Da Enxada à Cátedra [ 10 ]

Uma viagem a Santa Clara

No outono de 1937 meus pais programaram uma viagem a Santa Clara do Sul, lá um pouco adiante de Lajeado e decidiram levar-me com eles. O irmão mais novo da minha mãe, o Pedro, era pároco da localidade e minha avó materna viúva morava com ele. Foi a minha segunda viagem para além dos topos dos morros que delimitavam o meu mundo infantil. Suponho que seja interessante e instrutivo detalhar um pouco as peripécias de uma viagem que hoje em estradas asfaltadas leva um pouco mais de duas horas. A primeira etapa da viagem, que exigiu um dia inteiro foi do Morro da Manteiga até Salvador do Sul (o Kappesberg de então). Foram mais ou menos 10 quilômetros eu com meu pai montados numa mula e minha mãe no cavalo dela, o “zaino”, até o vilarejo hoje Salvador do Sul. Pernoitamos na casa da família Alflent, conhecidos e amigos dos meus pais. A mula do pai e o cavalo da mãe ficaram pastando no potreiro dessa família. Às 4 horas da tarde do dia seguinte embarcamos no trem que voltava de Caxias do Sul com destino a Porto Alegre. Foi para mim uma experiência inusitada aquela descida na “Maria Fumaça” de Salvador do Sul passando pelo túnel até a cidadezinha, melhor povoado de Maratá. Lá pernoitamos num daqueles hotéis despojados oferecendo o mínimo indispensável para os hóspedes em trânsito. Lembro-me muito bem que no café da manhã degustei pela primeira vez na vida rodelas de salamito, queijo e pão branco (feito com farinha de trigo industrial). Depois do café da manhã embarcamos num ônibus daqueles que já descrevi na viagem a Porto Alegre. Um pouco mais adiante ele subiu gemendo o Morro Paris temido pelos motoristas, em direção a Poço das Antas. Na descida para Poço das Antas o motorista permitiu-se um pouco mais de velocidade e a mala de um dos passageiros, amarrada do lado de fora, abriu-se e espalhou o conteúdo pelo milharal na beira da estrada. Mas não houve problema maior. O motorista estacionou o veículo e os passageiros solidários ajudaram a recolher o conteúdo da mala. Tudo no seu devido lugarcontinuamos a viagem passando por Poço das Antas, Teutônia até Estrela. Uma barca nos levou para o outro lado do Taquari e fomos pernoitar no hotel Benz em Lajeado. Na manhã seguinte, depois do café, encostou um Ford de Bigode com meu tio Pedro para nos levar até Santa Clara do Sul. A estrada toda de chão batido passava por plantações de milho em ponto de colheita, mandioca e outras culturas. Pela hora do meio dia desembarcamos na frente da casa paroquial de Santa Clara onde nos esperava a minha avó materna. Uma viagem que hoje se faz com folga em menos de uma manhã levou praticamente um dia naquele remoto ano de 1937. Não me lembro de muitos detalhes da semana que nos demoramos em Santa Clara. Assistimos a missa no domingo, fomos visitar o cemitério e as sepulturas de parentes próximos, fundadores daquela comunidade e conhecidos e parentes principalmente do lado do meu pai. Um detalhe que guardei na memória foi o Sigma, símbolo do partido integralista desenhado em placas e até em paredes de casas e, certo dia um rapaz galopando pelo centro da vila, gritando Vivas a Plínio Salgado. Em 11 de novembro daquele ano a implantação do Estado Novo colocaria o partido na ilegalidade. Relembrando aquele passado constato a que ponto as comunidades coloniais, não tenho dados para afirmar se todas, participavam da política e com que orientação estavam comprometidas.

Passados os dias da visita, o tio Pe. Pedro levou-nos de novo num Ford de Bigode, desta vez até Estrela, para pernoitarmos na casa de um primo da minha mãe, dono de um curtume. Como era um empresário bem sucedido, morava numa casa mobiliada com o que havia de mais moderno na época. Acostumado com a frugalidade, a simplicidade para não falar precariedade da nossa casa de madeira bruta lá no Morro da Manteiga, senti-me como um pássaro fora do ninho. Não saía de perto da minha mãe e por mais que insistissem não fui capaz de brincar com os filhos da casa que tinham mais ou menos a minha idade. No dia seguinte embarcamos no ônibus e, via Teutônia, Poço das Antas para terminar novamente em Maratá, para embarcar no trem e subir até Salvador do Sul onde chegamos às 10 horas da manhã. Subimos até o Colégio Santo Inácio para visitar meu irmão Bertoldo, interno daquele Seminário dos jesuítas. Foi uma visita rápida para depois descer até a casa do amigo do meu pai onde tínhamos deixado as montarias no potreiro. Ainda na mesma tarde encilhamos os animais e descemos por Júlio de Castilhos (conhecido na época por “Badensertal”, até Tupandi (o então Salvador), para a última etapa da cavalgada, a subida do Morro da Manteiga onde nos esperava a nossa casa de madeira, rústica sim, mas nos acolhendo com o aconchego e a sensação sem preço de estar novamente “em casa”.

This entry was posted on domingo, 1 de setembro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.