Da Enxada à Cátedra [ 13 ]

A Nacionalização da Escola Comunitária.

Mas, a gloriosa e meritosa história da Escola Comunitária foi truncada bem no meio do período em que eu a frequentei 1938-1941. Como já lembrei mais acima, aprendi a ler, escrever, as lições do catecismo, a introdução à aritmética, ao cálculo, à história e geografia e os rudimentos de história natural, nos dois primeiros anos. Acontece que, a partir do final da Primeira Guerra Mundial, uma onda de nacionalismo começou a tomar corpo e terminou num furacão que tomou conta da Europa e terminou por contaminar também o Brasil. Conceitos como germanidade na Alemanha, italianidade na Itália, lusitanidade em Portugal, hispanidade na Espanha e semelhantes, levaram a governos autoritários e centralizadores e, em não poucos casos, a ditaduras sangrentas. Abriram o caminho para uma Segunda Guerra Mundial. O Brasil entrou ostensivamente nessa dinâmica a partir do começo da década de 1920. O momento definidor dessa tomada de rumo deve ser procurado na “Semana de Arte Moderna” acontecida no Teatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Deste evento e demais comemorações do centenário da Independência do Brasil, foi tomando forma na consciência nacional a palavra de ordem “abrasileirar” para consolidar a “brasilidade”. Não cabe aqui uma análise mais detalhada do potencial de tensões, traumas, violências, animosidades desencadeadas ao ser imposto como meta e modelo pelo Estado Novo decretado em novembro de 1937, valendo-se de todos os meios de que o aparelho do Estado dispunha. Para maiores informações do que foi a Campanha de Nacionalização recomendo os anais do X Simpósio de Imigração e Colonização Alemã, do Instituto Histórico de São Leopoldo, de setembro de 1994. Especificamente no que se refere à Ação Policial mobilizada para a implantação coercitiva do “abrasileiramento”, chamo a atenção ao capítulo: “Nacionalização e Ação Policial no Estado Novo” do livro Flagrantes dos 200 anos da imigração no sul do Brasil”, da minha autoria e edição da Editora Oikos

No contexto em que estou recordando e refletindo limito-me a focar a Escola e a Educação nas comunidades do interior colonial, com destaque para as alemãs tanto católicas, quanto protestantes. Só no Rio Grande do Sul funcionavam em 1937 mais de mil dessas escolas, coordenadas e supervisionadas pelas associações dos professores das duas confissões. Nos registros que constam nos documentos das decisões tomadas pela Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul” - (para os protestantes no essencial a linha de decisões foi a mesma) – percebe-se um esforço crescente em “nacionalizar” gradativamente as escolas sob sua jurisdição. O “nacionalizar” significava emprestar uma crescente importância à língua e às realidades brasileiras: geografia do Brasil, história do Brasil, a diversidade de etnias, costumes, funcionamento das instituições políticas, o potencial econômico e, por aí vai. Como objetivo constava substituir o alemão como língua de ensino pelo português e a escrita manuscrita gótica (Süterlin), pela latina, porém, de maneira gradual sem risco de um salto dramático e contraproducente, obedecendo à dinâmica antropológica e histórica, que por sua natureza se consolida a médio e longo prazo.

A nacionalização, melhor o “abrasileiramento” das escolas comunitárias do interior colonial começou a ser posto em prática a partir do decreto federal No 406 de maio de 1939 pois, estas pareciam oferecer um dos maiores empecilhos para o êxito da campanha de nacionalização. Em resumo o decreto obrigava que o material didático fosse em português; que os professores e diretores fossem brasileiros natos; que nenhum impresso, revista, livros, jornais, almanaques em língua estrangeira, circulasse no interior colonial; que se desse uma importância toda especial ao ensino da “História e Geografia Pátria”, como se costumava chamar esses conteúdos; que as línguas estrangeiras fossem ensinadas somente a maiores de 14 anos; que se celebrassem com programações especiais as datas nacionais mais significativas e nelas a bandeira nacional ocupasse o centro das atenções. Em 10 de dezembro de 1939 foi editado outro decreto de abrangência nacional que obrigava o Ministério da Educação a proceder uma varredura em todo material escolar usado no ensino elementar (o fundamental de hoje) e do ensino médio. O decreto, também de abrangência nacional, mais devastador data de 25 de agosto de 1939. Previa que os secretários de educação dos estados mandassem construir e manter escolas em regiões de colonização “estrangeira”; que estimulassem o patriotismo nos estudantes; que intensificassem o estudo da “história e geografia pátria”; que fiscalizassem a língua usada nas escolas; quedispensassem todos os professores nascidos fora do Brasil, “não nacionais”, como costumavam ser rotulados com forte viés discriminatório e suspeição de espionagem e traição; que em reuniões e assembleias somente o português poderia ser a língua que entrava em questão; que a educação física nos estabelecimento de ensino médio fosse confiado a um oficial ou sargento indicado pelo comando militar da região.

Mais decretos federais e estaduais foram cercando e constrangendo. Em não poucos momentos terminaram em tortura, confinamento, trabalhos forçados e mortes decorrentes desses tratamentos. O decreto no 2.072 de 1940 criou a Organização da Juventude Brasileira, obrigatória em todas as escolas e tornou obrigatória a educação física como instrumento do nivelamento das diferenças étnicas por meio de exercícios em comum. Seguiu o decreto, também federal No 3.580, de 3 de fevereiro de 1941 proibia a importação e impressão em território nacional de livros de texto em língua estrangeira, endereçados ao ensino elementar. Até aqui os decretos federais válidos para todo o País.

Neste contexto cada estado impunha a sua versão regional do “abrasileiramento”. No Rio Grande do Sul a legislação, a regulamentação e a implantação do processo acompanhado de indisfarçáveis práticas repressivas, impactou em cheio nos resultados da minha formação elementar e de toda a geração de crianças que frequentavam as mais de mil escolas católicas e protestantes no Rio Grande do Sul. O clima desandou para uma viés mais policial do que pedagógico, com inspetores destacados pela Secretaria da Educação do Estado, infernizando a vida dos professores e alunos com suas frequentes e inesperadas vistas. Aqui não posso deixar de fazer justiça ao inspetor Sauthier pela sua postura objetiva, decente e construtiva, nas visitas que fazia periodicamente à escola do Morro da Manteiga. Meu professor, José Brandt, formado na escola normal de Estrela, foi de uma habilidade difícil de conceituar, num momento histórico de uma complexidade, de embates, conflitos, verdadeiros tsunamis em busca da hegemonia do poder mundial. Este professor, por sinal primo irmão do meu pai, poderia servir de exemplo a uma legião de pedagogos modernosos erráticos, formados na sopa pedagógica indigesta com componentes marxistas, gramscistas, da Escola de Frankfurt, da Escola Nova, Piaget, Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, Chomsky e por aí, que levaram a educação do nosso País a um nível deplorável (estou falando das duas primeiras décadas do século XXI). Numa escola de classe única e, para o espanto e a ira da pedagogia de hoje, confessional, comunitária e legitimada pela família, esse professor mostrou-se um autêntico estrategista, envolvido num turbilhão de contradições, foi capaz de consolidar em nós, filhos de colonos, os valores que de fato fazem a diferença no comportamento humano, isto é, os valores perenes que perpassam a história humana tanto na dimensão sincrônica quanto diacrónica. Do alto dos meus noventa e quatro anos, presto minha homenagem póstuma, oitenta anos depois, a esse perfil de mestre que tanta falta faz hoje. A um grande número de pedagogos e professores de hoje só preocupa o agora, o hoje e nem estão se lixando com o berço histórico que os embalou e lhes deu a razão de ser como protagonistas da história que flui como um rio, com o curso marcado por cachoeiras, cascatas, corredeiras e remansos, para terminar no “imenso mar do belo”, como ensina o pai Homero. Que fique bem claro. Não estou movido por veleidades românticas para propor o retorno àquele paradigma de escola. Falo, obrigado pela gratidão pela importância que teve na minha vida posterior e para alertar que em momentos históricos em que perdemos a consciência do que fomos e, ao mesmo tempo do que não fomos para, sobre esse fundamento, planejarmos a realidade presente e assim projetar o futuro. As experiências do passado muito bem podem servir de inspiração de como agir no presente e preparar o presente e o futuro dos nossos filhos e netos.

E, para não restar dúvida sobre os métodos e medidas de que se valeram os idealizadores e os executores da nacionalização das escolas, ofereço alguns dados que constam no livro “Denúncia” da autoria do Secretário da Educação do Rio Grande do Sul naquele período, Coelho de Souza. De acordo com o Secretário, a ação nacionalizadora valia-se de dois conjuntos de ação: uma preventiva e outra repressiva. A primeira categoria contemplava medidas preventivas extra escolares e medidas preventivas escolares. Na primeira categoria constavam: caravanas nacionalistas percorrendo o Estado promovendo a comemoração de datas cívicas; parada da juventude no dia 7 de setembro; caravanas de “coloninhos” ou “gauchinhos”. Foram previstas caravanas anuais levando 500 crianças para permanecerem por 7 dias na capital, participando das comemorações cívicas e assim viverem concretamente um ambiente de “brasilidade”. Eu pessoalmente, como nenhum dos meus colegas da minha escola foi contemplado com essa “imersão na brasilidade”. No calendário escolar entrou também a “Educação Cívica”, como disciplina obrigatória para que, na afirmação de Coelho de Souza, fazer com que as novas gerações do Rio Grande do Sul respirassem um ambiente saturado de “brasilidade”, insistindo no primado da cultura brasileira sobre todas as demais. Entre as medidas preventivas extra curriculares, além da expansão da rede escolar pública, da nomeação de professores públicos, constava uma vigilância draconiana sobre as escolas particulares em geral, confiado a um corpo de delegados regionais, inspetores das escolas e orientadores técnicos. Oficialmente foram credenciados cerca de 1.280 professores mas, de acordo com dados não oficiais somente 148 foram alocados em distritos do interior colonial. Os demais supõe-se, terminaram por ocupar seus postos em escolas nos centros urbanos. Com a nomeação de professoras públicas em escolas na região colonial criou-se um problema adicional. Com sua formação, educação, costumes, hábitos e valores urbanos somados à tarefa de “abrasileirar”, eram vistas pelos colonos como intrusas e consequentemente mal aceitas no convívio comunal. Dessa forma essas professoras sentiam-se como aves fora do ninho não só no convívio social com também na própria atividade como professoras dos filhos dos colonos. Por essas e outras razões ser professora nessas condições não atendia a uma missão a ser cumprida mas a uma tarefa ingrata da qual eram obrigadas a dar conta. Fins de semana e/ou qualquer outro pretexto valia para voltarem à cidade e passarem um ou mais dias longe do seu trabalho e do ambiente social hostil.

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