Da Enxada à Cátedra [ 15 ]

A caminho da escola.

A distância da minha casa até a escola somava em torno de 3 quilômetros. Falar em estrada nem pensar. Em todo o Morro da manteiga as “estradas” não passavam de caminhos que comportavam no máximo o trânsito de carroças puxadas por bois. Em não poucos casos não passavam de trilhas pelo mato transitáveis apenas a pé ou por muito favor a cavalo. O trajeto percorrido diariamente por mim e minhas sobrinhas era um desses caminhos que interligava a nossa propriedade com a de três outros vizinhos. Permitia o trânsito de carroças pequenas de 4 rodas e puxadas por uma parelha de bois, feitas para atender às demandas de cada proprietário. Em períodos de chuva transformavam-se numa sucessão de lodaçais e atoleiros, de torrentes de água nas descidas além de escorregadias com o leito minado de pedras expostas. Sapatos e tênis não se conheciam. Em botas nem pensar. A única modalidade para caminhar nessas condições consistia em enfiar os chinelos ou tamancos na sacola ou carregá-los nas mãos e enfrentar a lama e os atoleiros de pés descalços. Ao lado da escola descia um córrego no qual lavávamos os pés para então calçar os chinelos ou tamancos e entrar na escola e assistir à aula. Não poucas crianças dispensavam simplesmente qualquer tipo de calçado, lavavam os pés e participavam da aula descalças. Durante o inverno essas caminhadas pela lama e caminhos escorregadios tornavam-se ainda mais complicadas. No Morro da Manteiga são frequentes as geadas nos meses de junho, julho e agosto. Não raro formavam-se placas de gelo sobre as poças de água. Chegados perto da escola lavamos os pés com os dedos roxos pelo frio na água gelada do riacho para depois nos acomodar-mos no recinto da escola e passar mais uma manhã avançando mais um passo na alfabetização e na aquisição dos diversos conhecimentos indispensáveis para o sucesso na vida de adultos, fosse como colonos e colonas, fosse em outras profissões, fosse no continuar o estudo e formação em nível mais adiantado. Revelar essa realidade a pessoas de menos de 60 anos e, mais ainda, às crianças e adolescentes de 2024, soa como uma fantasia ou até como uma mentira. Podem-me acusar de mentiroso, não me importo e o entendo. Admito que seja difícil e até impossível imaginar o estado daquele caminho de mais de 80 anos atrás, hoje asfaltado, embora o traçado seja praticamente o mesmo. Hoje Vans ou ônibus escolares buscam as crianças na porta das casas e as devolvem depois das aulas. Embarcam calçando tênis de marca e devidamente abrigadas contra o frio do inverno. Que maravilhoso que os tempos transformaram o caminho para a escola num passeio prazeroso e nenhuma criança de hoje seja obrigada a assistir as aulas descalça, com os pés não poucas vezes machucados, roxos e tremendo de frio. E, contudo, seus olhos brilhavam de satisfação a cada letra que conseguiam escrever, a cada sílaba que aprendiam a ler, cada soma ou subtração, multiplicação ou divisão que logravam resolver e, finalmente o interiorizar dos valores familiares sociais, culturais e religiosos que lhes serviriam de norte para o resto da vida. Essas idas e voltas para a escola percorrendo descalço aquele caminho emblemático passando pelas roças de milho, feijão e mandioca e por duas manchas de mata virgem, numa uma gigantesca figueira do mato e um córrego cristalino, não foram apagadas da minha memória pelas décadas que passaram. Parece que foi ontem que, em companhia de uma dezena de meninos e meninas da vizinhança percorria aquela vereda hoje mascarada pelo asfalto, a sacola costurada pela mãe a tiracolo e dentro dela a lousa, o estilete, a indispensável merenda, o livro de leitura, o catecismo, os cadernos, o lápis e a caneta munida com uma pena “B12”. Não faltavam brincadeiras que, de vez em quando desandavam em desentendimentos mas, normalmente dentro dos limites esperáveis de crianças entre os 7 a 11 ou de 8 a 12 anos. Sempre havia o risco de numa correria ou num tombo a lousa quebrar na sacola o que infalivelmente terminava numa bela e sonora bronca ao voltar para casa. Não raro uma trovoada de verão nos surpreendia a meio caminho e voltávamos molhados que nem pintos para casa. Trocar a roupa encharcada e um chá quente de erva cidreira ou marcela, servia para espantar um possível resfriado.

Concluo com essas recordações a primeira etapa da minha longa trajetória subindo patamar por patamar, na minha formação profana e religiosa, pelo ensino médio, o bacharelado em Línguas e Literatura Clássica, bacharelado em Filosofia, bacharelado em História Natural e Geologia e, finalmente a Licenciatura em Teologia. Mais tarde, em 1976 conquistei o título de Livre Docente em Antropologia e o Doutor em Filosofia, seguido em 1988 com um estágio de Pós-doutorado na Université V, René Descartes” de Paris.

E, para concluir, chamo a atenção que a coroação do período escolar de 4 anos acontecia com a “comunhão solene”. Durante a semana depois da Páscoa os alunos que tinham concluído os 4 anos eram submetidos a uma imersão para valer no catecismo em preparação da “Comunhão Solene” no domingo da Pascoela. Esse acontecimento fazia parte das solenidades litúrgicasobrigatórias do ano. Eu, da minha parte, não participei desse evento que marcava o começo do engajamento em tempo integral nos afazeres diários entre os colonos, tanto para os meninos quanto para as meninas. Na ocasião já estudava como interno no colégio Santo Inácio em Salvador do Sul.

Da Enxada à Cátedra [ 14 ]

Falando agora em medidas repressivas cai em vista o fechamento puro e simples de 241 escolas embora o Interventor Federal Cordeiro de Farias afirmasse que mandou fechar apenas 90. A outra página negra escrita pela nacionalização ou “abrasileiramento” das escolas comunitárias foi a prisão de um número considerável de professores que, ou ignoraram as novas regras ou tentaram de alguma forma contorná-las. À prisão ou constrangimento policial de professores acresceu um episódio ainda mais escabroso pela forma como foi conduzido e executado e pela identidade e representatividade dos personagens e autoridades envolvidas: o fechamento das escolas normais formadores de professores para as escolas comunitárias, a de São Leopoldo dos protestantes e de Hamburgo Velho dos católicos. Já que minhas memórias tem a ver com a de Hamburgo Velho, foco minha memória nela. À história minuciosa dessa Escola Normal dediquei um capítulo da minha história da Escola Teuto-Brasileira a ser publicada. Pincei a passagem dessa publicação em que detalhei o episódio e as circunstâncias daquele 25 de julho de 1939. O Secretário da Educação e Saúde Pública, Dr. Coelho de Souza viajou para Novo Hamburgo acompanhado do Dr. Bonifácio Paranhos da Costa, diretor do Departamento da Saúde e da professora Olga Acauan Geyer, diretora da Instrução Pública do Estado. O Secretário e comitiva foram examinar o terreno no qual seria construído um grupo escolar. Assistiram também à solene instalação do centro de saúde e a inauguração de um consultório médico escolar. Concluídas as solenidades, o sr. Leopoldo Petry, presidente da Sociedade União Popular, mantenedora da Escola Normal, convidou o Secretário da Educação e sua comitiva para participarem das comemorações do Dia do Colono, organizadas pelo corpo docente e discente da Escola Normal. A bomba foi detonada pelo discurso proferido por um dos alunos, na presença do Secretário da Educação e Saúde Pública que assim registrou a sua ira em “Denúncia”, livro de sua autoria.

No decorrer de sua prolongada arenga, o improvisado tribuno teve a oportunidade de declarar que era necessário o culto das tradições germânicas, que nenhum alemão ou descendente de alemão deveria se afastar, um milímetro sequer, da língua e de seus antepassados. Acrescentou que todos deveriam, habitantes do Rio Grande do Sul ou de qualquer outro recanto do mundo, seguir os ensinamentos da grande Alemanha. Nesse tom o pequeno aluno da Escola Normal da Sociedade União Popular Católica de Novo Hamburgo, foi até o final do discurso que para ele prepararam. (Coelho de Souza, 1941, p. 113)

Coelho de Souza, como é compreensível, interpretou o discurso como declaração de rebeldia contra os decretos do Interventor do Estado, obrigando a escola e o ensino a se “abrasileirar”. Cometeu uma injustiça imperdoável ao jogar sem mais nem menos a responsabilidade do conteúdo nas costas do diretor da escola, o Pe. Miguel Meier. Os documentos provam que o Pe. Meier não teve conhecimento prévio do conteúdo do discurso na sua versão apresentada. Não foi uma omissão leviana da sua parte, mas uma infeliz ideia do prof. de português, Reinaldo Krauspenhar. O caráter de rebeldia às ordens e diretrizes da Secretaria de Educação foi exagerado além do razoável, por uma série de razões, entre as quais merecem destaque. Em primeiro lugar, foi a ocasião em que as tensões acumuladas há mais tempo entre o Secretário da Educação, a direção da Escola Normal, da Diretoria da Sociedade União Popular e do arcebispo D. João Becker chegaram ao limite crítico e terminaram numa ruidosa explosão. Em segundo lugar, a importância do episódio foi exagerada, pintado com cores carregadas de animosidade e deturpado em detalhes essenciais. Não ficou claro se foi produto da inabilidade dos jornalistas, da irresponsabilidade ou de má fé. Nas circunstâncias tumultuadas de então, em meio à guerra declarada em que o episódio foi tratado e outros motivos isolados ou combinados, devem ter contribuído para o desfecho nada conciliatório do problema.

De qualquer maneira, o infeliz episódio teve desdobramentos imediatos e culminaria com o fechamento da Escola Normal. O Secretário respondeu ao aluno orador com um improviso raivoso, deixando claro que a linha defendida pelo discurso jamais seria tolerada pelas autoridades do Estado. Nas entrelinhas do improviso ficou evidente que a represália não se esgotara com a fala do momento. E, de fato, o primeiro passo foi um encontro com o Interventor Cordeiro de Farias. Oficialmente nada transpareceu do que foi falado e decidido. Tomando-se, porém, como base a sequência dos fatos é lícito concluir que uma parte da conversa versou sobre a conquista do Arcebispo como aliado para, de vez, neutralizar o foco de resistência à implantação da Nacionalização do ensino, representado pela Escola Normal, uma vez que ela formava os professores para as escolas comunitárias. A confirmação da suspeita veio com o encontro do Secretário Coelho de Souza, ainda na mesma noite, com D. João Becker. Os acertos na calada da noite, entre o Secretário e o Arcebispo foram resumidos numa matéria do Diário de Notícias. O jornal referiu que no encontro D. João Becker condenou com veemência o episódio ocorrido na Escola Normal; que ainda no decorrer daquela semana tomaria importantes medidas e baixaria severas instruções endereçadas ao clero sob sua jurisdição, com a finalidade de colaborar com o projeto de nacionalização posto e conduzido pelo poder público.

Parece que aqui cabe um inciso para chamar a atenção sobre a repercussão negativa da Campanha de Nacionalização sobre a própria religiosidade das comunidades como um todo no interior colonial. As instruções baixadas pelo arcebispo a seu clero, fruto dessa colaboração espúria com os instrumentos políticos a serviço de um Estado declaradamente autoritário e ditatorial, atingiram em cheio a instrução religiosa das crianças e adolescentes e a realimentação religiosa dos adultos e pessoas de idade. Com a proibição da língua alemã nas escolas a catequese das crianças migrou quase como que para a clandestinidade das catacumbas, no caso, para as capelas ou ainda casas particulares. Os sermões, palestras e encontros com a finalidade de cultivar os valores religiosos e a piedade das pessoas, foram proibidos sob a ameaça de intervenção policial. Parecem inacreditáveis fatos que aconteceram na igreja paroquial da minha comunidade em Tupandi. A polícia ficava rondando as proximidades da entrada da igreja e as pessoas assustadas e mudas entrando para assistir a missa e depois dela, também mudos e apressados voltar o mais rapidamente possível para as suas casas. Lembro-me de um domingo quando dois policiais invadiram a igreja durante a missa e recolheram os livros de reza em língua alemã inclusive de senhoras de idade. Quando uma delas reagiu ameaçando o policial com o chinelo, por pouco prenderam essa senhora de 70 ou mais anos. Ficaram para trás os alegres encontros de homens, rapazes, mulheres e moças em frente à igreja antes do começo da missa, para conversarem e porem em dia as novidades, contarem piadas e até combinar negócios. Acontece que a adesão à onda da nacionalização, do “abrasileiramento”, incentivada peloarcebispo, terminou contaminando também a maioria dos jesuítas nascidos no Brasil, já em atividade, mas principalmente aqueles em vias de formação. Note-se que, como Ordem isenta, não devia obediência às determinações da autoridade eclesiástica local. Lembro-me do depoimento escrito de um deles que declarou que era preciso tomar o lugar da “velha guarda” dos jesuítas alemães, deixar para trás a sua herança no nível sociocultural e alinhar o passo com a onda do “abrasileiramento”. Por estranho que possa parecer, contavam com o apoio do superior provincial nascido na Suíça.

Depois desse inciso voltemos aos desdobramentos envolvendo a Escola Normal de Hamburgo Velho. Como primeira providência foi instaurado um inquérito na Escola e sua efetuação confiada ao Dr. Ney Brito. Pelo que se pode deduzir o inquérito não revelou novidades importantes. “grande volume de material suspeito” de que falou a Folha da Tarde não passou de um exagero de imaginação pois, encontraram quatro números de uma revista alemã ilustrada nem disponível aos alunos. O Dr. Ney Brito simplesmente negou ao Pe. Miguel Meier explicações de defesa. Escolheu a dedo 4 alunos dos mais de 30 que frequentavam a Escola Normal para deporem. Tudo indica que o inquérito foi montado e conduzido para provar que a Escola Normal na verdade não passava de um foco de resistência ao projeto de nacionalização. A sentença do Secretário da Educação foi draconiana. Em primeiro lugar demitiu o Diretor Pe. Miguel Meier proibindo sua permanência na Escola. Em segundo lugar excluiu do corpo docente o prof. Krauspenhar e entregou seu destino à polícia, isto é, acusou-o de crime contra ordem pública. No meu entendimento o maior injustiçado nesse episódio foi o Pe. Miguel Meier, o “Pe. Miguelinho” como o chamávamos carinhosamenteentre os que o admiravam como especialista em pedagogia. Por exigência de D. João Becker foi, por assim dizer mandado para o exílio no Seminário Menor de Cerro Largo pertencente à diocese de Uruguaiana. O Secretário da Educação reforçou a validade de suas decisões com um argumento digno de reflexão para as circunstâncias em que hoje mais de 80 anos passados. Os demais detalhes e o lamentável fim da Escola Normal de Hamburgo Velho, parte de um projeto educacional que de fato educou e formou cidadãos comprometidos com a construção de uma Nação próspera fundamentada nos valores humanos e perenes que perpassam como linha mestra, como “Leitmotiv”, como perene, a história da humanidade, podem ser encontrados no meu estudo sobre a Escola Teuto-Brasileira, já mencionado mais acima e das análises criteriosas da profa. Isabel Arendt, sobre o mesmo tema.

Depois dessa digressão volto para a minha escola como todas demais atingidas em cheio pela arbitrariedade das autoridades responsáveis pela educação do Estado. Resumindo, nos dois primeiros anos aprendi a ler e a escrever de cordo com o figurino tradicional dessa escola. Durante o terceiro e o quarto ano fui obrigado, como todos os meus colegas a, por assim dizer, a reaprender a ler e a escrever segundo a nova cartilha imposta pelo “abrasileiramento”. O resultado não podia ser outro. Escrevia bem valendo-me da escrita gótica (Süterlin) além de ler fluentemente os livros impressos em gótico. A partir do terceiro ano aprendi a escrever com caracteres latinos, rudimentos da língua portuguesa, mas não ao ponto de me comunicar sofrivelmente e com dificuldade de entender a leitura de livros e impressos em geral. Os conhecimentos de geografia, história e estudo da natureza, que sempre foram áreas de minha preferência, estagnaram num nível bem abaixo do esperado dos egressos da escola tradicional. Em outras palavras. Conclui os quatro anos num nível um pouco acima da alfabetização. Essa realidade pouco animadora acompanhada por prejuízos difíceis de avaliar marcou negativamente a geração em idade escolar entre 1938 e 1945. Sem os jornais, revistas, almanaques, bibliotecas paroquiais, homilias, encontros culturais e por aí vai, interrompeu-se o fluxo da realimentação das tradições e a perpetuação do nível cultural dos pais e avós. Lamentavelmente a geração responsável pela perpetuação de uma herança comunitária rica e dinâmica da primeira metade do século XX terminou nas mãos de uma geração de analfabetos funcionais, com uma visão do mundo que não ultrapassava os limites dos interesses básicos das necessidades quotidianas.

Da Enxada à Cátedra [ 13 ]

A Nacionalização da Escola Comunitária.

Mas, a gloriosa e meritosa história da Escola Comunitária foi truncada bem no meio do período em que eu a frequentei 1938-1941. Como já lembrei mais acima, aprendi a ler, escrever, as lições do catecismo, a introdução à aritmética, ao cálculo, à história e geografia e os rudimentos de história natural, nos dois primeiros anos. Acontece que, a partir do final da Primeira Guerra Mundial, uma onda de nacionalismo começou a tomar corpo e terminou num furacão que tomou conta da Europa e terminou por contaminar também o Brasil. Conceitos como germanidade na Alemanha, italianidade na Itália, lusitanidade em Portugal, hispanidade na Espanha e semelhantes, levaram a governos autoritários e centralizadores e, em não poucos casos, a ditaduras sangrentas. Abriram o caminho para uma Segunda Guerra Mundial. O Brasil entrou ostensivamente nessa dinâmica a partir do começo da década de 1920. O momento definidor dessa tomada de rumo deve ser procurado na “Semana de Arte Moderna” acontecida no Teatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Deste evento e demais comemorações do centenário da Independência do Brasil, foi tomando forma na consciência nacional a palavra de ordem “abrasileirar” para consolidar a “brasilidade”. Não cabe aqui uma análise mais detalhada do potencial de tensões, traumas, violências, animosidades desencadeadas ao ser imposto como meta e modelo pelo Estado Novo decretado em novembro de 1937, valendo-se de todos os meios de que o aparelho do Estado dispunha. Para maiores informações do que foi a Campanha de Nacionalização recomendo os anais do X Simpósio de Imigração e Colonização Alemã, do Instituto Histórico de São Leopoldo, de setembro de 1994. Especificamente no que se refere à Ação Policial mobilizada para a implantação coercitiva do “abrasileiramento”, chamo a atenção ao capítulo: “Nacionalização e Ação Policial no Estado Novo” do livro Flagrantes dos 200 anos da imigração no sul do Brasil”, da minha autoria e edição da Editora Oikos

No contexto em que estou recordando e refletindo limito-me a focar a Escola e a Educação nas comunidades do interior colonial, com destaque para as alemãs tanto católicas, quanto protestantes. Só no Rio Grande do Sul funcionavam em 1937 mais de mil dessas escolas, coordenadas e supervisionadas pelas associações dos professores das duas confissões. Nos registros que constam nos documentos das decisões tomadas pela Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul” - (para os protestantes no essencial a linha de decisões foi a mesma) – percebe-se um esforço crescente em “nacionalizar” gradativamente as escolas sob sua jurisdição. O “nacionalizar” significava emprestar uma crescente importância à língua e às realidades brasileiras: geografia do Brasil, história do Brasil, a diversidade de etnias, costumes, funcionamento das instituições políticas, o potencial econômico e, por aí vai. Como objetivo constava substituir o alemão como língua de ensino pelo português e a escrita manuscrita gótica (Süterlin), pela latina, porém, de maneira gradual sem risco de um salto dramático e contraproducente, obedecendo à dinâmica antropológica e histórica, que por sua natureza se consolida a médio e longo prazo.

A nacionalização, melhor o “abrasileiramento” das escolas comunitárias do interior colonial começou a ser posto em prática a partir do decreto federal No 406 de maio de 1939 pois, estas pareciam oferecer um dos maiores empecilhos para o êxito da campanha de nacionalização. Em resumo o decreto obrigava que o material didático fosse em português; que os professores e diretores fossem brasileiros natos; que nenhum impresso, revista, livros, jornais, almanaques em língua estrangeira, circulasse no interior colonial; que se desse uma importância toda especial ao ensino da “História e Geografia Pátria”, como se costumava chamar esses conteúdos; que as línguas estrangeiras fossem ensinadas somente a maiores de 14 anos; que se celebrassem com programações especiais as datas nacionais mais significativas e nelas a bandeira nacional ocupasse o centro das atenções. Em 10 de dezembro de 1939 foi editado outro decreto de abrangência nacional que obrigava o Ministério da Educação a proceder uma varredura em todo material escolar usado no ensino elementar (o fundamental de hoje) e do ensino médio. O decreto, também de abrangência nacional, mais devastador data de 25 de agosto de 1939. Previa que os secretários de educação dos estados mandassem construir e manter escolas em regiões de colonização “estrangeira”; que estimulassem o patriotismo nos estudantes; que intensificassem o estudo da “história e geografia pátria”; que fiscalizassem a língua usada nas escolas; quedispensassem todos os professores nascidos fora do Brasil, “não nacionais”, como costumavam ser rotulados com forte viés discriminatório e suspeição de espionagem e traição; que em reuniões e assembleias somente o português poderia ser a língua que entrava em questão; que a educação física nos estabelecimento de ensino médio fosse confiado a um oficial ou sargento indicado pelo comando militar da região.

Mais decretos federais e estaduais foram cercando e constrangendo. Em não poucos momentos terminaram em tortura, confinamento, trabalhos forçados e mortes decorrentes desses tratamentos. O decreto no 2.072 de 1940 criou a Organização da Juventude Brasileira, obrigatória em todas as escolas e tornou obrigatória a educação física como instrumento do nivelamento das diferenças étnicas por meio de exercícios em comum. Seguiu o decreto, também federal No 3.580, de 3 de fevereiro de 1941 proibia a importação e impressão em território nacional de livros de texto em língua estrangeira, endereçados ao ensino elementar. Até aqui os decretos federais válidos para todo o País.

Neste contexto cada estado impunha a sua versão regional do “abrasileiramento”. No Rio Grande do Sul a legislação, a regulamentação e a implantação do processo acompanhado de indisfarçáveis práticas repressivas, impactou em cheio nos resultados da minha formação elementar e de toda a geração de crianças que frequentavam as mais de mil escolas católicas e protestantes no Rio Grande do Sul. O clima desandou para uma viés mais policial do que pedagógico, com inspetores destacados pela Secretaria da Educação do Estado, infernizando a vida dos professores e alunos com suas frequentes e inesperadas vistas. Aqui não posso deixar de fazer justiça ao inspetor Sauthier pela sua postura objetiva, decente e construtiva, nas visitas que fazia periodicamente à escola do Morro da Manteiga. Meu professor, José Brandt, formado na escola normal de Estrela, foi de uma habilidade difícil de conceituar, num momento histórico de uma complexidade, de embates, conflitos, verdadeiros tsunamis em busca da hegemonia do poder mundial. Este professor, por sinal primo irmão do meu pai, poderia servir de exemplo a uma legião de pedagogos modernosos erráticos, formados na sopa pedagógica indigesta com componentes marxistas, gramscistas, da Escola de Frankfurt, da Escola Nova, Piaget, Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, Chomsky e por aí, que levaram a educação do nosso País a um nível deplorável (estou falando das duas primeiras décadas do século XXI). Numa escola de classe única e, para o espanto e a ira da pedagogia de hoje, confessional, comunitária e legitimada pela família, esse professor mostrou-se um autêntico estrategista, envolvido num turbilhão de contradições, foi capaz de consolidar em nós, filhos de colonos, os valores que de fato fazem a diferença no comportamento humano, isto é, os valores perenes que perpassam a história humana tanto na dimensão sincrônica quanto diacrónica. Do alto dos meus noventa e quatro anos, presto minha homenagem póstuma, oitenta anos depois, a esse perfil de mestre que tanta falta faz hoje. A um grande número de pedagogos e professores de hoje só preocupa o agora, o hoje e nem estão se lixando com o berço histórico que os embalou e lhes deu a razão de ser como protagonistas da história que flui como um rio, com o curso marcado por cachoeiras, cascatas, corredeiras e remansos, para terminar no “imenso mar do belo”, como ensina o pai Homero. Que fique bem claro. Não estou movido por veleidades românticas para propor o retorno àquele paradigma de escola. Falo, obrigado pela gratidão pela importância que teve na minha vida posterior e para alertar que em momentos históricos em que perdemos a consciência do que fomos e, ao mesmo tempo do que não fomos para, sobre esse fundamento, planejarmos a realidade presente e assim projetar o futuro. As experiências do passado muito bem podem servir de inspiração de como agir no presente e preparar o presente e o futuro dos nossos filhos e netos.

E, para não restar dúvida sobre os métodos e medidas de que se valeram os idealizadores e os executores da nacionalização das escolas, ofereço alguns dados que constam no livro “Denúncia” da autoria do Secretário da Educação do Rio Grande do Sul naquele período, Coelho de Souza. De acordo com o Secretário, a ação nacionalizadora valia-se de dois conjuntos de ação: uma preventiva e outra repressiva. A primeira categoria contemplava medidas preventivas extra escolares e medidas preventivas escolares. Na primeira categoria constavam: caravanas nacionalistas percorrendo o Estado promovendo a comemoração de datas cívicas; parada da juventude no dia 7 de setembro; caravanas de “coloninhos” ou “gauchinhos”. Foram previstas caravanas anuais levando 500 crianças para permanecerem por 7 dias na capital, participando das comemorações cívicas e assim viverem concretamente um ambiente de “brasilidade”. Eu pessoalmente, como nenhum dos meus colegas da minha escola foi contemplado com essa “imersão na brasilidade”. No calendário escolar entrou também a “Educação Cívica”, como disciplina obrigatória para que, na afirmação de Coelho de Souza, fazer com que as novas gerações do Rio Grande do Sul respirassem um ambiente saturado de “brasilidade”, insistindo no primado da cultura brasileira sobre todas as demais. Entre as medidas preventivas extra curriculares, além da expansão da rede escolar pública, da nomeação de professores públicos, constava uma vigilância draconiana sobre as escolas particulares em geral, confiado a um corpo de delegados regionais, inspetores das escolas e orientadores técnicos. Oficialmente foram credenciados cerca de 1.280 professores mas, de acordo com dados não oficiais somente 148 foram alocados em distritos do interior colonial. Os demais supõe-se, terminaram por ocupar seus postos em escolas nos centros urbanos. Com a nomeação de professoras públicas em escolas na região colonial criou-se um problema adicional. Com sua formação, educação, costumes, hábitos e valores urbanos somados à tarefa de “abrasileirar”, eram vistas pelos colonos como intrusas e consequentemente mal aceitas no convívio comunal. Dessa forma essas professoras sentiam-se como aves fora do ninho não só no convívio social com também na própria atividade como professoras dos filhos dos colonos. Por essas e outras razões ser professora nessas condições não atendia a uma missão a ser cumprida mas a uma tarefa ingrata da qual eram obrigadas a dar conta. Fins de semana e/ou qualquer outro pretexto valia para voltarem à cidade e passarem um ou mais dias longe do seu trabalho e do ambiente social hostil.

Da Enxada à Cátedra [ 12 ]

Currículo

Seguindo, dou uma ideia muito resumida do currículo executado na escola comunitária e com isso deixar claro que tipos de conhecimentos e qual o nível de formação que as comunidades do interior colonial esperavam que as novas gerações levassem para a vida. Não me alongo em detalhes pois, esses poderão ser encontrados no livro: “A Escola Comunitária Teuto-Brasileira”, acima lembrada. Vamos ao currículo. Sua composição constava de 5 grandes áreas: Religião – Língua – Aritmética e Cálculo – Realia – Canto. Resumindo agora os conteúdos: O ensino da Religião dividia-se em duas grandes áreas: o Catecismo e a História Sagrada, isto é, o Antigo e novo Testamento. O ensino da língua dividia-se em duas grandes áreas: o ensino da língua alemã e a portuguesa. Como o ensino se dava em língua alemã e o português figurava como disciplina curricular limitava-se a uma iniciação dessa língua já que as crianças do interior colonial de 90 anos passados só falavam e entendiam o alemão. Toda apropriação dos conhecimentos necessários para a vida prática costumavam ser ministrados na língua alemã. Para tanto dava-se uma importância especial ao aprendizado e fluidez da Leitura - Memorização - Gramática e Ortografia - Caligrafia - Composição (redigir cartas, e outros tipos de documentos). O complexo Aritmética e Cálculo compreendia evidentemente as 4 operações básicas - Raiz quadrada – Prova dos noves fora – Regra de três - Equações – Cálculos de juros, de superfícies, pesos e volumes. As crianças decoravam a pequena e grande tabuada. O professor costumava ser recebido em pé antes de começar a aula com recitação da Pequena Tabuada pelos alunos das duas primeiras séries e a Grande Tabuada pelos da terceira e quarta série. O grupo de conteúdos sob o título “Realia”, do latim “Realidades” incluía a Geografia, História, Estudos da Natureza, Elementos de História Natural. E o quinto conteúdo básico ocupava com ensino da “Música com ‘ênfase para o “Canto”.

A Religião.
Em se tratando de uma escola confessional, no caso católica, a Religião ocupava um lugar de destaque no currículo e na sua execução, porque, em primeiro lugar, nela a pessoa encontra a verdadeira felicidade e, em segundo lugar, porque a sociedade humana fundamenta-se, em último análise, na religião. A partir desses pressupostos previam-se para o ensino da religião duas finalidades principais. Em primeiro lugar, iniciar as crianças nos princípios doutrinários e disciplinares da religião, para servirem de orientação para o cumprimento dos deveres humanos e cristãos de forma consciente e convicta. Em segundo lugar, munir as crianças com os conhecimentos religiosos ao ponto de, mais tarde, estarem em condições de acompanhar e entender as instruções religiosas, as pregações e a reta compreensão dos livros de reza e leituras de conteúdo piedoso, além de serem capazes de não se deixar enganar pelos ataques à religião, evidentemente no nível apologético popular, não no nível mais elevado como o filosófico ou teológico.

O ensino religioso ocupava-se com dois temas: A História Sagrada do Antigo e Novo Testamento e o Catecismo. No ensino da Sagrada Escritura ministrava-se em cada ano um conteúdo formando um todo. As narrações do Novo Testamento corriam paralelas ao calendário litúrgico do ano do Advento à Páscoa. Nas duas primeiras séries as crianças familiarizavam-se com o Antigo e o Novo Testamento e na terceira e quarta série esses conteúdos eram aprofundados. Como suporte didático constava a Bíblia além de uma coleção de quadros representando cenas de maior significado. O ensino do Catecismo e da História Sagrada seguia toda uma dinâmica pedagógica de aprofundamento ascendente desde a primeira até a quarta série. Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo nesse processo. Quem tiver interesse em mais detalhes recomendo a publicação do livro sobre a Escola Comunitária referido acima.

Ao aprendizado formal da doutrina católica pelo Catecismo e da História Sagrada do Antigo e do Novo Testamento, somava-se o aprendizado e a prática das Orações. No Catecismo e na Sagrada Escritura as orações a serem aprendidas seguiam uma dinâmica de complexidade ascendente da primeira até quarta série. Para a primeira série a programação previa: o sinal da cruz, o Pai Nosso, o Angelus, a oração da manhã, da noite, a oração ao Anjo da Guarda, a bênção da noite, o credo, os dez mandamentos, os sete sacramentos, o Glória ao Pai e a oração pelas almas. Para o segundo ano: os cinco mandamentos da Igreja, os quinze mistérios do Rosário, as quatro verdades últimas, o maior dos mandamentos, os sete pecados capitais, as três virtudes cardeais (fé, esperança e caridade), penitência e bom propósito, oração antes e depois da confissão, oração antes e depois da refeição. Para o terceiro ano constavam as oito bem aventuranças, as obras de caridade propostas pela bíblia e obras de caridade espirituais, a oração Salve Regina, a oração Memorare, a oração Sob Tua Proteção, os bons propósitos, os pecados contra o Espírito Santo. Para o quarto estavam previstos uma oração à Sagrada Família, a São José, oração para a quinta- feira, uma oração e memória da morte Cristo para sexta-feira, uma oração ao Sagrado Coração de Jesus, uma oração lembrando as cinco chagas, uma oração para todas as horas do dia, a prática da comunhão espiritual, expressas numa frase que podiam ser repetidas, a qualquer hora, mesmo trabalhando e, por fim alguns cantos religiosos tirados de algum livro. E, para complementar e consolidar a religiosidade somadas às práticas religiosas contava em primeiro lugar a assistência à missa nos domingos e dias santificados, três confissões por ano e quando adultos pelo menos uma confissão anual no período litúrgico da Páscoa que incluía a Quaresma, a Páscoa propriamente dita, e terminava na celebração da ascensão de Cristo, 50 dias depois da Páscoa. A instrução religiosa sistemática e intensiva resultou na prática em pessoas e comunidades em que os valores assimilados como crianças nos quatro anos obrigatórios da frequência da escolar, serviam de baliza e norte do comportamento individual, familiar e moldavam o perfil das próprias comunidades. Em resumo. Moldou o personagem dos homens, mulheres, jovens e adultos cuja vida, como já lembramos em outros momentos, resumia-se em percorrer dois caminhos: o diário de ida e volta à roça e o semanal de ida e volta à a igreja. Além desses dois caminhos é evidente que havia outros complementares e sem os quais uma autêntica comunidade não estaria completa, como visitas aos vizinhos e parentes, os rapazes solteiros visitando as namoradas e noivas nos domingos, os bailes nas datas importantes das comunidades, (os Kerb no meu caso), as visitas de solidariedade em momentos difíceis, mortes enfermidades e outros mais, aos vizinhos e parentes, etc., etc. Ao escrever essas lembranças com meus 94 anos tenho plena consciência e compreendo que toda essa insistência na formação religiosa na década de 1930, não deixa de causar arrepios espanto em 2024. Num momento em que a laicização da educação, por assim dizer, marca o passo para os conteúdos curriculares e na prática pedagógica, não há mais lugar para insistir no ensino religioso, embora ainda se façam ouvir vozes que reclamam espaço para tanto nas escolas. Aqui não é o lugar para entrar nessa polêmica pois, a minha intenção se resume em mostrar como o ensino religioso foi um dos instrumentos mais poderosos que marcaram o perfil das cinco ou seis primeiras gerações dos descendentes dos imigrantes alemães no sul do Brasil e, a seu modo, também dos descendentes dos italianos, poloneses e outra vertentes étnicas vindas da Europa central e do norte durante o século XIX e começos do século XX.

A Língua alemã

Como já lembrei ao apresentar o esboço do currículo da escola comunitária, a língua alemã continuava como língua de ensino e o ensino do português como obrigatório a partir do terceiro ano. Comecemos pelo ensino da língua alemã. A alfabetização nessa língua iniciava evidentemente com o aprendizado da escrita e da leitura. Na escrita usava-se o sistema “Süterlin”, mais conhecido com escrita gótica. O aprendizado da língua alemã compreendia 5 conteúdos básicos: Leitura – Memorização – Composição – Ortografia - Caligrafia. A dinâmica do ensino da língua obedecia às peculiaridades do nível do ano em que a criança se encontrava. De qualquer maneira, o objetivo final resumia-se em: ler e escrever corretamente - reproduzir corretamente o entendido por palavras e/ou por escrito – familiarização com as regras da língua indispensáveis para uma correta interpretação e redação – A intelecção dos conteúdos tanto pela leitura quanto ouvindo outros falarem. Como se pode perceber o aprendizado visava a perfeita compreensão e o manejo correto da língua escrita e falada.

O caminho a percorrer para chegar a esse nível previa, no que se referia à leituraque as crianças chegassem no final do primeiro ano reconhecendo e distinguindo os conjunto de sons da língua alemã e, ao mesmo tempo fossem capazes de reproduzir e combinar os caracteres escritos e ler os caracteres impressos; que, ainda no final do primeiro ano, estivessem em condições de ler palavras e frases simples da língua alemã, tanto manuscritas quanto impressas. - Para o segundo previa-se o aprendizado dos caracteres latinos impressos. Neste ano, a par da leitura correta dos sons, insistia-se gradativamente na leitura de acordo com o sentido, com o propósito de que no final daquele ano os alunos fossem capazes de ler, observando a pontuação nos vocábulos e nas frases redigidas tanto em caracteres góticos quanto latinos. - No terceiro e no quarto anos os exercícios aconteciam em conjunto. Insistia-se de modo especial na pronúncia correta e na leitura conforme o sentido, com insistência especial na fluência da leitura evitando a “toada escolar”. Ao professor recomendava-se leitura de textos mais longos seguidos de comentários e explicações sobre o conteúdo.

Memorização.

Para a memorização entravam em questão textos versando sobre qualquer tipo de conteúdo: religião, história sagrada, catecismo, orações e outras mais. Havia contudo, uma preferência por poesias próprias para a declamação, textos literários ricos em sentidos e ensinamentos de todos os tipos. Na prática, o procedimento resumia-se em fixar a poesia ou o trecho de leitura escolhido, insistindo na compreensão do que foi fixado na memória. Recorria-se também à técnica de converter poesias em prosa, treinar a entonação das estrofes. No primeiro ano as crianças memorizavam provérbios e pelo fim do ano pequenas poesias. Do segundo ao quarto ano memorizavam-se textos mais amplos e selecionados, apresentados em viva voz de forma espontânea, com entonação correta e agradável e sem afetação. A finalidade da memorização, portanto, resumia-se na reprodução e na apresentação de trechos escolhidos em diversas áreas do currículo. Pela sua natureza não constava um horário ou espaço específico na programação semanal das atividades pois, permeava todas as demais disciplinas e tinha como finalidade principal o correto uso da língua com apropriação de um fraseado de bom nível, versatilidade no manejo da língua e interiorização de conteúdos úteis para a formação de uma mentalidade sadia.

Composição.

A composição visava capacitar os alunos a redigirem de forma coerente, clareza de ideias e de forma correta o que lhes era ensinado nos diversos conteúdos da programação como língua, realidades relativas ao dia a dia, história sagrada, história e geografia. Durante o primeiro ano não se faziam composições propriamente ditas. A escrita e a leitura praticadas combinadas ocupavam a maior parte do tempo. As crianças aprendiam também a conversão da escrita impressa em manuscrita. Ensaiavam-se pequenas composições que serviam de ponte para composições propriamente ditas.

No segundo ano supunha-se que os alunos tivessem superado a fase da mera cópia do livro. Contudo treinava-se ainda a cópia, porém, na conversão da letra latina impressa para a grafia alemã manuscrita. Além disso, davam-se os primeiros passos na composição propriamente dita. Os primeiros exercícios nesse nível consistiam em descrições simples de animais e plantas. Os enfoques contemplavam de preferência abordagens que favoreciam a consolidação da cosmovisão. Dava-se uma importância toda especial ao conteúdo, ao estilo, à pontuação e à ortografia. Para orientar a composição palavras chave eram escritas no quadro negro como, por ex., o cavalo: um animal doméstico, belo, útil, que puxa, carrega, alimenta, não judiar. Num segundo momento as crianças aprendiam como cada palavra tinha um lugar específico na frase. A composição orientava-se por um modelo muito simples, porém, eficiente, como: o cavalo puxa a carroça; o cavalo é um animal doméstico; o cavalo é um belo animal; o cavalo é muito útil; o cavalo carrega o cavaleiro; o cavalo tem que ser bem alimentado; não se deve judiar o cavalo... Vocábulos mais difíceis também eram escritos no quadro, por ex., arado, cavaleiro. Uma vez redigida a composição, apagavam-se as palavras no quadro e repetia-se a escrita de memória. Finalmente a redação de memória era dada como tema de casa, podendo servir para o professor avaliar a proficiência do seu ensino.

No decorrer do terceiro ano, ao lado das descrições, ensaiavam-se narrações breves e fáceis. Usava-se a mesma técnica da primeira e segunda série. Nesse nível já se exigia o uso correto dos dois pontos e as aspas, quando de discurso direto. No quarto ano avançava-se com os temas mais diversos. Treinava-se a redação de cartas, redação de correspondência comercial entre outros. Insistia-se em frases curtas, simples e claras. Os alunos escreviam no caderno todos os meses uma composição sem rasuras, datada e numerada. O asseio e a limpeza faziam parte obrigatória dessas composições. Ao corrigir os temas, o professor apenas assinalava os erros pois, a correção cabia ao próprio aluno.

Ortografia.
A ortografia não era tratada como uma disciplina autônoma. As outras disciplinas forneciam a

base para o aprendizado e a prática de uma ortografia correta. Pela leitura exercitavam-se os ouvidos e olhos. A língua fornecia o suporte teórico, traduzido na prática pela composição. Durante o primeiro ano exercitava-se a redação das palavras de ortografia mais simples e fácil. Durante o segundo ano insistia-se na distinção dos principais adjetivos e verbos, entre consoantes suaves e ásperas. No terceiro e quarto anos treinava-se o emprego da pontuação: ponto, vírgula, dois pontos, sinal de interrogação e exclamação. Para fixar melhor a ortografia recomendava-se reunir vocábulos da mesma fonia. Recomendava-se ainda que a matéria decorada por ex., do catecismo fosse escrita somada a breves ditados.

Caligrafia.

Naquela época dava-se uma importância muito grande à caligrafia pois, a correspondência, e demais documentos eram todos redigidos à mão. Por isso ter “uma boa mão” como se dizia, fazia parte da bagagem das pessoas do nível de formação que se esperava da escola e do professor. A tarefa da caligrafia resumia-se, portanto, em que os alunos se apropriassem de uma escrita vigorosa, fluente e de agradável e fácil leitura. Nos três primeiros anos treinava-se a caligrafia ou com linhas duplas traçadas na lousa ou em cadernos com linhas duplas. As linhas simples começavam a ser usadas apenas no quarto ano. Valia o princípio que quanto menos adiantado o aluno maior a distância entre as linhas. Os principiantes treinavam a caligrafia nas lousas com uma distância grande entre as linhas. Na medida em que avançavam para o segundo e o terceiro ano o espaço entre as linhas diminuía e no quarto ano passava-se para as linhas simples. Paralelamente ao treino da caligrafia dava-se uma grande importância, principalmente nos dois primeiros anos, à uma postura correta do corpo, distância do rosto da lousa ou caderno de cerca de um palmo, forma correta de segurar o estilete, o lápis ou a caneta. No primeiro ano usava-se exclusivamente a lousa e o estilete. No segundo ano passava-se para o uso de cadernos, caneta e tinteiro.

A língua Portuguesa

A língua portuguesa começava a ser ensinada no terceiro ano e ministrada tendo como suporte o livro “Sabe falar Português? O ensino do vernáculo consistia em exercícios de leitura, de escrita, de tradução, de conversação se possível com o objetivo para preparar a base para um futuro aprendizado para valer da língua nacional. O resultado dependia muito das circunstâncias e características das comunidades às quais cada escola servia.

Aritmética e Cálculo.

A aritmética e o cálculo completavam o trio de matérias centrais do currículo da escola comunitária, em pareceria com a religião e a língua. Durante o primeiro ano as crianças familiarizavam-se com as relações básicas entre os números e seu manejo de 1-10, mais a soma e substração nos limites da primeira dezena, contato com os números de 10-100, adição e substração com números pares de 10-100 e o exercício da pequena tabuada. Durante o segundo ano consolidava-se a pequena tabuada e partia-se para o cálculo escrito compreendendo as quatro operações fundamentais e ampliava-se o espetro dos números até milhões, começava-se a iniciação da multiplicação e divisão com multiplicadores e divisores compostos. No terceiro ano avançava-se com o cálculo de números dados, com sistemas métricos, pesos, medidas, sistema monetário com ênfase na sua aplicação prática. E no decorrer do quarto ano aprofundavam-se os cálculos mais complexos, incluindo o cálculo decimal, frações e formas mais simples de cálculo de juros.

Realia -Realidades

Realidades (do latim Realia, isto é, fatos objetivos, coisas reais). Na programação escolar da época compreendiam a história, a geografia e conhecimentos básicos das ciências naturais. A essa disciplina, além de sua utilidade prática no dia a dia cabia o papel de despertar e consolidar nos alunos uma cosmovisão (Anschauungsunterricht) em relação à sua inserção na natureza, na sociedade, na comunidade local, regional, nacional e internacional. Em outras palavras. Pretendia- se despertar nas crianças a consciência da relação dos fatos que as rodeavam, a relação entre elas e o homem, auxilia-las a se apropriarem de ideias claras em relação aos fatos objetivos e levá-las a se expressar e escrever corretamente sobre elas. O objetivo primeiro consistia em alerta sobre a importância das realidades com que conviviam no dia a dia como a escola, o lar, os animais domésticos, o lugar de moradia, o jardim, a roça, a mata, a água, a terra, o ar, o firmamento, o homem e outras mais. Esses conhecimentos terminavam por chamar a atenção para o pertencimento das pessoas a um lugar, uma família, uma comunidade local, uma comunidade regional e uma comunidade nacional, associada aos deveres e compromissos inerentes a cada um desses níveis de pertencimento. A lógica que fazia com que essa conscientização fosse tão importante para os responsáveis pela inclusão desses conteúdos na programação, pode ser resumida nos seguintes termos: uma criança comprometida com seu lar, sua escola, seu chão, sua comunidade, leva tudo para a vida para ser um bom cidadão, quando se trata de cumprir os deveres civis. Para ser um bom cidadão pressupõe-se que a pessoa cultive os valores e cumpra com as obrigações em todos esses níveis. De outra parte a disciplina em pauta ocupava um lugar determinante para deitar raízes existenciais que acompanhariam as crianças para o restante da vida, partissem para onde quer que fosse, numa “Heimat”, numa “Querência, conceito tão familiar e tão caro aos imigrantes alemães e seus descendentes. A introdução nesses conhecimentos começava no terceiro ano e o espaço a ele reservado ocupava meia hora por semana. O aprofundamento e a ampliação desses conhecimentos ficava a cargo das leituras que versavamsobre eles no famoso “Grünes Lesebuch” (Livro Verde de Leitura).

A disciplina “Realia” trabalhava um outro conteúdo de fundamental importância para as crianças das comunidades do interior colonial: a familiarização com o seu entorno natural, seu habitat, o seu significado para a sua subsistência física e, de modo especial, sobre o seu pertencimento ao mundo e a partir dai a moldagem da sua cosmovisão. Em outro momento já me demorei ao insistir no significado para uma pessoa daquele meio colonial do “bem morar” resumido nos “4 Hs”: Haus – Heim - Hof – Heimat (a casa, o lar, o pátio, a querência). Neste momento julgo importante chamar a atenção a mais alguns aspetos importantes para a formação do futuro colono para o qual o currículo da escola comunitária foi projetado e implementado pela Associação dos Professores e o que os pais e a comunidade esperavam que seus filhos aprendessem. No convívio com os pais e irmãos mais velhos lidando no diário com as realidades e a dinâmica da agricultura familiar mais o reforço, vamos dizer mais científico oferecido pela escola e o professor, o egresso estava em condições de movimentar-se com desenvoltura nas mais diversas eventualidades a serem enfrentadas. Entrando na mata virgem identificavam as espécies de árvores de maior porte como também a vegetação secundária. Pela textura da casca, as folhas, o tipo de ramificação, pela copa, enfim, pelo perfil da árvore, qualquer um distinguia um cedro, de uma cangerana, de uma cabriúva, de uma figueira do mato, de um mata-olho, de um angico, de uma guajuíra, dum louro, duma canela imbuía, duma canela pinho e por aí vai. O mesmo acontecia com os animais selvagens com seu habitat e hábitos nas manchas de mata virgem nas encostas dos morros: os bandos de micos saltando de uma copa de árvore para a outra, os bugios mais ariscos anunciando com seus roncos inconfundíveis a aproximação de chuva, os coatis, os cachorros do mato, gambás, etc., etc. Na minha infância já não havia mais vestígios da presença de onças e pumas frequentes nas primeiras décadas da ocupação daquelas encostas. Nesse contexto aprendia-se pela tradição da família e pela insistência na escola, distinguir entre as madeiras próprias para construção e/ou lenha, as ervas úteis, as frutas silvestres comestíveis e outras que deveriam ser evitadas. Não poucos desses hábitos e ensinamentos vinham acompanhados de uma boa dose de imaginação e alguns de flagrante viés mágico. Na mesma linha iam as informações sobre animais e aves. Além dos micos, bugios, coatis e cachorros do mato (raposas), gambás, tatus, pacas, cutias e roedores de pequeno porte, a fauna não oferecia grandes surpresas.

O Canto

Ao canto cabe uma grande importância na vida e história dos povos. Dificilmente algo sensibiliza mais a alma das pessoas do que o canto. Para as crianças e adultos das colônias alemãs o canto fazia parte do dia a dia. Não raro podiam-se ouvir homens, mulheres, rapazes e moças cantando enquanto capinavam ou lavravam a roça ou davam conta das suas tarefas domésticas. Os professores com formação em escola normal aprendiam a tocar violino e harmônio. Ao ensinarem os cantos em sala de aula costumavam valer-se do violino e quando ensaiavam cantos religiosos na capela ou igreja o harmônio tomava o lugar do violino. Recomendava-se que fossem reservadas duas horas por mês para o ensaio de cantos novos, a metade profanos e a metade religiosos. Ao concluir, depois de 4 anos o período escolar, esperava-se que as crianças levassem para a vida 24 cantos profanos e 24 cantos religiosos.

Em resumo. Foi essa a formação que se esperava de qualquer criança de uma comunidade do interior colonial tanto católica quanto protestante. O resultado foi uma população dotada de um nível cultural bem além e acima da alfabetização formal. Mais acima, quando me referi à minha família destaquei que meu pai, minha, mãe e meus irmãos liam e entendiam perfeitamente a leitura de jornais, periódicos e almanaques e mantinham-se a par dos principais acontecimentos até internacionais e emitiam juízos de valor sobre assuntos de natureza, política, social, econômica e religiosa. Relembrando o dado também já citado, na década de 1930 a alfabetização da população saída dessa escola chegava aos 90%, quando no restante do País oscilava em torno dos 10%.

Da Enxada à Cátedra [ 11 ]

Minha Formação

Comecei a frequentar a escola com 8 anos recém completados em fevereiro de 1938. Chamo a atenção pelo fato de que naquele ano meu irmão mais velho, o Pe. Balduino completou a sua trajetória de formação como jesuíta com a chamada “Terceira Provação”, o Roberto cursava a faculdade de filosofia no Seminário em São Leopoldo, o Bertoldo encontrava-se no Seminário Menor em Salvador do Sul, cursando o ginásio e a Tecla no Bom Conselho em Porto Alegre, também cursando ginásio. Estou chamando a atenção a esse detalhe pois, com quatro irmãos, dois no ensino médio e dois no superior, deve ter despertado muito cedo em mim a vontade de dedicar-me para valer ao estudo e saciar a sede de conhecimento. Soma-se a isso o fato de meu pai e meus dois irmãos colonos, minha mãe e minha irmã com grave deformação da bacia, eram leitores assíduos do jornal Deutsches Volksblatt, religiosamente assinado, de almanaques, vidas de santos, livros profanos emprestados na biblioteca da comunidade, à disposição na casa paroquial. Esse clima impregnado de cultura apesar da precariedade do dia a dia de filho de colono fez com que entrasse na escola praticamente alfabetizado. Minha mãe e minha irmã Ana ensinaram-me a escrever e meu irmão Raymundo, colono leitor assíduo como já anotei mais acima, ensinou-me a ler.

Minha escola.

Antes de começar a registrar as recordações que guardo dos quatro anos em que frequentei a escola paroquial ou comunitária, como era conhecida naquele remoto ano de 1938, faz-se necessário falar resumidamente sobre a natureza e as características daquela escola. Na história da imigração alemã do sul do Brasil costuma ser chamada de Escola Comunitária ou também de Escola Paroquial. Ao meu entender a denominação mais correta é a primeira. O porque dessa preferência irei explicar mais abaixo. A origem dessa Escola Comunitária ou Escola de Comunidade tem muito a ver com as circunstâncias características em que aconteceu e se consolidou a colonização do sul do Brasil pelos imigrantes alemães, tanto católicos quanto protestantes a partir de 1824. Numa proporção média de 54% de protestantes e 46% de católicos. Ambas as confissões organizaram suas comunidades nos mesmos moldes. Garantiam basicamente uma vida comunitária organizada facilitando a solidariedade e o mútuo comprometimento dos seus membros, a preservação da religiosidade e do nível cultural, a garantia dos valores, os hábitos e costumes que faziam parte da sua tradição. Para atender a essa demanda tratavam de munir as comunidades com suas igrejas e capelas, escolas, cemitérios, ferrarias, carpintarias, moinhos, casas de comércio, espaços para a prática do lazer. Não pretendo alongar-me nos detalhes porque são conhecidos por todos aqueles que têm informações um pouco mais detalhadas sobre o panorama da colonização dos primeiros 100 anos. Interessa aqui chamar a atenção para a Escola Comunitária ou de Comunidade e especificamente a das comunidades católicas pois, foi numa delas que dei os primeiros passos e solidifiquei os fundamentos sobre os quais edifiquei a minha formação acadêmica em todos os níveis no decorrer das quatro décadas posteriores. ( Para informações mais detalhadas sugiro o livro de minha autoria: “A Escola comunitária Teuto-Brasileira publicado pela Edit. Unisinos)

A classificação de escola comunitária justifica-se pelo fato de elas terem sido construídas, instaladas e mantidas pela comunidade que, para tanto, escolhia dentre seus membros uma diretoria responsável para a construção, manutenção e bom andamento do quotidiano da escola, inclusive a contratação do professor, sua remuneração e sua substituição caso não atendesse às exigências da comunidade. Essas escolas foram, portanto, criadas e mantidas por recursos próprios, sem o auxílio nem da Igreja, nem do Estado. Por isso foram escolas particulares ou comunitárias, porém, confessionais. O termo escola paroquial entrou nessa história somente a partir da década de 1920 com a discutível interferência do arcebispo D. João Becker valendo-se de sua autoridade para controlar o ensino nessas escolas e apropriar à mitra o património material de que dispunham, como instalações e áreas de dezenas de hectares de terras à disposição da família do professor, na verdade propriedade legal da comunidade escolar. Não é aqui o lugar nem o momento para entrar nos detalhes daquele episódio que causou uma mal estar desnecessário entre os católicos e sua relação com a autoridade eclesiástica no começo da década de 1920. A típica escola teuto-brasileira era, portanto, uma escola comunitária no sentido que caracterizei acima. Por isso mesmo não cabia ser rotulada como escola paroquial. Acontece, porém, que normalmente havia uma estreita relação e até interdependência entre escola e paróquia. Em assuntos de maior importância o pároco ou seu representante costumava ser consultado. Por ser representante da Igreja e responsável pela vida religiosa da comunidade, embora não integrasse a diretoria da escola, terminava na prática por decidir sobre os conteúdos e a própria rotina didático-pedagógica a cargo do professor, impondo, em não poucos casos, a sua vontade num nível indevido. Apagavam-se assim os limites entre as competências da Diretoria da Escola e da Diretoria da Paróquia o que terminou no entendimento de historiadores, que estamos falando em Escola Paroquial. Como eu comecei a frequentar a escola em 1938, portanto, antes de ser atropelada pelos decretos de nacionalização do ensino de maio e dezembro daquele ano, ela exibia claramente a situação ambígua de escola comunitária e escola paroquial.

Discussões sobre a natureza da escola à parte, quero dar uma ideia do tipo e do nível de formação que ela oferecia a partir do começo do século XX. Para começar, um detalhe parece de importância. Na década de 1930, se não todos, mas a grande maioria dos professores eram portadores de uma formação comparável aos formados em escolas normais. Meu professor, José Brandt, por ex., foi egresso da escola de formação de professores em Estrela. Dominava perfeitamente o alemão e o português, tocava violino e harmônio, regia o coral da capela da comunidade, encarregava-se das aulas de religião e conhecia a fundo os conteúdos curriculares além de se valer com maestria de métodos didáticos que despertavam o interesse dos alunos que, terminado o período escolar de 4 anos, partiam para a vida munidos com os instrumentos mais essenciais para administrarem suas propriedades e educarem seus filhos inculcando-lhes os valores de vida exigidos pelo quotidiano do colono. É preciso lembrar também que desses professores, a grande maioria homens e pais de família, exigia-se uma versatilidade impensável nos dias de hoje. Acontece que as escolas, como aquela que frequentei, reuniam num recinto único crianças de sete anos para serem alfabetizados com alunos de 10 ou 11 anos em final de formação primária. O professor alfabetizava, ensinava a ler e escrever e fazer cálculos, escrever cartas, ensinar geografia, história, rudimentos de ciências naturais, enfim dava conta de todos os conteúdos do currículo. Mais abaixo vou detalhar um pouco mais esse currículo.

A pergunta que se coloca a essa altura é essa: Na hierarquia das competências com autoridade sobre escola comunitária de que estamos falando, qual a posição da família, da comunidade, da Igreja e do Estado? Em resumo, a competência cabia em primeiro lugar aos pais pois, a educação tem na família a sua base. Como a família não está em condições de oferecer aos filhos os conhecimentos, os instrumentos e as ferramentas indispensáveis para se darem bem no futuro, essa tarefa foi transferida para a escola e, por extensão para a Comunidade. Cabia a Igreja a responsabilidade de zelar pela instrução religiosa já que estamos falando de uma escola confessional. Do Estado esperava-se que garantisse o apoio legal necessário, sem compromissos como subsídios ou qualquer outro aporte material e, principalmente, garantisse a autonomia curricular e didático pedagógica, a cargo da Associação dos Professores Católicos de um lado e a dos Protestantes do outro. O que acabo de resumir no tocante à escola comunitária pode ser formulado em três princípios básicos definidos pela Associação dos Professores Católicos em 1909.

Primeiro. Os pais têm o direito natural e divino sobre a educação dos filhos, o direito primário, portanto.
Segundo. A Igreja tem o direito sobre a formação religiosa das crianças e, junto com a comunidade cabe-lhe a guarda e vigilância sobre o bom andamento material e didático-pedagógico.

Terceiro. O Estado tem o direito de exigir de seus cidadãos uma formação mínima, e pode, em caso de necessidade garantir a obrigatoriedade mediante dispositivos legais. Não lhe assiste, porém, o direito para impor o monopólio ou a coação de uma escola livre e laica.

Da Enxada à Cátedra [ 10 ]

Uma viagem a Santa Clara

No outono de 1937 meus pais programaram uma viagem a Santa Clara do Sul, lá um pouco adiante de Lajeado e decidiram levar-me com eles. O irmão mais novo da minha mãe, o Pedro, era pároco da localidade e minha avó materna viúva morava com ele. Foi a minha segunda viagem para além dos topos dos morros que delimitavam o meu mundo infantil. Suponho que seja interessante e instrutivo detalhar um pouco as peripécias de uma viagem que hoje em estradas asfaltadas leva um pouco mais de duas horas. A primeira etapa da viagem, que exigiu um dia inteiro foi do Morro da Manteiga até Salvador do Sul (o Kappesberg de então). Foram mais ou menos 10 quilômetros eu com meu pai montados numa mula e minha mãe no cavalo dela, o “zaino”, até o vilarejo hoje Salvador do Sul. Pernoitamos na casa da família Alflent, conhecidos e amigos dos meus pais. A mula do pai e o cavalo da mãe ficaram pastando no potreiro dessa família. Às 4 horas da tarde do dia seguinte embarcamos no trem que voltava de Caxias do Sul com destino a Porto Alegre. Foi para mim uma experiência inusitada aquela descida na “Maria Fumaça” de Salvador do Sul passando pelo túnel até a cidadezinha, melhor povoado de Maratá. Lá pernoitamos num daqueles hotéis despojados oferecendo o mínimo indispensável para os hóspedes em trânsito. Lembro-me muito bem que no café da manhã degustei pela primeira vez na vida rodelas de salamito, queijo e pão branco (feito com farinha de trigo industrial). Depois do café da manhã embarcamos num ônibus daqueles que já descrevi na viagem a Porto Alegre. Um pouco mais adiante ele subiu gemendo o Morro Paris temido pelos motoristas, em direção a Poço das Antas. Na descida para Poço das Antas o motorista permitiu-se um pouco mais de velocidade e a mala de um dos passageiros, amarrada do lado de fora, abriu-se e espalhou o conteúdo pelo milharal na beira da estrada. Mas não houve problema maior. O motorista estacionou o veículo e os passageiros solidários ajudaram a recolher o conteúdo da mala. Tudo no seu devido lugarcontinuamos a viagem passando por Poço das Antas, Teutônia até Estrela. Uma barca nos levou para o outro lado do Taquari e fomos pernoitar no hotel Benz em Lajeado. Na manhã seguinte, depois do café, encostou um Ford de Bigode com meu tio Pedro para nos levar até Santa Clara do Sul. A estrada toda de chão batido passava por plantações de milho em ponto de colheita, mandioca e outras culturas. Pela hora do meio dia desembarcamos na frente da casa paroquial de Santa Clara onde nos esperava a minha avó materna. Uma viagem que hoje se faz com folga em menos de uma manhã levou praticamente um dia naquele remoto ano de 1937. Não me lembro de muitos detalhes da semana que nos demoramos em Santa Clara. Assistimos a missa no domingo, fomos visitar o cemitério e as sepulturas de parentes próximos, fundadores daquela comunidade e conhecidos e parentes principalmente do lado do meu pai. Um detalhe que guardei na memória foi o Sigma, símbolo do partido integralista desenhado em placas e até em paredes de casas e, certo dia um rapaz galopando pelo centro da vila, gritando Vivas a Plínio Salgado. Em 11 de novembro daquele ano a implantação do Estado Novo colocaria o partido na ilegalidade. Relembrando aquele passado constato a que ponto as comunidades coloniais, não tenho dados para afirmar se todas, participavam da política e com que orientação estavam comprometidas.

Passados os dias da visita, o tio Pe. Pedro levou-nos de novo num Ford de Bigode, desta vez até Estrela, para pernoitarmos na casa de um primo da minha mãe, dono de um curtume. Como era um empresário bem sucedido, morava numa casa mobiliada com o que havia de mais moderno na época. Acostumado com a frugalidade, a simplicidade para não falar precariedade da nossa casa de madeira bruta lá no Morro da Manteiga, senti-me como um pássaro fora do ninho. Não saía de perto da minha mãe e por mais que insistissem não fui capaz de brincar com os filhos da casa que tinham mais ou menos a minha idade. No dia seguinte embarcamos no ônibus e, via Teutônia, Poço das Antas para terminar novamente em Maratá, para embarcar no trem e subir até Salvador do Sul onde chegamos às 10 horas da manhã. Subimos até o Colégio Santo Inácio para visitar meu irmão Bertoldo, interno daquele Seminário dos jesuítas. Foi uma visita rápida para depois descer até a casa do amigo do meu pai onde tínhamos deixado as montarias no potreiro. Ainda na mesma tarde encilhamos os animais e descemos por Júlio de Castilhos (conhecido na época por “Badensertal”, até Tupandi (o então Salvador), para a última etapa da cavalgada, a subida do Morro da Manteiga onde nos esperava a nossa casa de madeira, rústica sim, mas nos acolhendo com o aconchego e a sensação sem preço de estar novamente “em casa”.