Da Enxada à Cátedra [ 14 ]

Falando agora em medidas repressivas cai em vista o fechamento puro e simples de 241 escolas embora o Interventor Federal Cordeiro de Farias afirmasse que mandou fechar apenas 90. A outra página negra escrita pela nacionalização ou “abrasileiramento” das escolas comunitárias foi a prisão de um número considerável de professores que, ou ignoraram as novas regras ou tentaram de alguma forma contorná-las. À prisão ou constrangimento policial de professores acresceu um episódio ainda mais escabroso pela forma como foi conduzido e executado e pela identidade e representatividade dos personagens e autoridades envolvidas: o fechamento das escolas normais formadores de professores para as escolas comunitárias, a de São Leopoldo dos protestantes e de Hamburgo Velho dos católicos. Já que minhas memórias tem a ver com a de Hamburgo Velho, foco minha memória nela. À história minuciosa dessa Escola Normal dediquei um capítulo da minha história da Escola Teuto-Brasileira a ser publicada. Pincei a passagem dessa publicação em que detalhei o episódio e as circunstâncias daquele 25 de julho de 1939. O Secretário da Educação e Saúde Pública, Dr. Coelho de Souza viajou para Novo Hamburgo acompanhado do Dr. Bonifácio Paranhos da Costa, diretor do Departamento da Saúde e da professora Olga Acauan Geyer, diretora da Instrução Pública do Estado. O Secretário e comitiva foram examinar o terreno no qual seria construído um grupo escolar. Assistiram também à solene instalação do centro de saúde e a inauguração de um consultório médico escolar. Concluídas as solenidades, o sr. Leopoldo Petry, presidente da Sociedade União Popular, mantenedora da Escola Normal, convidou o Secretário da Educação e sua comitiva para participarem das comemorações do Dia do Colono, organizadas pelo corpo docente e discente da Escola Normal. A bomba foi detonada pelo discurso proferido por um dos alunos, na presença do Secretário da Educação e Saúde Pública que assim registrou a sua ira em “Denúncia”, livro de sua autoria.

No decorrer de sua prolongada arenga, o improvisado tribuno teve a oportunidade de declarar que era necessário o culto das tradições germânicas, que nenhum alemão ou descendente de alemão deveria se afastar, um milímetro sequer, da língua e de seus antepassados. Acrescentou que todos deveriam, habitantes do Rio Grande do Sul ou de qualquer outro recanto do mundo, seguir os ensinamentos da grande Alemanha. Nesse tom o pequeno aluno da Escola Normal da Sociedade União Popular Católica de Novo Hamburgo, foi até o final do discurso que para ele prepararam. (Coelho de Souza, 1941, p. 113)

Coelho de Souza, como é compreensível, interpretou o discurso como declaração de rebeldia contra os decretos do Interventor do Estado, obrigando a escola e o ensino a se “abrasileirar”. Cometeu uma injustiça imperdoável ao jogar sem mais nem menos a responsabilidade do conteúdo nas costas do diretor da escola, o Pe. Miguel Meier. Os documentos provam que o Pe. Meier não teve conhecimento prévio do conteúdo do discurso na sua versão apresentada. Não foi uma omissão leviana da sua parte, mas uma infeliz ideia do prof. de português, Reinaldo Krauspenhar. O caráter de rebeldia às ordens e diretrizes da Secretaria de Educação foi exagerado além do razoável, por uma série de razões, entre as quais merecem destaque. Em primeiro lugar, foi a ocasião em que as tensões acumuladas há mais tempo entre o Secretário da Educação, a direção da Escola Normal, da Diretoria da Sociedade União Popular e do arcebispo D. João Becker chegaram ao limite crítico e terminaram numa ruidosa explosão. Em segundo lugar, a importância do episódio foi exagerada, pintado com cores carregadas de animosidade e deturpado em detalhes essenciais. Não ficou claro se foi produto da inabilidade dos jornalistas, da irresponsabilidade ou de má fé. Nas circunstâncias tumultuadas de então, em meio à guerra declarada em que o episódio foi tratado e outros motivos isolados ou combinados, devem ter contribuído para o desfecho nada conciliatório do problema.

De qualquer maneira, o infeliz episódio teve desdobramentos imediatos e culminaria com o fechamento da Escola Normal. O Secretário respondeu ao aluno orador com um improviso raivoso, deixando claro que a linha defendida pelo discurso jamais seria tolerada pelas autoridades do Estado. Nas entrelinhas do improviso ficou evidente que a represália não se esgotara com a fala do momento. E, de fato, o primeiro passo foi um encontro com o Interventor Cordeiro de Farias. Oficialmente nada transpareceu do que foi falado e decidido. Tomando-se, porém, como base a sequência dos fatos é lícito concluir que uma parte da conversa versou sobre a conquista do Arcebispo como aliado para, de vez, neutralizar o foco de resistência à implantação da Nacionalização do ensino, representado pela Escola Normal, uma vez que ela formava os professores para as escolas comunitárias. A confirmação da suspeita veio com o encontro do Secretário Coelho de Souza, ainda na mesma noite, com D. João Becker. Os acertos na calada da noite, entre o Secretário e o Arcebispo foram resumidos numa matéria do Diário de Notícias. O jornal referiu que no encontro D. João Becker condenou com veemência o episódio ocorrido na Escola Normal; que ainda no decorrer daquela semana tomaria importantes medidas e baixaria severas instruções endereçadas ao clero sob sua jurisdição, com a finalidade de colaborar com o projeto de nacionalização posto e conduzido pelo poder público.

Parece que aqui cabe um inciso para chamar a atenção sobre a repercussão negativa da Campanha de Nacionalização sobre a própria religiosidade das comunidades como um todo no interior colonial. As instruções baixadas pelo arcebispo a seu clero, fruto dessa colaboração espúria com os instrumentos políticos a serviço de um Estado declaradamente autoritário e ditatorial, atingiram em cheio a instrução religiosa das crianças e adolescentes e a realimentação religiosa dos adultos e pessoas de idade. Com a proibição da língua alemã nas escolas a catequese das crianças migrou quase como que para a clandestinidade das catacumbas, no caso, para as capelas ou ainda casas particulares. Os sermões, palestras e encontros com a finalidade de cultivar os valores religiosos e a piedade das pessoas, foram proibidos sob a ameaça de intervenção policial. Parecem inacreditáveis fatos que aconteceram na igreja paroquial da minha comunidade em Tupandi. A polícia ficava rondando as proximidades da entrada da igreja e as pessoas assustadas e mudas entrando para assistir a missa e depois dela, também mudos e apressados voltar o mais rapidamente possível para as suas casas. Lembro-me de um domingo quando dois policiais invadiram a igreja durante a missa e recolheram os livros de reza em língua alemã inclusive de senhoras de idade. Quando uma delas reagiu ameaçando o policial com o chinelo, por pouco prenderam essa senhora de 70 ou mais anos. Ficaram para trás os alegres encontros de homens, rapazes, mulheres e moças em frente à igreja antes do começo da missa, para conversarem e porem em dia as novidades, contarem piadas e até combinar negócios. Acontece que a adesão à onda da nacionalização, do “abrasileiramento”, incentivada peloarcebispo, terminou contaminando também a maioria dos jesuítas nascidos no Brasil, já em atividade, mas principalmente aqueles em vias de formação. Note-se que, como Ordem isenta, não devia obediência às determinações da autoridade eclesiástica local. Lembro-me do depoimento escrito de um deles que declarou que era preciso tomar o lugar da “velha guarda” dos jesuítas alemães, deixar para trás a sua herança no nível sociocultural e alinhar o passo com a onda do “abrasileiramento”. Por estranho que possa parecer, contavam com o apoio do superior provincial nascido na Suíça.

Depois desse inciso voltemos aos desdobramentos envolvendo a Escola Normal de Hamburgo Velho. Como primeira providência foi instaurado um inquérito na Escola e sua efetuação confiada ao Dr. Ney Brito. Pelo que se pode deduzir o inquérito não revelou novidades importantes. “grande volume de material suspeito” de que falou a Folha da Tarde não passou de um exagero de imaginação pois, encontraram quatro números de uma revista alemã ilustrada nem disponível aos alunos. O Dr. Ney Brito simplesmente negou ao Pe. Miguel Meier explicações de defesa. Escolheu a dedo 4 alunos dos mais de 30 que frequentavam a Escola Normal para deporem. Tudo indica que o inquérito foi montado e conduzido para provar que a Escola Normal na verdade não passava de um foco de resistência ao projeto de nacionalização. A sentença do Secretário da Educação foi draconiana. Em primeiro lugar demitiu o Diretor Pe. Miguel Meier proibindo sua permanência na Escola. Em segundo lugar excluiu do corpo docente o prof. Krauspenhar e entregou seu destino à polícia, isto é, acusou-o de crime contra ordem pública. No meu entendimento o maior injustiçado nesse episódio foi o Pe. Miguel Meier, o “Pe. Miguelinho” como o chamávamos carinhosamenteentre os que o admiravam como especialista em pedagogia. Por exigência de D. João Becker foi, por assim dizer mandado para o exílio no Seminário Menor de Cerro Largo pertencente à diocese de Uruguaiana. O Secretário da Educação reforçou a validade de suas decisões com um argumento digno de reflexão para as circunstâncias em que hoje mais de 80 anos passados. Os demais detalhes e o lamentável fim da Escola Normal de Hamburgo Velho, parte de um projeto educacional que de fato educou e formou cidadãos comprometidos com a construção de uma Nação próspera fundamentada nos valores humanos e perenes que perpassam como linha mestra, como “Leitmotiv”, como perene, a história da humanidade, podem ser encontrados no meu estudo sobre a Escola Teuto-Brasileira, já mencionado mais acima e das análises criteriosas da profa. Isabel Arendt, sobre o mesmo tema.

Depois dessa digressão volto para a minha escola como todas demais atingidas em cheio pela arbitrariedade das autoridades responsáveis pela educação do Estado. Resumindo, nos dois primeiros anos aprendi a ler e a escrever de cordo com o figurino tradicional dessa escola. Durante o terceiro e o quarto ano fui obrigado, como todos os meus colegas a, por assim dizer, a reaprender a ler e a escrever segundo a nova cartilha imposta pelo “abrasileiramento”. O resultado não podia ser outro. Escrevia bem valendo-me da escrita gótica (Süterlin) além de ler fluentemente os livros impressos em gótico. A partir do terceiro ano aprendi a escrever com caracteres latinos, rudimentos da língua portuguesa, mas não ao ponto de me comunicar sofrivelmente e com dificuldade de entender a leitura de livros e impressos em geral. Os conhecimentos de geografia, história e estudo da natureza, que sempre foram áreas de minha preferência, estagnaram num nível bem abaixo do esperado dos egressos da escola tradicional. Em outras palavras. Conclui os quatro anos num nível um pouco acima da alfabetização. Essa realidade pouco animadora acompanhada por prejuízos difíceis de avaliar marcou negativamente a geração em idade escolar entre 1938 e 1945. Sem os jornais, revistas, almanaques, bibliotecas paroquiais, homilias, encontros culturais e por aí vai, interrompeu-se o fluxo da realimentação das tradições e a perpetuação do nível cultural dos pais e avós. Lamentavelmente a geração responsável pela perpetuação de uma herança comunitária rica e dinâmica da primeira metade do século XX terminou nas mãos de uma geração de analfabetos funcionais, com uma visão do mundo que não ultrapassava os limites dos interesses básicos das necessidades quotidianas.

This entry was posted on domingo, 8 de setembro de 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.