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Depois dessa contextualização, vamos à instalação do laboratório no quarto que nos foi cedido. Para começar dispúnhamos do microscópio, do micrótomo e da lupa que Pe. Hauser trouxera, mais alguns ingredientes necessários para preparar as lâminas. Mas, para começar o trabalho científico propriamente dito foi preciso providenciar por água destilada. A saída foi recorrer à criatividade. O irmão cozinheiro cedeu uma panela de ferro fora de uso. Na sua tampa adaptamos uma serpentina que passava por uma vasilha pela qual circulava água fria e assim o vapor vindo da panela condensava e dispúnhamos da água destilada, porém, em quantidade insuficiente. Acontece que, a pouca distância o Colégio mantinha uma série de instalações, entre elas uma marcenaria, uma ferraria, garagem para caminhão e um destilaria para extrair o óleo das folhas do eucalipto que formava uma floresta onde hoje fica o campus da Unisinos. Um dos subprodutos da destilação era água destilada que fluía de uma tubulação da caldeira. Depois dessa descoberta dispúnhamos de água destilada mais do que o necessário. Tudo instalado o trabalho científico pôde começar. O Pe. Hauser que há anos se vinha especializando na regeneração de Planárias, retomou suas pesquisas nessa área, e eu sob sua orientação aprendi as técnicas de preparação de lâminas para observação microscópica. Não é aqui o momento para descrever essas técnicas. Como matéria prima fui capturar alguns preás que povoavam a vegetação rasteira em torno da horta e da lagoa nas proximidades. Amostras de músculos, vísceras, cérebro e outras partes serviram para a preparação das minhas primeiras lâminas. Lembro-me como se tivesse sido ontem, quando num domingo de tarde, observei no microscópio uma dessas primeiras lâminas e contemplei com entusiasmo o maravilhoso, misterioso e complexo mundo de cromossomos do interior de uma célula. Daí para frente passava todos os momentos disponíveis naquele laboratório improvisado. Não me imaginava que, sob a batuta do Pe. Hauser e em parceria com ele acabávamos de dar vida ao embrião do qual evoluiriam poucos anos depois (1958) os laboratórios de biologia do curso de História Natural da Unisinos.

O episódio que acabo de lembrar consolidou em mim a convicção de, na etapa seguinte da minha formação acadêmica, depois do bacharelado em filosofia, partir para o bacharelado em História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Neste meio tempo o Pe. Hauser já fizera contato com os docentes daquele curso e com eles mantinha um ativo intercâmbio de informações. No segundo semestre de 1956, último dos três anos da filosofia, levou-me até as instalações da História Natural da UFRGS, na época na rua Paulo Gama no prédio vizinho da Reitoria, na esquina da Av. Osvaldo Aranha. O objetivo foi conhecer os laboratórios e as possibilidades de pesquisa que ofereciam. Conversamos um bom tempo com o Prof. Antônio Cordeiro titular da disciplina de Genética, uma área que despontava como um campo de pesquisas promissor sob o ponto de vista teórico e, de modo especial, na sua aplicação prática em muitas áreas, com por ex., na medicina. Um segundo motivo dessa visita foi colher informações e orientações sobre os conteúdos e a preparação do vestibular que iria enfrentar em fevereiro de 1957. Saí daquela visita mais do que nunca determinado a mergulhar fundo no fantástico universo da Natureza. Obviamente não tinha condições de, naquela altura, decidir em que área específica iria me especializar. É verdade que percebia em mim uma inclinação especial pela genética. Num encontro posterior com o Pe. Balduino, meu irmão, o pus à par da minha decisão e ele, sem mais nem menos, observou que pensasse seriamente de me especializar em genética pois, no seu entendimento entre o grupo de cientistas jesuítas que, em 1956 fundaram o “Instituto Anchietano de Pesquisas”, um especialista em genética acrescentaria muito. Mais abaixo volto ao assunto para explicar o motivo por que não evolui para um especialista em genética como aliás, não terminei me especializando em nenhum dos muitos campos da História Natural.

Mas, não terminaram aí as atividades paralelas ao estudo da filosofia. Já falei da catequese, das aulas para os “afonsinos” e da instalação do laboratório de pesquisas. No mesmo período traduzi para o português o livro do Dr. Wolfram Metzler “Rettewir unsere Kolonien” “Salvemos as nossas Colônias”. Essa obra teve como foco os problemas que enfrentavam os agricultoresfamiliares na década de 1950, com destaque para o manejo correto dos solos, adubação orgânica, renovação e melhoria genética dos animais domésticos e por vai. Essa obra faz parte de uma série de providências que estavam sendo implementadas pela Sociedade União Popular. Incluíam, além das já mencionadas, o estágio de um ano ou mais de filhos de colonos em estabelecimentos modelo de produção agrícola e criação de aves, gado leiteiro, suínos e outros, na Alemanha, Suíça e Áustria,

Por um bom tempo viajava todos os domingos de manhã para Porto Alegre para encontrar-me com meu irmão o Pe. Balduino a fim de fotografar as dezenas de milhares de espécies de plantas colhidas durante mais de duas décadas e devidamente acondicionadas em caixas de madeira. Para esse trabalho tinha à disposição um aparelho fotográfico Laica devidamente montada num tripé, operando com filme preto e branco. Ao mesmo tempo ele me pediu para fazer uma cópia datilografada do fichário da coleção de plantas. Para tanto cedeu-me uma máquina de escrever Erika portátil mecânica, as elétricas eram praticamente desconhecidas no país naqueles idos de 1950. Levei a máquina e uma caixa de fichas para São Leopoldo. Nos espaços de tempo disponíveis no intervalo entre as outras tarefas, copiei milhares de fichas. Quantas exatamente não me recordo. Guardo como uma lembrança preciosa desse meu irmão mais velho essa máquina “Erika”, ainda em perfeito estado de conservação e funcionamento, trazida por ele da Alemanha no começo da década de 1930, depois de concluído o curso de Filosofia em Pullach, perto de Munique.

Das minhas vivências dos três anos do bacharelado de Filosofia falta ainda registrar a conclusão com um exame final oral incluindo todos os conteúdos básicos do currículo dos três anos, excluindo as “questões seletas”. Fui examinado, evidentemente em latim, por uma banca composta pelos docentes das disciplinas-tronco. Os questionamentos levaram praticamente uma manhã inteira. Fui aprovado com folga e com isso declarado em condições de mais tarde entrar na licenciatura de Teologia na categoria de “Teologia Maior”. O significado do termo já deixei explicado mais acima.

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No segundo ano da Filosofia, isto é em 1955, fui destacado para dar catequese no grupo escolar Ipiranga, também à beira da Br. 116, porém em São Leopoldo, na subida do atual viaduto e em frente ao antigo restaurante Tirolesa. Por um semestre ou dois ainda ministrei aulas de história, geografia e ciências para os rapazes internos num anexo do Colégio Cristo Rei. Chamavam essainstituição de Escola de Santo Afonso e os internos de “afonsinos”. Os meninos e adolescentes, os “afonsinos” preparavam-se para entra na Companhia de Jesus como irmãos leigos. Eles veneravam como padroeiro Santo Afonso Rodrigues, irmão leigo jesuíta, nascido em Segóvia na Espanha em 1532.

Depois disso encerrei minha caminhada de catequista, para dedicar-me todo tempo disponível além da Filosofia, à iniciação à pesquisa científica sob a orientação do Pe. Hauser. Pela importância dessa orientação, que se transformaria numa parceria para o resto da vida com o húngaro expulso do seu país por ser jesuíta, merece ser registrada em detalhes. A primeira imagem do Pe. Hauser que gravei na memória data de maio de 1954. Toda a comunidade do Cristo Rei, professores, irmãos leigos, teólogos e filósofos acabavam de se reunir no refeitório comum para o almoço. Foi então que acompanhado pelo superior entrou aquela figura de estatura abaixo da média ostentando uma calvície precoce. O reitor o apresentou como sendo o Frater Josepf Hauser, húngaro que vinha para terminar os estudos de teologia e ordenar-se sacerdote. Mais tarde viriam mais três jesuítas da diáspora húngara da Ordem com sede provisória no exílio no Canadá: o Pe. Gésa Köveces, o Pe. João Ruff e o estudante de teologia Homorodi. Poucos dias depois recebi o pedido para me encontrar com o Hauser. Acontece que ele não conseguia comunicar-se com os colegas de teologia porque ninguém entendia o “portunhol”, um espanhol precário misturado com fragmentos de português. De outra parte nenhum dos estudantes de teologia se dispunha a conversar com ele em alemão. Daquele dia em diante costumava encontrar-me com ele no tempo livre, no recreio depois do almoço. Nos primeiros encontros o pus a par das minhas intenções de dedicar-me a alguma área das Ciências Naturais. Ainda não definira em qual. Meu “faro” me direcionava na direção de uma especialidade relacionada com a compreensão da natureza, sua estrutura e funcionamento e nela o lugar de Deus e do homem.

Como já lembrei mais acima o Pe. Hauser se doutorara na Universidade de Innsbruck, referência em várias áreas do conhecimento: filosofia, teologia, biologia e outras. Naquela época, meados de 1950 o biólogo Ludwig von Bertalanffy entrou em cena com seus estudos sobre sistemas. Na década de 1920 quando von Bertalanffy dava os primeiros passos na sua trajetória científica predominava entre os cientistas das mais diversas especialidades a visão mecanicista na compreensão dos seres vivos. Partia-se da convicção de que decompondo o ser vivo até as últimas minúcias dos seus componentes morfológicos e químicos, era possível identificar a própria natureza da vida e a infinidade de modalidades em que se manifesta. Pois, o jovem biólogo von Bertalanffy, como não poucos outros convenceu-se de que por essa via de abordagem não se dava importância ou até se negava o essencial, isto é, em que consiste o essencial da vida, melhor o “que é a vida”. Essa mesma preocupação e questionamento perpassa as publicações de Erich Wassmann, ainda hoje referência no estudo de como se dá a simbiose entre fungos e formigas e térmites. Por coincidência o veterano Wassmann que conquistara o respeito e a admiração domundo científico e filosófico com sua obra referência “Theoretische Biologie” e os memoráveis embates com Ernst Haeckel no começo do século XX, publicou suas conclusões sobre o fenômeno da vida em “Stimmen der Zeit”, no 100, 1921. Com a evolução das pesquisas e reflexões sobre o que vem a ser na sua essência o estofo da vida e como funciona um ser vivo, levaram Bertlanffya condensar suas conclusões nas duas obras acima lembradas: “Biologisches Weltbild” e Theoretische Biologie”. Para o Seminário de Questões Seletas de Biologia o Pe. Hauser escolhera proposta no “Biologisches Weltbild, isto é, a compreensão de que a vida funciona como um organismo, à maneira de um sistema e não de uma máquina”. Esse Seminário provocou um efeito colateral que mexeu com a orientação da disciplina da Cosmologia ministrada pelo Pe. Luiz Müller. Este fundamentava suas preleções em Hans Driesch e suas experiências com ouriços do mar. Driesch chegou à conclusão que pelo Darwinismo não havia como responder os fenômenos mais complexos da natureza como por. ex., a estrutura e, de modo especial, o funcionamento do organismo vivo. Como tentativa de superar esse impasse teórico propôs a teria do Vitalismo como alternativa ao Darwinismo. Em resumo o Vitalismo concebe o organismo, de um lado formado pelas estruturas e funções orgânicas e, do outro pela “Entelequia” ou “Princípio Vital”. A relação entre as duas realidades acontece à semelhança de um navio comandado por um capitão. O organismo biológico corresponde ao navio e à Entelequia, ao Princípio Vital, cabe a função de comandá-lo e imprimir-lhe a rota certa. Assim, Driesch não logrou superar o velho dualismo que perpassava em grande parte o pensamento ocidental: corpo e alma, espírito e matéria, princípio vital estrutura orgânica, entelequia e funções orgânicas. Por ter chegado a essas conclusão via pesquisa científica e não especulação filosófica e racional, forneceu a munição para o nosso professor de Cosmologia para refutar com dados científicos o evolucionismo, em particular a versão darwinista. A proposta organísmica, mais tarde, enriquecida e complementada com mais dados e com o recurso a modelos matemáticos, levou Bertalanffy a propor “Teoria Geral dos Sistemas” publicado no original em inglês em1968 e sua tradução para o português pela Vozes de Petrópolis em 1977 a primeira edição e a segunda em 2008. Aconteceu então o inevitável. O seminário de Hauser bateu de frente com as preleções do professor de cosmologia. Para uma boa parte de nós jovens estudantes de filosofia ficou claro que o titular da cátedra, com todos os méritos que a justiça lhe manda contabilizar, estagnara no tempo. Nas últimas décadas as Ciências Naturais tinham penetrado fundo nos arcanos da vida e vinham oferecendo evidências cada vez mais definitivas de que os organismos vivos não eram apenas máquinas no entender dos materialistas seguidores de Ernest Haeckel e Julião Huxley, apelidado de o “buldogue de Darwin” e outros. De outra parte também não se resumiam em máquinas operadas por um princípio vital, uma entelequia, uma alma, um “capitão” mantendo o navio na rota certa, com que argumentavam os filósofos e teólogos alinhados com compromissos doutrinários. Chegou ao ponto de um dos meus colegas mais afoitos resolver enfrentar em público o nosso professor de cosmologia.

Prolonguei-me de propósito um pouco mais nesse seminário de “Questões Seletas” para chamar a atenção que foi ministrado na época em que As Ciências Naturais, a Filosofia, a Exegese e a Teologia encontravam-se em franca aproximação e alinhamento. Pio XI criara em 1937 a Pontifícia Academia de Ciências posta a funcionar a todo vapor por Pio XII, integrada por cientistas das mais diversas orientações confessionais, inclusive agnósticos e ateus. Pio XII publicara em setembro de 1943 a Encíclica Divino Afflante Spiritu insistindo na interpretação das Sagradas Escrituras de acordo com as circunstâncias temporais e espaciais em que foram escritas. O mesmo Pio XII publicara em 1950 também a Encíclica Humani Generis, na qual definiu as competências das Ciências Naturais e das Ciências do Espírito no que tange à origem e evolução do homem.

Compreende-se nesse contexto a repercussão que teve o Seminário de Hauser abrindo as janelas para nós jovens estudantes de filosofia para um panorama renovado, senão revolucionário, do conhecimento a partir das descobertas científicas nos mais diversos campos especializados com destaque para a genética.

Nas nossas conversas quase que diárias fui-me informando sobre a trajetória do Pe. Hauser. Combateu como oficial na Segunda Guerra Mundial incorporado no exército alemão contra as forças soviéticas. Deste período levou para o resto da vida sequelas que marcaram a sua personalidade e a sua maneira de ser. Não entro em detalhes pois, não me sinto com credenciais para tanto. O que, entretanto, valeu foi o fato de que, em questão de pouco tempo, amadureceu a ideia de montar um laboratório de pesquisas. Acontece que, depois da oficialização do Curso de Filosofia os superiores maiores dos jesuítas no sul do Brasil, decidiram dar um passo adiante no lançamento das bases para uma futura universidade. Não demorou para que o Curso de Línguas Clássicas que eu concluíra em 1953 em Pareci Novo, também fosse oficializado pelo Ministério da Educação. Ao Pe. Theobaldo Franz, como “Prefeito dos Estudos”, isto é, responsável pelo bom andamento e ampliação do ensino médio e superior sob a jurisdição da Província Sul brasileira da Companhia de Jesus, decidira implantar o Curso de História Natural pois, o cultivo das Ciências Naturais, fazia parte importante da história da Província. Foi com essa finalidade que convidou o Pe. Hauser com doutorado na área na universidade de Innsbruck como já lembramos acima. Em sua bagagem ele trouxera um microscópio binocular de última geração, uma lupa e um micrótomo da famosa indústria ótica “Zeiss, além de reagentes básicos para a preparação de lâminas. O reitor do Colégio Cristo Rei cedeu um quarto no segundo andar para instalar o “laboratório”. Foi oembrião para que mais tarde, já implantados o bacharelado em Filosofia, Línguas Clássicas e Pedagogia além de, em 1957, esses cursos fossem abertos ao público leigo e instalados nos antigos prédios no centro de São Leopoldo e em 1958 implantado o bacharelado em História Natural e Ciências Sociais. Só para não haver mal entendidos. Na época obtinha-se o bacharelado cursando primeiro as disciplinas dos conteúdos específicos da área e a licenciatura numa etapa posterior de dois semestres de disciplinas didático-pedagógicas para obter a licenciatura.

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Bacharelado em Filosofia

Depois de concluído o bacharelado em Línguas e Literatura clássica no Instituto São José em Pareci Novo em 1953, esperava uma nova etapa da minha formação acadêmica para o ano de 1954: o bacharelado em Filosofia no Colégio Cristo Rei em São Leopoldo. A minha turma seria a primeira a integrar o bacharelado de Filosofia oficializado em outubro do ano anterior pelo Ministério da Educação. Até então os estudos de Filosofia, embora de alto nível, atendiam apenas às exigências de formação acadêmica dos jesuítas. Não posso deixar de render, como dever de justiça, uma homenagem especial de reconhecimento ao Pe. Urbano Thiesen, o responsável maior pela tramitação exitosa do processo de reconhecimento junto às instâncias federais, com destaque para o Ministério da Educação sob o comando de Antônio Balbino.

Em 18 de janeiro de 1954 despedimo-nos do Instituto São José em Pareci Novo com destino para o Colégio Máximo Cristo Rei em São Leopoldo. Fomos alojados em quartos individuais amplos com cama, escrevaninha uma estante, além de um roupeiro e duas cadeiras. Meu quarto foi o primeiro logo na subida da escada no segundo andar. Com isso dispúnhamos de privacidade total coisa que não tínhamos em Pareci Novo. Lá dormíamos em espaços delimitados por biombos e estudávamos numa sala comum. As novas condições permitiam-nos a organização do ambiente de estudo e a tranquilidade para descansar sem sermos perturbados. Pois, esse quarto no começo e nos três anos que se seguiram, foi o mundo que me permitiu mergulhar fundo nos diversos campos da Filosofia e entrar em contato com conhecimentos complementares, valendo-me da excelente biblioteca de que dispúnhamos. Mais abaixo pretendo detalhar as atividades a que me estou referindo. Em resumo. Encontrava-me no limiar para me familiarizar, nos três anos seguintes, com as escolas do pensamento filosófico e seus respetivos formuladores e com isso conquistar meu segundo bacharelado.

Mais acima já lembrei que a Faculdade de Filosofia, reconhecida no ano anterior pelo Ministério da Educação, entraria no seu primeiro semestre. Acontece que a nova situação vinha acompanhada de uma série de demandas de natureza formal, para atender as normas ditadas pelo Ministério da Educação. A secretaria e os arquivos da faculdade em fase de instalação não dispunham dos históricos escolares do tempo do ginásio em Salvador do Sul dos, se bem me lembro, de pouco mais de 20 candidatos. Essa documentação, devidamente rubricada pelo superior provincial, fazia parte dos pressupostos para prestar o exame vestibular. O Pe Thiesen encarregou-me da coleta desses registros nos arquivos do Colégio Santo Inácio. Não lembro exatamente do dia, mas deve ter sido lá pelo dia 20 de janeiro embarquei no trem em São Leopoldo e viajei para Salvador do Sul. Recolhi-me num quarto que me foi indicado e copiei à mão um por um o currículo ginasial dos candidatos. Em questão de três dias dei conta a tarefa. Voltei realizado para São Leopoldo. O Pe. Thiesen providenciou a assinatura do superior provincial, na época o Pe. Jorge Steiger. O vestibular somente oral ocorreu em meados do mês de fevereiro presidida por uma comissão examinadora de professores de filosofia da instituição. Pelo que me recordo resumiu-se, antes de mais nada, num ritual burocrático do que propriamente seletivo. De qualquer maneira todos os inscritos cursariam a filosofia obrigatoriamente por integrar a formação de um jesuíta. O início do primeiro semestre letivo foi precedido por um retiro espiritual de 8 dias.

As preleções tiveram início em começos de março. O currículo para os três anos previa um conjunto de disciplinas que formavam, por assim dizer, o tronco-mestre da formação filosófica: Lógica, Ontologia, Metafísica, Cosmologia, Ética, História da Filosofia. As preleções sobre essas disciplinas eram dadas em latim como também as dúvidas formuladas pelos alunos e as explicações dos professores. Os principais professores desse conjunto básico foram o Pe. Antônio Steffen responsável pela lógica, ontologia e metafísica, o Pe. Luiz Müller pela cosmologia; o Pe. Ruff pela ética; o Pe. Thiesen pela história da filosofia. Para enriquecer o currículo e consequentemente a amplitude, diversificação e aprofundamento do conhecimento filosófico, ofereciam-se conteúdos conhecidos no nosso meio acadêmico como “questiones selectae”, isto é, “questões seletas”. O número delas e as especialidades abordadas variavam de acordo com os interesses e, principalmente, pela disponibilidade de especialistas. Nos meus três anos de filosofia lembro-me de duas dessas disciplinas. A primeira versou sobre questões seletas de Psicologia ministradas pelo Pe. Walter Hofer que, na década de 1940, tinha sido o superior provincial da Província Sul Brasileira dos jesuítas. Confesso que aqueles conteúdos e a maneira como foram apresentados não me entusiasmaram por aquela área do conhecimento que naquela altura começava a entrar na moda como uma promissora especialidade a ser explorada pela academia. Um impacto incomparavelmente maior, para não dizer decisivo para a minha caminhada acadêmica posterior, foi o semestre de “questões seletas” ministrado pelo estudante de teologia Josef Hauser, um dos muitos jesuítas expulsos da Hungria pela ocupação soviética. Vinha com o doutorado em biologia pela universidade de Innsbruck na Áustria. Entusiasta e profundo conhecedor das pesquisas sobre o funcionamento dos organismos vivos de Ludwig von Bertalanffy, ministrou-nos um seminário num semestre, se não me falha a memória em 1955. Num linguajar pitoresco de uma mistura de espanhol com português, teve o efeito de um estopim que despertou em mim uma curiosidade que me alimenta até hoje pelo “como” da estrutura e funcionamento dos organismos. Ele me emprestou as duas obras: “Theoretische Biologie” e “Biologisches Weltbild, do cientista acima referido publicados o segundo em 1949 e o primeiro em 1951. Depois desse seminário o Hauser e eu consolidamos, por assim dizer, uma parceria científica que durou até o seu falecimento em 2004. Mais abaixo pretendo me alongar mais sobre a parceria científica consolidada com o Pe. Hauser.

Um exame oral perante uma banca examinadora, evidentemente em latim, marcou o encerramento do ano acadêmico. Um detalhe merece ser lembrado. O exame final do terceiro ano incluía os conhecimentos acumulados nos três anos anteriores. O aluno que conquistasse um plenamente aprovado ou acima disso, seria candidato a cursar mais tarde a “Teologia Maior”, quem ficava aquém desse nível de aprovação entraria, também mais tarde, na “Teologia Menor”. Obtive um resultado mais que suficiente para entrar na “Teologia Maior”. Fica a pergunta: qual a diferença entre Teologia Maior e Teologia Menor? Tento explicar. Em poucas palavras, as preleções no nível da Teologia Maior direcionavam-se para um aprofundamento mais teórico e científico dos conteúdos dogmáticos, da História da Igreja, da Exegese, do Direito Canônico e outros. As preleções no nível da Teologia Menor ofereciam as disciplinas num formato mais prático para facilitar a atividade pastoral, educacional, assistencial, etc., em princípio campos do trabalho futuro dos estudantes. Mais abaixo ao comentar a minha formação teológica pretendo lembrar mais detalhadamente as diferenças entre os dois níveis.

Os três anos de Filosofia, como em todos os estágios da minha formação anterior, renderam experiências e vivências valiosas à margem da formação filosófica, razão de ser daquele período. Assim como em Pareci Novo durante o Noviciado e o Juniorado, a quarta-feira continuava a ser o “dia de chácara”, isto é, dia reservado para atividades de livre escolha: piqueniques, passeios pelas redondezas, leituras, dedicação a algum hobby da preferência individual. Na parte da manhã do primeiro ano assumi a catequese numa escola elementar pública em Três Portos, localizada nas margens da Br 116, na descida do viaduto para a lateral em direção a São Leopoldo. Naquele remoto 1954 a Br 116 encontrava-se em fase de duplicação a partir de Porto Alegre e aquele viaduto que liga Sapucaia a Gravataí evidentemente não existia e a estrada que leva àquela cidade não passava de uma sequência de lodaçais em período de chuva e de buracos e areia solta nos meses de verão mais secos. Fazia todo o trajeto de ida e volta a pé no mau e no bom tempo, vestindo batina e chapéu clerical na cabeça caminhando na margem da Br 116. Não há como comparar o baixo fluxo do trânsito daquela época com os congestionamentos e monumentais engarrafamentos de hoje. Com um pouco de sorte algum caminhoneiro parava no acostamento e oferecia carona e a caminhada monótona cedia lugar a um bom papo com aqueles personagens emblemáticos e simpáticos na boleia, a maioria circulando entre Porto Alegre e a região italiana do planalto: Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Veranópolis, Garibaldi, Farroupilha, etc. Em começos de dezembro a missão como catequista em três Portos estava cumprida.

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Nas segundas, terças, quintas e sextas-feiras a programação do intervalo da 16 às 17,30h ficava reservado à livre escolha de cada um. Na quarta-feira não havia atividade acadêmica programada. No jargão da instituição era o “dia de xácara”. Na parte da manhã os juniores costumavam dispersar-se pelas redondezas para dar catequese. Fui destacado para a escola da comunidade de Matiel, a meio caminho entre Pareci Novo e São Sebastião do Caí, onde a catequese era ministrada ainda em alemão. Percorria aquele trajeto de uma hora e pouco, de batina e chapéu clerical, patinando na areia solta quando seca ou atolando nela depois da chuva ou mesmo na chuva. Nas quartas-feiras de tarde e nas demais horas disponíveis nas tardes dos outros dias e nos fins de semana meu colega Alcides Giehl e eu começamos uma criação de abelhas nos fundos da propriedade da instituição. Construímos um telheiro de cerca de 30 metros de comprimento para abrigar as colmeias e em anexo um quarto fechado para guardar as ferramentas e os instrumentos usados no manejo das abelhas. O local escolhido não podia ser melhor. O apiário ficava na meia encosta leste do morro do colégio, as colmeias viradas para o sol nascente e na frente a planície do rio Caí coberta de laranjais e bosques de eucaliptos, alternando com manchas de vegetação nativa. No melhor momento o número de colmeias chegou a 40. Normalmente fazíamos 4 colheitas por ano. Uma em agosto para colher o mel que tinha sobrado do inverno, uma em outubro para o mel quase puro da floração das laranjeiras e outros cítricos, uma em fins de novembro com o mel da floração do eucalipto e a última em fins de abril com um mel misto de flores nativas e do eucalipto robusto de casca grossa. No segundo ano do bacharelado fui dispensado da catequese para dedicar-me o dia todo da quarta-feira ao apiário.

Entretanto, havia entrado em contato com o prof. Wolfgang Bücherl do Instituto Butantã em São Paulo, especialista em Aracnídeos. Preenchi os intervalos livres após o almoço e as aulas coletando aranhas no mato que cobria o morro do colégio. A mata virgem desenvolvida sobre os escombros de rochas de arenito oferecia inúmeros esconderijos de caranguejeiras e outras espécies de aranhas, enquanto outras tantas armavam suas redes-armadilha entre árvores e arbustos ou ficavam de tocaia nos ocos de árvores e debaixo das cascas soltas. Meu alvo principal foram as caranguejeiras, viúvas negras e outras espécies de porte um pouco maior. Não me lembro exatamente de quantos exemplares mandei para o prof. Bücherl, não vivas mas preservadas em álcool. Calculo que só de caranguejeiras o número deve ter passado dos 100. O administrador do colégio cedera um quarto desocupado no último andar logo abaixo do telhado. Nele acomodei um bom número de caixas de sapato e, na medida que capturava as aranhas as largava naquele recinto e depois de um certo número as mandava para o Butantã. A remessa a meu ver mais preciosa que mandei para o prof. Bücherl, foi um frasco contendo cerca de um decímetro cúbico de veneno extraído de caranguejeiras. Para a obtenção do veneno empreguei a mesma técnica que se usa na extração do veneno de serpentes, isto é, enganchando as presas na borda de um pequeno frasco de vidro e forçando-as levemente para trás.

Aquelas horas e mais horas esgueirando-me entre as árvores e blocos de arenito renderam, além das aranhas, preciosas horas de reflexão e meditação sobre a natureza, o lugar que nela cabe ao homem e de modo especial o divino que exalava da floresta na sua unidade manifestada na pluralidade sem conta de formas e criaturas. Tenho certeza de que aqueles momentos sozinho comigo mesmo, perambulando por aquele magnífico pedaço do mundo de Deus, contribuíram infinitamente mais para consolidar a minha cosmovisão humana e espiritual, do que as meditações formais de uma hora cada manhã, ajoelhado numa sala fechada, refletindo sobre “pontos” propostos na noite anterior por algum asceta ou diretor espiritual com ares de dono da verdade.

As “férias maiores” no final do segundo ano do noviciado e no final dos dois anos do Juniorado compõem um capítulo especial naquela fase da minha formação. Começa por aí que foram desfrutadas em Caravaggio no interior de Farroupilha. Naquela altura dos acontecimentos – 1951- 1952-1953, o santuário de Nossa Senhora do Caravaggio estava em fase de construção. Acontece que o pároco daquela paróquia o Pe. Bortolan tinha sido aluno do Seminário Central de São Leopoldo dirigido pelos jesuítas e levou para o resta da vida uma grande admiração e afeição pelos seus antigos mestres e pelo espírito inaciano de compromisso com a missão de servir à Igreja. Pois, ele ofereceu o Santuário em construção para o nosso alojamento por duas semanas, isto é, no período das festividades de fim de ano. Em meados de dezembro embarcamos no trem até Farroupilha. Na estação nos esperava o Sr. Verona com seu caminhão de carga “Internacional” e levou-nos até Caravaggio. Instalamo-nos nas dependências do Santuário em construção. Foram três temporadas memoráveis por várias razões. Assistíamos a missa na velha igreja matriz e fazíamos as refeições no salão paroquial. Durante o dia cada qual escolhia a maneira preferida de passar utilmente o tempo. Havia um campo de futebol para quem preferia esse tipo de exporte. Outros preferiam a sombra de um pequeno bosque para jogar cartas, ler ou simplesmente bater um bom papo. O meu interesse e o de mais dois ou três colegas resumia-se em percorrer as redondezas e vasculhar uma bela relíquia de mata virgem à margem de um arroio de montanha com centenas de magníficos exemplares de xaxim de até 4 ou 5 metros de altura e algumas araucárias que tinham escapado do machado dos colonos. Na época o xaxim não constava entre as espécies protegidas por lei, o que permitiu que cortássemos meia dúzia deles para cultivar orquídeas na volta para casa. Pelo fato de sempre me ter interessado por insetos aproveitava o começo da noite para capturar espécies noturnas armando um lençol branco no bosque ao que me referi há pouco e projetando nele o feixe de luz de uma lanterna. Não me lembro onde foi parar a coleta noturna desses insetos. De qualquer maneira destaco esse fato para relembrar que a natureza e suas criaturas atraíram sempre a minha admiração e o meu interesse.

Memoráveis foram as 5 ou 6 excursões no caminhão do sr. Verona. Uma delas teve como destino o seminário dos frades capuchinos em Vila Flores, entre Veranópolis e Nova Prata. Foi a primeira vez que percorri e tive o prazer de admirar aquela magnífica paisagem da descida de Bento Gonçalves até a ponte do Rio das Antas e subindo no outro lado até Veranópolis e Vila Flores. Se bem me recordo a estrada era de chão batido. A acolhida no seminário dos capuchinhos, bem ao estilo alegre e descontraído dos italianos, não podia ter sido mais cordial. Acampamos num bosque natural nos fundos da grande propriedade pertencente ao seminário. Pela meia tarde a comunidade dos frades nos esperava com uma surpresa. Levaram-nos para uma enorme adega fazendo parte das instalações do seminário. Pipas de vinho grandes, médias e pequenas alinhavam-se na penumbra do recinto. Mas, o que mais chamou a atenção foi a quantidade e variedade de salames, copas, salamitos e outros embutidos pendurados nos barrotes de madeira. Evidentemente não podia faltar um espaço convenientemente grande para uma infinidade queijos exalando aquele perfume característico além da aparência convidativa para uma degustação. Todos reunidos o superior do seminário mandou pendurar um bom número de salames numa trave bem no alto com o desafio: “quem pulando consegue agarrar um salame pode ficar com ele”. Foi aquela festa. Nem todos lograram alcançar a presa, entre eles eu. No final da tarde retornamos a Caravaggio, paramos na ponte e tomamos um maravilhoso banho nas corredeiras do rio das Antas e cansados mas felizes da vida voltamos ao nosso acampamento no Santuário de Caravaggio ainda em construção. Só para a curiosidade. Jamais imaginaria naquele dia passado em Vila Flores, que lá perto morava uma menina de seus 9 anos que, 20 anos mais tarde, me faria percorrer inúmeras vezes aquele trajeto descendo e subindo o vale do Rio das Antas. Mas, essa história deixo para mais adiante.

Uma segunda viagem, também no caminhão do Verona, nos levou a Santa Lúcia do Piaí para acampar junto à fonte da “Água Azul”. Para os conhecedores da história das missões dos jesuítas no Rio Grande do Sul nos séculos XVII e XVIII, naquele local, na beira dos campos de Cima da Serra, o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça foi morto pelos índios em 1635. Para os menos familiares com a história das missões dos jesuítas daquele século e meio no Rio Grande do Sul, cabem algumas informações importantes sobre esse missionário. Todas elas podem ser reunidas numa só: Porque o missionário jesuíta Cristóvão de Mendonça terminou sendo morto pelos índios naquele fim de mundo, centenas de quilômetros longe de qualquer vestígio de civilização? É conhecido de todo e qualquer pessoa razoavelmente informada que a introdução do gado vacum no Rio Grande do Sul deve-se à iniciativa do missionário Cristóvão de Mendonça na década de 1630 nas Reduções do noroeste do Rio Grande do Sul. Os rebanhos de gado multiplicaram-se pelos campos do sul do Estado, dando origem a “Vacaria do Mar”. A partir desse estoque foram transferidas matrizes e reprodutores para os campos de Cima da Serra. Multiplicaram-se e povoaram os campos do planalto que ficou conhecido como “Vacaria dos Pinhais”. Missionários jesuítas procedentes das Sete Missões entre eles Cristóvão de Mendonça assumiram a catequese dos guaranis da região. Num embate com eles o missionário foi morto em 1635 na localidade conhecida com “Agua Azul”. Para nós jovens jesuítas esse local onde um missionário paradigmático cumpridor de uma missão e dando a vida enquanto e porque a estava cumprindo, foi de um significado histórico importante. Para nós essa visita significou, antes de mais nada, uma peregrinação a um lugar onde as cascatas e florestas do Alto Caí e a água azul” daquela fonte ecoavam ainda as reminiscências dos lances da epopeia que terminou na morte de Cristóvão de Mendonça em cumprimento da missão que lhe fora confiada dois séculos antes.

Uma terceira saída, sempre na carroceria do caminhão do sr. Verona foi a Caxias do Sul. Desembarcamos na praça na frente da catedral. Depois de visitar o interior da catedral passamos pelo antigo parque da Festa da Uva e depois visitamos a Metalúrgica Eberle. O maior interesse, entretanto, foi pela Metalúrgica Triches, especializada na criação e fabricação de peças sacras indispensáveis nos rituais litúrgicos: cálices, patenas, castiçais, custódias e por aí vai. Observamos a criação dos diversos modelos de cálices de ouro e prata por estilistas de extraordinária habilidade executando os desenhos com tinta nanquim pois, na época os recursos eletrônicos de hoje nem em sonho. A diretora da metalúrgica na época, a viúva do fundador e mãe do futuro governador Euclides Triches, muito religiosa, nos recebeu com a maior simpatia. A essa visita a Caxias do Sul seguiu uma outra ao Lanifíco em Galópolis da propriedade da família Chaves Barcelos, também relacionada tradicionalmente com os jesuítas. Tivemos a oportunidade de acompanhar todo o processo de preparação da lã desde a lavagem até a transformação em fios próprios para a tecelagem. Vale chamar à atenção que todas essas saídas eram programadas para, de alguma forma, servirem para ampliar e enriquecer os conhecimentos e experiências úteis para um futuro jesuíta, destinado à missão que lhe fosse confiada na pastoral direta, na docência em qualquer nível e/ou pesquisa científica. Depois da visita ao lanifício de Galópolis seguiu outra a Antônio Prado considerada quase como que um museu ao vivo da organização comunal e da arquitetura dos imigrantes italianos ao se instalarem nessa região.

O ano de 1953, o terceiro e último do bacharelado em Letras Clássicas e Retórica surpreendeu- me com uma perda que me afetou profundamente. Ainda no primeiro semestre, em abril ou maio o Pe. Balduino comunicou-me que o Raimundo, aquele meu irmão com quem eu tinha mais afinidade, como já lembrei mais acima, estava internado na Santa Casa em Porto Alegre. Fora diagnosticado com câncer em estágio avançado nos vasos linfáticos e estava passando por um tratamento intensivo de radioterapia. Com a autorização do meu superior viajei a Porto Alegre para lhe fazer uma visita. Encontrei-o deitado na cama isolado dos demais internados por um biombo. Levei um susto. Aquele homem de 44 anos não passava de uma sombra daquele gigante que enfrentava chuvas, tempestades, granizo, calor e frio para sustentar a numerosa família com apenas a filha mais velha casada morando em Itapiranga. Durante a visita chamaram o Raimundo para uma sessão de terapia. Nunca esquecerei aquela cena. Meu irmão predileto destruído pelo câncer, um cobertor nos ombros protegendo-o do frio, caminhando para a sala de terapia. Depois da sessão de terapia continuamos conversando até o meio dia quando serviram o almoço para ele acompanhado de uma garrafa de Malzbier bancada pela família. Naquele dia não almocei. Foi o último encontro em vida com o Raimundo. Pela meia tarde viajei de ônibus até o Cristo Rei em São Leopoldo onde pernoitei e no dia seguinte retornei à minha base em Pareci Novo. Tudo preparado para viajar no dia 11 de janeiro de 1954 ao Morro da Manteiga para uma visita ao Raimundo, desenganado e com previsão de poucos dias de vida, fui surpreendido com um telegrama de que ele falecera na tarde do dia anterior. Não deu tempo para participar do sepultamento por não ter como me deslocar a tempo para Tupandi, local do sepultamento pois, não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga. Embrenhei-me no mato no morro do colégio de Pareci, acomodei-me entre as raízes de uma araucária e deixei correr livre os sentimentos pela segunda grande perda na minha família, a primeira foi a de meu pai 7 anos antes. No Paulusblatt, no de fevereiro de 1954 o necrológio do Raimundo veio com o título: “Der starke Mann vom Butterberg ist tot” – “Faleceu o Homem forte do Morro da Manteiga”.

Num sábado no meio das férias em Caravaggio apareceu o Pe. Balduino no seu Jeep para me levar até a Alto Feliz. A família do meu primo irmão Pe. Oswaldo morava naquela localidade. No dia 7 de dezembro ele fora ordenado sacerdote e no dia seguinte celebraria a primeira missa solene na paróquia Santo Inácio da Alto Feliz. Fiquei hospedado na casa do Albino Bergmann, colega dos tempos idos no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Lá se encontrava também minha mãe, minha irmã Ana e meu sobrinho Silvino. Para missa solene no domingo de manhã toda comunidade se fez presente para prestigiar a família e, especialmente, um dos seus membros que lograra chegar ao sacerdócio, uma honra para qualquer comunidade católica da época. Ao Pe. Balduino coube obviamente proferir o sermão festivo na igreja lotada até porta afora, num silêncio em que se podia ouvir o bater de asas de uma mosca. O almoço festivo consistiu num churrasco, maionese, vinho, cerveja e refrigerantes. Aquela festividade ficou na minha memória com o ressaibo doloroso de duas perdas que sofreria no ano seguinte, 1954. Antes de nos dispersarmos o Pe. Balduino chamou-me de lado junto com meu sobrinho Silvino, minha mãe, minha irmã Anna e alertou-nos que o câncer do Raimundo encontrava-se em estágio terminal. Que nos mantivéssemos atentos que ele não passaria mais do que de um mês. E, de fato, como lembrei mais acima, ele faleceu no dia 11 de janeiro de 1954. Ao me despedir, sem suspeitar, apertei a última vez a mão da minha amada irmã Anna. Deixo para mais abaixo os detalhes de como a carta comunicando a sua partida em 17 de dezembro, também em 1954, me fulminou quando passava férias no Rincão dos Groeff em São Francisco de Paula.

Da Enxada à Cátedra [ 38 ]

“Juniorado” - Bacharelado em Línguas Clássicas e curso de Retórica.

Mais acima já lembrei a inserção das Línguas Clássicas na programação do segundo ano do noviciado. Na verdade, em termos acadêmicos contou como o primeiro ano ou dois primeiros semestres do bacharelado nessa área. Do último ano do ginásio, como também já referi mais acima, os egressos como eu, levavam o conhecimento do latim ao nível de entender as obras dos clássicos e falar e nos comunicarmos fluentemente nessa língua. Tanto assim que a língua do quotidiano no noviciado era o latim. O grego aprendido no ginásio não foi tão aprofundado. De qualquer maneira fomos munidos com o domínio dos elementos básicos da gramática: fonética, conjugação, sintaxe, etc. permitindo assim avançar sem tropeços para a familiarização com a literatura, o pensamento e a cultura grega e sua importância para o mundo ocidental. Em termos acadêmicos nos dois anos de “juniorado” aperfeiçoei o conhecimento e traquejo da língua latina pois, ela seria a língua oficial nas preleções futuras sobre os diversos conteúdos filosóficos e teológicos. Não só os conteúdos seriam apresentados em latim, como também as interlocuções com os professores e alunos, como os exames que costumavam ser orais e presididos por uma banca dos titulares das disciplinas tronco da Filosofia e Teologia. Li as obras clássicas latinas que ainda não conhecia do tempo do ginásio, entre elas a Eneida de Virgílio e, principalmente reli e aprofundei o valor literário, o significado histórico cultural dessas obras na gênese e consolidação da Cultura Ocidental, de modo especial no que diz respeito ao ordenamento jurídico e a parte que coube à “cristianização da helenidade” ou vista sob outra perspetiva a helenização do cristianismo”, “a cristianização da romanidade ou a romanização do cristianismo”, acrescentando mais tarde, entre 350 e 800 DC, com a “migração dos povos germânicos”, “germanização”, tanto da “helenidade”, quanto da “romanidade” e da cristandade.” Evidentemente, como pano de fundo de toda essa dinâmica, o panorama histórico cultural, as raízes tanto da “helenidade” quanto da “romanidade” da “cristandade” encontram-se nos filósofos e literatos da antiga Grécia. E do encontro e da amálgama da “Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade”, consolidou-se o que costumamos chamar de “Cultura Ocidental”. O resto não passa de detalhes. Parece-me que todos os mega acontecimentos históricos posteriores, a Renascença, a Modernidade e a Pós Modernidade, não tem como serem entendidos, compreendidos e interpretados corretamente a não ser tendo como panorama de fundo esse passado histórico. Parece importante identificar a contribuição específica que cada uma das quatro vertentes que se fundiram na “amálgama” da qual resultou a Cultura Ocidental. Da cultura grega ou da “helenidade” a cultura ocidental herdou em primeiro lugar a cosmovisão artística e literária que começa a se esboçar e alcançar o climax da exuberância já no primeiro milênio antes de Cristo. Entre as figuras centrais e suas obras destacam-se Homero com as monumentais, imortais e sempre atuais epopeias, a Ilíada e a Odisseia, a poética lírica tendo em Píndaro o nome mais eminente. Paralelamente à literatura épica, lírica, o teatro e outras modalidades, floresceu a arte plástica com uma pujança e diversidade que se aproxima da perfeição tanto da forma quanto do simbolismo. Tanto os gêneros quanto os estilos e conteúdos da literatura e da arte helênica serviram de inspiração e fundamento para a literatura e arte romanas, obviamente moldadas de acordo com as especificidades da cosmovisão e cultura romana. Mas, a contribuição helênica mais decisiva na gênese da cultura ocidental vamos encontrar nos filósofos e nas respetivas visões do mundo, vivas e válidas como nunca, mesmo em meio à confusão e guerra de ideias e cosmovisões deste começo do terceiro milênio. E, para não estagnar no nível de reflexões abstratas, somado ao papel decisivo que lhes coube nos três milênios posteriores, parece oportuno apontar os nomes dos mais significativos e sua influência histórica no mundo ocidental, os Pré-Socráticos que exploraram como foco das suas preocupações a “origem do universo e o princípio de todas as coisas”. Destaco entre eles o nome de Tales de Mileto cujo pensamento filosófico pode ser resumido na seguinte frase: “O todo é uno, o uno é plural e a água é o princípio de tudo”. Depois do período Pré-Socrático entram em cena os gigantes da filosofia grega clássica: Sócrates, Aristóteles e Platão que perpassam de alguma forma até hoje o pensamento ocidental. Da cultura romana ou da “romanidade” a cultura ocidental herdou a necessidade de um ordenamento jurídico sólido definidor dos direitos e deveres tanto dos cidadãos comuns, quanto dos administradores em todos os escalões de importância e decisão, como pressuposto para que um Estado, um Império ou uma República disponham de instrumentos seguros para garantir a coesão e a solidez entre os cidadãos e seu pertencimento à uma comunidade nacional. O cristianismo, melhor a “cristandade” entrou nessa “amálgama” que, por assim dizer, conferiu a alma, a razão de ser, o norte ontológico e deontológico à cultura em gestação. No fundo no fundo, todos os seres humanos são iguais nos seus direitos e deveres como indivíduos livres de um lado, porém, comprometidos com a preservação da liberdade dos outros no convívio solidário numa comunidade. Essa visão da individualidade ontológica bidimensional da liberdade limitada pelos direitos mútuos, fundamenta-se na Ética, na Moral que, em última análise, confere legitimidade à estrutura e funcionamento de uma sociedade. Com a migração e invasão dos povos germânicos desmantelando o que ainda restava do Império Romano, acresceu o quarto ingrediente na amálgama da qual resultou a cultura ocidental. A essência da “germanidade” foi a solidez da sua organização vertical e horizontal. Como base encontramos o matrimônio monogâmico, a família, a comunidade formada por famílias, tribos, parentelas, povos e federações de povos. A lógica da complexificação estrutural pressupunha a família solidamente constituída, a comunidade também sólida porque organizada sobre o fundamento da família e, por sua vez uma organização mais ampla pelas comunidades ou parentelas mutuamente comprometidas. Resumindo. O encontro da Helenidade, da Romanidade, da Cristandade e da Germanidade resultou numa“amálgama” conhecida pelos historiadores, filósofos e demais pensadores e especialistas como “Cultura Ocidental” como já lembrado mais acima. Só para concluir essa reflexão. Chamo a atenção que, observando o cenário local, regional, nacional e mundial de hoje, presenciamos a tentativa da demolição dos quatro pilares que por dois milênios resistiram aos embates que as revoluções do pensamento e da tecnologia dos últimos 500 anos. Aqui não é o lugar para entrar em detalhes no que está acontecendo. A helenidade com sua literatura, arte e filosofia passou para o arquivo morto dos museus. A língua da romanidade foi declarada língua morta, sem serventia prática e eliminada dos currículos do ensino médio e o direito romano expurgado dos currículos das faculdades de direito, a ética e moral da cristandade substituída por um relativismo errático do vale tudo e o compromisso e comprometimento familiar e social rebaixado ao nível de um rebanho de ovelhas ou uma alcateia de lobos à espreita de se devorarem mutuamente. Os grandes responsáveis por essa demolição sistemática podem ser encontrados em todos as áreas do conhecimento: na Teologia, na Filosofia, nas Ciências humanas, nas Letras e Artes, nas Ciências Naturais, nas Ciências Tecnológicas, etc., etc. A grande pergunta que nos desafia a essa altura é esta: Aonde vamos parar e o que se pode esperar para a humanidade que emergirá desse tsunami?

Penso que a reflexão que acabo de fazer é importante para compreender as razões do porque desse feitio do “juniorado”, etapa na época obrigatória na formação dos jesuítas, desgraçadamente expurgada no momento em que também as ordens religiosas foram levadas de roldão pelo tsunami da Escola de Frankurt, da doutrina da hegemonia do pensamento de Gramsci, da infiltração do Marxismo nas organizações cristãs, resultando na Teologia da Libertação que pretende harmonizar o marxismo na sua essência ateu, com o Deus da cristandade. O importante não foi tanto o aperfeiçoamento da língua latina e grega e respetivas literaturas mas, a tomada de consciência do tesouro cultural e o potencial para conferir consistência e solidez a um paradigma de civilização que, apesar dos pesares, sobrevive aos percalços de 2 milênios.

Entre as diversas programações acadêmicas, além das aulas e estudos diários, destaco uma no formato de um Seminário focado no protótipo do “homem” no mundo grego e latino. Coube-me apresentar o perfil dos guerreiros gregos descritos por Homero na Ilíada. Foi a minha primeira “palestra ou conferência” academicamente elaborada e proferida para os meus colegas de “juniorado”.

Paralelamente ao currículo do bacharelado em línguas e literaturas clássicas e língua e literatura portuguesa, fomos familiarizados com a teoria e a prática da retórica com destaque para a oratória sacra. A finalidade dessa especialidade acadêmica é óbvia. Futuramente como sacerdotes, a atividade pastoral fazia parte da “missão” de vida a ser cumprida. Embora como professores emcolégios ou universidades, como foi o meu caso, costumávamos ser convocados para, em fins de semana, nas datas litúrgicas maiores e, de modo especial, nas festas do Natal, Ano Novo, Semana Santa e Páscoa, para auxiliar e aliviar os compromissos dos párocos nas mais diversas paróquias. Obviamente constavam entre as tarefas obrigatórias normais nessas ocasiões, rezar missas com pregações. Apesar de lecionar em duas universidades não deixei de dar uma mão ao pároco de Poço das Antes na Semana Santa, ao pároco de Harmonia na semana do Natal, ao pároco de Tupandi também numa semana de Natal. Numa outra semana do Natal passei na paróquia de Dois Irmãos e uma Semana Santa em Estância Velha. Além disso rezei missa e preguei na igreja matriz de São Leopoldo e em outras igrejas e capelas em fins de semana comuns. Esse tirocínio de teoria e prática de oratória interessava, de modo especial, aqueles jesuítas que futuramente seriam destacados como párocos e/ou auxiliares em paróquias, capelanias, missões populares, pregação de retiros etc. A teoria vinha complementada com a prática. Esta resumia-se num sermão proferido para toda a comunidade da instituição: reitor, mestre de noviços, professores, irmãos leigos, noviços e juniores, durante o almoço num determinado dia da semana. Num encontro posterior com o professor de retórica seguia uma avaliação do conteúdo, da qualidade literária e dos recursos retóricos utilizados. Falando em qualidade literária o Pe. Bender, professor de língua e literatura portuguesa costumava aconselhar aos alunos que o nível da linguagem e do estilo de um sermão deveriam ser tais que “aquele senhor de chapéu grande no fundo da igreja” entendesse o conteúdo que estava sendo apresentado pelo pregador. Em outras palavras. “O homem de chapéu grande” representava o cristão comum, na época com formação primária ou quem sabe até menos.

Da Enxada à Cátedra [ 37 ]

Mais acima já lembrei que o noviciado, no jargão dos jesuítas também chamada “primeira provação”, consistia numa imersão para valer em todos os sentidos no espírito da Ordem. É perfeitamente compreensível que funcionava como estágio probatório para os noviços, na maioria rapazes entre 18 e 22 anos, refletirem seriamente se, de fato, era esse o rumo de vida que pretendiam levar para o futuro. A desistência de um número significativo fazia parte, de modo especial, dos noviços do primeiro ano. Foi assim que dois dos meus amigos mais chegados resolveram seguir outro caminho: o Eloy Kunrath e o Bruno Fischer. Senti muita falta principalmente do segundo pois, costumávamos ler os mesmos livros e refletir sobre seus conteúdos. Numa determinada manhã encontrei o livro “Os Jesuítas, Seus Segredos e seu Poder” de Filöp Miller, que estávamos lendo em conjunto, sobre a minha mesinha com um bilhete de despedida. Ao meu grande amigo Bruno Fischer um abraço de agradecimento depois de 70 anos. O nome dos parceiros e amigos especiais não se apagam da memória. E assim terminou sem maiores novidades e contratempos o primeiro ano de noviciado, coroado com um período de dois meses e meio de férias. Naquele final de 1950 e começos de 1951 as férias dos noviços em fim de primeiro ano aconteciam ainda dentro período do confinamento rigoroso do primeiro ano, isto é, foram usufruídas no Instituto São José em Pareci Novo e nas suas redondezas.

Falando em férias. Para começar, naquela época mais de 70 anos passados, nãos sei como são hoje os costumes de férias nas casas de formação dos jesuítas, se é que ainda existe esse tipo de prática. Esse período costumava ser dividido em duas etapas: as “férias maiores” e as “férias menores”. No meu tempo de noviço e jesuíta mais tarde, isto é, em linhas gerais na década de1950 e começos de 1960, as férias maiores” cobriam as duas semanas, talvez uma pouco mais, da preparação e celebração do Natal, Ano Novo e Reis Magos no dia 6 de janeiro. Em linhas gerais, nas férias maiores, mantendo as práticas obrigatórias do dia a dia como a meditação da manhã, a missa diária e os serviços básicos da manutenção da casa, permitia-se a livre escolha do lazer circulando nas espaços, lugares e caminhos da propriedade da instituição que foram descritos mais acima. A meditação em vez de ser de joelhos na sala comum podia ser feita caminhando pelas trilhas do morro coberto de mata virgem ou sentado entre as raízes de uma das majestosas araucárias dispersas pela mata que cobria o morro, ou no topo, rodeado de uma plantação de milho e como cenário de fundo os contornos das montanhas da Serra Geral confundindo-se com a linha do horizonte, lá longe além de São Leopoldo e Novo Hamburgo. As refeições costumavam ser mais caprichadas acompanhadas por uma taça de vinho tinto. Não havia leitura durante as refeições. O mais apreciado, entretanto, consistiu na modificação do horário de dormir. Em vez das 21 horas a comunidade ficava reunida até a meia noite, enquanto eram servidas guloseimas: bolos, sorvetes, conservas e, naturalmente, vinho e para os abstêmios refrigerante. Esses encontros costumavam ser mais animados e ruidosos na véspera do Natal, após a missa do galo, no dia dos “Inocentes”, 28 de dezembro, na véspera do Ano Novo e no dia dos Reis Magos, 6 de janeiro. A partir de 6 de janeiro as “pequenas férias” prolongavam-se até fins de fevereiro. A rotina diária não se distinguia em muito daquela dos meses normais do ano anterior.

O segundo ano do noviciado – 1951 – começou com um retiro de 8 dias. Depois do isolamento praticamente completo do primeiro ano do noviciado, no segundo entraram na programação rotineira algumas novidades. Dar catequese nas quartas-feiras em alguma comunidade das redondezas foi uma delas. Em algumas delas a catequese tinha que ser dada em língua alemã. Apresentei-me para assumir uma delas e fui destacado para a comunidade de Coqueiral. A capela estava sendo construída e, por isso, a catequese era ministrada na sala espaçosa da casa de um dos moradores, local onde era celebrada uma missa mensalmente também na quarta-feira. Depois do café da manhã enfrentava a pé, de batina e chapéu clerical, o trajeto de uma hora e pouco até o Coqueiral. Pelo caminho as crianças dos colonos vinham correndo e me acompanhavam até o local da catequese. Foi uma experiência que me marcou de tal maneira que até hoje me lembro de detalhes como curvas da estrada de chão de areia solta, cercas de potreiro, moradias rodeadas com belos exemplares de araucárias e até do nome algumas das crianças que frequentavam a catequese. Na primeira parte da caminhada fazia a meditação diária naquela linda paisagem plana de potreiros, pequenas manchas de mato, árvores isoladas, respirando o ar puro e fresco do começo da manhã. Uma vez por mês acompanhava o pároco de Pareci Novo na sua charrete por ocasião da visita à comunidade de Coqueiral. A catequese ocupava em torno de uma hora e, perto do meio dia, estava de volta para almoçar em casa.

A programação do segundo ano do noviciado previa uma série de atividades conhecidas na Ordem como “experimentos”. Incluíam, além das tarefas rotineiras da manutenção, limpeza e organização da instituição e seus arredores, outras modalidades especiais de provação para testar os jovens noviços. Para não me alongar demais limito-me a três delas. Não raro acontecia que em alguma paróquia ou mesmo em colégios e seminários algum padre ou irmão leigo gravemente doente exigia a presença permanente de alguém, ou na residência ou num hospital. Os noviços podiam ser convocados para essa missão sempre que fosse preciso. Eu pessoalmente nunca fui destacado para esse tipo de “experimento”. A experiência que me marcou de modo especial foi o mês que passei em parceria com o Benno Brod, também no segundo ano do noviciado, cuidando das enfermarias dos indigentes do hospital Centenário em São Leopoldo. Cabiam-nos atender a todas exigências da enfermaria e dos enfermos, que não fossem privativos de profissionais como médicos e enfermeiras. Mantínhamos a limpeza dos recintos, ajudávamos quando preciso trocar a roupa de cama, inclusive levar os falecidos para o necrotério nos fundos do hospital. Na época a administração do hospital encontrava-se sob a responsabilidade das Irmãs Franciscanas que mantinham sob rédea curta médicos, enfermeiras e funcionários e, ao mesmo tempo, exigiam uma limpeza, asseio e assepsia rigorosa. O outro experimento, o maior de todos, consistia numa peregrinação de um mês seguindo um itinerário traçado pelo Mestre e entregue num envelope fechado a uma dupla de noviços o qual indicava dia por dia, o roteiro a cumprir e o local para pernoitar. Na bagagem os peregrinos levavam o absolutamente indispensável e sem dinheiro.

Alimentação, pernoite e tudo o mais tinha que ser esmolado”. Por razões práticas a “peregrinação” não acontecia no meu período de noviciado na Província dos jesuítas do sul do Brasil. Para matar a curiosidade dos que por acaso lerem essas “memórias” as razões práticas a que me acabo de me referir faziam todo o sentido. O cenário óbvio em que o roteiro da “peregrinação” poderia ser traçado eram as colônias alemãs, italianas e polonesas, conhecidas pela profunda religiosidade e, portanto, a hospedagem de algum religioso era encarada com uma honra toda especial. E não se pode deixar de lembrar o detalhe que os religiosos, também nós noviços, éramos identificados delongepois,circulávamosdebatinapretaechapéuclerical,mesmonumsolde40o. Todasas portas esperavam abertas para um almoço especial, uma galinhada e até um churrasquinho de final de tarde. Conclusão. Em vez de uma “provação” a peregrinação transformar-se-ia num passeio, senão numa aventura recreativa. Alguns anos mais tarde foi incluída na programação. Pelo que estou informado hoje a prática da peregrinação e de outros “experimentos” já não fazem mais parte da formação dos jovens jesuítas.

Com o término do mês de fevereiro de 1952 completaram-se os dois anos de noviciado e com isso o momento decisivo de, ou desistir sem compromisso da vida religiosa e optar por uma carreira na vida civil ou emitir os votos religiosos e comprometer-se definitivamente com a Missão a ser cumprida na Igreja na modalidade imaginada por Santo Inácio e regulamentada pelos Estatutos da Ordem. Um retiro de 8 dias serviu de preparação imediata para a emissão dos votos religiosos. Foram dias de reflexão sobre o significado e os compromissos decorrentes dessa decisão além de uma avaliação profundamente pensada e consciente de seguir em frente ou tomar outro rumo. No primeiro ou segundo domingo de março, concluído o retiro no sábado da véspera, os 20 ou 21 noviços da minha turma e eu emitimos os votos e com isso passamos oficialmente integrando a Ordem. Em princípio os votos tinham o caráter de perpétuos. No caso de alguém decidir desligar- se mais tarde da Ordem a dispensa dos votos exigia uma avaliação dos superiores maiores. Precedia-a normalmente um exame criterioso de cada caso do interessado com o diretor espiritual e o superior. De qualquer forma o desligamento não tinha como ser negado nos casos em que o interessado persistia na sua intenção.

Os votos vinham acompanhados também de algumas novidades no visual externo dos jovens jesuítas. O uso da batina preta e o chapéu clerical continuaram a ser obrigatórios na década de 1950. A faixa da cintura estreita e com o enorme terço enrolado, deu lugar a uma faixa larga e sem o terço. O solidéu usado pelos noviços dava lugar ao clássico barrete clerical, o tratamento de“Caríssimo” substituído por “Frater”, isto é, irmão em latim e os jesuítas no bacharelado de Línguas e Literaturas Clássicas e Retórica formavam a categoria dos “Juniores”.

Já no segundo ano do noviciado foram retomados os estudos acadêmicos. Não me lembro exatamente do número de horas por semana no período da manhã e da tarde foram destinadas a aprofundar o conhecimento da língua latina e grega e suas respetivas literaturas. Além de retomar esses temas que ficaram de molho desde o final do último ano do ginásio, isto é, final de 1949, o ano de 1951 significou para mim o marco de partida para a formação no nível superior. Seguiriam 4 bacharelados, um a licenciatura, uma livre docência, um doutorado e um pós doutorado. A essas etapas que ocuparam os 14 anos seguintes dedico as reflexões que seguem.