato com um oco na altura de uns 3 metros. Do oco saiu voando um tucano e dentro dele ouvia-se a algazarra dos filhotes. Estes não tardariam em abandonar o ninho e levar sua vida autônoma naquele mundo maravilhoso e cheio de surpresas. Na véspera do término das férias fomos recolher os filhotes para levá-los também até São Leopoldo. Em casa montamos uma gaiola bem grande e os tratamos até estarem condições de se defenderem por conta própria. Depois de um mês, foram soltos naqueles bosques que ainda hoje estão parcialmente preservados à direita da subida da Avenida Unisinos partindo da estação do trem. No lugar do Bairro Cristo Rei a área servia para a pastagem de vacas e plantação de milho. Mas, não terminaram por aí as nossas descobertas de animais nativos. No oco de uma outra árvore centenária localizamos um ninho de macucos com filhotes quase maduros para a vida autônoma. Levamos dois deles para o Cristo Rei. Instalamos um cercado de bom tamanho para acomodá-los em companhia de um inambu capturado numa armadilha. Todos eles foram mais tarde também soltos na área onde se encontra hoje o campus da Unisinos. Não tenho a mínima ideia do que aconteceu com eles depois disso. A última captura de que me recordo foi de um filhote de papagaio dos pinheirais encontrado no oco de uma araucária a uma altura de 10 ou mais metros. Foi preciso laçar um galho da árvore para subir até o ninho. Esse papagaio seria por meses o meu companheiro de quarto. Dormia dentro do meu guarda-roupa e, quando escrevia à máquina adorava pousar no carrinho e viajar inúmeras vezes ida e volta tentando pegar as letras com o bico, enquanto datilografava algum texto.

Naquele período de férias também planejamos um acampamento de dois ou três dias na praia do Barco. Desta vez quem nos levou foi o grande caminhão do Cristo Rei e o motorista o irmão Anselmo Renner, já lembrado mais acima. Do acampamento em si na praia não guardei nada de especial na memória. Na volta, ao chegarmos ao campo já no planalto fomos surpreendidos por uma dessas chuvas pesadas de verão. A estrada de chão batido transformou-se num lodaçal escorregadio e, como anoitecia, o faro do irmão Renner aconselhou não continuar a viagem no escuro da noite. Armamos uma barraca e estendemos uma lona sobre a carroceria do caminhão e passamos a noite ao som da sinfonia da natureza que ecoava, ao mesmo tempo, do campo, da floresta nas bordas e descidas do planalto e do fundo escuro do vale das Três Forquilhas. Durante a noite parou de chover e na manhã seguinte, 6 de janeiro dia dos Reis Magos, o caminhão escorregando e derrapando em cada curva, terminamos sem maiores contratempos, no Rincão dos Groeff. Passamos o dia recolhendo e acomodando os nossos pertences no caminhão para no dia seguinte voltarmos para São Leopoldo.

Não me lembro mais com exatidão se foi no segundo ou terceiro ano de filosofia uma flotilha de caças a jato americanos de última geração percorreu diversos países da América do sul, fazendo demonstrações e, obviamente propaganda para o seu país. Acompanhava-os um gigantesco “Globmaster” de suporte ainda com motores convencionais de hélice. O primeiro piloto a romper a barreira de som em 1947, Chuck Yeager, integrava a flotilha. O acontecimento foi amplamente anunciado pelos jornais e rádios da época. Como eu alimentava um autêntico fascínio por avões a jato, obtive autorização de ir até a base aérea de Canoas em companhia do colega Eládio Monteiro que fora mecânico de manutenção da FAB durante a guerra, fizera curso de treinamento nos Estados Unidos e depois serviu durante vários anos a Panair como mecânico de aeronaves. Resolveu então entrar na Companhia de Jesus no mesmo ano que eu. Tornou-se meu amigo e com ele treinei meu inglês que não passava muito das noções elementares aprendidas em Salvador do Sul e num curso oferecido de três dúzias de lições impressas compilada pela Editora Langesnscheidt, ainda antes da era do linguafone. Resolvemos fazer o trajeto de São Leopoldo até Canoas a pé de batina e chapéu clerical. Na altura do então não existente viaduto de Sapucaia, um caminhão parou no acostamento um pouco adiante e nos convidou para uma carona. Desembarcamos em Canoas na entrada para a base aérea e a sorte de novo nos favoreceu. Um senhor que também se dirigia para a base ofereceu carona até o destino. Aconteceu que o Eládio encontrou entre o pessoal da base um ou outro conhecido do tempo em que servira na FAB. O enorme “Globmaster” de apoio já esperava e não demorou fizemos amizade com um dos oficiais da aeronave, católico e chegado aos jesuítas na sua cidade natal nos Estados Unidos. Explicou as características daquele avião, sua função na Força Aérea Americana, a potência dos 4 motores, sua capacidade de carga e transporte de tropas. Não nos foi permitido entrar no avião, apenas uma espiada pela porta para o seu interior. Lá pelo fim da manhã apareceu no horizonte a flotilha de jatos. Não me recordo exatamente quantos foram. Num voo rasante a pouca altura acompanhado do uivo mesclado com o estrondo e o ronco característico desse tipo de motor, passaram por cima da base para terminar exibindo um espetáculo aéreo de parar o fôlego. Depois de pousar alinharam-se com o avião de apoio e os pilotos desembarcaram para o almoço. Meu colega Eládio saudou um deles e ao perceber que ele falava bem o inglês terminou nos levando até o seu jato e permitiu que dessemos uma espiada na cabine com seus instrumentos de navegação. Lá pela meia tarde um visitante de São Leopoldo nos ofereceu carona para voltar para casa.

This entry was posted on sábado, 19 de outubro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.