Da Enxada à Cátedra [ 36 ]

O retiro de 30 dias me pôs em contato com uma outra realidade de natureza ascética que hoje causa arrepios a quem estuda o quotidiano da vida religiosa tendo como referência a era que termina com as conclusões do Concílio Vaticano II e as diretrizes emanadas do Congregação Geral da Companhia de Jesus de 1965. À rotina do retiro incluíam-se também encontros individuais e privativos regulares com o Mestre no seu gabinete de atendimento duas ou três vezes por semana, de acordo com a necessidade. Numa dessas visitas o no meio dos 30 dias do retiro, o Pe. Kohler me surpreendeu com a entrega de um silício feito de um trançado de arame dimensionado para ser usado no braço com pontas viradas para dentro. Além do silício apresentou-me também uma flagelo de três ou quatro cordas cheias de nós. Ensinou-me como manusear esses instrumentos de penitência e recomendou que fizesse uso deles duas ou três vezes por semana. Como os noviços dormiam num grande dormitório com seus espaços privativos (cama e um bidê) delimitados por biombos fixos, percebia-se perfeitamente quando os vizinhos se valiam do flagelo antes de dormir ou de manhã ao levantar. A maioria , como eu, costumava usar o silício no braço duas ou três vezes por semana. Seguíamos rigorosamente as recomendações do Mestre de não exagerar, nem no uso do silício, nem na aplicação do flagelo. Não tenho informação se ainda hoje esse tipo de penitência faz parte do cotidiano dos noviços jesuítas e muito menos dos da geração em atividade nos diversos empreendimentos que lhes são confiados. Não posso deixar de confessar que devo ao uso desses instrumentos de penitência uma boa parcela do adestramento no engajamento à “Missão” a que sonhava servir, isto é, cumprir a tarefa que me cabia em alguma “brigada de assalto” para que fosse convocado. Aquele confinamento de 30 dias, aquela imersão nos arcanos da razão de ser do “porque” existimos como indivíduos fazendo parte da comunidade humana, do “porque” da missão que nos foi confiada e, finalmente, “o para o onde”, a “parusia, o “desfecho, o apocalipse”, a “consumação dos tempos” profetizado por São João. Naqueles 30 dias de retiro convenci-me que a razão da jornada por este mundo consiste em cumprir uma missão. Toda e qualquer tarefa por mais humilde que seja deve ser cumprida tendo a missão como pano de fundo, como motivação, como motor para evitarmos a sensação de passarmos por escravos. Parece que essa foi a intenção do Criador ao criar o mundo com suas criaturas e colocou o homem no “Jardim” não só para “usufruí-lo” e/ou “explora-lo” mas com a missão de cultiva-lo” fazendo dele a nossa “casa”, isto é, humanizar os espaços, os lugares, os caminhos que moldam a nossa identidade. Avaliado nessa perspetiva o trabalhar significa cumprir a missão de cultivar o Jardim, a Natureza, executando uma das milhões de modalidades de tarefas necessárias para que se torne realidade. Sobre esse pano de fundo não há como classificar o trabalho em categorias de importância. Por mais corriqueiro e por e mais humilde que possa parecer uma determinada tarefa ou função, se não for cumprida como uma missão, deixará no mínimo uma lacuna ou uma arranhadura, mesmo impercetível, na perfeição do cumprimento de uma missão. Portanto, o trabalho de uma faxineira, de uma lavadeira, de um agricultor, de um operário de fábrica, de um engenheiro, de um médico, de um funcionário público, de um professor, de um pesquisador, de um político, de um administrador público, inclusive de um presidente da república e o que mais se possa imaginar, caso não conduzido tendo em vista a missão de, de alguma forma, cultivar o “nosso jardim” ou, se preferimos, a “nossa casa”, não passará de um trabalho escravo, interesseiro, egoísta, busca de poder ou outro qualificativo que se prefira.

Terminados os 30 dias de retiro espiritual voltamos à rotina diária já descrita mais acima. Naquele primeiro ano de noviciado não havia espaço para alguma atividade científica que merecesse esse nome como coleta de plantas, insetos, musgos e por aí vai. Isso, porém, não impediu que “farejasse” todos ângulos, recantos e esconderijos daquele magnífico pedaço de mata virgem comsuas araucárias. Todo esse mapeamento, melhor talvez inventário não registrado como mandam os métodos da pesquisa propriamente dita, me seria de grande utilidade quando dois anos mais tarde comecei a capturar, principalmente aranhas, para enviar para o Instituo Butantã. A seu tempo voltarei para detalhar essas coletas.

Na segunda metade daquele primeiro ano o Pe. Kohler, meu Mestre, encarregou-me da organização da biblioteca do noviciado. Tratava-se de uma biblioteca selecionada de livros e publicações avulsas destinada, antes de tudo, para a imersão dos noviços no espírito religioso e na ascese da Ordem. Perdidas no meio de biografias de personagens e santos de jesuítas de referência e de outras ordens e congregações, de obras de ascese, teologia, exegese, etc., encontravam-se algumas publicações científicas. Lembro-me de um livrinho de menos de 100 páginas com a descrição de plantas medicinais do Rio Grande do Sul, da autoria do Pe. Canísio Orth ao que tudo indica, quando ainda estudante de Teologia. Esse jesuíta foi mais tarde direcionado para a administração das instalações de colégios, paróquias e outras instituições.

Encontrei-o como administrador e professor do Colégio Anchieta entre 1957 e 1959, quando fui professor naquela instituição ainda na rua Duque de Caxias. Entre os alunos era conhecido com o apelido de “ratão”. Terminada a organização da biblioteca do noviciado, inclusive acomodada em armários novos com portas de vidro, o Pe. Kohler entregou-me a chave da biblioteca central de toda a instituição e confiou-me a sua guarda na condição de bibliotecário. Junto com a chave principal veio uma outra. Essa outra só costumava ser entregue a pessoas que gozavam da total confiança dos superiores. Nas bibliotecas das instituições maiores dos jesuítas não podia faltar um armário fechado a sete chaves, apelidado no jargão da Ordem o “inferno”. O acesso a essemisterioso armário só com licença expressa do superior. Nele guardavam-se obras consideradas perigosas para a formação religiosa, moral, ascética e intelectual. Aquela chave que me foi entregue junto com a da biblioteca como um todo, autorizava-me o acesso livre ao “inferno”. “inferno” da biblioteca do Instituto de Formação São José de Pareci novo, não passava de umpequeno armário de uma porta sem vidro acomodado ao lado de uma estante de livros. Não há necessidade de confessar, que sentia uma curiosidade enorme em saber que obras mereciam “a condenação ao inferno”. Na primeira oportunidade logo depois de assumir a biblioteca, abri aquele pequeno armário. E qual não foi a minha surpresa, para não dizer frustração. Deparei-me com apenas duas obras: uma “Bíblia protestante” e o “Mein Kampf” de Hitler. Com isso o “inferno” perdeu completamente o interesse para mim. Chaveei a portinha e nunca mais a abri. Examinar a Bíblia Protestante para catar desvios e reinterpretações em confronto com a versão oficial católica para servir de pasto para polêmica, passava muito longe dos meus interesses. Poucos anos passados da Segunda Guerra Mundial e ainda quentes na memória os horrores que o povo alemão sofreu com a loucura e o fanatismo que resultaram da aplicação prática das ideias formuladas naquele livro saído do cérebro perverso do Führer, me provocavam uma profunda aversão. Soma- se a tudo isso o fato de que dois jovens jesuítas Alfred Delp e Alois Grimm foram executados pelos agentes do regime nacional-socialista em fevereiro de 1945 e meu grande modelo de jesuíta o Pe. Rupert Meier, capelão e herói da primeira guerra mundial quando perdeu uma das pernas, confinado no mosteiro de Ettal perto de Munique. Além disso meus símbolos por excelência da Alemanha católica o cardeal Michael Faulhaber, arcebispo de Munique e o “Leão de Münster”, cardeal Clemens von Gallen, foram dois personagens em que a GESTAPO não ousou por a mão, muito menos confina-los num campo de concentração. Só para registrar. Por essa minha postura em favor da germanidade, especialmente católica, porque nela encontro minhas raízes remotas, e não no fenômeno nacional socialista transitório, fui injustamente rotulado de nazista em não poucos momentos posteriores da minha trajetória acadêmica e isso inclusive dentro da Ordem. Só um exemplo. Em março de 1960 comecei a minha licenciatura em teologia no então Colégio Cristo Rei em São Leopoldo. Na época era costume receber os novos teólogos com uma comemoração que incluía um painel com fotografias e dizeres para dar o perfil dos novatos. Naquele painel fui contemplado com uma suástica acompanhando minha fotografia. Na hora não dei maior importância ao fato. Depois percebi que não foi apenas uma brincadeira de mau gosto mas um estigma que perturbou meu relacionamento com colegas principalmente vindos do centro, do nordeste do País e de outros países como a Espanha, o Canadá francês, Argentina, Uruguai, Venezuela, etc. que vinham estudar teologia em São Leopoldo.

Mas voltemos à biblioteca. Naquela segunda metade do primeiro ano do noviciado refugiava-me na biblioteca nos intervalos maiores da programação rotineira do dia a dia. O acervo como um todo não passava de modesto. Em compensação rico em obras selecionadas para atender as exigências dos professores e mestres com destaque para conteúdos de natureza ascética, teológica, História da Igreja, hagiografia, homilética, espiritualidade, catequética e outras obras nessa linha. Além dos professores e mestres essa biblioteca dava suporte para a formação dos jovens padres jesuítas no seu último estágio exigido pela Ordem, isto é, a chamada então “Terceira Provação”, logo depois de concluída a formação teológica. Nos idos da década de 1950 a Terceira Provação reunia em Pareci Novo jovens padres jesuítas vindos de todo o Brasil, do Uruguai, da Argentina e esporadicamente de outros países. Como já lembrei mais acima o noviciado dispunha de uma biblioteca especializada para aquela etapa de formação.

O Instituto São José de Pareci Novo, além do Noviciado e da Terceira Provação, sediava também o bacharelado em Línguas e Literaturas Clássicas focado no Grego, Latim e Português além de um tirocínio teórico e prático de oratória. Deixo para mais abaixo os comentários pertinentes a esse estágio de formação do jesuíta conhecido então como “Juniorado” e respetiva biblioteca selecionada. As tarefas do bibliotecário na biblioteca central de que estava falando, resumia-se em manter os livros arrumados nas estantes, de períodos em períodos tirar o pó, passar um inseticida para eliminar aranhas, traças e outros insetos e catalogar e inserir no acervo aquisições novas. A aquisição mais importante foi a monumental obra conhecida como “Coleção Migne”. Emresumo compreende os primeiros 400 anos da história da Igreja com os escritos dos chamados “Padres da Igreja” praticamente toda em grego e latim. A coleção veio na forma de brochuras e foi posteriormente encadernada. Essa coleção de um valor histórico difícil de avaliar encontra-se hoje entre as “joias da coroa” do acervo de obras antigas e raras da biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Da Enxada à Cátedra [ 35 ]

No Noviciado

Tento explicar em poucas linhas o significado do conceito de Noviciado que faz parte obrigatória da formação de qualquer ordem ou congregação religiosa. Com uma duração que vai na média de um a dois anos o noviço ou noviça submete-se a uma série de “rituais” que têm como finalidade a imersão existencial de um rapaz ou moça no espírito e nos instrumentos adotados pela respetiva ordem ou congregação, masculina ou feminina, para colaborar com a missão universal da Igreja na implantação do Reino de Deus. O objetivo central é o mesmo. As modalidades para concretizá- lo são múltiplas, tantas quantas são as ordens, congregações, institutos religiosos e outras modalidades. Santo Inácio e seus companheiros Francisco Xavier, Nicolau Bobadilha, Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Alfonso Salmeron e Diego Laynez, estudantes de humanidades na universidade de Paris, conceberam a forma, métodos e estratégias que traem nitidamente o passado militar de Inácio de Loiola. Como comandante da fortaleza de Pamplona onde foi seriamente ferido no joelho por um disparo de canhão inimigo, passou semanas se recuperando num leito de hospital. Aproveitou o tempo lendo as biografias dos santos. O resultado foi que, naquele período de retiro compulsório, o capitão comandante da fortaleza de Pamplona, concebeu o projeto de uma organização missionária de alcance universal. Esse projeto foi formulado mais tarde em pareceria com seus companheiros de estudo de Humanidades em Paris. Resumia-se na sua essência em arregimentar, por assim dizer, uma “brigada de assalto de vanguarda” a serviço da Igreja, para a conquista espiritual dos povos nas mais distantes e diversas regiões do mundo. Com o lema “diversa loca peragrare”, isto é, “percorrer as mais diversas regiões mundo”, colocar- se-iam à disposição do Papa para cumprir a missão da “conquista espiritual”, inclusive dos povos em terras “pagãs” como o Japão, a China, Alasca, África e nas ilhas perdidas nos confins dos oceanos.

A aceitação definitiva como membro da Companhia de Jesus previa dois anos de noviciado. No primeiro ano os noviços eram submetidos a um confinamento praticamente total. A rotina diária ficava a cargo de um jesuíta de comprovado conhecimento do espírito da Ordem, no jargão da Ordem conhecido como “Mestre dos Noviços”. Costumava ter como auxiliar um assistente. Meumestre foi o Pe. Leo Kohler, um jesuíta da velha cepa dos que a província alemã costumava destinar para o sul do Brasil. Ao saudá-lo na entrada do noviciado, levei um susto. Aquela figura ereta, postura de oficial, cabelo escovinha, de seus 60 anos, prenunciava um comando de rédea curta. Com o andamento do convívio, porém, fui descobrindo que debaixo daquela armadura de cavaleiro medieval pulsava um coração do tamanho do mundo. Terminei sendo um dos seus pupilos de confiança ao ponto de confiar-me a chave do “inferno” da biblioteca. Só para matar a curiosidade. O “inferno” resumia-se num armário no qual estavam guardas obras que só com autorização especial dos superiores podiam ser lidas. Mais abaixo volto ao assunto. Encaminhou- nos diretamente para a capela onde toda a comunidade se encontrava reunida para as “Ladainhas”, antes do jantar. Adianto que o “assistente” do mestre de noviços era o jovem padreFrancisco Fonseca, o “Fonsequinha”, originário de uma família de classe média e antigo aluno do Colégio Anchieta. No primeiro encontro simpatizei com aquele padre franzino, de baixa estatura, um tanto corcunda por causa de uma deformação da coluna. Uma alma de ouro esse padre Fonsequinha! Mais tarde foi ser mestre de noviços na ilha de Itapirica na Baía, onde passou restante da sua vida e onde foi sepultado.

Depois dessa contextualização passo a detalhar como foi a rotina do primeiro ano do noviciado. Para começar todos os pertences não absolutamente necessários para o quotidiano eram recolhidos e guardados e, terminado o período de provação devolvidos. Só para exemplificar. Eu levei comigo o microscópio presente do Cirne Lima. Esperei dois anos para recuperá-lo no término do noviciado. A imersão na vida religiosa começou com um retiro espiritual de três dias logo nos primeiros dias de março. Vestíamos ainda o traje civil “de gafanhoto”, na gíria dos jesuítas da época. O retiro terminou com a “vestição”, isto é, substituição do traje civil pela batina clerical de religioso obrigatória antes do Concílio Vaticano II. Para distinguir dos demais jesuítas os noviços cingiam uma faixa estreita na cintura e enrolada nela um enorme rosário. Esse rosário costumava ser guardado como relíquia e, em muitos casos, acabava entrelaçado nas mãos quando um desses velhos guerreiros baixava à sepultura. Na mesma ocasião o noviço recebia um crucifixo que costumava acompanhá-lo também até a sepultura junto com o rosário. Lamento que aquele meu terço e crucifixo tenham-se perdido em alguma curva da estrada da minha peregrinação. Mais uma peculiaridade. Daquele dia em diante eramos tratados e nos relacionávamos entre nós como “Caríssimos”. O comum consistia em acompanhar o sobrenome do noviço com “Caríssimo”. Assim por ex. “Caríssimo Fischer”, “Caríssimo Rodrigues da Fonsesca”. Quando havia dois noviços comomesmo sobrenome, que foi o meu caso e um primo, chamavam-nos pelo nome de batismo, precedido por “Caríssimo”. Meu nome de batismo vinha ser Blasio ou Braz, fiquei identificado como “Caríssimo Braz”. Cá para mim teria preferido meu primeiro nome de batismo “Arthur”, pelo qual aliás sou hoje conhecido.

Vivíamos num confinamento muito próximo ao dos monges nos seus mosteiros. Sair para dar uma volta pela vila de Pareci Novo e redondezas só com autorização especial e no mínimo em dupla. Uma ou mais vezes ao mês o mestre ou seu assistente organizavam uma saída coletiva que costumava terminar num piquenique no potreiro de alguma família amiga ou num dos morros das redondezas. Os destinos mais procurados costumavam ser o morro dos “Zimmer”, a meio caminho de Portão, o morro dos “Teixeira” em Pareci Velho na margem esquerda do rio Caí, o morro de “Montenegro” e o morro de “Sto. Estanislau”, poucos quilômetros do Noviciado em Pareci Novo. De mais a mais o “confinamento” era relativo pois, a propriedade dos jesuítas em Pareci Novo cobria uma área de seus 70 hectares acompanhando a margem direita do rio além de todo o morro nos fundos dos prédios e instalações complementares. Uma mata virgem original cobria praticamente todo aquele morro. Nela destacavam-se várias dúzias de belos exemplares de araucárias plantadas há cerca de 40 anos antes pelo Pe. Brentano. Várias trilhas e caminhos cruzavam aquela floresta e no topo, rodeado de angicos, cangeranas, cabriúvas e outras espécies de árvores, um cancha de bolão. Tínhamos toda a liberdade de circular naquelas trilhas e caminhos nos intervalos dos exercícios obrigatórios. Nos feriados, domingos e nas quartas feiras, em vez de fazer as meditações na sala comum ou na capela eramos autorizados cumprir essas práticas em meio daquela natureza inspiradora. Dispondo de um pouco mais de tempo percorri de ponta a ponta aquele pedaço de paraíso e, em companhia de um ou dois coirmãos treinávamos bolão na cancha no topo do morro. Mais abaixo volto a me ocupar com aquele morro ao descrever as coletas de aranhas encomendadas pelo Instituto Butantã de São Paulo.

A rotina do noviciado, principalmente do primeiro ano, seguia um ritual nada folgado. No grande dormitório do terceiro andar os noviços dormiam cada qual num biombo individualizado com uma cama e um bidê e nada mais. A roupa, os sapatos e mais pertences eram guardados num grande roupeiro com repartições individualizadas para cada um. As segundas, terças, quintas e sextas feiras seguiam a mesma rotina. Começavam com a hora de levantar pelas 5,30h. Em seguida reunião na sala comum para uma hora de meditação, seguida da missa diária e o café da manhã. Tarefas domésticas ocupavam uma parte do restante da manhã. Entre outras varrer e passar pano nos corredores, no dormitório, nos quartos dos padres, no refeitório, preparar as mesas para o almoço, cuidar da limpeza nos pátios e calçadas e por aí vai. Lembro que a instituição não contratava serviço pago para a sua manutenção. Tudo ficava a cargo dos noviços e irmãos coadjutores. Depois de executadas as tarefas domésticas seguia meia hora de leitura piedosa da obra de Afonso Rodrigues e a Imitação de Cristo. Nos últimos 15 ou 20 minutos antes do almoço os noviços encontravam-se, geralmente de dois em dois para se darem “esmolas espirituais” (“elimosinae spirituales”). Em outras palavras trocarem conselhos, advertências e vivências de natureza espiritual, enfim emulações para progredir no aperfeiçoamento da formação espiritual. O almoço servido ao meio dia reunia toda a comunidade do Instituto São José no grande refeitório com as mesas armadas em forma de U. Na cabeceira sentavam-se os padres e professores com o reitor no centro. As laterais de um lado estavam reservadas para os “juniores”, estudantes de Letras e Literaturas clássicas e portuguesa além de Retórica. No outro lado almoçavam os noviços. O cardápio preparado na cozinha sob o comando do Ir. Fröhlich costumava ser simples frugal e de ótima qualidade. A todos, sem exceção, esperava uma garrafinha contendo um copo de vinho tinto de boa qualidade adquirido na cantina dos irmãos maristas em Garibaldi. Num púlpito estrategicamente colocado num ângulo do refeitório os noviços revezavam-se semanalmente na leitura de um livro instrutivo, normalmente profano, para cumprir a finalidade a que já me referi mais acima de “enquanto o corpo se alimenta, o espírito tenha a sua alimentação também”. Os alunos de retórica exercitavam-se na prática o que aprendiam nas aulas “pregando” para o “povo” reunido para o almoço. Nos domingos e feriados e comemorações especiais, feita a oração antes da refeição o superior se sentava e dispensava a leitura com um sonoro “Deo Gratias” – “Graças a Deus”, liberando para uma conversa livre durante a refeição. Terminado o almoço os noviços, na minha época os dois anos somavam 42 ao todo, reuniam-se nos bancos acomodados na sombra de um enorme bambusal ou de dois em dois ou três em três iam e vinham pelos caminhos que separavam os canteiros da horta. No recreio depois do almoço e da janta e durante as refeições falávamos português. Nos demais intervalos e comunicações o latim vinha a ser obrigatório. Uma ou duas vezes por semana o Mestre aparecia no recreio para fazer um resumo das notícias e acontecimentos regionais, nacionais e internacionais importantes, extraídas dos jornais assinados pelo colégio.

O evento mais marcante do primeiro ano de noviciado foi, sem dúvida, o “Retiro Grande” de 30 dias. Só para não esquecer. Todo jesuíta era obrigado a passar por um retiro desses em duas ocasiões: a primeira ao entrar no noviciado e a outra ao concluir sua formação a “Terceira Provação”, isto é, um ano de nova imersão para valer na espiritualidade inaciana, depois de concluir toda a formação acadêmica e ordenado sacerdote. Nos demais anos e pelo resto da vida o jesuíta tinha como obrigação fazer anualmente um retiro espiritual de 8 dias. O Retiro Grande de 30 dias começou logo depois da Páscoa de 1950. Como já anotei mais acima, a reclusão vinha a ser total de segunda-feira a sábado, com uma interrupção no domingo. A comunicação entre os retirantes só era permitida em situações especiais e em latim. A rotina diária dos dias de retiro resumia-se na meditação matutina, seguida da missa, desjejum, uma palestra ou “instrução” do Mestre versando sobre as constituições da Ordem, ascese, espiritualidade, enfim, a imersão no espírito inaciano e/ou jesuítico. A primeira parte do período da tarde estava reservado para cuidar da manutenção da casa e seus arredores. A segunda metade começava com uma meditação de uma hora, um período livre dedicado a alguma leitura piedosa, seguida das “Ladainhas” na capela, o jantar e um período livre. Encerrando as atividades do dia o Mestre propunha os “pontos”, isto é, o tema sobre o qual deveríamos meditar na manhã seguinte. Uma visita à capela fechava a rotina do dia. Nos intervalos entre as muitas atividades obrigatórias havia liberdade de fazer uma boa leitura, geralmente a obra ascética de Afonso Rodrigues. Eu da minha parte não sentia maior afinidade com esse autor, especialmente pelo tipo de ascese que orientava sua obra. Entre os meus autores prediletos constavam Hugo Rahner –“Inácio de Loiola homem da Igreja” e outros títulos, Filöp Miller – “Os jesuítas seus segredos e seu poder”, além de outras obras e autores do gênero. Mais ou menos no meio do retiro fui surpreendido por uma visita de todo inesperada da minha mãe. Acontece que em Pareci Novo morava uma prima dela casada cum um Stoffel. Combinou a visita à prima com um passada no Colégio São José onde me encontrava em retiro. Por um descuido meu não informara a mãe dos 30 dias de retiro. O Pe. Kohler teve o bom senso de não despedir minha mãe sem me ver, atitude que na época teria sido considerada quase como que normal. Permitiu que almoçasse com ela e liberou-me até às 16h dos compromissos com o retiro. Fiquei trocando novidades com a mãe sentado num banco à esquerda da portaria e antes mesmo de espirar o prazo de eu voltar para a clausura, a mãe foi pernoitar na casa da prima que ficava em torno de 10 minutos de caminhada distante do colégio. Aquele encontro inesperado e naquelas circunstâncias mexeu com os meus sentimentos mais profundos. Subi por uma trilha que terminava no meio do mato no alto do morro. Quase no topo sentei-me não chão entre as raízes de uma araucária, encostei as costas no tronco o chorei como uma criança. Aquelas menos de três horas que passei junto com mãe trouxeram à tona uma história e um mundo maravilhoso que deixara para trás para entrar na Ordem Religiosa. Nesse panorama destacava-se a figura já um tanto envelhecida da minha mãe viúva, mas com os traços do rosto e a postura do corpo sugerindo uma mulher que não conheceu desafios e obstáculos intransponíveis e ainda decidida a encarar e dar conta de outras tantas eventualidades que a surpreenderiam na sua caminhada que se prolongaria por mais 21 anos. Poucas vezes na minha vida fui acometido por uma saudade tão profunda e tão doída como naquela tarde de outono de 1950, eu um pouco mais que um adolescente de 20 anos. Porém, em vez de me abalar na decisão tomada, aquele anjo que foi minha mãe apareceu num momento crucial como a fiadora com quem podia contar sempre e, principalmente, com suas orações. As orações de uma mãe movem montanhas, não se resumem em fórmulas moldadas por “peritos” em espiritualidade mas, pela relação, porque não pela cumplicidade existencial que tece a relação de uma mãe com seus filhos.

Da Enxada à Cátedra [ 34 ]

Viagem a Porto Novo (São João do Oeste).

Antes de entrar no noviciado, o que significaria um confinamento de dois anos em Pareci Novo, planejei visitar meu irmão Fridolino que, em 1944, se mudara com a família para a então fronteira de colonização de São João do Oeste. Consultei a opinião da minha mãe e ela apoiou sem restrições a ideia. Um detalhe. Da venda do porco para custear as estátuas da gruta de Nossa Senhora de Lourdes sobrara uma soma razoável de dinheiro. O reitor do colégio autorizou-me a usá-la para os gastos da viagem. Naqueles anos os seminaristas naturais de Porto Novo somavam um número tão expressivo que alugaram um ônibus para levá-los até em casa. Integrei-me no grupo e em meados de dezembro o ônibus buscou-nos na portaria do colégio. Na época as estradas para o norte em direção a Santa Catarina eram de chão batido. A Br 386 – estrada da produção não existia. O roteiro que percorremos foi pela estrada que passava por Corvo (hoje Colinas), Roca Sales e, atravessando o Taquari de balsa, até Encantado. A partir dessa cidade a subida do planalto se dava pela antiga estrada cheia de curvas, passando por Anta Gorda, Arvorezinha até Soledade. Na tarde do primeiro dia chegamos em Arvorezinha, onde pernoitamos. No dia seguinte continuamos a viagem passando por Soledade, Espumoso, Selbach, Ibirubá e no meio da tarde paramos em Tapera onde iríamos pernoitar. Ficamos alojados na casa e dependências do nosso colega Alcino Bervian. Naquele remoto ano de 1949 Tapera não passava de uma daquelas cidadezinhas típicas das áreas há pouco colonizadas. A comunidade católica local nos esperava com uma janta, cantos, poesias, temperados com bons papos com o pároco e os membros da comunidade. Retribuímos com cantos e, por fim, com uma fala de agradecimento que coube a mim pronunciar. Pela meia noite nos recolhemos para dormir. Com mais um ou dois colegas passei a noite num pequeno depósito adaptado para a ocasião. Depois de uma noite bem dormida seguimos viagem por Cruz Alta, Ijui, Palmeira das Missões, Barril (hoje Frederico Westphalen) Seberi, para descermos até o rio Uruguai. Gravei na memória o panorama na nossa frente ao começarmos a descida. Lá em baixo, meio encoberto pela mata virgem o grande rio parecia uma lâmina de prata refletindo os raios do sol da meia tarde. Em ambas as margens dezenas de clareiras na floresta com destaque para as características casas de madeira desde os fundamentos inclusive o telhado de madeira dos pioneiros da mata virgem. Um pouco mais à esquerda o povoado de Itapiranga destacava-se na paisagem. O ônibus desceu a encosta e terminou no “Passo do Schöler”. Descemos todos do ônibus, ele subiu na barca e atravessamos o Uruguai que naquela altura mede em torno de 800 metros. Na outra margem em Santa Catarina, desembarquei na casa de comércio e hotel dos Schöler pois, tinha informações que lá perto morava a família do alfaiate Fridolino Juchem conhecida minha, emigrada do Morro da Manteiga em 1941. O filho mais velho, o Telmo, fora meu parceiro de caçada com bodoque nos domingos de tarde. Uma das filhas, a Lourdes, nessa altura com 18 anos, tinham sido minha amiguinha além da Célia Kirch naquela inesquecível escolinha do Morro da Manteiga. Pernoitei na casa daquela família e o Telmo me mostrou a propriedade da família e redondezas nas encostas do rio Uruguai na Sede Capela. Posso até estar fazer um julgamento injusto mas, percebi que o pai da Lourdes evitou que conversasse com as filhas. O Telmo e eu dormimos num quarto num anexo da casa. Depois do café da manhã ele foi comigo até o estabelecimento dos Schöler pois, ele sabia que naquele dia um caminhão da empresa levaria uma carga de tijolos até São João. Aceitaram dar- me carona mas, acomodado em cima dos tijolos porque na cabine, além do motorista viajariam mais duas pessoas. Foi uma viagem e tanta por aqueles 15 quilômetros em grande parte costeando o arroio Fortaleza. A estrada não passava muito de um caminho para carroças e cavalos. Uma curva depois da outra, um desnível depois do outro, pedras de bom tamanho soltas, valos cavados pela chuva, faziam gemer o caminhão. Sentado em cima dos tijolos escorregando para todos os lados não deixaram esquecer os efeitos cada vez que me sentava num banco ou cadeira nos dois ou três dias seguintes. Paramos na filial dos Schöler em São João. Fui obrigado a fazer a pé os quatro ou cinco quilômetros adiante onde morava meu irmão. Devo ter levado uma hora e pouco por uma estrada acompanhando a margem esquerda do arroio São João. Aquela caminhada na meia manhã iria acompanhar-me o resto da minha vida. As casas de madeira dos colonos alinhadas perto da estrada nas clareiras recém abertas na floresta virgem, as exuberantes plantações de milho, feijão, mandioca, abóbora, enchiam os olhos. Encontrei a casa do Fridolino à esquerda da estrada com um potreiro nos fundos descendo até a margem do arroio escondido numa faixa de mata preservada. Meu irmão reconheceu-me de longe e foi receber-me na estrada e atrás dele os filhos, o mais velho, o Afonso, de 15 anos, o Roque, o João, os gêmeos Cláudio e Canísio, o Anselmo, o Inácio e a Blasia. A cunhada, a Maria, esperava na porta da casa, igual a todas as outras, toda de madeira inclusive o telhado de tabuinhas. Só para lembrar. Uma viagem que hoje se vence tranquilamente em 8 ou 9 horas, por estradas asfaltadas, naquele remoto 1949 levou três dias e meio. Meu sonho de participar e vivenciar, pelo menos por duas semanas a realidade numa fronteira de colonização que contava com apenas 5 anos, estava para começar. Pela meia tarde subimos por uma trilha pela mata virgem, calculo uns 150 metros, até um plano com uma grande clareira aberta rodeada pela floresta. O Fridolino mostrou-me orgulhoso uma belíssima plantação de milho em ponto de florescimento e no meio dezenas de abóboras com as ramas protegendo o chão. No fundo da clareira uma trilha entrava fundo mata adentro. Por essa trilha os madeireiros arrastaram os troncos de madeira nobre, principalmente cedro, depois os transportavam até o barranco do rio Uruguai e, reunidos em enormes balsas desciam o Uruguai para, finalmente serem vendidas na Argentina. Para quem se interessar por mais detalhes relativos a história dos balseiros e do comércio de madeira na Colônia de Porto Novo, recomendo o meu livro Somando Forças – O Projeto Social das Jesuítas” -Edit. Unisinos – 2011.

As duas semanas passadas com a família do meu irmão foram bem movimentadas. Para começar fiz um reconhecimento da propriedade. A área toda media 42 hectares dos quais calculo que uns cinco estavam desmatados. O restante era uma floresta praticamente intata. Apenas meia dúzia de cedros e timbaúvas haviam sido derrubadas e vendidas para os balseiros. O Fridolino emprestou-me a espingarda e levou-me até a entrada da trilha que entrava uns duzentos metros mata a dentro. Devido a compromissos assumidos ele próprio não iria acompanhar-me naquela manhã. Recomendou-me que se escutasse estalos no interior do mato tomasse cuidado e subisse em alguma árvore porque naquela época ainda vagavam porcos selvagens, “queixadas”, nos matos daquela região. Andavam em varas de 20 ou mais animais e atacavam tudo que vinha pela frente. De fato, não demorou e escutei um estalar estranho não muito longe. Subi numa árvore inclinada e fiquei esperando. Percebi logo que aquele estalar não saía do lugar e não foi possível observar movimentação no chão do mato. Observando melhor me dei conta de que se tratava de meia dúzia de pica-paus martelando no tronco de uma árvore seca lá perto. Avancei até o fim da picada na floresta e sentei-me num tronco caído e por um bom tempo observei aquele cenário telúrico. Poucos metros adiante erguia-se um enorme cedro que escapara da sanha dos madeireiros, seguramente duas vezes secular, uma dúzia de enormes grápias e aninhadas nos galhos e troncos magníficos exemplares de guaimbés com as raízes descendo pelos troncos ou diretamente pendendo até o chão. Canafístulas, louros, pau marfim, angicos, cabriúvas, canelas, copa encostando em copa, imitavam uma gigantesca catedral filtrando os raios do sol de um dia de dezembro sem nuvens. E na penumbra daquela catedral dezenas de espécies de arbustos, pequenas árvores, ervas rasteiras, samambaias, musgos e nos troncos das árvores as manchas multicoloridas de líquenes, ofereciam abrigo e refúgio a veados, roedores, cachorros do mato, catetos, queixadas, tatus, pacas, cutias, jararacas e serpentes não venenosas. Meu irmão informou-me que perto de uma cascata rodeada de floresta virgem nos fundos da sua propriedade, ficava um refúgio de antas e capivaras. Infelizmente não houve tempo para assar um churrasquinho ao pé daquela cascata em plena mata virgem. Embora carregasse comigo uma espingarda de dois canos calibre 28 não disparei um único tiro naquela manhã. Levei a espingarda mais por uma razão romântica imaginando parecer um daqueles caçadores que povoavam a minha imaginação pelas leituras de livros de aventureiros e viajantes. Uma espectativa não se concretizou e nunca concretizaria, isto é, observar em plena natureza uma bando de coatis andando nos galhos de algum gigante da floresta. Mas, não faltaram bandos e mais bandos de papagaios divertindo-se com suas algazarras nas copas das árvores e, de preferência, nos galhos de alguma grápia destacando-se do verde das copas. Em galhos secos sobressaindo da floresta ecoava o inconfundível martelar do ferreiro.

Nos finais da tarde, não em todos, descia com o Fridolino até o arroio São João para pescar jundiás. Esse arroio fazia parte desses cursos de água de pequeno porte, típicos das encostas, desde tempos imemoriais cobertas de mata virgem. Seus leitos pedregosos feitos por uma sequência de corredeiras alternando-se com remansos de água cristalina ofereciam o habitat perfeito para a procriação e proliferação de espécies de peixes como o cascudo, o jundiá e a traíra. As margens cobertas de mata virgem fechada abrigavam os predadores dos peixes dos arroios, com destaque para a cuica e a lontra. Munidos com um caniço de bambú, uma linha de pesca e um anzol comum e como isca uma minhoca, em questão de uma hora tínhamos fisgado vários quilos de jundiás. Lá pelas tantas as cuicas começaram a se manifestar com seu inconfundível cuicar, razão do seu nome. O Fridolino recolheu o caniço e sentenciou: vamos para casa. As cuicas terminaram com a nossa pesca. Em casa limpamos os jundiás à luz de um candeeiro pois, não havia luz elétrica. Minha cunhada, a Maria, aprontou a janta e fomos dormir. Naquela casa de pioneiros da mata virgem não havia muito espaço e somente dois quartos. Aprontaram para mim uma cama rústica na “sala”. Dormi o sono dos justos embalado pela sinfonia noturna de uma natureza recém “profanada” pela presença do homem. Lembro-me nos mínimos detalhes de um sonho daquela noite. O cenário foi o cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Eu iria entrar na Ordem em março do ano seguinte. Esse passo significava para mim, naquele momento, como que engajar-me como recruta numa missão tão ao gosto do autêntico jesuitismo imaginado por Santo Inácio e seus companheiros na capela de Mont Martre em Paris ao fundarem a Companhia de Jesus: cumprir uma missão, morrer no campo de batalha e ser sepultado num cemitério de guerra à sombra de uma cruz igual a milhares de outras com os nomes dos combatentes caídos, no cumprimento da missão que lhes fora confiada. Os cemitérios de guerra sempre foram para mim cenários de um significado histórico e existencial que vai muito além de um simples memorial. Lá encontram-se os milhares de “caídos” no cumprimento não de uma trefa rotineira, mas de uma missão. Lá naquele cemitério de São Leopoldo descansavam, exceto um ou outro sobrevivente, os heróis fundadores da velha guarda” dos jesuítas, procedentes da velha Germânia, que consolidaram a obra civilizatória que faz a diferença do sul do Brasil em relação com o restante do País. Naquela noite me assumi como recruta e decidi cumprir a tarefa que me caberia cumprir nessa Missão. As correções de rota de 22 anos mais tarde, para mim pelo menos, nada mais significaram do que a fidelidade a uma coerência de que jamais iria abrir mão. Voltarei mais abaixo e em outro momento ao assunto.

Nos dias que se seguiram visitei em primeiro lugar meu padrinho o Arthur Rambo do qual herdei o nome. Com mais um irmão, o Alfredo e uma irmã casada com um Tempass, viajaram na primavera de 1944, amontoados na mesma carroceria de caminhão para a então fronteira de colonização de São João do Oeste. Compraram colônias de terras vizinhas umas às outras na entrada dos complexos de floresta virgem do oeste de Santa Catarina. Meu padrinho, o Arhtur adquiriu 2 colônias e os outros, cada um, uma. Esse meu padrinho perdeu a esposa logo nos primeiros anos. Pelo que sei nunca superou essa perda embora tenha encontrada uma segunda esposa, também viúva jovem, que foi sua companheira fiel e dedicada para o resto da vida. Almocei na casa dele e ao tomarmos chimarrão antes do almoço, ele apontou para a segunda esposa ocupada no fogão e disse mais ou menos essas palavras: Ela é minha salvação. Depois desse encontro nunca mais me encontrei com esse homem, representante emblemático de todos os pioneiros nas fronteiras de colonização do século XIX e XX do sul do Brasil. Contaram-me que antes de morrer o Arthur pediu um gole de água. Depois de tomá-lo pronunciou as últimas palavras de um significado difícil de avaliar em toda a sua extensão: “Wen das gute kühle Wasser nicht wär” – “Se não fosse a água boa e fresca”, uma versão carregada de simbolismo do filósofo grego Tales de Mileto de 2.500 anos passados: “o todo é uno, o uno é plural e a água é o princípio de todasas coisas”.

O acontecimento mais importante dessa minha visita foi, sem dúvida, a missa da meia noite do Natal, conhecida como “a missa do galo”, oficiada pelo Pe. Schoebendach, o mesmo a quem me referi mais acima que presidiu a encomendação do meu pai. Relembrando que, naquela época, a comunidade de São João era 100% católica e de origem alemã ou alemães diretamente imigrados na década de 1930, o culto foi todo em alemão: as orações do povo, os cantos e o sermão, menos a liturgia da missa em si que foi em latim como em qualquer parte do mundo católico na época. Nunca vou esquecer aquele espetáculo de fé. Já na ida até a igreja paroquial pelas 10h da noite não havia caminho ou trilha saindo da mata virgem ou das clareias recém abertas que não trazia pessoas a cavalo, bandos de crianças e adolescentes, moças e moços, homens e mulheres dirigindo-se até a igreja. Todos aqueles que de alguma maneira tinham condições faziam questão de comparecer. E o resultado não podia ser outro. Nem a metade das pessoas coube no interior do magnífico templo todo construído com madeiras nobres doadas pelos paroquianos. Mais adiante volto para descrever aquela igreja única em todo sul do Brasil. As crianças acomodaram-se na frente e nos lados do altar não deixando um palmo livre. Os bancos e os corredores ficaram por conta dos adolescentes e adultos, mulheres e moças do lado esquerdo e homens e moços no direito, como era hábito naquele tempo. Quem não conseguiu lugar dentro da igreja assistiu a missa apinhado na porta principal e nas laterais além de um número grande de homens aglomerados nos gramados em volta do templo. Na hora da consagração ninguém se omitiu para ajoelhar-se na grama húmida pelo orvalho. O coral da comunidade deu o melhor de si e o Pe. Schoebendach caprichou com o sermão. A distribuição da comunhão levou no mínimo em torno de 20 minutos. A cerimônia toda estendeu-se até depois da uma hora com a comunidade inteira cantando “Grosser Gott wir loben Dich” – “Deus Eterno a Vós louvor”. O eco dessa vigorosa melodia em louvor ao poder e às obras do Criador, daquela madrugada de 25 de dezembro de 1949, rebatendo nas encostas dos morros, enchendo os vales e perpassando as florestas e plantações, gravou-se na minha memória nos mínimos detalhes. Quero apenas lembrar aos netos e bisnetos que hoje colhem os frutos do sangue e suor, das penúrias e sofrimentos, que não desmereçam o legado de valores humanos e religiosos daquela geração de homens e mulheres que empenharam o melhor de suas vidas e deram as próprias vidas, ao colocarem os fundamentos e pressupostos para a prosperidade do extremo oeste de Santa Catarina. Terminadas as celebrações litúrgicas o povo foi-se dispersando e as famílias se recolhendo nos seus modestos lares de madeira bruta acomodados nas clareiras rodeadas pelo clima da floresta carregado de mistério.

No dia 27 ou 28 de dezembro reuni meus pertences pois, chegara a hora de voltar para casa no Morro da Manteiga e passar os dois últimos meses de férias junto com minha mãe, minha irmã Ana, o Bertoldo e a Erica, o Raimundo e sua numerosa família. Depois do almoço despedi-me da família do Fridolino e em sua companhia fui esperar o ônibus na estrada que descia pela outra margem do Arroio São João. Com um aperto no coração despedi-me desse meu amado irmão. Na curva logo adiante olhei para trás, ele protegido pelo guarda-chuva abanava com a mão até a curva da estrada esconde-lo. A figura daquele homem de corpo franzino mas de uma alma e uma coragem de gigante plantado na beira da estrada abanando-me um adeus, faz parte de inúmeras cenas que povoam as muitas lembranças dos acontecimentos marcantes da minha vida.

Pela meia tarde o ônibus me deixou na Sede Capela no entroncamento da estrada para Itapiranga e o Porto Schöler. Caminhei os dois ou três quilômetros até a casa do meu amigo, o alfaiate Fridolino Juchem o mesmo onde pernoitei na vinda duas semanas antes. Na manhã seguinte o Telmo, também já conhecido, acompanhou-me até a casa de comércio dos Schöler. Não demorou e encostou o ônibus da “Serrana” que fazia o trajeto Porto Novo - Linha Imperial em Nova Petrópolis.

Pouca coisa guardei na memória desse retorno até em Casa no Morro da Manteiga. Só me lembro que cheguei lá na tarde da véspera do Ano Novo. No mais não ocorreram nos dois meses de férias eventos que mereçam um destaque especial. Ajudei o quanto me era possível nas lides diárias próprias na colônia como capinar, fazer pasto, cuidar dos animais e até peguei no arado de bois para lavrar uma área para plantar batata. No dia 27 de fevereiro despedi-me da minha mãe, da Ana, da Erika, da família do meu irmão Raimundo. O Bertoldo e eu montamos nos cavalos e cavalgamos até o Colégio Santo Inácio onde ocorreu o encontro dos candidatos ao noviciado. No dia seguinte a direção do Colégio ofereceu um almoço de confraternização. Às 4h embarcamos no trem que nos deixaria na estação em Montenegro. Lá esperava um caminhão que nos levou até o Colégio São José em Pareci Novo. O sol se punha enquanto passávamos pelo portal de entrada. Quando a porta se fechou fui tomado por uma sensação um tanto estranha. O mundo profano ficara para trás e começava uma nova e longa caminhada num ambiente inteiramente impregnado de espiritualidade: “O Noviciado”.

Da Enxada à Cátedra [ 33 ]

Em 1949 não houve mudança na rotina diária do colégio. A novidade foi a inclusão da iniciação à língua grega no currículo. Não me recordo exatamente quem foi o professor de grego. Parece-me que foi o Pe. Heinz Thom um representante da última leva de jesuítas que saíram da Alemanha em meados da década de 1930 devido à hostilidade do regime nazista. O aprendizado do grego começou evidentemente com a familiarização com a fonética, o alfabeto, declinações, conjugações, sintaxe, isto é, os fundamentos da gramática. O aprofundamento propriamente dito no manejo da língua grega aconteceria dois anos mais tarde no bacharelado das línguas e literaturas clássicas já no nível superior. Ao começar esse último ano do Ginásio tomei a decisão de aproveitar ao máximo o tempo para me familiarizar com as literaturas não só portuguesa e brasileira, como da latina, alemã, inglesa, francesa, italiana, espanhola e russa. Evidentemente o tempo não permitiu senão a leitura das obras mais representativas como a Ilíada e Odisseisa de Homero, as Catilinárias de Cícero, as Odes de Horácio, o De Germânia de Tácito, o De Galia de Cesar, a Eneida de Virgílio. Da literatura alemã recordo-me em especial de Goethe, Schiller, Heine, Uhland; da literatura inglesa e americana as peças de teatro de Sheakspeare, o Paraíso Perdido de Milton, o Velho e o Mar de Hemingway, as Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain; da literatura francesa Os Miseráveis de Vitor Hugo; da literatura italiana O Inferno de Dante Alighieri; da literatura espanhola o D. Quixote de Cervantes; da literatura russa Os Irmãos Karamazov de Dostoyevski e Guerra e Paz de Tolstoy; da literatura portuguesa Os Maias e O Crime do Pe. Amaro, As Lusíads de Camões; da literatura brasileira Iracema de José Alencar, Dom Casmurro de Machado de Assis e, evidentemente os romances de Érico Veríssimo com destaque para O Continente” Olhai os Lírios do campo. Lembro-me com saudades desse último ano do ginásio no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Munido com as línguas aprendidas nos quatro anos anteriores: Português, Latim, Francês, Inglês, Alemão fazendo parte do currículo normal e o Espanhol e Italiano por conta própria, tive acesso a toda a riqueza da tradição cultural desde a antiga Grécia até o final da Segunda Guerra Mundial. Às línguas e correspondentes literaturas vieram somar-se a História, a Geografia, as Ciências Naturais, as Artes e a Música. Este último item merece uma breve observação. O Fr. Arhur Bohnen prefeito da terceira divisão do colégio, portanto, das duas últimas séries, reunia-nos nos domingos à noite para uma sessão de Música clássica. Selecionava uma Sinfonia, uma Ópera, Marchas, e outros gêneros dos grandes clássicos Bethhoven, Bach, Schubert, Strauss, Wagner, Verdi, e outros mais, encarregava um aluno para fazer uma apresentação de contextualização para depois escutarmos a respetiva obra. Não tenho como agradecer ao meu xara Arthur Bohnen, há anos passado “para o outro lado do caminho”, como diria Sto. Agostinho, aquelas noites de domingo antes de nos recolhermos para dormir. Embora nunca tenha participado efetivamente de um coral, nem aprendido a tocar algum instrumento, devo aquelas sessões a paixão pela música clássica e a música e os cantos de corais profanos e religiosos que me acompanharam o resto da vida. Cultivo ainda hoje o hábito de escutar meia hora de boa música antes de me recolher para o descanso da noite. Sem intenção de me exibir aquele último ano foi, em termos de formação acadêmica de um valor inestimável para minha formação para as etapas já no nível superior que se seguiram. O tropeço de 1945 quando tive que repetir o ano ficaram reduzidos a um simples acidente de percurso que certamente deve ter tido o seu devido significado positivo dentro do contexto. Cheguei a tirar o primeiro lugar da turma no primeiro semestre e o terceiro no final do ano.

Naquele último ano do ginásio a dedicação às Ciências Naturais propriamente ditas passou para um segundo plano mas o museu continuou sob a minha responsabilidade. Ficou evidente mais acima, que as línguas e, de modo especial, as respetivas literaturas, as artes e a música passaram para o primeiro plano. Entre nós seminaristas em princípio candidatos para entrar na Companhia de Jesus, a devoção a Nossa Senhora ocupava um lugar de destaque na nossa formação religiosa e na prática devocional. A reza do terço em comum à tarde na capela, fazia parte da rotina do cotidiano. No fundo dos campos de jogos uma estátua de Nossa Senhora da Conceição vigiava a movimentação dos seminaristas nas suas competições esportivas, do alto de um cômoro artificial de pedras e terra coberto com grama e flores do campo. Uma vez por semana e nas datas mais importantes do calendário mariano, a oração da noite na forma de cantos marianos como o Salve Regina, O Memorare, a Ave Maria de Schubert, de Gounot, de Mozart e de outros ecoavam às 9 horas da noite do alto daquele morro para rebater nas encostas e vales vizinhos. Não tenho dúvidas que não poucas famílias da vizinhança aproveitavam o momento para também fazerem sua oração da noite. Obviamente não podia deixar de existir uma Congregação Mariana, como já lembrei mais acima, o instrumento de piedade e de prática do catolicismo militante preferido dos jesuítas. Com grande orgulho eu fazia parte da diretoria da Congregação na categoria de Assistente. Planejamos construir uma gruta de Nossa Senhora de Lourdes na curva da estrada que descia do colégio para a hoje cidade de Salvador do Sul. Já faz uns bons anos que não subo por aquela estrada até os prédios do nosso amado colégio. Entretanto, os jesuítas venderam a propriedade com os imponentes prédios para uma empresa, se estou bem informado para osMóveis Kappesberg”. Espero que a gruta continue preservada naquela curva rodeada por uma bela mata secundária e um bambusal nos fundos. Com dois ou três colegas dedicamos as quartas- feiras e os feriados, inclusive os dias livres dos “passeios grandes” mensais do segundo semestre de 1949, à construção da gruta. O Ir. Cláudio Leichtweiss responsável pelas vacas, bois e porcos do colégio, cedia a carroça com uma junta de bois para transportar as pedras brutas das redondezas para o local da construção. Empregamos apenas um saco de cimento para firmar o bloco de pedra de fecho do arco da gruta. Na construção da gruta em si praticamente não se gastou dinheiro algum além de um saco de cimento e um pouco de areia. O problema maior foi a aquisição das estátuas de Nossa Senhora e da vidente Bernardete. O tesoureiro do colégio não dispunha da quantia suficiente para bancar a despesa. Percorrer as vizinhanças e arrecadar a quantia necessária não parecia conveniente. Recorremos então à criatividade. A solução encontrada e posta em prática foi engordar um porco com as sobras e lavagem da cozinha, vende- lo e com o resultado bancar as estátuas. Construímos um chiqueirinho no mato de eucalipto atrás dos banheiros no fundo dos campos de exporte. O Ir. Cláudio cedeu o porco e eu combinei com o irmão Finkler cozinheiro do colégio que guardasse a lavagem e as sobras da cozinha. De manhã antes das aulas e à meia tarde depois das aulas encarreguei-me de passar pela cozinha para buscar o recipiente cheio de restos misturados com lavagem para alimentar engordar o porco. O plano funcionou melhor que tínhamos imaginado. Lá por fins de novembro o porco estava no ponto para ser vendido e mandar vir as estátuas de Porto Alegre. O irmão Cláudio cedeu-me novamente a carroça e a junta de bois e ajudou-me a carregar o porco depois levei-o até a casa de comércio do Müller que intermediava a compra de porcos para o frigorífico Renner de Montenegro. Com a quantia arrecadada deu e sobrou para bancar as estátuas. Em começos de dezembro a gruta estava pronta para a inauguração, com as estátuas no devido lugar e até a imitação de uma fonte de água fornecida por um encanamento vindo de uma fonte mais acima. A solene inauguração, com missa campal e a presença de toda comunidade do colégio e um grande número de pessoas de Salvador do Sul, aconteceu no dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição.

A construção da nova Capela e Salão de Atos

Até o final da década de 1940 a capela do Colégio Santo Inácio ocupava o segundo andar da ala que abrigava no primeiro a sala de jogos de mesa. A salão de atos com palco ficava no andar térreo do lance central da direita da portaria principal de entrada na instituição. Terminada a Guerra Mundial os superiores maiores da Província Sul Brasileira da Companhia de Jesus, decidiram construir uma capela sobre um salão de atos no lado oposto da portaria central. O projeto exigia que para o salão de atos fosse preciso remover um grande volume de terra e blocos de pedra ferro. Esses trabalho de preparação para o espaço do salão praticamente todo abaixo do nível do terreno coube em grande parte aos internos do colégio da quarta e quinta série do ginásio todos jovens de 18 a 20 anos. Divididos em grupos de 4 a 5 revezavam-se no serviço de remoção de terra e dos blocos de pedra. Parece oportuno lembrar que 75 anos atrás retro escavadeiras, depósitos de brita, furadeiras mecânicas estavam fora do alcance das finanças do colégio. A solução foi valer-se dos recursos disponíveis. Em resumo significava remover a terra e os blocos de pedra cavando a terra com picaretas e transportando-a com carrinhos de mão para um aterro próximo. Todo esse trabalho coube a nós internos na hora prevista para a manutenção dos prédios das 16 às 17h e nas tardes das quartas feiras em que não havia aulas, como já lembrei mais acima. O Pe. Schader, um homem prático bolou um guindaste para erguer os carrinhos de terra até o topo do barranco donde algum dos rapazes levava a carga para o aterro. O guindaste consistia numa tronco de eucalipto plantado firmemente no chão e no topo uma trave giratória munida com três cordas com ganchos para firmar o carrinho, um no arco em frente ao pneu e os dois outros nos braços traseiros. Na outra extremidade da trave pendia uma corda reforçada para erguer o carrinho num movimento de gangorra até o topo da escavação. Essa manobra dependia dos músculos de dois ou três dos rapazes mais robustos. Levamos dezenas de carrinhos carregados de terra para o aterro e outros tantos no fundo da escavação. Só para lembrar que com essa contribuição em forma de mão de obra foi possível, como já mencionei mais acima, que o colégio cobrasse de seus internos uma pensão anual que cabia no orçamento das famílias, mais de 90% do interior colonial. Posso afirmar, sem medo de exagerar que encarávamos esse trabalho como fazendo parte do nosso treinamento para cumprir uma missão na vida e não exercermos uma simples profissão.

Um outro desafio foi a remoção dos blocos de pedra, alguns pesando mais de uma tonelada soltos na argila da encosta. Foi preciso dinamitá-los e para tanto fazer um furo de meio metro ou mais na pedra ferro para colocar o explosivo. Não dispúnhamos de broca mecânica. A solução foi recorrer ao método artesanal utilizando uma broca de aço de cerca de duas polegadas de diâmetro e um metro de comprimento além de uma marreta de três quilos. A tarefa exigia uma dupla de operadores. Um segurava a broca e a cada martelada do parceiro a girava uma fração dos 360 graus. Não precisa de muita imaginação para perceber que não se tratava de uma tarefa para crianças. Os dois operadores trocavam de função quando o martelador cansava. Para completar um furo de meio metro levam-se duas ou mais horas pois, os blocos eram de basalto. Uma vez alcançada a profundidade necessária um perito colocava uma banana de dinamite ou meia de acordo com o tamanho do bloco presa a um rastilho. Aceso o rastilho era preciso abrigar-se para não ser atingido pelos estilhaços da explosão. Os estilhaços podiam ser removidos com carrinhos de mão e levados até o aterro. Não me lembro que alguém se tenha machucado seriamente nessa parte do trabalho. Para mim e para os demais internos das últimas séries do ginásio esse trabalho pesado causava um grande prazer pois, de um lado significava uma exercício físico excelente para nós jovens de 18, 19, ou 20 anos e, de outra, estávamos preparando o espaço para um salão de atos para valer e sobre ele erguer uma capela condizente com o tamanho e a importância na formação acadêmica e espiritual dos internos. Uma vez livre o espaço semi subterrâneo seguiu a colocação dos fundamentos e as paredes do salão de atos. Pela sua própria natureza essa fase da obra inteiramente feita de blocos de meláfiro de mais ou menos 40 por 30 por 30 centímetros, foi confiada a pedreiros peritos no manuseio desse tipo de material de construção. O responsável pelo erguimento do fundamento e das paredes foi o “Bepi Gasperin”, um descendente de italianos cultivadores de uva, moradores das redondezas. Nunca vou esquecer esse senhor, aparentemente franzino, com seu inseparável cachimbo entre os dentes, lidando com maestria única com aqueles blocos de pedra ferro, preparando-os com martelo e talhadeira para ajustá-los uns aos outros sem utilizar argamassa. Um detalhe. O filho do Bepi, um adolescente de seus 13 ou 14 anos que trabalhava na manutenção dos chiqueiros e estrebarias do colégio, fez parte da minha primeira turma de alunos em 1949. Fazia parte do grupo de adolescentes e rapazes vindos da colônia para cuidar daqueles serviços, como já lembrei em outra ocasião.

Uma vez concluída a estrutura do salão de atos toda ela de blocos de basalto chegou a hora de preparar as vigas de concreto e a plataforma sobre a qual seria fundido o piso da capela. A amarração da ferragem ficou a cargo dos internos, claro sob o comando e supervisão do irmão Willy Wolters a quem cabia a função de mestre de obra. Esses procedimentos envolviam na época desafios de tamanho não pequeno, agravados pelo fato de o Colégio Santo Inácio localizar-se nos confins do município de Montenegro, dezenas de quilômetros dos fornecedores das matérias primas indispensáveis: areia, ferro, cal, cimento e brita. As quatro primeiras vinham de trem. Da estação da viação férrea até o topo do morro, lugar da construção o caminhão do Colégio garantia o transporte. Quem se encarregava do transbordo da areia do vagão do trem para o caminhão à base de pás, éramos nós das duas últimas séries do ginásio. Não tenho a mínima ideia de quantas dessas viagens tomei parte. Guardo, porém, na memória o entusiasmo com que enchíamos o caminhão com areia para depois, acomodados em cima dela subirmos aquele menos de um quilômetro, até o local da obra. Saudávamos os moradores na beira da estrada de chão batido, erguendo orgulhosamente nossos instrumentos de trabalho. A cal virgem e vergalhões de ferro também vinham de trem. Antes de preparar a argamassa era preciso “apagar” a cal virgem encharcando-a com água. Nem pensar em betoneiras. Todo trabalho tinha que ser feito no braço usando pás e enxadas. Casas especializadas em materiais de construção e entrega a domicílio só em Porto Alegre e cidades maiores. Um desafio veio a ser a brita indispensável para a concretagem das vigas e do piso da capela. A saída encontrada foi a aquisição de uma dúzia de marretas e nas horas vagas reduzíamos à brita os fragmentos dos blocos dinamitados na escavação do salão de atos. Tudo preparado chegou a hora de concretar as vigas e a laje do piso da capela. Certo dia as aulas foram suspensas e os alunos das últimas séries divididos em equipes. Uns preparavam a massa do concreto, outros levavam em carrinhos de mão argamassa no local e outros ainda faziam os acabamentos aplainando a superfície sobre a qual seria colocado assoalho definitivo. Trabalhamos o dia inteiro e concluímos a obra ao escurecer. Com as mãos esfoladas, os pés maltratados, caindo de cansaço mas, orgulhosos pela tarefa cumprida, fomos tomar um banho de piscina, depois uma janta melhorada e depois cair na cama e dormir o sono dos justos. Obviamente, na manhã seguinte algumas sequelas se fizeram sentir: músculos doídos, mãos encardidas, pés machucados e por aí vai. A missa de encerramento do ano de 1949 foi celebrada naquela capela e a formatura da quinta série do ginásio inaugurou o Salão de Atos. Dois fatos fizeram que nunca me esquecesse da solenidade daquele dia. Minha mãe veio a cavalo do Morro da Manteiga participar da missa e da colação de grau. Coube-me a tarefa de orador indicado pelos formandos. Infelizmente o texto desse discurso se perdeu em alguma das muitas andanças posteriores. Passaram-se mais de 40 anos desde que entrei pela última vez naquela capela, por sinal num momento muito dolorido por ocasião da missa de corpo presente do meu inesquecível irmão Pe. Roberto que dera o melhor de si como professor de física, química, matemática e alemão naquele colégio.

Com essa solenidade encerraram-se os oito anos - dos 12 aos 19 – no Colégio Santo Inácio. Depois de concluído ginasial, hoje segundo grau e aprovado para entrar no noviciado, enfrentaria em março de 1950 uma nova etapa da minha formação.

Da Enxada à Cátedra [ 32 ]

O segundo semestre daquele ano transcorreu sem maiores percalços. Em todas as quartas feiras de tempo bom o Pe. Friedriches, o Cirne Lima e eu vasculhávamos as bordas do planalto e redondezas. Meu entusiasmo pelo estudo foi crescendo e no boletim do fim do ano tive boas surpresas. Meu colega Cirne Lima concluíra com brilho o 5o ano do ginásio e fora aprovado no exame de admissão à Ordem. Em março de 1948 entraria no noviciado em Pareci Novo. Acontece que ele pertencia a uma família de ricos fazendeiros. Toda a área de campos entre Esteio, canoas, o rio dos Sinos e Gravataí pertenciam a seu avô materno Mathias Velho, daí o nome do bairro de Canoas Mathias Velho. Além disso tinham fazendas em outras regiões do Estado. O pai Rui Cirne Lima, além de jurista de renome e um dos donos da “Previdência do Sul”, professor na Faculdade de Direito, fazia parte da elite de intelectuais católicos formados pelo Pe. Werner von und zur Mühlen, junto ao Colégio Anchieta. O Dr. Rui presenteara o filho Carlos Roberto com um microscópio Baush-Lomb de ponta de linha. Na despedida ele me presenteou com aquele microscópio e enfiou-me no bolso da camisa uma nota de 200 mil reis com a recomendação que adquirisse literatura especializada em taxidermia (técnica de empalhar). Esse microscópio me foi de uma utilidade enorme quando 10 anos mais tarde me bacharelei em História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ao assumir a disciplina de Antropologia Física na mesma universidade em 1960 e Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, o microscópio deixou de ser um instrumento de pesquisa para mim. Emprestei-o ao laboratório da História Natural. Em 1982 foi vítima, como todo o laboratório, do incêndio que destruiu o conjunto de prédios que ocupavam a quadra onde hoje se encontra a Prefeitura de São Leopoldo.

Das férias de 1947-1948 lembro-me de um acontecimento que, de uma lado continua confirmando o espírito solidário e o compromisso mútuo que caracterizava o convívio nas comunidades coloniais e, do outro, as condições e o nível de atendimento médico de então. Lá pela metade do mês de janeiro nosso vizinho, o Friedrich Sehnem, conhecido como “Sehnem Fritz”, um colono da velha estirpe como meu pai, perto dos 70 anos sofreu um mal súbito não sei se um AVC ou infarto. Meus irmãos, o Raimundo e Bertoldo, os filhos do Fritz, o Ernesto o Alois além de outros vizinhos nos reunimos na casa do doente. Devido à gravidade do caso ele não teria sobrevivido a um transporte por carroça de bois até o hospital de Tupandi. Buscamos na minha casa uma cama de campanha desmontável. Separamos o lastro de lona e o fixamos em duas taquaras reforçadas e sobre a lona colocamos uma colchão. Deitamos o Fritz sobre o colchão e como estávamos em pleno verão, o cobrimos com um lençol e descemos o Morro da Manteiga durante a madrugada, revezando-nos de meia em meia hora. Perto do clarear do dia entramos no hospital onde as irmãs providenciaram um leito. Um ou dois dias depois, num sábado de manhã o vizinho faleceu. Meu irmão Raimundo desceu de carroça de bois até o hospital para levar o defunto para a sua casa no Morro da manteiga para ser velado pelos vizinhos e parentes. Eu da minha parte fui até a marcenaria no outro lado do arroio, na subida para Salvador do Sul, a fim de encomendar o caixão. O marceneiro perguntou o tamanho que o caixão deveria ter. O falecido não era um homem muito alto e decidimos que o caixão deveria ter um metro e 90 centímetros. Pela meia tarde levei o caixão, de carroça naturalmente, até a casa do falecido. Voltei para casa e, ao anoitecer, fui com meu irmão Raimundo participar do velório na casa do falecido. Ficamos a noite toda conversando e participando das orações enquanto uma trovoado de verão sucedia à outra. No dia seguinte, um domingo, como de costume parentes de vizinhos levamos o falecido numa carroça de bois, em procissão para a encomendação na igreja e matriz e para a sepultura no cemitério de Tupandi pois, na época não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga.

Não me recordo de nenhum outro fato mais importante daquelas férias. Pelo dia 20 de fevereiro voltei ao Colégio Santo Inácio para um novo ano escolar no internato. Quanto ao currículo previsto para a quarta série do ginásio não me lembro de novidades especiais. Foi o ano em que mergulhamos fundo principalmente nas literaturas latina, portuguesa, brasileira, inglesa, alemã, italiana, espanhola. Essa imersão teria continuidade no ano seguinte e último do ginásio. Deixo para o ano de 1949 comentários mais exaustivos sobre as obras clássicas das literaturas das tradições que acabo de enumerar. O ano de 1948 foi fecundo em apropriação de conhecimentos complementares ao tirocínio acadêmico oficial. Sem priorizar e/ou categorizar pela importância na minha formação, lembro as que mais me marcaram.

Primeiro. Sempre fui um apaixonado por aviões. Desde que me conheço como gente, 1937, ou algo assim, minha irmã Tecla que estudava no Bom Conselho em Porto Alegre, passando as férias em casa contou como, do alto da Ramiro Barcelos onde ficava o Bom Conselho, observavam o pouso dos hidroaviões da VARIG e da Condor no Guaíba na altura de Navegantes. Não sei se foi no jornal Deutsches Volksblatt, no Skt. Paulussblatt, no Familienfreund Kalender ou no Iganatiuskalender, que admirei uma a foto de um hidroavião da VARIG pousado no Guaíba em frente ao porto. Cada vez que um avião, todos do tipo teco-teco” com eram conhecidos, passava por cima do Morro da Manteiga, todos corriam para o descampado para não perder a visão da passagem daquela máquina frágil de asas duplas ou simples feitas de lona. Numa dessas tardes de verão sem nuvens ouvimos o ronco que já nos era familiar, só muito mais forte. Corremos todos para fora da casa e lá pela altura de Bom Princípio uma flotilha de nove aviões do tipo Master Brasilia da Força aérea Brasileira, voava em direção à base aérea de Canoas. No verão de 1938 meu irmão Pe. Balduino fora convidado pelo serviço geográfico do exército para fazer um inventário aéreo da fisionomia topográfica, fitogeográfica e humana do Rio Grande do Sul. Quando a notícia se espalhou em Tupandi virou orgulho de parentes, amigos, vizinhos e o povo em geral. O Pe. Balduino comunicou que num determinado dia sobrevoaria a região. Acomodado na frente das casas o povo de Tupandi assistiu quando um dos seus filhos ilustres, literalmente partindo da enxada foi parar na cabine de um avião militar. O piloto do minúsculo e frágil “Master Brasilia, do 3o regimento de aviadores de Canoas, deu uma ou duas voltas sobre aquele pedaço de terra que fora o berço do tripulante cientista convidado pelo exército para o reconhecimento sistemático do Rio Grande do Sul. Só para saciar a curiosidade. Naquele verão o Pe. Balduino voou 60.000 quilômetros e inventariou a “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, título com que contemplou o livro que resultou das observações que anotou das paisagens que deslisavam sob as asas do primitivo Master Brasilia. Foi uma sensação quando o primeiro DC3 da VARIG cruzou por cima do Morro da Manteiga e Tupandi. Mas, foi durante a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que as forças aéreas tanto dos Aliados quanto do Eixo foram decisivas, que meu interesse cresceu ainda mais. A revista “Em Guarda” veículo de propaganda dos aliados podia ser adquirida gratuitamente em instituições como o nosso colégio. Esperava com ânsia a chegada de mais uma edição. O meu maior interesse foi sempre pelos aviões de caça e bombardeio tanto de um quanto do outro lado do conflito: Os bombardeiros pesados B17 e B29 e o caça Mustang, americanos; o Hurricane e Spitfire ingleses, o Stuka e Messerschmitt alemães, o Zero japonês, o Ilushin russo e por aí vai. Acontece que, terminada a guerra, os modelos de aviões a jato foram ocupar o lugar dos modelos mais antigos com motores de pistões. Os primeiros modelos com esse tipo de propulsão da linha dos Messerchmitt tinham estreado em combate bem no final da guerra. Estudei minuciosamente o funcionamento das turbinas e numa aula de física expliquei para meus colegas a estrutura e funcionamento dessas máquinas. Foi a primeira palestra científica da minha vida. Por algum tempo dediquei horas livres com a veleidade de montar um motor a jato. Cheguei a reunir diversas peças enquanto alguns dos meus colegas me brindaram com qualificativos menos elogiosos e devo admitir, com razão. De fato não tinha as mínimas condições para realizar uma empreitada do gênero. A paixão pela aviação e aviões acompanhou-me durante toda a minha formação. Mas, não é aqui o lugar para prolongar-me demais sobre essa questão.

Segundo. Mais acima já detalhei as excursões científicas em companhia do meu prof. de Ciências Naturais, o Pe. Friederichs e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, nas quartas-feiras durante o ano de 1947. Também já lembrei que em 1948 o Pe. Friedrichs assumiu a capelania da Igreja São José em Porto Alegre, o Cirne Lima entrou no noviciado dos jesuítas em Pareci Novo. Os dois pediram-me que colecionasse o maior número de espécies de líquenes possível no perímetro da propriedade do colégio e os remetesse para Porto Alegre a fim de serem classificados e formar um acervo junto ao Herbário Anchieta. Foi assim que parte do meu tempo disponível em fins de semana e feriados embrenhava-me na mata virgem coletando líquenes, a maioria nas cascas das árvores ou agarrados a blocos de pedra. Não guardei na memória o quanto coletei e mandei para o Pe. Friedrichs em Porto Alegre, nem tenho a mínima ideia que fim levaram depois que o Cirne Lima enveredou pela Filosofia e Teologia e passou anos em Innsbruck na Áustria. Com isso passo para o terceiro acontecimento, sem dúvida o mais marcante daquele ano.

Terceiro. Acontece que o Colégio Santo Inácio não contava com o credenciamento do Ministério da Educação. Desse credenciamento de conclusão do ginásio dependia o acesso a cursos superiores nas universidades. Mas, havia uma saída para superar essa dificuldade. Submeter-se a exames de madureza, o então conhecido como artigo 91, mais tarde artigo 99, oferecidos anualmente pelo Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, credenciado para tanto. É compreensível que nem todos os alunos do Santo Inácio estavam em condições de demorar-se por um mês em Porto Alegre. A direção do colégio escolheu se bem me lembro 4 para submeter- se ao exames do Artigo 91, o primeiro grupo em 1947. Em 1948 fui eu um dos destacados para prestar esse exame em companhia de mais dois colegas. Em começos de outubro partimos para Porto Alegre e nos alojamos no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias perto da catedral. Os exames foram aplicados no Instituto de Educação Flores da Cunha no Parque Farroupilha e se estenderam até começos de novembro. A programação foi interrompida devido ao Congresso Eucarístico Nacional celebrado entre os dias 28 e 31 de outubro. O altar monumento com uma enorme cruz iluminada à noite foi erguido no Parque farroupilha nos fundos do Flores da Cunha. A imponente cruz iluminada podia ser vista da sala em que se realizavam os exames. Naquela semana os exames foram interrompidos e como candidatos para nos fazermos jesuítas, obviamente participamos de todas as solenidades. A população católica de Porto Alegre participou em massa. Ninguém estranhava quando grupos dos diversos setores da Ação Católica ou das Congregações Marianas organizavam demonstrações pelas ruas do centro de Porto alegre. Empunhavam com orgulho suas bandeiras e sem o mínimo de constrangimento, pelo contrário com o orgulho estampado em seus rostos e na cadência de suas marchas, deixavam claro que não estavam fazendo teatro mas questão de mostrar a quem quisesse entender, que se orgulhavam da Fé que professavam. Só um exemplo. Numa daquelas tardes, voltando do Parque farroupilha, na altura do Colégio Sevingué, na rua Duque de Caxias, avançava vindo da direção da catedral um grupo, melhor talvez um “regimento”“uma tropa de assalto”, formado por dezenas, senão centenas de homens: profissionais liberais, universitários, professores de todos os níveis, comerciantes, militares não fardados, funcionários públicos. Na frente a bandeira do Brasil, a bandeira pontifícia e a bandeira das Congregações Marianas, cantando o hino: “Do Prata ao Amazonas, do Mar às Cordilheiras, cerremos as Fileiras, soldados do Senhor” ou ainda “Tu és Pedro e sobre essa Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”. Faço questão de registrar essas vivências da minha adolescência e juventude para lembrar as pessoas de menos de 70 anos, o lugar que a religião ocupava logo depois da Segunda Guerra Mundial. Nas comemorações de “Corpus Christi” a procissão tomava toda Avenida Independência com a participação dos alunos devidamente uniformizados dos colégios femininos e masculinos tradicionais como o Bom Conselho, o Sevigné, o Rosário, o Anchieta, o Dores. Participavam os grupos da Ação Católica, das Congregações Marianas, das confrarias e outras organizações semelhantes, além do povo em geral. Esse panorama começaria a mudar radicalmente a partir de 1960 quando sorrateiramente começou a infiltração do temporal da laicização nos movimentos das agremiações acima mencionadas. Mais abaixo, num outro contexto, devo voltar e aprofundar esse terremoto histórico-cultural-religioso que afetou em cheio a minha trajetória pessoal e terminou por provocar uma correção de rota radical na minha vida.

Depois dessa digressão motivada pelo Congresso Eucarístico, volto aos meus exames de madureza. O término dos exames ocorreu por volta de 10 de novembro. Reunimos nossos pertences e no dia seguinte de manhã às 7h embarcamos no trem para Caxias do Sul. Desembarcamos às 10h em Salvador do Sul para subir a pé até o colégio lá no alto. O último compromisso formal daquele ano de 1948, além dos exames regulares das disciplinas do currículo normal consistiu em viajar de trem até Garibaldi a fim de submeter-nos ao exame de saúde para o serviço militar perante uma junta médica que atendia no convento dos Capuchinos da cidade. Mais acima já lembrei que a Constituição de 1946 isentava os seminaristas e religiosos do serviço militar, porém, não dispensava do ritual prévio para a incorporação efetiva que, para mim, deveria acontecer em 1949. Em meados de dezembro partimos para as férias de dois meses em casa. Dessas férias não guardei nenhuma lembrança mais importante. Em meados de fevereiro voltei para passar o 5o e último ano do ginásio no Colégio Santo Inácio e assim concluir a formação no Ensino Médio.