A caminho da escola.
A distância da minha casa até a escola somava em torno de 3 quilômetros. Falar em estrada nem pensar. Em todo o Morro da manteiga as “estradas” não passavam de caminhos que comportavam no máximo o trânsito de carroças puxadas por bois. Em não poucos casos não passavam de trilhas pelo mato transitáveis apenas a pé ou por muito favor a cavalo. O trajeto percorrido diariamente por mim e minhas sobrinhas era um desses caminhos que interligava a nossa propriedade com a de três outros vizinhos. Permitia o trânsito de carroças pequenas de 4 rodas e puxadas por uma parelha de bois, feitas para atender às demandas de cada proprietário. Em períodos de chuva transformavam-se numa sucessão de lodaçais e atoleiros, de torrentes de água nas descidas além de escorregadias com o leito minado de pedras expostas. Sapatos e tênis não se conheciam. Em botas nem pensar. A única modalidade para caminhar nessas condições consistia em enfiar os chinelos ou tamancos na sacola ou carregá-los nas mãos e enfrentar a lama e os atoleiros de pés descalços. Ao lado da escola descia um córrego no qual lavávamos os pés para então calçar os chinelos ou tamancos e entrar na escola e assistir à aula. Não poucas crianças dispensavam simplesmente qualquer tipo de calçado, lavavam os pés e participavam da aula descalças. Durante o inverno essas caminhadas pela lama e caminhos escorregadios tornavam-se ainda mais complicadas. No Morro da Manteiga são frequentes as geadas nos meses de junho, julho e agosto. Não raro formavam-se placas de gelo sobre as poças de água. Chegados perto da escola lavamos os pés com os dedos roxos pelo frio na água gelada do riacho para depois nos acomodar-mos no recinto da escola e passar mais uma manhã avançando mais um passo na alfabetização e na aquisição dos diversos conhecimentos indispensáveis para o sucesso na vida de adultos, fosse como colonos e colonas, fosse em outras profissões, fosse no continuar o estudo e formação em nível mais adiantado. Revelar essa realidade a pessoas de menos de 60 anos e, mais ainda, às crianças e adolescentes de 2024, soa como uma fantasia ou até como uma mentira. Podem-me acusar de mentiroso, não me importo e o entendo. Admito que seja difícil e até impossível imaginar o estado daquele caminho de mais de 80 anos atrás, hoje asfaltado, embora o traçado seja praticamente o mesmo. Hoje Vans ou ônibus escolares buscam as crianças na porta das casas e as devolvem depois das aulas. Embarcam calçando tênis de marca e devidamente abrigadas contra o frio do inverno. Que maravilhoso que os tempos transformaram o caminho para a escola num passeio prazeroso e nenhuma criança de hoje seja obrigada a assistir as aulas descalça, com os pés não poucas vezes machucados, roxos e tremendo de frio. E, contudo, seus olhos brilhavam de satisfação a cada letra que conseguiam escrever, a cada sílaba que aprendiam a ler, cada soma ou subtração, multiplicação ou divisão que logravam resolver e, finalmente o interiorizar dos valores familiares sociais, culturais e religiosos que lhes serviriam de norte para o resto da vida. Essas idas e voltas para a escola percorrendo descalço aquele caminho emblemático passando pelas roças de milho, feijão e mandioca e por duas manchas de mata virgem, numa uma gigantesca figueira do mato e um córrego cristalino, não foram apagadas da minha memória pelas décadas que passaram. Parece que foi ontem que, em companhia de uma dezena de meninos e meninas da vizinhança percorria aquela vereda hoje mascarada pelo asfalto, a sacola costurada pela mãe a tiracolo e dentro dela a lousa, o estilete, a indispensável merenda, o livro de leitura, o catecismo, os cadernos, o lápis e a caneta munida com uma pena “B12”. Não faltavam brincadeiras que, de vez em quando desandavam em desentendimentos mas, normalmente dentro dos limites esperáveis de crianças entre os 7 a 11 ou de 8 a 12 anos. Sempre havia o risco de numa correria ou num tombo a lousa quebrar na sacola o que infalivelmente terminava numa bela e sonora bronca ao voltar para casa. Não raro uma trovoada de verão nos surpreendia a meio caminho e voltávamos molhados que nem pintos para casa. Trocar a roupa encharcada e um chá quente de erva cidreira ou marcela, servia para espantar um possível resfriado.
Concluo com essas recordações a primeira etapa da minha longa trajetória subindo patamar por patamar, na minha formação profana e religiosa, pelo ensino médio, o bacharelado em Línguas e Literatura Clássica, bacharelado em Filosofia, bacharelado em História Natural e Geologia e, finalmente a Licenciatura em Teologia. Mais tarde, em 1976 conquistei o título de Livre Docente em Antropologia e o Doutor em Filosofia, seguido em 1988 com um estágio de Pós-doutorado na “Université V, René Descartes” de Paris.
E, para concluir, chamo a atenção que a coroação do período escolar de 4 anos acontecia com a “comunhão solene”. Durante a semana depois da Páscoa os alunos que tinham concluído os 4 anos eram submetidos a uma imersão para valer no catecismo em preparação da “Comunhão Solene” no domingo da Pascoela. Esse acontecimento fazia parte das solenidades litúrgicasobrigatórias do ano. Eu, da minha parte, não participei desse evento que marcava o começo do engajamento em tempo integral nos afazeres diários entre os colonos, tanto para os meninos quanto para as meninas. Na ocasião já estudava como interno no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.