Da Enxada à Cátedra [ 33 ]

Em 1949 não houve mudança na rotina diária do colégio. A novidade foi a inclusão da iniciação à língua grega no currículo. Não me recordo exatamente quem foi o professor de grego. Parece-me que foi o Pe. Heinz Thom um representante da última leva de jesuítas que saíram da Alemanha em meados da década de 1930 devido à hostilidade do regime nazista. O aprendizado do grego começou evidentemente com a familiarização com a fonética, o alfabeto, declinações, conjugações, sintaxe, isto é, os fundamentos da gramática. O aprofundamento propriamente dito no manejo da língua grega aconteceria dois anos mais tarde no bacharelado das línguas e literaturas clássicas já no nível superior. Ao começar esse último ano do Ginásio tomei a decisão de aproveitar ao máximo o tempo para me familiarizar com as literaturas não só portuguesa e brasileira, como da latina, alemã, inglesa, francesa, italiana, espanhola e russa. Evidentemente o tempo não permitiu senão a leitura das obras mais representativas como a Ilíada e Odisseisa de Homero, as Catilinárias de Cícero, as Odes de Horácio, o De Germânia de Tácito, o De Galia de Cesar, a Eneida de Virgílio. Da literatura alemã recordo-me em especial de Goethe, Schiller, Heine, Uhland; da literatura inglesa e americana as peças de teatro de Sheakspeare, o Paraíso Perdido de Milton, o Velho e o Mar de Hemingway, as Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain; da literatura francesa Os Miseráveis de Vitor Hugo; da literatura italiana O Inferno de Dante Alighieri; da literatura espanhola o D. Quixote de Cervantes; da literatura russa Os Irmãos Karamazov de Dostoyevski e Guerra e Paz de Tolstoy; da literatura portuguesa Os Maias e O Crime do Pe. Amaro, As Lusíads de Camões; da literatura brasileira Iracema de José Alencar, Dom Casmurro de Machado de Assis e, evidentemente os romances de Érico Veríssimo com destaque para O Continente” Olhai os Lírios do campo. Lembro-me com saudades desse último ano do ginásio no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Munido com as línguas aprendidas nos quatro anos anteriores: Português, Latim, Francês, Inglês, Alemão fazendo parte do currículo normal e o Espanhol e Italiano por conta própria, tive acesso a toda a riqueza da tradição cultural desde a antiga Grécia até o final da Segunda Guerra Mundial. Às línguas e correspondentes literaturas vieram somar-se a História, a Geografia, as Ciências Naturais, as Artes e a Música. Este último item merece uma breve observação. O Fr. Arhur Bohnen prefeito da terceira divisão do colégio, portanto, das duas últimas séries, reunia-nos nos domingos à noite para uma sessão de Música clássica. Selecionava uma Sinfonia, uma Ópera, Marchas, e outros gêneros dos grandes clássicos Bethhoven, Bach, Schubert, Strauss, Wagner, Verdi, e outros mais, encarregava um aluno para fazer uma apresentação de contextualização para depois escutarmos a respetiva obra. Não tenho como agradecer ao meu xara Arthur Bohnen, há anos passado “para o outro lado do caminho”, como diria Sto. Agostinho, aquelas noites de domingo antes de nos recolhermos para dormir. Embora nunca tenha participado efetivamente de um coral, nem aprendido a tocar algum instrumento, devo aquelas sessões a paixão pela música clássica e a música e os cantos de corais profanos e religiosos que me acompanharam o resto da vida. Cultivo ainda hoje o hábito de escutar meia hora de boa música antes de me recolher para o descanso da noite. Sem intenção de me exibir aquele último ano foi, em termos de formação acadêmica de um valor inestimável para minha formação para as etapas já no nível superior que se seguiram. O tropeço de 1945 quando tive que repetir o ano ficaram reduzidos a um simples acidente de percurso que certamente deve ter tido o seu devido significado positivo dentro do contexto. Cheguei a tirar o primeiro lugar da turma no primeiro semestre e o terceiro no final do ano.

Naquele último ano do ginásio a dedicação às Ciências Naturais propriamente ditas passou para um segundo plano mas o museu continuou sob a minha responsabilidade. Ficou evidente mais acima, que as línguas e, de modo especial, as respetivas literaturas, as artes e a música passaram para o primeiro plano. Entre nós seminaristas em princípio candidatos para entrar na Companhia de Jesus, a devoção a Nossa Senhora ocupava um lugar de destaque na nossa formação religiosa e na prática devocional. A reza do terço em comum à tarde na capela, fazia parte da rotina do cotidiano. No fundo dos campos de jogos uma estátua de Nossa Senhora da Conceição vigiava a movimentação dos seminaristas nas suas competições esportivas, do alto de um cômoro artificial de pedras e terra coberto com grama e flores do campo. Uma vez por semana e nas datas mais importantes do calendário mariano, a oração da noite na forma de cantos marianos como o Salve Regina, O Memorare, a Ave Maria de Schubert, de Gounot, de Mozart e de outros ecoavam às 9 horas da noite do alto daquele morro para rebater nas encostas e vales vizinhos. Não tenho dúvidas que não poucas famílias da vizinhança aproveitavam o momento para também fazerem sua oração da noite. Obviamente não podia deixar de existir uma Congregação Mariana, como já lembrei mais acima, o instrumento de piedade e de prática do catolicismo militante preferido dos jesuítas. Com grande orgulho eu fazia parte da diretoria da Congregação na categoria de Assistente. Planejamos construir uma gruta de Nossa Senhora de Lourdes na curva da estrada que descia do colégio para a hoje cidade de Salvador do Sul. Já faz uns bons anos que não subo por aquela estrada até os prédios do nosso amado colégio. Entretanto, os jesuítas venderam a propriedade com os imponentes prédios para uma empresa, se estou bem informado para osMóveis Kappesberg”. Espero que a gruta continue preservada naquela curva rodeada por uma bela mata secundária e um bambusal nos fundos. Com dois ou três colegas dedicamos as quartas- feiras e os feriados, inclusive os dias livres dos “passeios grandes” mensais do segundo semestre de 1949, à construção da gruta. O Ir. Cláudio Leichtweiss responsável pelas vacas, bois e porcos do colégio, cedia a carroça com uma junta de bois para transportar as pedras brutas das redondezas para o local da construção. Empregamos apenas um saco de cimento para firmar o bloco de pedra de fecho do arco da gruta. Na construção da gruta em si praticamente não se gastou dinheiro algum além de um saco de cimento e um pouco de areia. O problema maior foi a aquisição das estátuas de Nossa Senhora e da vidente Bernardete. O tesoureiro do colégio não dispunha da quantia suficiente para bancar a despesa. Percorrer as vizinhanças e arrecadar a quantia necessária não parecia conveniente. Recorremos então à criatividade. A solução encontrada e posta em prática foi engordar um porco com as sobras e lavagem da cozinha, vende- lo e com o resultado bancar as estátuas. Construímos um chiqueirinho no mato de eucalipto atrás dos banheiros no fundo dos campos de exporte. O Ir. Cláudio cedeu o porco e eu combinei com o irmão Finkler cozinheiro do colégio que guardasse a lavagem e as sobras da cozinha. De manhã antes das aulas e à meia tarde depois das aulas encarreguei-me de passar pela cozinha para buscar o recipiente cheio de restos misturados com lavagem para alimentar engordar o porco. O plano funcionou melhor que tínhamos imaginado. Lá por fins de novembro o porco estava no ponto para ser vendido e mandar vir as estátuas de Porto Alegre. O irmão Cláudio cedeu-me novamente a carroça e a junta de bois e ajudou-me a carregar o porco depois levei-o até a casa de comércio do Müller que intermediava a compra de porcos para o frigorífico Renner de Montenegro. Com a quantia arrecadada deu e sobrou para bancar as estátuas. Em começos de dezembro a gruta estava pronta para a inauguração, com as estátuas no devido lugar e até a imitação de uma fonte de água fornecida por um encanamento vindo de uma fonte mais acima. A solene inauguração, com missa campal e a presença de toda comunidade do colégio e um grande número de pessoas de Salvador do Sul, aconteceu no dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição.

A construção da nova Capela e Salão de Atos

Até o final da década de 1940 a capela do Colégio Santo Inácio ocupava o segundo andar da ala que abrigava no primeiro a sala de jogos de mesa. A salão de atos com palco ficava no andar térreo do lance central da direita da portaria principal de entrada na instituição. Terminada a Guerra Mundial os superiores maiores da Província Sul Brasileira da Companhia de Jesus, decidiram construir uma capela sobre um salão de atos no lado oposto da portaria central. O projeto exigia que para o salão de atos fosse preciso remover um grande volume de terra e blocos de pedra ferro. Esses trabalho de preparação para o espaço do salão praticamente todo abaixo do nível do terreno coube em grande parte aos internos do colégio da quarta e quinta série do ginásio todos jovens de 18 a 20 anos. Divididos em grupos de 4 a 5 revezavam-se no serviço de remoção de terra e dos blocos de pedra. Parece oportuno lembrar que 75 anos atrás retro escavadeiras, depósitos de brita, furadeiras mecânicas estavam fora do alcance das finanças do colégio. A solução foi valer-se dos recursos disponíveis. Em resumo significava remover a terra e os blocos de pedra cavando a terra com picaretas e transportando-a com carrinhos de mão para um aterro próximo. Todo esse trabalho coube a nós internos na hora prevista para a manutenção dos prédios das 16 às 17h e nas tardes das quartas feiras em que não havia aulas, como já lembrei mais acima. O Pe. Schader, um homem prático bolou um guindaste para erguer os carrinhos de terra até o topo do barranco donde algum dos rapazes levava a carga para o aterro. O guindaste consistia numa tronco de eucalipto plantado firmemente no chão e no topo uma trave giratória munida com três cordas com ganchos para firmar o carrinho, um no arco em frente ao pneu e os dois outros nos braços traseiros. Na outra extremidade da trave pendia uma corda reforçada para erguer o carrinho num movimento de gangorra até o topo da escavação. Essa manobra dependia dos músculos de dois ou três dos rapazes mais robustos. Levamos dezenas de carrinhos carregados de terra para o aterro e outros tantos no fundo da escavação. Só para lembrar que com essa contribuição em forma de mão de obra foi possível, como já mencionei mais acima, que o colégio cobrasse de seus internos uma pensão anual que cabia no orçamento das famílias, mais de 90% do interior colonial. Posso afirmar, sem medo de exagerar que encarávamos esse trabalho como fazendo parte do nosso treinamento para cumprir uma missão na vida e não exercermos uma simples profissão.

Um outro desafio foi a remoção dos blocos de pedra, alguns pesando mais de uma tonelada soltos na argila da encosta. Foi preciso dinamitá-los e para tanto fazer um furo de meio metro ou mais na pedra ferro para colocar o explosivo. Não dispúnhamos de broca mecânica. A solução foi recorrer ao método artesanal utilizando uma broca de aço de cerca de duas polegadas de diâmetro e um metro de comprimento além de uma marreta de três quilos. A tarefa exigia uma dupla de operadores. Um segurava a broca e a cada martelada do parceiro a girava uma fração dos 360 graus. Não precisa de muita imaginação para perceber que não se tratava de uma tarefa para crianças. Os dois operadores trocavam de função quando o martelador cansava. Para completar um furo de meio metro levam-se duas ou mais horas pois, os blocos eram de basalto. Uma vez alcançada a profundidade necessária um perito colocava uma banana de dinamite ou meia de acordo com o tamanho do bloco presa a um rastilho. Aceso o rastilho era preciso abrigar-se para não ser atingido pelos estilhaços da explosão. Os estilhaços podiam ser removidos com carrinhos de mão e levados até o aterro. Não me lembro que alguém se tenha machucado seriamente nessa parte do trabalho. Para mim e para os demais internos das últimas séries do ginásio esse trabalho pesado causava um grande prazer pois, de um lado significava uma exercício físico excelente para nós jovens de 18, 19, ou 20 anos e, de outra, estávamos preparando o espaço para um salão de atos para valer e sobre ele erguer uma capela condizente com o tamanho e a importância na formação acadêmica e espiritual dos internos. Uma vez livre o espaço semi subterrâneo seguiu a colocação dos fundamentos e as paredes do salão de atos. Pela sua própria natureza essa fase da obra inteiramente feita de blocos de meláfiro de mais ou menos 40 por 30 por 30 centímetros, foi confiada a pedreiros peritos no manuseio desse tipo de material de construção. O responsável pelo erguimento do fundamento e das paredes foi o “Bepi Gasperin”, um descendente de italianos cultivadores de uva, moradores das redondezas. Nunca vou esquecer esse senhor, aparentemente franzino, com seu inseparável cachimbo entre os dentes, lidando com maestria única com aqueles blocos de pedra ferro, preparando-os com martelo e talhadeira para ajustá-los uns aos outros sem utilizar argamassa. Um detalhe. O filho do Bepi, um adolescente de seus 13 ou 14 anos que trabalhava na manutenção dos chiqueiros e estrebarias do colégio, fez parte da minha primeira turma de alunos em 1949. Fazia parte do grupo de adolescentes e rapazes vindos da colônia para cuidar daqueles serviços, como já lembrei em outra ocasião.

Uma vez concluída a estrutura do salão de atos toda ela de blocos de basalto chegou a hora de preparar as vigas de concreto e a plataforma sobre a qual seria fundido o piso da capela. A amarração da ferragem ficou a cargo dos internos, claro sob o comando e supervisão do irmão Willy Wolters a quem cabia a função de mestre de obra. Esses procedimentos envolviam na época desafios de tamanho não pequeno, agravados pelo fato de o Colégio Santo Inácio localizar-se nos confins do município de Montenegro, dezenas de quilômetros dos fornecedores das matérias primas indispensáveis: areia, ferro, cal, cimento e brita. As quatro primeiras vinham de trem. Da estação da viação férrea até o topo do morro, lugar da construção o caminhão do Colégio garantia o transporte. Quem se encarregava do transbordo da areia do vagão do trem para o caminhão à base de pás, éramos nós das duas últimas séries do ginásio. Não tenho a mínima ideia de quantas dessas viagens tomei parte. Guardo, porém, na memória o entusiasmo com que enchíamos o caminhão com areia para depois, acomodados em cima dela subirmos aquele menos de um quilômetro, até o local da obra. Saudávamos os moradores na beira da estrada de chão batido, erguendo orgulhosamente nossos instrumentos de trabalho. A cal virgem e vergalhões de ferro também vinham de trem. Antes de preparar a argamassa era preciso “apagar” a cal virgem encharcando-a com água. Nem pensar em betoneiras. Todo trabalho tinha que ser feito no braço usando pás e enxadas. Casas especializadas em materiais de construção e entrega a domicílio só em Porto Alegre e cidades maiores. Um desafio veio a ser a brita indispensável para a concretagem das vigas e do piso da capela. A saída encontrada foi a aquisição de uma dúzia de marretas e nas horas vagas reduzíamos à brita os fragmentos dos blocos dinamitados na escavação do salão de atos. Tudo preparado chegou a hora de concretar as vigas e a laje do piso da capela. Certo dia as aulas foram suspensas e os alunos das últimas séries divididos em equipes. Uns preparavam a massa do concreto, outros levavam em carrinhos de mão argamassa no local e outros ainda faziam os acabamentos aplainando a superfície sobre a qual seria colocado assoalho definitivo. Trabalhamos o dia inteiro e concluímos a obra ao escurecer. Com as mãos esfoladas, os pés maltratados, caindo de cansaço mas, orgulhosos pela tarefa cumprida, fomos tomar um banho de piscina, depois uma janta melhorada e depois cair na cama e dormir o sono dos justos. Obviamente, na manhã seguinte algumas sequelas se fizeram sentir: músculos doídos, mãos encardidas, pés machucados e por aí vai. A missa de encerramento do ano de 1949 foi celebrada naquela capela e a formatura da quinta série do ginásio inaugurou o Salão de Atos. Dois fatos fizeram que nunca me esquecesse da solenidade daquele dia. Minha mãe veio a cavalo do Morro da Manteiga participar da missa e da colação de grau. Coube-me a tarefa de orador indicado pelos formandos. Infelizmente o texto desse discurso se perdeu em alguma das muitas andanças posteriores. Passaram-se mais de 40 anos desde que entrei pela última vez naquela capela, por sinal num momento muito dolorido por ocasião da missa de corpo presente do meu inesquecível irmão Pe. Roberto que dera o melhor de si como professor de física, química, matemática e alemão naquele colégio.

Com essa solenidade encerraram-se os oito anos - dos 12 aos 19 – no Colégio Santo Inácio. Depois de concluído ginasial, hoje segundo grau e aprovado para entrar no noviciado, enfrentaria em março de 1950 uma nova etapa da minha formação.

Da Enxada à Cátedra [ 32 ]

O segundo semestre daquele ano transcorreu sem maiores percalços. Em todas as quartas feiras de tempo bom o Pe. Friedriches, o Cirne Lima e eu vasculhávamos as bordas do planalto e redondezas. Meu entusiasmo pelo estudo foi crescendo e no boletim do fim do ano tive boas surpresas. Meu colega Cirne Lima concluíra com brilho o 5o ano do ginásio e fora aprovado no exame de admissão à Ordem. Em março de 1948 entraria no noviciado em Pareci Novo. Acontece que ele pertencia a uma família de ricos fazendeiros. Toda a área de campos entre Esteio, canoas, o rio dos Sinos e Gravataí pertenciam a seu avô materno Mathias Velho, daí o nome do bairro de Canoas Mathias Velho. Além disso tinham fazendas em outras regiões do Estado. O pai Rui Cirne Lima, além de jurista de renome e um dos donos da “Previdência do Sul”, professor na Faculdade de Direito, fazia parte da elite de intelectuais católicos formados pelo Pe. Werner von und zur Mühlen, junto ao Colégio Anchieta. O Dr. Rui presenteara o filho Carlos Roberto com um microscópio Baush-Lomb de ponta de linha. Na despedida ele me presenteou com aquele microscópio e enfiou-me no bolso da camisa uma nota de 200 mil reis com a recomendação que adquirisse literatura especializada em taxidermia (técnica de empalhar). Esse microscópio me foi de uma utilidade enorme quando 10 anos mais tarde me bacharelei em História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ao assumir a disciplina de Antropologia Física na mesma universidade em 1960 e Antropologia no formato de uma Introdução ao Estudo do Homem na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, o microscópio deixou de ser um instrumento de pesquisa para mim. Emprestei-o ao laboratório da História Natural. Em 1982 foi vítima, como todo o laboratório, do incêndio que destruiu o conjunto de prédios que ocupavam a quadra onde hoje se encontra a Prefeitura de São Leopoldo.

Das férias de 1947-1948 lembro-me de um acontecimento que, de uma lado continua confirmando o espírito solidário e o compromisso mútuo que caracterizava o convívio nas comunidades coloniais e, do outro, as condições e o nível de atendimento médico de então. Lá pela metade do mês de janeiro nosso vizinho, o Friedrich Sehnem, conhecido como “Sehnem Fritz”, um colono da velha estirpe como meu pai, perto dos 70 anos sofreu um mal súbito não sei se um AVC ou infarto. Meus irmãos, o Raimundo e Bertoldo, os filhos do Fritz, o Ernesto o Alois além de outros vizinhos nos reunimos na casa do doente. Devido à gravidade do caso ele não teria sobrevivido a um transporte por carroça de bois até o hospital de Tupandi. Buscamos na minha casa uma cama de campanha desmontável. Separamos o lastro de lona e o fixamos em duas taquaras reforçadas e sobre a lona colocamos uma colchão. Deitamos o Fritz sobre o colchão e como estávamos em pleno verão, o cobrimos com um lençol e descemos o Morro da Manteiga durante a madrugada, revezando-nos de meia em meia hora. Perto do clarear do dia entramos no hospital onde as irmãs providenciaram um leito. Um ou dois dias depois, num sábado de manhã o vizinho faleceu. Meu irmão Raimundo desceu de carroça de bois até o hospital para levar o defunto para a sua casa no Morro da manteiga para ser velado pelos vizinhos e parentes. Eu da minha parte fui até a marcenaria no outro lado do arroio, na subida para Salvador do Sul, a fim de encomendar o caixão. O marceneiro perguntou o tamanho que o caixão deveria ter. O falecido não era um homem muito alto e decidimos que o caixão deveria ter um metro e 90 centímetros. Pela meia tarde levei o caixão, de carroça naturalmente, até a casa do falecido. Voltei para casa e, ao anoitecer, fui com meu irmão Raimundo participar do velório na casa do falecido. Ficamos a noite toda conversando e participando das orações enquanto uma trovoado de verão sucedia à outra. No dia seguinte, um domingo, como de costume parentes de vizinhos levamos o falecido numa carroça de bois, em procissão para a encomendação na igreja e matriz e para a sepultura no cemitério de Tupandi pois, na época não havia ainda cemitério no Morro da Manteiga.

Não me recordo de nenhum outro fato mais importante daquelas férias. Pelo dia 20 de fevereiro voltei ao Colégio Santo Inácio para um novo ano escolar no internato. Quanto ao currículo previsto para a quarta série do ginásio não me lembro de novidades especiais. Foi o ano em que mergulhamos fundo principalmente nas literaturas latina, portuguesa, brasileira, inglesa, alemã, italiana, espanhola. Essa imersão teria continuidade no ano seguinte e último do ginásio. Deixo para o ano de 1949 comentários mais exaustivos sobre as obras clássicas das literaturas das tradições que acabo de enumerar. O ano de 1948 foi fecundo em apropriação de conhecimentos complementares ao tirocínio acadêmico oficial. Sem priorizar e/ou categorizar pela importância na minha formação, lembro as que mais me marcaram.

Primeiro. Sempre fui um apaixonado por aviões. Desde que me conheço como gente, 1937, ou algo assim, minha irmã Tecla que estudava no Bom Conselho em Porto Alegre, passando as férias em casa contou como, do alto da Ramiro Barcelos onde ficava o Bom Conselho, observavam o pouso dos hidroaviões da VARIG e da Condor no Guaíba na altura de Navegantes. Não sei se foi no jornal Deutsches Volksblatt, no Skt. Paulussblatt, no Familienfreund Kalender ou no Iganatiuskalender, que admirei uma a foto de um hidroavião da VARIG pousado no Guaíba em frente ao porto. Cada vez que um avião, todos do tipo teco-teco” com eram conhecidos, passava por cima do Morro da Manteiga, todos corriam para o descampado para não perder a visão da passagem daquela máquina frágil de asas duplas ou simples feitas de lona. Numa dessas tardes de verão sem nuvens ouvimos o ronco que já nos era familiar, só muito mais forte. Corremos todos para fora da casa e lá pela altura de Bom Princípio uma flotilha de nove aviões do tipo Master Brasilia da Força aérea Brasileira, voava em direção à base aérea de Canoas. No verão de 1938 meu irmão Pe. Balduino fora convidado pelo serviço geográfico do exército para fazer um inventário aéreo da fisionomia topográfica, fitogeográfica e humana do Rio Grande do Sul. Quando a notícia se espalhou em Tupandi virou orgulho de parentes, amigos, vizinhos e o povo em geral. O Pe. Balduino comunicou que num determinado dia sobrevoaria a região. Acomodado na frente das casas o povo de Tupandi assistiu quando um dos seus filhos ilustres, literalmente partindo da enxada foi parar na cabine de um avião militar. O piloto do minúsculo e frágil “Master Brasilia, do 3o regimento de aviadores de Canoas, deu uma ou duas voltas sobre aquele pedaço de terra que fora o berço do tripulante cientista convidado pelo exército para o reconhecimento sistemático do Rio Grande do Sul. Só para saciar a curiosidade. Naquele verão o Pe. Balduino voou 60.000 quilômetros e inventariou a “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, título com que contemplou o livro que resultou das observações que anotou das paisagens que deslisavam sob as asas do primitivo Master Brasilia. Foi uma sensação quando o primeiro DC3 da VARIG cruzou por cima do Morro da Manteiga e Tupandi. Mas, foi durante a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que as forças aéreas tanto dos Aliados quanto do Eixo foram decisivas, que meu interesse cresceu ainda mais. A revista “Em Guarda” veículo de propaganda dos aliados podia ser adquirida gratuitamente em instituições como o nosso colégio. Esperava com ânsia a chegada de mais uma edição. O meu maior interesse foi sempre pelos aviões de caça e bombardeio tanto de um quanto do outro lado do conflito: Os bombardeiros pesados B17 e B29 e o caça Mustang, americanos; o Hurricane e Spitfire ingleses, o Stuka e Messerschmitt alemães, o Zero japonês, o Ilushin russo e por aí vai. Acontece que, terminada a guerra, os modelos de aviões a jato foram ocupar o lugar dos modelos mais antigos com motores de pistões. Os primeiros modelos com esse tipo de propulsão da linha dos Messerchmitt tinham estreado em combate bem no final da guerra. Estudei minuciosamente o funcionamento das turbinas e numa aula de física expliquei para meus colegas a estrutura e funcionamento dessas máquinas. Foi a primeira palestra científica da minha vida. Por algum tempo dediquei horas livres com a veleidade de montar um motor a jato. Cheguei a reunir diversas peças enquanto alguns dos meus colegas me brindaram com qualificativos menos elogiosos e devo admitir, com razão. De fato não tinha as mínimas condições para realizar uma empreitada do gênero. A paixão pela aviação e aviões acompanhou-me durante toda a minha formação. Mas, não é aqui o lugar para prolongar-me demais sobre essa questão.

Segundo. Mais acima já detalhei as excursões científicas em companhia do meu prof. de Ciências Naturais, o Pe. Friederichs e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, nas quartas-feiras durante o ano de 1947. Também já lembrei que em 1948 o Pe. Friedrichs assumiu a capelania da Igreja São José em Porto Alegre, o Cirne Lima entrou no noviciado dos jesuítas em Pareci Novo. Os dois pediram-me que colecionasse o maior número de espécies de líquenes possível no perímetro da propriedade do colégio e os remetesse para Porto Alegre a fim de serem classificados e formar um acervo junto ao Herbário Anchieta. Foi assim que parte do meu tempo disponível em fins de semana e feriados embrenhava-me na mata virgem coletando líquenes, a maioria nas cascas das árvores ou agarrados a blocos de pedra. Não guardei na memória o quanto coletei e mandei para o Pe. Friedrichs em Porto Alegre, nem tenho a mínima ideia que fim levaram depois que o Cirne Lima enveredou pela Filosofia e Teologia e passou anos em Innsbruck na Áustria. Com isso passo para o terceiro acontecimento, sem dúvida o mais marcante daquele ano.

Terceiro. Acontece que o Colégio Santo Inácio não contava com o credenciamento do Ministério da Educação. Desse credenciamento de conclusão do ginásio dependia o acesso a cursos superiores nas universidades. Mas, havia uma saída para superar essa dificuldade. Submeter-se a exames de madureza, o então conhecido como artigo 91, mais tarde artigo 99, oferecidos anualmente pelo Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, credenciado para tanto. É compreensível que nem todos os alunos do Santo Inácio estavam em condições de demorar-se por um mês em Porto Alegre. A direção do colégio escolheu se bem me lembro 4 para submeter- se ao exames do Artigo 91, o primeiro grupo em 1947. Em 1948 fui eu um dos destacados para prestar esse exame em companhia de mais dois colegas. Em começos de outubro partimos para Porto Alegre e nos alojamos no Colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias perto da catedral. Os exames foram aplicados no Instituto de Educação Flores da Cunha no Parque Farroupilha e se estenderam até começos de novembro. A programação foi interrompida devido ao Congresso Eucarístico Nacional celebrado entre os dias 28 e 31 de outubro. O altar monumento com uma enorme cruz iluminada à noite foi erguido no Parque farroupilha nos fundos do Flores da Cunha. A imponente cruz iluminada podia ser vista da sala em que se realizavam os exames. Naquela semana os exames foram interrompidos e como candidatos para nos fazermos jesuítas, obviamente participamos de todas as solenidades. A população católica de Porto Alegre participou em massa. Ninguém estranhava quando grupos dos diversos setores da Ação Católica ou das Congregações Marianas organizavam demonstrações pelas ruas do centro de Porto alegre. Empunhavam com orgulho suas bandeiras e sem o mínimo de constrangimento, pelo contrário com o orgulho estampado em seus rostos e na cadência de suas marchas, deixavam claro que não estavam fazendo teatro mas questão de mostrar a quem quisesse entender, que se orgulhavam da Fé que professavam. Só um exemplo. Numa daquelas tardes, voltando do Parque farroupilha, na altura do Colégio Sevingué, na rua Duque de Caxias, avançava vindo da direção da catedral um grupo, melhor talvez um “regimento”“uma tropa de assalto”, formado por dezenas, senão centenas de homens: profissionais liberais, universitários, professores de todos os níveis, comerciantes, militares não fardados, funcionários públicos. Na frente a bandeira do Brasil, a bandeira pontifícia e a bandeira das Congregações Marianas, cantando o hino: “Do Prata ao Amazonas, do Mar às Cordilheiras, cerremos as Fileiras, soldados do Senhor” ou ainda “Tu és Pedro e sobre essa Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”. Faço questão de registrar essas vivências da minha adolescência e juventude para lembrar as pessoas de menos de 70 anos, o lugar que a religião ocupava logo depois da Segunda Guerra Mundial. Nas comemorações de “Corpus Christi” a procissão tomava toda Avenida Independência com a participação dos alunos devidamente uniformizados dos colégios femininos e masculinos tradicionais como o Bom Conselho, o Sevigné, o Rosário, o Anchieta, o Dores. Participavam os grupos da Ação Católica, das Congregações Marianas, das confrarias e outras organizações semelhantes, além do povo em geral. Esse panorama começaria a mudar radicalmente a partir de 1960 quando sorrateiramente começou a infiltração do temporal da laicização nos movimentos das agremiações acima mencionadas. Mais abaixo, num outro contexto, devo voltar e aprofundar esse terremoto histórico-cultural-religioso que afetou em cheio a minha trajetória pessoal e terminou por provocar uma correção de rota radical na minha vida.

Depois dessa digressão motivada pelo Congresso Eucarístico, volto aos meus exames de madureza. O término dos exames ocorreu por volta de 10 de novembro. Reunimos nossos pertences e no dia seguinte de manhã às 7h embarcamos no trem para Caxias do Sul. Desembarcamos às 10h em Salvador do Sul para subir a pé até o colégio lá no alto. O último compromisso formal daquele ano de 1948, além dos exames regulares das disciplinas do currículo normal consistiu em viajar de trem até Garibaldi a fim de submeter-nos ao exame de saúde para o serviço militar perante uma junta médica que atendia no convento dos Capuchinos da cidade. Mais acima já lembrei que a Constituição de 1946 isentava os seminaristas e religiosos do serviço militar, porém, não dispensava do ritual prévio para a incorporação efetiva que, para mim, deveria acontecer em 1949. Em meados de dezembro partimos para as férias de dois meses em casa. Dessas férias não guardei nenhuma lembrança mais importante. Em meados de fevereiro voltei para passar o 5o e último ano do ginásio no Colégio Santo Inácio e assim concluir a formação no Ensino Médio.

Da Enxada à Cátedra [ 31 ]

Depois desse inciso volto às aulas de Ciências Naturais na terceira série do ginásio no colégio Santo Inácio. Não posso afirmar se foi um amor à primeira vista pois, como ficou claro nas páginas acima, eu carregava essa relação atávica existencial com a Natureza lá de longe desde o meu berço. O que aconteceu foi tomar consciência definitiva que era esse o caminho a seguir para o futuro. Não demorou e o Pe. Friedrichs percebeu o meu entusiasmo pelas Ciências Naturais, somado ao detalhe que ele coletava fanerógamos e os mandava para o Pe. Balduino para classifica-los e incorporá-los no Herbário Anchieta. Falou da ideia de programar semanalmente, nas quartas feiras, incursões nas redondezas do colégio para coletar plantas. Convidou-me para acompanhá-lo e meu colega Carlos Roberto Cirne Lima, cursando o 5o ano do ginásio. Aceitei na hora. E assim saíamos todas as quartas feiras do ano de 1947, de manhã cedo para voltar no fim da tarde, sempre com uma bela presa de exemplares de fanerógamos que, secos e devidamente embalados seguiam para Porto Alegre. Hoje devem integrar o Herbário Anchieta guardado no Instituto Anchietano na Unisinos. Mais acima já me referi àquelas andanças pela natureza nas quartas feiras. O Pe. Fridrichs um mestre talhado para esse tipo “aula”, sem jaleco, sem quadro negro, sem bancos, sem quatro paredes, sem retórica professoral. O Cenário para esse aprendizado foi a mata virgem cobrindo a borda do planalto de Salvador do Sul e São Pedro da Serra, escondendo rochas a prumo, formando abrigos e até pequenas cavernas. Das aulas de Ciências propriamente ditas gravei pouco na memória. Mas, aquele contato semanal durante todo aquele ano valeram como um estágio de nível superior naquela universidade sui generis que só a Natureza é capaz de oferecer.

Foi naquele ano também e, novamente por iniciativa do Pe. Friedrichs, meu colega Cirne Lima e eu montamos o esqueleto de cavalo, de cachorro e de gato selvagem aos quais me referi mais acima. Na condição de responsável pelo museu, passava todos os momentos disponíveis naquele recinto acomodando serpentes em recipientes de vidro, empalhando gambás, lebres, micos, etc. Ainda não me definira, com de fato nunca me iria definir por uma área específica das Ciências Naturais para especializar-me. Interessava-me por tudo que vinha pela frente nesse inesgotável mundo de surpresas. As razões objetivas que levaram a não me tornar um cientista no rigoroso sentido do conceito, serão reveladas ao longo das páginas que seguem.

Em começos de julho de 1947 fui surpreendido com a entrega de um fonograma comunicando-me que meu pai fora internado em estado grave no hospital de Tupandi. O reitor do colégio liberou- me o tempo que fosse necessário para ficar junto com a família e acompanhar a evolução do estado de saúde do pai. Aprontei a mochila e percorri a pé os 10 quilômetros até o hospital. Encontrei o pai acometido de pneumonia preocupante mas não desesperadora acompanhado da mãe. Havia, porém, um agravante que preocupava. Meu pai, com 67 anos foi um desses colonos que desde adolescentes enfrentaram qualquer tipo de trabalho, por mais pesado que fosse. Não havia intempérie, nem tormenta nem granizo que os assustasse. As consequências inevitáveis iriam começar a manifestar-se a partir dos 45 ou 50 anos. Aos poucos com mais de 50 anos meu pai era um homem acabado. A inflamação do nervo ciático por vezes o impedia de andar a cavalo. Certo domingo encontrei-o voltando da missa subindo pela trilha do mato na encosta do Morro da Manteiga, levando o cavalo pela rédea, porque o montar lhe rendia dores muito fortes. Aquele encontro foi para mim uma lição de vida que jamais esquecerei. Naquele estado ele certamente não tinha mais nenhuma obrigação de assistir a missa, nem naquele tempo em que obrigatoriedade era levada ao extremo. As irmãs franciscanas que cuidavam do hospital permitiram que eu passasse a noite num quartinho de um anexo do hospital. No dia seguinte, como o quadro de saúde do pai encontrava-se estável e aparentemente sob controle subi para o Morro da Manteiga e pernoitei em casa. Nos dias seguintes a situação parecia sinalizar para uma melhora gradativa. Depois de uma semana voltei para o colégio em Salvador do Sul, sempre à espera de alguma novidade. No dia 19 ou 20 de julho fui chamado à portaria onde um primo meu me esperava com um cavalo encilhado e informou-me que descesse com ele até Tupandi pois o quadro de saúde de meu pai piorara muito e o médico praticamente o tinha desenganado. Ao entrar no quarto estava lá minha mãe, meus dois irmãos padres, o Balduino e o Roberto. O pai quando me viu me fez seu último pedido. Chamou-me pelo nome e pediu: “Nunca me esquece”. Essas três palavras ecoaram mais do que uma vez todos os dias na minha memória, durante os mais de setenta anos que se passaram desde então. Passei a tarde no hospital e ao entardecer subi o morro e fui passar a noite em casa. No dia 23 de julho fiquei em casa aguardando notícias. 

Pela meia tarde o Bertoldo veio a cavalo do hospital, apeou e disse: o pai está morto” e começou a chorar. Preparamos a sala da casa para o velório. Naquele época os velórios aconteciam na casa dos falecidos. No fim da tarde trouxeram meu pai em cima dum colchão acomodado numa carroça. Não demorou para os vizinhos se reunirem na sala da casa, na cozinha, e ao ar livre pois, a noite amena colaborou para acomodar as pessoas. Minha mãe, meus irmãos, parentes e vizinhos e vizinhas passaram a noite em vigília. Na manhã do dia seguinte um vizinho trouxe o caixão aprontado pelo marceneiro da comunidade. Lembro que naquela época os vizinhos se encarregavam de todos os procedimentos funerários. Encomendavam o caixão, cavavam a sepultura, levavam o defunto até igreja para a encomendação, depois o carregavam até o cemitério e o sepultavam. Nessas ocasiões qualquer desentendimento que por acaso tivesse havido com o falecido e seus familiares, cedia lugar ao dever de solidariedade. Um detalhe que merece atenção. De acordo com os costumes de então, as vizinhas prepararam uma galinhada para as pessoas que tinham ficado no velório durante a noite e a manhã. Em muitas ocasiões de falecimento as vizinhas além de prepararem um almoço faziam uma ou mais fornadas de cuca para as pessoas que tinham vindo de mais longe. Depois do almoço com a família reunida, inclusive meus dois irmãos padres, vizinhos colocaram o pai no caixão, enquanto o povo reunido na sala e no pátio rezava o terço. Em seguida acomodado numa carroça de bois começou a última descida do Morro da Manteiga desse homem, que como meu avô e tios abriram as primeiras clareiras naquele pedaço de chão e pelo qual deram o que tinham de melhor de suas energias físicas e, principalmente, o que de humano e espiritual pulsava no seus grandes corações e na suas almas que não conheciam nem malícia nem rancor. Ainda no alto do morro veio ao encontro do féretro minha irmã Tecla (irmã Antônia). Nas condições de transporte de então não conseguira participar do velório. O cortejo fúnebre foi interrompido, o caixão foi aberto por uns minutos para que ela pudesse dar seu adeus ao pai. A descida naquele remoto ano de 1947 não passava de uma dessas estradas de chão batida pela qual só passavam pedestres, cavalos e carroças de bois. Minha mãe, minha irmã Ana e alguns vizinhos e vizinhas de mais idade acompanharam a cavalo. Todos os demais desceram a pé e em procissão o morro rezando um terço depois do outro no trajeto de mais ou menos uma hora. Aquela descida do Morro da Manteiga, logo atrás da carroça que carregava meu pai para sua derradeira morada, rezando o terço em coro com os demais acompanhantes, está gravada na minha memória numa nitidez tal como se estivesse acontecendo no momento em que escrevo. Seguiu-se a encomendação na igreja matriz de Tupandi presidida pelo Pe. Karl Schoebendach, auxiliar do pároco, lotada como em dias de festa. O sepultamento aconteceu no final da tarde. Seis vizinhos carregaram o caixão até a sepultura. Depois dos últimos atos e orações litúrgicas o povo presente rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria enquanto a sepultura estava sendo fechada e sobre ela depositados dezenas de ramalhetes de flores. Plantada a cruz na cabeceira todos se persignaram e foram-se dispersando. Acabara de sofrer a primeira grande baixa na minha família. No dia seguinte meus dois irmãos padres, o Raimundo, o Bertoldo e eu passamos com minha mãe e minha irmã Ana em nossa casa lá no Morro da Manteiga, relembrando os bons e maus momentos, os períodos de calmaria e os intervalos de mau tempo que marcaram a caminhada da nossa família. Depois de ficar por uma semana com minha mãe, minha irmã, o Bertoldo e sua esposa Erica em casa, voltei para o Colégio Santo Inácio para retomar a rotina do internato.

Da Enxada à Cátedra [ 30 ]

O após guerra – 1946-1949

Em linhas gerais aqueles três últimos anos do ginásio foram decisivos e definitivos para a minha jornada acadêmica. Com 16 anos a repetição da segunda série do ginásio colocou-me por assim dizer na rota do reencontro comigo mesmo e o que pretendia fazer da minha vida. Por isso o ano de 1946 significou para mim uma travessia do “Rubicão” ou uma “Queima dos Navios”. Depois do susto decidi mergulhar fundo em todas as disciplinas que o currículo oferecia e deixar de lado tudo que me pudesse desviar da formação e abraçar tudo que me enfunasse as velas para navegar em frente. A Segunda Guerra Mundial ficara definitivamente para trás em agosto do ano anterior com a rendição do Japão. A ditadura de Vargas com todas as suas leis e decretos de exceção e instrumentos de repressão não passava de um pesadelo de uma noite mal dormida. Com o presidente Dutra eleito democraticamente o País voltava à normalidade. Os “pracinhas” que haviam lutado na Itália estavam de volta, infelizmente deixando para trás no cemitério de Pistoia 450 dos seus camaradas. Uma nova constituição foi promulgada em 20 de setembro. Naquela tarde de primavera o reitor do colégio reuniu alunos e professores para comunicar o grande acontecimento e informar sobre alguns parágrafos da nova Carta Magna que interessavam diretamente aos religiosos. Entre eles o Art. 143 isentava os eclesiásticos e as mulheres do serviço militar obrigatório. Essa disposição constitucional incluía os seminaristas e religiosos em estágio de formação. Não dispensava, entretanto, o alistamento aos 16 anos, ritual ao que me submeti comandado por um oficial do exército destacado para Salvador do Sul. Guardo até hoje entre meus documentos o certificado de alistamento no qual consta a guarnição, o regimento de cavalaria de Alegrete, onde deveria servir caso abandonasse a carreira religiosa, com a observação “isento”. O reitor encerrou as informações com uma notícia que ninguém esperava. Para comemorar a nova Constituição decretou feriado para o dia seguinte, com direito a piquenique, almoço ao ar livre, passeios pelas redondezas, leituras amenas, jogos nos campos do colégio. Para todos nós essa surpresa fez do dia seguinte uma comemoração cívica, de um lado festejando a superação dos 8 anos de ditadura e 7 de guerra mundial e, do outro, o mundo e de modo especial o Brasil, entrando numa nova era de liberdade, prosperidade e modernização. De resto o ano de 1946 transcorreu normal na sua rotina. Encarei com dedicação a rotina dos estudos regulamentares e terminei o ano com resultados que, em parte pelo menos, compensaram o tropeço do ano anterior.

O ano de 1947 começou com uma novidade no currículo que seria decisiva para uma boa parcela da minha formação acadêmica e minha atividade como professor mais tarde. Refiro-me à disciplina de Ciências Naturais. Desde criança essa área de conhecimento sempre me fascinou. As razões foram várias. Em primeiro lugar destaco o que acima ao descrever a minha infância já ficou claro. Nasci, por assim dizer, na sombra da floresta e na sombra das grandes árvores em volta da casa. Até os 12 anos foi esse o cenário onde buscava os brinquedos, alimentava a imaginação e aos poucos foram-se formulando perguntas do tipo: como surgiu esse mundo maravilhoso, como funciona, qual o seu significado, qual a parte que cabe ao homem inserido nele. Evidentemente esses questionamentos não foram formulados tecnicamente naquela fase da vida mas, intuídos e, quase como que farejados, na convivência diária com aquele mundo belo e misterioso com as criaturas que nele se movimentavam. Naquela primeira fase da vida aconteceu uma simbiose silenciosa, porém, definitiva entre minha alma e a natureza. Em segundo lugar, três dos meus irmãos escolheram dedicar-se a áreas das Ciências Naturais. O mais velho, o Balduino especializou-se em botânica sistemática e conquistou fama internacional nessa especialidade. O Roberto dedicou-se à matemática, química e física e lecionou essas disciplinas no colégio Santo Inácio onde foi meu professor em 1948 e 1949. Chegou a ministrar semestres de química e bioquímica no curso de História Natural na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Leopoldo, embrião da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O Bertoldo escolheu a Ótica como especialidade de preferência. Ainda como ginasiano construiu um telescópio artesanal com tubos de papelão. As lentes foram bancadas por meu pai e nas férias, depois de escurecer, todos reunidos em frente à casa tomando chimarrão, nos revezávamos observando as estrelas, a lua e os planetas. Até minha mãe resolveu matar a curiosidade. Ficou gravado indelevelmente na minha memória a imagem de Júpiter refletida no espelho daquele telescópio, por assim dizer, enxambrado” por esse meu saudoso irmão que por razões que não vem ao caso, só concluiu o ensino médio e depois foi ser professor na escola primária da comunidade de Harmonia e paralelamente fotógrafo. A esses meus três irmãos envolvidos formalmente em especialidades das Ciências Naturais vem somar-se meu segundo irmão, 20 anos mais velho que eu, o Raimundo. Simples agricultor como meu pai foi o mais próximo a mim dos meus irmãos. Sempre que fosse possível ele pedia para acompanhá-lo quando se embrenhava na mata virgem para localizar árvores, cangeranas, louros, angicos, batingas, cabriúvas, etc. quando faltavam tábuas, madeira de canto, tabuinhas para telhado e outras utilidades. Foi com ele que entrei em contato íntimo com a “alma” da Natureza. Esse meu irmão aos 44 anos vítima de um câncer linfático foi meu instrutor de campo nessa “universidade ao ar livre”.

Depois dessa nota explicativa continuo minhas considerações sobre a disciplina de Ciências Naturais que constava no currículo. O significado mais importante não foram os conteúdos em si mas o Pe. Fridrichs, professor da disciplina. Ele fazia parte dum grupo de jesuítas que tinha como projeto de vida dedicar-se às Ciências Naturais como instrumento de aproximação das Ciências Naturais com a Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. Pertenceram a essa categoria de jesuítas o astrônomo Matteo Ricci e o matemático e astrônomo Adam Schall na China, os dois no século XVII e XVIII, além de muitos outros missionários atuando nas inúmeras missões mantidas pela ordem antes da supressão em 1773. Depois da restauração da Ordem em 1814 a tradição de fazer da Ciência um instrumento missionário foi retomada. Cito aqui alguns nomes diretamente relacionados com os jesuítas alemães, suíços, austríacos e tiroleses vindos para o sul do Brasil partir de 1849. Um dos pioneiros mais conhecidos e mais importantes pela sua obra foi Erich Wassmann, nascido em Moran (Morano) no Tirol do Sul, especialista em formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos e famoso pelos seus embates diretos com Ernst Haeckel, o papa do evolucionismo materialista. Aqui na Missão do sul do Brasil merecem destaque o historiador Pe. Ambros Schupp com seus artigos sobre a fauna e flora da região, os especialistas em fungos Johannes Rick e Ferdinand Theissen. Estes três inspiraram e entusiasmaram toda uma geração de jesuítas nativos para se dedicarem a algum dos ramos das Ciências Naturais para exercer um apostolado indireto. Enumero os que se destacaram de alguma forma na suas pesquisas: Balduino Rambo, Aloísio Sehnem, Maximiliano Krause, Godofredo Schrader, Jacó Racke, José B, Weckering, Nepomuceno Haas, Mathias Schmitz, Pedro C. Beltrão, Pio Buck, Ernesto Maurmann Canísio Orth, Antônio Binsfeld, Pedro I. Schmitz, Joseph Hauser, Pedro Haeser, Clemente Steffen, Guido Wenzel e outros menos conhecidos. Para quem interessar recomendo o livro do prof. Luiz Oswaldo Leite, publicado pela Editora da Unisinos com o título: “Jesuítas Cientistas no sul do Brasil”. Entre eles começava a destacar-se como grande promessa na botânica o Pe. Friederichs. Só para adiantar. Já no ano de 1948 os superiores lhe confiaram a capelania da Comunidade São José em Porto Alegre e, mais tarde, ocupou por duas vezes o cargo de Superior Provincial. Neste meio tempo aprofundou seus conhecimentos sobre o Espiritismo.

Da Enxada à Cátedra [ 29 ]

Como nem tudo é um mar de rosas, melhor talvez de sucessos, não posso omitir nessa minha trajetória um tropeço que me atalhou o caminho no último ano da guerra, 1945, que, porém, não tinha nada a ver com a guerra. Com 15 anos, como muitos adolescentes, fui envolvido numa turbulência perfeitamente explicável para a idade. Acometeu-me uma autêntica aversão para com determinadas disciplinas, agravada um tanto pelo desempenho dos respetivos professores. Nosso currículo previa duas categorias de disciplinas: as fundamentais e as complementares. Entre as fundamentais constavam o português, o latim e a matemática, complementadas pelas outras línguas, geografia, história, ciências naturais e outras. Quem não alcançasse a média 5 no final do ano numa das disciplinas fundamentais tinha que repetir o ano. Nas disciplinas complementares bastava uma média de 3. Acontece que naquele ano figurava a álgebra como foco da matemática uma das disciplinas fundamentais. Saí-me muito bem no latim, português e de modo especial em história e geografia. Mas, a álgebra foi um tropeço durante todo o ano e completei-o com média 3 ou quatro e a sentença estava dada: repetir a segunda série do ginásio. Havia nessa história um agravante. O professor de álgebra era também o reitor do colégio além de didaticamente falando nada brilhante. Soube no ano seguinte que ele tinha decidido mandar- me uma correspondência nas férias no sentido de que não voltasse mais em 1946. Não tenho as mínimas condições de imaginar que rumo a minha vida teria tomado. Em princípio teria voltado à enxada e provavelmente “cavado” a trilha para o resto da vida na roça. Quem salvou-me dessa encrenca foi o meu professor de português o padre Silvino Arnhold. Na época ele era um jovem jesuíta de menos de 30 anos cumprindo o estágio do magistério no colégio Santo Inácio. Ele nunca me contou essa história. Soube-a por terceiros. Depois de 20 anos nos reencontramos e lembro- me com saudades dos acampamentos e pescarias na época em que ainda se pescavam dourados no Sinos e no Caí. Hoje o Sinos virou uma cloaca a céu aberto e o Caí contaminado com produtos químicos e dejetos de toda a ordem. Considerando bem se não fosse a intervenção do Pe. Silvino naquele momento, não estaria escrevendo hoje essas recordações. Até perto dos 100 anos ele podia ser visto todos os fins de semana disponível para quem precisasse de conforto espiritual no Santuário do Coração de Jesus junto ao túmulo do Pe. Reus. E hoje descansa no cemitério dos jesuítas a poucos metros distante da sala em que atendia e socorria espiritualmente a quem o procurava. O nome desse homem que, sem alarde, cumpriu uma jornada de 100 anos dedicada inteiramente à prática da caridade e zelo pelo próximo brilhará, conforme a promessa da Sagrada Escritura, como uma estrela no firmamento por perpétuas eternidades.

O final do ano de 1945 foi marcado por um evento familiar muito especial. No dia 7 de dezembro meu irmão Roberto foi ordenado sacerdote jesuíta no Colégio Cristo Rei, pelo bispo de Vacaria, D. Cândido Maria Bampi. Meu pai alugou para a ocasião o ônibus que fazia diariamente o percurso Tupandi – Porto Alegre. Partimos de Tupandi às 5h. da manhã. Naquela época as estradas da região eram todas de chão batido. Passamos por Caí, Pareci Novo, Montenegro, onde cruzamos o rio de barca e pela estrada antiga pelos fundos de Portão terminamos no pátio do Colégio Cristo Rei bem no começo das cerimônias da ordenação na capela da instituição. Terminada a cerimônia religiosa nos encontramos com o Roberto recém ordenado, ocasião em que deu sua primeira bênção para a família e parentes próximos. Seguiu-se depois o almoço oferecido pelo Colégio aos pais e parentes próximos dos recém ordenados. Pela meia tarde o mesmo ônibus levou-nos de volta para casa. No fim da semana seguinte aconteceu a grande solenidade e festa da primeira missa solene do Pe. Roberto na igreja matriz de Tupandi. O ritual foi, em grandes linhas, idêntico àquele que descrevi por ocasião da primeira missa solene do Pe. Balduino, ocorrido em 1o de novembro de 1936. Um piquete de cavaleiros foi receber o homenageado nos limites da paróquia, levando um cavalo encilhado. Era sábado de tarde. Toda a comunidade encontrava-se novamente reunida na frente do sobrado do dentista Balduino Weber, repetindo a cena de 9 anos passados. O piquete passou a galope pelo público e foi apear num pequeno bosque onde hoje se encontra o centro de eventos. O Pe. Roberto foi recebido na entrada do caramanchão em frente ao sobrado, pelos pais, irmãos, tios, pároco e demais padres presentes. Os sacerdotes paramentaram-se na sala de visitas da família Weber e, em seguida encaminharam-se em procissão acompanhados de toda a comunidade para a igreja matriz. Na época ainda não se celebravam missas aos sábados à tarde e, por isso, a cerimônia litúrgica resumiu-se numa bênção solene do Santíssimo. Pelo final da tarde subi com meus pais o Morro da Manteiga para passar a noite e no dia seguinte descer novamente para a primeira missa solene – as “primícias” do meu irmão Roberto. Uma missa solene naquele remoto 1945, costumava ser uma acontecimento que envolvia a comunidade inteira. Todos os moradores que formavam a comunidade de Tupandi eram católicos e de origem alemã. Ninguém faltava numa solenidade dessas. A igreja não comportava nem a metade das pessoas. Quem não conseguia lugar dentro assistia à cerimônia do lado de fora pelas portas abertas. O coral masculino dirigido pelo escrivão José Weber deu o melhor de si. Os quatro sinos tocados em conjunto ecoavam o grande acontecimento pelos vales e encostas dos morros. O estrondo de uma bateria de morteiros disparados num potreiro vizinho anunciaram para longe e perto o momento da consagração, enquanto o badalar dos quatro sinos perfeitamente afinados rebatia a sua sinfonia nos vales e morros em torno. Sem dúvida o momento mais esperado daquela manhã foi sermão festivo a cargo do Pe. Balduino. Aquele sermão de 45 minutos, além do brilhantismo e da eloquência conhecida por todos, veio acompanhado por um ingrediente adicional que levou às lágrimas velhos e moços, colonos e colonas todos temperados no cabo da enxada e do machado, nos arados de boi, no gadanho e foice do mato. Acontece que os decretos que proibiam as pregações em alemão, acabavam de ser revogados. Na igreja lotada até portas afora podia-se escutar o zumbido de uma abelha. Escutar na língua dos seus ancestrais aquele sermão, do alto daquele púlpito emblemático esculpido em cedro vermelho pelo artesão Flach, deve ter soado como uma melodia até os arcanos mais profundos da alma daquela gente simples e profundamente humana. Um dos filhos nascido na comunidade lhes falava de Deus e o significado da missão por Ele dada à Criação e ao Homem, na língua em que balbuciaram as primeiras palavras de amor e oração, fez chorar os colonos e colonas feitas de cerne de cabriúva.

Terminada a missa solene e depois de uma bênção do novo sacerdote para toda a comunidade presente, os convidados encaminharam-se para o almoço no salão de baile do Sr. Afonso Konzen, enquanto os demais recolheram-se às suas casas. O almoço nada tinha ver com um banquete no sentido corrente o termo. Meu pai tinha engordado um novilho que forneceu o carne assada no forno, massa feita em casa, arroz, salada e uma sobremesa de sagu, vinho e framboesa. Um cardápio que se repetia em casamentos, kerbs, festas de igreja. Guardo com carinho uma fotografia daquele “banquete” pois, lá está uma das últimas fotos do meu pai.

Da Enxada à Cátedra [ 28 ]

Voltando à rotina do internato no período da guerra, destaco que os primeiros meses de 1943, além de todas as restrições e dificuldades decorrentes da campanha de Nacionalização e da própria guerra, foram marcados por uma estiagem devastadora de 3 meses. A direção do colégio chegou a pensar na suspensão das atividades escolares e que os internos, pelo menos os que moravam menos longe, fossem para casa. O abastecimento de água foi comprometido e o arroio Salvador que alimentava o reservatório que movimentava a usina de geração elétrica do colégio quase sem água. As fontes responsáveis pela água potável e da limpeza da casa encontravam- se com a vasão em nível crítico. Foi preciso levar com carretas de bois os toneis da água buscada na piscina que ficava uns 100 metros distante. Vejo ainda hoje a figura esbelta e alta do prefeito geral, Pe. Oscar Müller, carregando baldes e mais baldes de água das carroças até os banheiros e os limpava nos fins de tarde enquanto nós nos ocupávamos na sala de estudo com os temas e demais obrigações das aulas. Registro aqui a minha homenagem especial a esse jesuíta suíço de coração de ouro que cuidou de nós seminaristas, diria quase como que uma mãe entre 1942 e 1945. Depois passou ocupar importantes cargos na formação do clero: reitor do Seminário Central de São Leopoldo de 1946-1948, quando foi nomeado reitor do Colégio Cristo Rei entre 1949-1951. De 1951-1955 foi reitor do Pio Brasileiro em Roma e de 1955-1967 foi orientador espiritual da mesma instituição. Voltando ao Brasil em 1967 foi diretor espiritual dos estudantes de teologia no colégio Cristo Rei e professor de Teologia. Dedicou os últimos anos a uma intensa atividade de retiros, cursos e, principalmente, de apoio psicológico-espiritual a sacerdotes, religiosos e religiosas. Numa dessas jornadas ao Ceará, faleceu em Fortaleza em consequência de um edema pulmonar e no dia seguinte foi sepultado no cemitério dos jesuítas em São Leopoldo. Devo a esse suíço uma enorme dívida de gratidão pelo apoio e compreensão quando da minha saída da Ordem em 1971.

Em 20 de agosto de 1942 o Brasil declarou guerra à Alemanha. Antes de falar sobre os reflexos desse ato extremo de demonstração de hostilidade contra a Alemanha, sobre a rotina do seminário em Salvador do Sul, creio ser útil mostrar os fatos imediatos que levaram o Brasil a tomar essa decisão extrema. Durante décadas discutiu-se mais tarde sobre o que na verdade estava atrás do afundamento dos navios brasileiros em águas territoriais na costa do nordeste naquele 15 de agosto e 1942. Acontece que o Brasil rompera as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo já em janeiro de 1942, mas manteve-se neutro em relação ao conflito bélico propriamente dito. Nesse meio tempo o Comando da Guerra Naval alemão, montara a operação de guerra no 53 endereçada ao Brasil como retaliação ao rompimento das relações diplomáticas e comerciais. Essa operação previa um ataque de uma flotilha de submarinos a navios brasileiros. Conforme consta nos relatórios do Comando de Guerra Naval a operação no 53 foi cancelada por razões políticas. Supõe-se que o ministro das relações exteriores da Alemanha, Joachim von Ribbentropp teria convencido Hitler da inoportunidade da ação pois, poderia provocar uma reação em cascata na América do Sul, arrastando principalmente o Chile e a Argentina abandonar a neutralidade e passar para o lado dos Aliados. A Alemanha alertara o Chile e a Argentina que identificassem seus navios para não serem atacados pelos submarinos. Pelo que informou o tenente-coronel Durval Pereira o alerta da identificação dos navios não foi comunicado ao Brasil tornando-os alvos dos submarinos. Documentos do Arquivo Federal alemão informam que o submarino U53 sob o comando do capitão Harro Schacht recebeu a missão de interceptar navios isolados, navegando para a África do Sul, longe da costa do Brasil. Passou semanas sem encontra uma presa sequer e convencido que navios americanos navegavam por águas territoriais brasileiras, aproximou-se da costa e localizou um navio sem identificação no casco. Disparou dois torpedos que não acertaram o alvo. Aproximou-se até 100 metros mandou disparar mais dois torpedos que afundaram o Baependy, um barco misto de carga e passageiros. Naquela noite de 15 de agosto, um por um, cinco navios mistos foram afundados pelos torpedos de Harro Schacht. Como se pode deduzir o afundamento dos navios brasileiros foi na verdade o resultado da iniciativa do capitão de submarino Harro Schacht. Deixando de lado a discussão mais aprofundada sobre a verdadeira responsabilidade sobre o torpedeamento dos navios brasileiros e consequente declaração de guerra do Brasil ao Eixo em 20 de agosto, volto as atenções sobre a repercussão desses fatos sobre a rotina do meu internato.

Evidentemente quando esses acontecimentos se tornaram públicos a comoção tomou conta do País, ainda mais quando os corpos dos passageiros dos navios foram levados pelo oceano até as praias do Sergipe. O novo panorama desenhado por essa decisão tão relevante acirrou ainda mais as tensões motivadas pela Campanha de nacionalização. O cerco aos possíveis aliados e defensores do Eixo foi reforçado e a vigilância redobrada. É oportuno relembrar que a maioria dos padres meus professores eram alemães, austríacos e suíços natos. Na prática todos eles eram rotulados como alemães e tratados como estrangeiros. Como já anotei mais acima, não ocorreram devassas da parte da polícia, muito menos constrangimentos e prisões. Como qualquer outro estrangeiro eram obrigados a se munir de um salvo-conduto para viajar de um município a outro ou de um estado a outro. Mas, o torpedeamento dos navios na costa do nordeste teve um efeito colateral que afetou por meses toda a comunidade do Colégio Santo Inácio, tanto os internos quanto os professores e a direção. Na época mercadorias e produtos como sal e açúcar vinham via navegação costeira ou de cabotagem do nordeste para abastecer os mercados do sul. O ataque aos navios de passageiros e de carga em águas territoriais levou a interrupção da navegação de cabotagem. Para encurtar a história o colégio não tinha como conseguir sal e açúcar vindos do nordeste. Como consequência as refeições e o pão eram preparadas sem sal. Essa situação prolongou-se por aproximadamente meio ano. A falta de abastecimento de açúcar não foi tão dramático. De um lado porque seu uso era mais seletivo e do outro sempre havia a possibilidade de conseguir açúcar mascavo artesanal dos colonos da redondeza. Lembro-me como se tivesse sido ontem no dia em que o Reitor do Colégio entrou no refeitório durante a janta e nos deu a boa nova: “Voltou o sal e amanhã vamos comemorar com um “passeio grande”. Já instrui o padeiro para deixar pronto uma fornada de pão com sal par amanhã. Foi uma festa. No dia seguinte fomos acampar no Campestre. Antes de sair para o piquenique cada interno recebeu um quarto de pão de farinha integral e, felizes, caminhamos pela estrada de terra que terminava perto das cascatas no Campestre onde armamos o acampamento para passar o dia. Ao chegar no local o pão tinha sumido. Durante a caminhada tinha sido “devorado” como uma guloseima.

No mais a rotina do colégio seguiu seu curso normal enquanto possível nas circunstâncias anômalas criadas pela guerra. Não me lembro que se tenham formado grupos definidos a favor ou contra o “Eixo” ou os “Aliados”. Os responsáveis pela instituição foram suficientemente hábeis para evitar esse tipo de radicalização. Presenciei um ou outro caso de discussões pontuais entre os alunos mas, nada que perturbasse o bom andamento do todo ou desandasse em quebra de amizades muito menos na formação de grupos fechados entre os seminaristas defendendo um ou outro lado do conflito. A situação assumiu contornos mais preocupantes no decorrer do ano de 1944 com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) arregimentada para lutar, junto com os aliados, na frente de combate na Itália. Depois do primeiro escalão que partiu para a Itália, composto por tropas do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo, o recrutamento foi se ampliando para as guarnições dos estados do Sul. Parentes próximos de não poucos alunos do colégio foram incorporados em sucessivos escalões com destino para a Itália. Um primo irmão meu e outros parentes de segundo e terceiro grau foram convocados. A maioria deles não chegou a embarcar porque a guerra terminou enquanto aguardavam no Rio de Janeiro ordens para partir para a frente de combate. O fato de três jovens padres jesuítas, mais acima já me referi a eles, se terem apresentado como voluntários para acompanhar as tropas como capelães militares aumentou os interesse em acompanhar mais de perto todos os lances do final do conflito. Suas vidas corriam os mesmos riscos da dos soldados envolvidos no fogo dos combates na linha de frente. Felizmente terminado o conflito os três voltaram sem terem sofrido nenhum ferimento. Passaram para a reserva como oficiais das forças armadas. O Pe. capelão Wendelino Junges trabalhou na pastoral e o Urbano Rausch e Emílio Schneider como assistentes nos Círculos Operários. Querendo ou não o fato de soldados brasileiros em frentes de combate, 450 dos 24.000 que foram para a Itália morreram em ação, despertou em nós seminaristas um sentimento de solidariedade com a tropa. Cantávamos nos encontros informais e formais a “Canção do Expedicionário” e o coral do colégioencerrava encontros culturais e outras programações do nosso calendário com a versão em português do “Coro dos Prisioneiros” da ópera Nabuco de Verdi, com a letra tendo como pano de fundo o drama dos expedicionários e seus familiares. Finalmente em começos de maio de 1945 terminou a guerra na Europa e em agosto também no Pacífico contra o Japão. O término da guerra forçou também a deposição de Getúlio Vargas e com isso o encerramento da ditadura do Estado Novo (1937-1945), numa ação conjunta da UDN (União Democrática Nacional) e as Forças Armadas. Em 1946 o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito democraticamente pelo voto popular presidente da República.