Da Enxada à Cátedra [ 32 ]

O segundo semestre daquele ano transcorreu sem maiores percalços. Em todas as quartas feiras de tempo bom o Pe. Friedriches, o Cirne Lima e eu vasculhávamos as bordas do planalto e redondezas. Meu entusiasmo pelo estudo foi crescendo e no boletim do fim do ano tive boas surpresas. Meu colega Cirne Lima concluíra com brilho o 5o ano do ginásio e fora aprovado no exame de admissão à Ordem. Em março de 1948 entraria no noviciado em Pareci Novo. Acontece que ele pertencia a uma família de ricos fazendeiros. Toda a área de campos entre Esteio, canoas, o rio dos Sinos e Gravataí pertenciam a seu avô materno Mathias Velho, daí o nome do bairro de Canoas Mathias Velho. Além disso tinham fazendas em outras regiões do Estado. O pai Rui Cirne Lima, além de jurista de renome e um dos donos da “Previdência do Sul”, professor na Faculdade de Direito, fazia parte da elite de intelectuais católicos formados pelo Pe. Werner von und zur Mühlen, junto ao Colégio Anchieta. O Dr. Rui presenteara o filho Carlos Roberto com um microscópio Baush-Lomb de ponta de linha. Na despedida ele me presenteou com aquele microscópio e enfiou-me no bolso da camisa uma nota de 200 mil reis com a recomendação que adquirisse literatura especializada em taxidermia (técnica de empalhar). Esse microscópio me foi de uma utilidade enorme quando 10 anos mais tarde me bacharelei em História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ao assumir a disciplina de Antropologia Física na mesma universidade em 1960 e Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, o microscópio deixou de ser um instrumento de pesquisa para mim. Emprestei-o ao laboratório da História Natural. Em 1982 foi vítima, como todo o laboratório, do incêndio que destruiu o conjunto de prédios que ocupavam a quadra onde hoje se encontra a Prefeitura de São Leopoldo.

Das férias de 1947-1948 lembro-me de um acontecimento que, de uma lado continua confirmando o espírito solidário e o compromisso mútuo que caracterizava o convívio nas comunidades coloniais e, do outro, as condições e o nível de atendimento médico de então. Lá pela metade do mês de janeiro nosso vizinho, o Friedrich Sehnem, conhecido como “Sehnem Fritz”, um colono da velha estirpe como meu pai, perto dos 70 anos sofreu um mal súbito não sei se um AVC ou infarto. Meus irmãos, o Raimundo e Bertoldo, os filhos do Fritz, o Ernesto o Alois além de outros vizinhos nos reunimos na casa do doente. Devido à gravidade do caso ele não teria sobrevivido a um transporte por carroça de bois até o hospital de Tupandi. Buscamos na minha casa uma cama de campanha desmontável. Separamos o lastro de lona e o fixamos em duas taquaras reforçadas e sobre a lona colocamos uma colchão. Deitamos o Fritz sobre o colchão e como estávamos em pleno verão, o cobrimos com um lençol e descemos o Morro da Manteiga durante a madrugada, revezando-nos de meia em meia hora. Perto do clarear do dia entramos no hospital onde as irmãs providenciaram um leito. Um ou dois dias depois, num sábado de manhã o vizinho faleceu. Meu irmão Raimundo desceu de carroça de bois até o hospital para levar o defunto para a sua casa no Morro da manteiga para ser velado pelos vizinhos e parentes. Eu da minha parte fui até a marcenaria no outro lado do arroio, na subida para Salvador do Sul, a fim de encomendar o caixão. O marceneiro perguntou o tamanho que o caixão deveria ter. O falecido não era um homem muito alto e decidimos que o caixão deveria ter um metro e 90 centímetros. Pela meia tarde levei o caixão, de carroça naturalmente, até a casa do falecido. Voltei para casa e, ao anoitecer, fui com meu irmão Raimundo participar do velório na casa do falecido. Ficamos a noite toda conversando e participando das orações enquanto uma trovoado de verão sucedia à outra. No dia seguinte, um domingo, como de costume parentes de vizinhos levamos o falecido numa carroça de bois, em procissão para a encomendação na igreja e matriz e para a sepultura no cemitério de Tupandi pois, na época não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga.

Não me recordo de nenhum outro fato mais importante daquelas férias. Pelo dia 20 de fevereiro voltei ao Colégio Santo Inácio para um novo ano escolar no internato. Quanto ao currículo previsto para a quarta série do ginásio não me lembro de novidades especiais. Foi o ano em que mergulhamos fundo principalmente nas literaturas latina, portuguesa, brasileira, inglesa, alemã, italiana, espanhola. Essa imersão teria continuidade no ano seguinte e último do ginásio. Deixo para o ano de 1949 comentários mais exaustivos sobre as obras clássicas das literaturas das tradições que acabo de enumerar. O ano de 1948 foi fecundo em apropriação de conhecimentos complementares ao tirocínio acadêmico oficial. Sem priorizar e/ou categorizar pela importância na minha formação, lembro as que mais me marcaram.

Primeiro. Sempre fui um apaixonado por aviões. Desde que me conheço como gente, 1937, ou algo assim, minha irmã Tecla que estudava no Bom Conselho em Porto Alegre, passando as férias em casa contou como, do alto da Ramiro Barcelos onde ficava o Bom Conselho, observavam o pouso dos hidroaviões da VARIG e da Condor no Guaíba na altura de Navegantes. Não sei se foi no jornal Deutsches Volksblatt, no Skt. Paulussblatt, no Familienfreund Kalender ou no Iganatiuskalender, que admirei uma a foto de um hidroavião da VARIG pousado no Guaíba em frente ao porto. Cada vez que um avião, todos do tipo teco-teco” com eram conhecidos, passava por cima do Morro da Manteiga, todos corriam para o descampado para não perder a visão da passagem daquela máquina frágil de asas duplas ou simples feitas de lona. Numa dessas tardes de verão sem nuvens ouvimos o ronco que já nos era familiar, só muito mais forte. Corremos todos para fora da casa e lá pela altura de Bom Princípio uma flotilha de nove aviões do tipo Master Brasilia da Força aérea Brasileira, voava em direção à base aérea de Canoas. No verão de 1938 meu irmão Pe. Balduino fora convidado pelo serviço geográfico do exército para fazer um inventário aéreo da fisionomia topográfica, fitogeográfica e humana do Rio Grande do Sul. Quando a notícia se espalhou em Tupandi virou orgulho de parentes, amigos, vizinhos e o povo em geral. O Pe. Balduino comunicou que num determinado dia sobrevoaria a região. Acomodado na frente das casas o povo de Tupandi assistiu quando um dos seus filhos ilustres, literalmente partindo da enxada foi parar na cabine de um avião militar. O piloto do minúsculo e frágil “Master Brasilia, do 3o regimento de aviadores de Canoas, deu uma ou duas voltas sobre aquele pedaço de terra que fora o berço do tripulante cientista convidado pelo exército para o reconhecimento sistemático do Rio Grande do Sul. Só para saciar a curiosidade. Naquele verão o Pe. Balduino voou 60.000 quilômetros e inventariou a “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, título com que contemplou o livro que resultou das observações que anotou das paisagens que deslisavam sob as asas do primitivo Master Brasilia. Foi uma sensação quando o primeiro DC3 da VARIG cruzou por cima do Morro da Manteiga e Tupandi. Mas, foi durante a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que as forças aéreas tanto dos Aliados quanto do Eixo foram decisivas, que meu interesse cresceu ainda mais. A revista “Em Guarda” veículo de propaganda dos aliados podia ser adquirida gratuitamente em instituições como o nosso colégio. Esperava com ânsia a chegada de mais uma edição. O meu maior interesse foi sempre pelos aviões de caça e bombardeio tanto de um quanto do outro lado do conflito: Os bombardeiros pesados B17 e B29 e o caça Mustang, americanos; o Hurricane e Spitfire ingleses, o Stuka e Messerschmitt alemães, o Zero japonês, o Ilushin russo e por aí vai. Acontece que, terminada a guerra, os modelos de aviões a jato foram ocupar o lugar dos modelos mais antigos com motores de pistões. Os primeiros modelos com esse tipo de propulsão da linha dos Messerchmitt tinham estreado em combate bem no final da guerra. Estudei minuciosamente o funcionamento das turbinas e numa aula de física expliquei para meus colegas a estrutura e funcionamento dessas máquinas. Foi a primeira palestra científica da minha vida. Por algum tempo dediquei horas livres com a veleidade de montar um motor a jato. Cheguei a reunir diversas peças enquanto alguns dos meus colegas me brindaram com qualificativos menos elogiosos e devo admitir, com razão. De fato não tinha as mínimas condições para realizar uma empreitada do gênero. A paixão pela aviação e aviões acompanhou-me durante toda a minha formação. Mas, não é aqui o lugar para prolongar-me demais sobre essa questão.

Segundo. Mais acima já detalhei as excursões científicas em companhia do meu prof. de Ciências Naturais, o Pe. Friederichs e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, nas quartas-feiras durante o ano de 1947. Também já lembrei que em 1948 o Pe. Friedrichs assumiu a capelania da Igreja São José em Porto Alegre, o Cirne Lima entrou no noviciado dos jesuítas em Pareci Novo. Os dois pediram-me que colecionasse o maior número de espécies de líquenes possível no perímetro da propriedade do colégio e os remetesse para Porto Alegre a fim de serem classificados e formar um acervo junto ao Herbário Anchieta. Foi assim que parte do meu tempo disponível em fins de semana e feriados embrenhava-me na mata virgem coletando líquenes, a maioria nas cascas das árvores ou agarrados a blocos de pedra. Não guardei na memória o quanto coletei e mandei para o Pe. Friedrichs em Porto Alegre, nem tenho a mínima ideia que fim levaram depois que o Cirne Lima enveredou pela Filosofia e Teologia e passou anos em Innsbruck na Áustria. Com isso passo para o terceiro acontecimento, sem dúvida o mais marcante daquele ano.

Terceiro. Acontece que o Colégio Santo Inácio não contava com o credenciamento do Ministério da Educação. Desse credenciamento de conclusão do ginásio dependia o acesso a cursos superiores nas universidades. Mas, havia uma saída para superar essa dificuldade. Submeter-se a exames de madureza, o então conhecido como artigo 91, mais tarde artigo 99, oferecidos anualmente pelo Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, credenciado para tanto. É compreensível que nem todos os alunos do Santo Inácio estavam em condições de demorar-se por um mês em Porto Alegre. A direção do colégio escolheu se bem me lembro 4 para submeter- se ao exames do Artigo 91, o primeiro grupo em 1947. Em 1948 fui eu um dos destacados para prestar esse exame em companhia de mais dois colegas. Em começos de outubro partimos para Porto Alegre e nos alojamos no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias perto da catedral. Os exames foram aplicados no Instituto de Educação Flores da Cunha no Parque Farroupilha e se estenderam até começos de novembro. A programação foi interrompida devido ao Congresso Eucarístico Nacional celebrado entre os dias 28 e 31 de outubro. O altar monumento com uma enorme cruz iluminada à noite foi erguido no Parque farroupilha nos fundos do Flores da Cunha. A imponente cruz iluminada podia ser vista da sala em que se realizavam os exames. Naquela semana os exames foram interrompidos e como candidatos para nos fazermos jesuítas, obviamente participamos de todas as solenidades. A população católica de Porto Alegre participou em massa. Ninguém estranhava quando grupos dos diversos setores da Ação Católica ou das Congregações Marianas organizavam demonstrações pelas ruas do centro de Porto alegre. Empunhavam com orgulho suas bandeiras e sem o mínimo de constrangimento, pelo contrário com o orgulho estampado em seus rostos e na cadência de suas marchas, deixavam claro que não estavam fazendo teatro mas questão de mostrar a quem quisesse entender, que se orgulhavam da Fé que professavam. Só um exemplo. Numa daquelas tardes, voltando do Parque farroupilha, na altura do Colégio Sevingué, na rua Duque de Caxias, avançava vindo da direção da catedral um grupo, melhor talvez um “regimento”“uma tropa de assalto”, formado por dezenas, senão centenas de homens: profissionais liberais, universitários, professores de todos os níveis, comerciantes, militares não fardados, funcionários públicos. Na frente a bandeira do Brasil, a bandeira pontifícia e a bandeira das Congregações Marianas, cantando o hino: “Do Prata ao Amazonas, do Mar às Cordilheiras, cerremos as Fileiras, soldados do Senhor” ou ainda “Tu és Pedro e sobre essa Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”. Faço questão de registrar essas vivências da minha adolescência e juventude para lembrar as pessoas de menos de 70 anos, o lugar que a religião ocupava logo depois da Segunda Guerra Mundial. Nas comemorações de “Corpus Christi” a procissão tomava toda Avenida Independência com a participação dos alunos devidamente uniformizados dos colégios femininos e masculinos tradicionais como o Bom Conselho, o Sevigné, o Rosário, o Anchieta, o Dores. Participavam os grupos da Ação Católica, das Congregações Marianas, das confrarias e outras organizações semelhantes, além do povo em geral. Esse panorama começaria a mudar radicalmente a partir de 1960 quando sorrateiramente começou a infiltração do temporal da laicização nos movimentos das agremiações acima mencionadas. Mais abaixo, num outro contexto, devo voltar e aprofundar esse terremoto histórico-cultural-religioso que afetou em cheio a minha trajetória pessoal e terminou por provocar uma correção de rota radical na minha vida.

Depois dessa digressão motivada pelo Congresso Eucarístico, volto aos meus exames de madureza. O término dos exames ocorreu por volta de 10 de novembro. Reunimos nossos pertences e no dia seguinte de manhã às 7h embarcamos no trem para Caxias do Sul. Desembarcamos às 10h em Salvador do Sul para subir a pé até o colégio lá no alto. O último compromisso formal daquele ano de 1948, além dos exames regulares das disciplinas do currículo normal consistiu em viajar de trem até Garibaldi a fim de submeter-nos ao exame de saúde para o serviço militar perante uma junta médica que atendia no convento dos Capuchinos da cidade. Mais acima já lembrei que a Constituição de 1946 isentava os seminaristas e religiosos do serviço militar, porém, não dispensava do ritual prévio para a incorporação efetiva que, para mim, deveria acontecer em 1949. Em meados de dezembro partimos para as férias de dois meses em casa. Dessas férias não guardei nenhuma lembrança mais importante. Em meados de fevereiro voltei para passar o 5o e último ano do ginásio no Colégio Santo Inácio e assim concluir a formação no Ensino Médio.

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