Em 1949 não houve mudança na rotina diária do colégio. A novidade foi a inclusão da iniciação à língua grega no currículo. Não me recordo exatamente quem foi o professor de grego. Parece-me que foi o Pe. Heinz Thom um representante da última leva de jesuítas que saíram da Alemanha em meados da década de 1930 devido à hostilidade do regime nazista. O aprendizado do grego começou evidentemente com a familiarização com a fonética, o alfabeto, declinações, conjugações, sintaxe, isto é, os fundamentos da gramática. O aprofundamento propriamente dito no manejo da língua grega aconteceria dois anos mais tarde no bacharelado das línguas e literaturas clássicas já no nível superior. Ao começar esse último ano do Ginásio tomei a decisão de aproveitar ao máximo o tempo para me familiarizar com as literaturas não só portuguesa e brasileira, como da latina, alemã, inglesa, francesa, italiana, espanhola e russa. Evidentemente o tempo não permitiu senão a leitura das obras mais representativas como a Ilíada e Odisseisa de Homero, as Catilinárias de Cícero, as Odes de Horácio, o De Germânia de Tácito, o De Galia de Cesar, a Eneida de Virgílio. Da literatura alemã recordo-me em especial de Goethe, Schiller, Heine, Uhland; da literatura inglesa e americana as peças de teatro de Sheakspeare, o Paraíso Perdido de Milton, o Velho e o Mar de Hemingway, as Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain; da literatura francesa Os Miseráveis de Vitor Hugo; da literatura italiana O Inferno de Dante Alighieri; da literatura espanhola o D. Quixote de Cervantes; da literatura russa Os Irmãos Karamazov de Dostoyevski e Guerra e Paz de Tolstoy; da literatura portuguesa Os Maias e O Crime do Pe. Amaro, As Lusíads de Camões; da literatura brasileira Iracema de José Alencar, Dom Casmurro de Machado de Assis e, evidentemente os romances de Érico Veríssimo com destaque para “O Continente” e “Olhai os Lírios do campo”. Lembro-me com saudades desse último ano do ginásio no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Munido com as línguas aprendidas nos quatro anos anteriores: Português, Latim, Francês, Inglês, Alemão fazendo parte do currículo normal e o Espanhol e Italiano por conta própria, tive acesso a toda a riqueza da tradição cultural desde a antiga Grécia até o final da Segunda Guerra Mundial. Às línguas e correspondentes literaturas vieram somar-se a História, a Geografia, as Ciências Naturais, as Artes e a Música. Este último item merece uma breve observação. O Fr. Arhur Bohnen prefeito da terceira divisão do colégio, portanto, das duas últimas séries, reunia-nos nos domingos à noite para uma sessão de Música clássica. Selecionava uma Sinfonia, uma Ópera, Marchas, e outros gêneros dos grandes clássicos Bethhoven, Bach, Schubert, Strauss, Wagner, Verdi, e outros mais, encarregava um aluno para fazer uma apresentação de contextualização para depois escutarmos a respetiva obra. Não tenho como agradecer ao meu xara Arthur Bohnen, há anos passado “para o outro lado do caminho”, como diria Sto. Agostinho, aquelas noites de domingo antes de nos recolhermos para dormir. Embora nunca tenha participado efetivamente de um coral, nem aprendido a tocar algum instrumento, devo aquelas sessões a paixão pela música clássica e a música e os cantos de corais profanos e religiosos que me acompanharam o resto da vida. Cultivo ainda hoje o hábito de escutar meia hora de boa música antes de me recolher para o descanso da noite. Sem intenção de me exibir aquele último ano foi, em termos de formação acadêmica de um valor inestimável para minha formação para as etapas já no nível superior que se seguiram. O tropeço de 1945 quando tive que repetir o ano ficaram reduzidos a um simples acidente de percurso que certamente deve ter tido o seu devido significado positivo dentro do contexto. Cheguei a tirar o primeiro lugar da turma no primeiro semestre e o terceiro no final do ano.
Naquele último ano do ginásio a dedicação às Ciências Naturais propriamente ditas passou para um segundo plano mas o museu continuou sob a minha responsabilidade. Ficou evidente mais acima, que as línguas e, de modo especial, as respetivas literaturas, as artes e a música passaram para o primeiro plano. Entre nós seminaristas em princípio candidatos para entrar na Companhia de Jesus, a devoção a Nossa Senhora ocupava um lugar de destaque na nossa formação religiosa e na prática devocional. A reza do terço em comum à tarde na capela, fazia parte da rotina do cotidiano. No fundo dos campos de jogos uma estátua de Nossa Senhora da Conceição vigiava a movimentação dos seminaristas nas suas competições esportivas, do alto de um cômoro artificial de pedras e terra coberto com grama e flores do campo. Uma vez por semana e nas datas mais importantes do calendário mariano, a oração da noite na forma de cantos marianos como o Salve Regina, O Memorare, a Ave Maria de Schubert, de Gounot, de Mozart e de outros ecoavam às 9 horas da noite do alto daquele morro para rebater nas encostas e vales vizinhos. Não tenho dúvidas que não poucas famílias da vizinhança aproveitavam o momento para também fazerem sua oração da noite. Obviamente não podia deixar de existir uma Congregação Mariana, como já lembrei mais acima, o instrumento de piedade e de prática do catolicismo militante preferido dos jesuítas. Com grande orgulho eu fazia parte da diretoria da Congregação na categoria de Assistente. Planejamos construir uma gruta de Nossa Senhora de Lourdes na curva da estrada que descia do colégio para a hoje cidade de Salvador do Sul. Já faz uns bons anos que não subo por aquela estrada até os prédios do nosso amado colégio. Entretanto, os jesuítas venderam a propriedade com os imponentes prédios para uma empresa, se estou bem informado para osMóveis Kappesberg”. Espero que a gruta continue preservada naquela curva rodeada por uma bela mata secundária e um bambusal nos fundos. Com dois ou três colegas dedicamos as quartas- feiras e os feriados, inclusive os dias livres dos “passeios grandes” mensais do segundo semestre de 1949, à construção da gruta. O Ir. Cláudio Leichtweiss responsável pelas vacas, bois e porcos do colégio, cedia a carroça com uma junta de bois para transportar as pedras brutas das redondezas para o local da construção. Empregamos apenas um saco de cimento para firmar o bloco de pedra de fecho do arco da gruta. Na construção da gruta em si praticamente não se gastou dinheiro algum além de um saco de cimento e um pouco de areia. O problema maior foi a aquisição das estátuas de Nossa Senhora e da vidente Bernardete. O tesoureiro do colégio não dispunha da quantia suficiente para bancar a despesa. Percorrer as vizinhanças e arrecadar a quantia necessária não parecia conveniente. Recorremos então à criatividade. A solução encontrada e posta em prática foi engordar um porco com as sobras e lavagem da cozinha, vende- lo e com o resultado bancar as estátuas. Construímos um chiqueirinho no mato de eucalipto atrás dos banheiros no fundo dos campos de exporte. O Ir. Cláudio cedeu o porco e eu combinei com o irmão Finkler cozinheiro do colégio que guardasse a lavagem e as sobras da cozinha. De manhã antes das aulas e à meia tarde depois das aulas encarreguei-me de passar pela cozinha para buscar o recipiente cheio de restos misturados com lavagem para alimentar engordar o porco. O plano funcionou melhor que tínhamos imaginado. Lá por fins de novembro o porco estava no ponto para ser vendido e mandar vir as estátuas de Porto Alegre. O irmão Cláudio cedeu-me novamente a carroça e a junta de bois e ajudou-me a carregar o porco depois levei-o até a casa de comércio do Müller que intermediava a compra de porcos para o frigorífico Renner de Montenegro. Com a quantia arrecadada deu e sobrou para bancar as estátuas. Em começos de dezembro a gruta estava pronta para a inauguração, com as estátuas no devido lugar e até a imitação de uma fonte de água fornecida por um encanamento vindo de uma fonte mais acima. A solene inauguração, com missa campal e a presença de toda comunidade do colégio e um grande número de pessoas de Salvador do Sul, aconteceu no dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição.
A construção da nova Capela e Salão de Atos
Até o final da década de 1940 a capela do Colégio Santo Inácio ocupava o segundo andar da ala que abrigava no primeiro a sala de jogos de mesa. A salão de atos com palco ficava no andar térreo do lance central da direita da portaria principal de entrada na instituição. Terminada a Guerra Mundial os superiores maiores da Província Sul Brasileira da Companhia de Jesus, decidiram construir uma capela sobre um salão de atos no lado oposto da portaria central. O projeto exigia que para o salão de atos fosse preciso remover um grande volume de terra e blocos de pedra ferro. Esses trabalho de preparação para o espaço do salão praticamente todo abaixo do nível do terreno coube em grande parte aos internos do colégio da quarta e quinta série do ginásio todos jovens de 18 a 20 anos. Divididos em grupos de 4 a 5 revezavam-se no serviço de remoção de terra e dos blocos de pedra. Parece oportuno lembrar que 75 anos atrás retro escavadeiras, depósitos de brita, furadeiras mecânicas estavam fora do alcance das finanças do colégio. A solução foi valer-se dos recursos disponíveis. Em resumo significava remover a terra e os blocos de pedra cavando a terra com picaretas e transportando-a com carrinhos de mão para um aterro próximo. Todo esse trabalho coube a nós internos na hora prevista para a manutenção dos prédios das 16 às 17h e nas tardes das quartas feiras em que não havia aulas, como já lembrei mais acima. O Pe. Schader, um homem prático bolou um guindaste para erguer os carrinhos de terra até o topo do barranco donde algum dos rapazes levava a carga para o aterro. O guindaste consistia numa tronco de eucalipto plantado firmemente no chão e no topo uma trave giratória munida com três cordas com ganchos para firmar o carrinho, um no arco em frente ao pneu e os dois outros nos braços traseiros. Na outra extremidade da trave pendia uma corda reforçada para erguer o carrinho num movimento de gangorra até o topo da escavação. Essa manobra dependia dos músculos de dois ou três dos rapazes mais robustos. Levamos dezenas de carrinhos carregados de terra para o aterro e outros tantos no fundo da escavação. Só para lembrar que com essa contribuição em forma de mão de obra foi possível, como já mencionei mais acima, que o colégio cobrasse de seus internos uma pensão anual que cabia no orçamento das famílias, mais de 90% do interior colonial. Posso afirmar, sem medo de exagerar que encarávamos esse trabalho como fazendo parte do nosso treinamento para cumprir uma missão na vida e não exercermos uma simples profissão.
Um outro desafio foi a remoção dos blocos de pedra, alguns pesando mais de uma tonelada soltos na argila da encosta. Foi preciso dinamitá-los e para tanto fazer um furo de meio metro ou mais na pedra ferro para colocar o explosivo. Não dispúnhamos de broca mecânica. A solução foi recorrer ao método artesanal utilizando uma broca de aço de cerca de duas polegadas de diâmetro e um metro de comprimento além de uma marreta de três quilos. A tarefa exigia uma dupla de operadores. Um segurava a broca e a cada martelada do parceiro a girava uma fração dos 360 graus. Não precisa de muita imaginação para perceber que não se tratava de uma tarefa para crianças. Os dois operadores trocavam de função quando o martelador cansava. Para completar um furo de meio metro levam-se duas ou mais horas pois, os blocos eram de basalto. Uma vez alcançada a profundidade necessária um perito colocava uma banana de dinamite ou meia de acordo com o tamanho do bloco presa a um rastilho. Aceso o rastilho era preciso abrigar-se para não ser atingido pelos estilhaços da explosão. Os estilhaços podiam ser removidos com carrinhos de mão e levados até o aterro. Não me lembro que alguém se tenha machucado seriamente nessa parte do trabalho. Para mim e para os demais internos das últimas séries do ginásio esse trabalho pesado causava um grande prazer pois, de um lado significava uma exercício físico excelente para nós jovens de 18, 19, ou 20 anos e, de outra, estávamos preparando o espaço para um salão de atos para valer e sobre ele erguer uma capela condizente com o tamanho e a importância na formação acadêmica e espiritual dos internos. Uma vez livre o espaço semi subterrâneo seguiu a colocação dos fundamentos e as paredes do salão de atos. Pela sua própria natureza essa fase da obra inteiramente feita de blocos de meláfiro de mais ou menos 40 por 30 por 30 centímetros, foi confiada a pedreiros peritos no manuseio desse tipo de material de construção. O responsável pelo erguimento do fundamento e das paredes foi o “Bepi Gasperin”, um descendente de italianos cultivadores de uva, moradores das redondezas. Nunca vou esquecer esse senhor, aparentemente franzino, com seu inseparável cachimbo entre os dentes, lidando com maestria única com aqueles blocos de pedra ferro, preparando-os com martelo e talhadeira para ajustá-los uns aos outros sem utilizar argamassa. Um detalhe. O filho do Bepi, um adolescente de seus 13 ou 14 anos que trabalhava na manutenção dos chiqueiros e estrebarias do colégio, fez parte da minha primeira turma de alunos em 1949. Fazia parte do grupo de adolescentes e rapazes vindos da colônia para cuidar daqueles serviços, como já lembrei em outra ocasião.
Uma vez concluída a estrutura do salão de atos toda ela de blocos de basalto chegou a hora de preparar as vigas de concreto e a plataforma sobre a qual seria fundido o piso da capela. A amarração da ferragem ficou a cargo dos internos, claro sob o comando e supervisão do irmão Willy Wolters a quem cabia a função de mestre de obra. Esses procedimentos envolviam na época desafios de tamanho não pequeno, agravados pelo fato de o Colégio Santo Inácio localizar-se nos confins do município de Montenegro, dezenas de quilômetros dos fornecedores das matérias primas indispensáveis: areia, ferro, cal, cimento e brita. As quatro primeiras vinham de trem. Da estação da viação férrea até o topo do morro, lugar da construção o caminhão do Colégio garantia o transporte. Quem se encarregava do transbordo da areia do vagão do trem para o caminhão à base de pás, éramos nós das duas últimas séries do ginásio. Não tenho a mínima ideia de quantas dessas viagens tomei parte. Guardo, porém, na memória o entusiasmo com que enchíamos o caminhão com areia para depois, acomodados em cima dela subirmos aquele menos de um quilômetro, até o local da obra. Saudávamos os moradores na beira da estrada de chão batido, erguendo orgulhosamente nossos instrumentos de trabalho. A cal virgem e vergalhões de ferro também vinham de trem. Antes de preparar a argamassa era preciso “apagar” a cal virgem encharcando-a com água. Nem pensar em betoneiras. Todo trabalho tinha que ser feito no braço usando pás e enxadas. Casas especializadas em materiais de construção e entrega a domicílio só em Porto Alegre e cidades maiores. Um desafio veio a ser a brita indispensável para a concretagem das vigas e do piso da capela. A saída encontrada foi a aquisição de uma dúzia de marretas e nas horas vagas reduzíamos à brita os fragmentos dos blocos dinamitados na escavação do salão de atos. Tudo preparado chegou a hora de concretar as vigas e a laje do piso da capela. Certo dia as aulas foram suspensas e os alunos das últimas séries divididos em equipes. Uns preparavam a massa do concreto, outros levavam em carrinhos de mão argamassa no local e outros ainda faziam os acabamentos aplainando a superfície sobre a qual seria colocado assoalho definitivo. Trabalhamos o dia inteiro e concluímos a obra ao escurecer. Com as mãos esfoladas, os pés maltratados, caindo de cansaço mas, orgulhosos pela tarefa cumprida, fomos tomar um banho de piscina, depois uma janta melhorada e depois cair na cama e dormir o sono dos justos. Obviamente, na manhã seguinte algumas sequelas se fizeram sentir: músculos doídos, mãos encardidas, pés machucados e por aí vai. A missa de encerramento do ano de 1949 foi celebrada naquela capela e a formatura da quinta série do ginásio inaugurou o Salão de Atos. Dois fatos fizeram que nunca me esquecesse da solenidade daquele dia. Minha mãe veio a cavalo do Morro da Manteiga participar da missa e da colação de grau. Coube-me a tarefa de orador indicado pelos formandos. Infelizmente o texto desse discurso se perdeu em alguma das muitas andanças posteriores. Passaram-se mais de 40 anos desde que entrei pela última vez naquela capela, por sinal num momento muito dolorido por ocasião da missa de corpo presente do meu inesquecível irmão Pe. Roberto que dera o melhor de si como professor de física, química, matemática e alemão naquele colégio.
Com essa solenidade encerraram-se os oito anos - dos 12 aos 19 – no Colégio Santo Inácio. Depois de concluído ginasial, hoje segundo grau e aprovado para entrar no noviciado, enfrentaria em março de 1950 uma nova etapa da minha formação.