[ Reflexões ]

Observando com um pouco mais de atenção constata-se que a construção do conhecimento a partir do método analítico-indutivo avança maravilhosamente bem até um determinado ponto. O mesmo observa-se com o recurso ao método sintético-dedutivo. Comparado à construção do conhecimento um arco ele começa sendo erguido, de um lado, sobre os resultados obtidos pelo método analítico e, do outro, pelo método sintético. Acontece que, ao aproximarem-se para fechar o arco ou a cúpula, nem um, nem outro, está em condições de oferecer a peça necessária para fazer o papel de pedra de fecho. Resultado. Dois mundos de conhecimentos de origem e natureza paralelos, mas complementares não conseguem amalgamar-se, melhor talvez, consumar a síntese sem a qual o conhecimento não se consolida a um nível qualitativamente superior. A pedra de fechamento do arco ou da cúpula, sem a qual nem o arco, nem a cúpula são possíveis e a sustentam, assim a pedra de fecho do conhecimento superior, chama-se “intuição”. A pedra de fecho em forma de cunha de duas faces num arco ou de quatro ou mais numa cúpula, representa o esforço solidário de dar um sentido superior comum aos dados obtidos por vias diferentes na construção do conhecimento. É a peça-síntese que permite um resultado de outro nível do que é um arco ou uma cúpula quando isolados. E esse nível que transcende o significado dos arcos convergentes em busca de um arco ou de uma cúpula, sugere uma reflexão complementar. O significado de um arco e ou cúpula não se esgota na sua concepção arquitetônica e na perfeição dos cálculos de engenharia, na qualidade do material empregado e na maestria do contramestre e na habilidade dos pedreiros. Sua realização foi invariavelmente motivada por alguma razão superior. Um arco de triunfo perpetua a memória de feitos heroicos na história de um povo. O arco de um portal de entrada de uma catedral, pelo seu acabamento e sua grandeza, alerta para os que por ele passam, que estão entrando num recinto de significado religioso importante ou de acesso a lugares onde se decidem os negócios púbicos ou se guarda a memória de um povo. O mesmo pode-se afirmar de uma cúpula. Assinala os lugares da realização de cultos nas igrejas e catedrais. Encimam os locais onde os poderes do estado governam os cidadãos, administram os recursos públicos, elaboram as leis que disciplinam a vida dos cidadãos e se julgam e emitem os veredictos em questões relativas à justiça. 

A lógica que nos vem orientando até aqui leva à conclusão de que os conhecimentos formais, as realizações concretas e os materiais que deles resultam, somente então têm valor como conhecimento quando dotados de significados. Acontece que os significados são resultados da elaboração e consolidação do conhecimento popular, que por sua vez é essencialmente intuitivo e concretiza-se num contexto histórico-cultural determinado, temperado pela forma peculiar com que cada indivíduo o expressa. É por meio da intuição que os fatos e realidades adquirem sentido e qualidade. Ao fazer ciência o verdadeiro pesquisador não se limita em identificar a natureza física, química, as leis que regem os processos naturais, a interdependência entre eles, a sequência em que acontecem e o proveito teórico e prático que oferecem. Move-o o desejo de avançar até deparar-se com a identificação daquele “misterioso motor” que de fato explica de forma convincente e definitiva a existência, o funcionamento e a razão de ser da natureza e o seu personagem maior, o homem. As hipóteses, as teorias e os modelos matmetmáticos que servem de orientação à pesquisa científica tem muito mais motivação de natureza intuitiva do que muitos se dispõem a admitir. Tomemos como exemplo o fenômeno conhecido como “genialidade”. O que faz com que um “gênio” se distingua de um cientista ou filósofo comum? O gênio, salvo melhor caracterização, pode ser definido como uma pessoa que, observando atentamente o que acontece em sua volta e pelo mundo afora, percebe, intui, o que se esconde de revolucionário, de potencial inovador, de explosivo numa determinada conjuntura, realidade ou descoberta. Poderíamos dizer que a intuição o leva a “farejar” o que o “olfato” do comum dos mortais não percebe. No momento em que me dedico a esta reflexão a grande mídia reservou um espaço privilegiado à confirmação da existência do “Bóson de Higgs”. Há quase cinquenta anos o físico inglês Peter Higgs, seguindo as pegadas do astrofísico belga Georges Lemaitre, que deu origem à teoria do Big Bang, propôs a teoria da existência do “bóson” como responsável pela mecânica que deflagrou o começo do universo. É claro que há uma diferença significativa entre o grau de intuição de um pastor do neolítico que interpretava a passagem de um cometa como prenúncio de catástrofes e Peter Higgs de posse dos dados empíricos da física moderna. Mas no essencial o pastor de ovelhas de dez mil anos passados e o físico de metade do século vinte coincidem. Observando o mundo que os rodeia, o primeiro o firmamento estrelado numa noite de vigília e o segundo tendo em mãos as informações oferecidas pelos laboratórios, intuem, “farejam” algo que se encontra para além do que vêm e observam. No fundo, no fundo, não faz diferença se a intuição do primeiro foi equivocada e a do segundo, pelo menos, confirmada na sua essência. O que é importante é que em ambos os casos e em inúmeros outros, senão em todos, está presente como fator desencadeador do conhecimento, a percepção intuitiva como “motor subliminar” que deu partida para posteriores comprovações. Peter Higgs não participou da comprovação experimental da sua teoria de cinco décadas passadas, mas passou a ser, ainda em vida, um exemplo paradigmático de como funciona a gênese e a construção do conhecimento.

O raciocínio que estamos desenvolvendo leva à conclusão de que tanto os dados obtidos a partir de bases analítico-indutivas quanto sintético-dedutivas, não tem condições de amalgamar-se na forma de uma síntese superior de conhecimento. Nenhum dos dois oferece em seu arsenal teórico-metodológico o potencial de moldar a peça de fechamento da cúpula ou do arco   sem a qual, aliás, não se pode falar nem em arco nem em cúpula. 

 O Pe. Balduino Rambo diante da dificuldade de harmonizar, de amalgamar o progresso das Ciências Naturais com o sistema Aristotélico-Tomista, pergunta se não seria oportuno  abandonar as vias convencionais da produção do conhecimento, ou pelo menos chamar em socorro o velho Platonismo com sua linha de pensamento e aproveitar das  Escolas convencionais somente aquilo que se enquadra nas leis perenes do Pensamento Humano, porque,

Entre a Ciência e a Fé (entre as Ciências Naturais, a Filosofia, a Teologia, as Ciências Humanas, as Letras e Artes. (inciso do autor), estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa senão um conhecimento condensado. Não se trata ali tanto do significado e da expressão imediata da palavra, como do som subliminar que emite e da ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se prestou muito pouca atenção. Bem considerada ela não é um som secundário, e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do homem. (Rambo, Balduino. 1994.)

[ Reflexões ]

Na sua visita aos maiores museus de arqueologia nos Estados Unidos o Pe. Ballduino Rambo resumiu com precisão a importância de procurar na fase “pré-científica” as raízes de todo o conhecimento posteriormente construído. Chama a atenção de que muito pouco de essencialmente novo foi acrescentado ao que o homem da pré-história já conhecia e praticava. Na sua essência todas as realizações posteriores das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas e das Letras e Artes, devem ser procurados nos objetos expostos daqueles museus. Quem sabe ler e entender essa linguagem em pedra, osso, chifre, madeira, tecidos, vestígios de fogo, evidências de culto, demonstrações de arte, rituais  e monumentos fúnebres, convence-se que o gérmen do conhecimento foi concebido, plantado e cultivado a partir do momento em que  os primeiros homens deram os passos iniciais para a aventura da espécie humana através dos tempos. Para repetir novamente, pouco importa a aparência física desses seres humanos ou o local e a data em que entraram em cena. O que decide são os seus feitos e o potencial sem limites de desdobramentos em termos de cultura material e imaterial. O resumo da leitura que o Pe. Rambo fez do que viu nas  exposições no museu da Philadelphia deixou-a forma de duas reflexões. A primeira contempla a cultura material.

O homem que como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou rês quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que se fabrica hoje de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar e, como isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiras e cozinheiros, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, devemo-lo, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, da erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças arremessadas com as mãos. Sorte sua que não desenvolveu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o homem o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis do que nossos arranha-céus e palácios, certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas, comemos até nos saciar”. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 400-401))

Entre as relíquias expostas num museu caem em vista os fragmentos de um esqueleto de criança, procedente da Riviera Francesa, rodeado com um colar de milhares de conchas perfuradas. De pronto sugere o mundo imaginário humano e religioso, com destaque para a figura da mãe na história dos homens. 

Pode-se concluir que um dia estiveram unidos com um barbante e presas numa roupinha. Aqui uma mãe fez acompanhar o seu tesouro para a sepultura com o que tinha de mais valioso (...) E onde se manifestam semelhantes sentimentos está viva a crença num divindade e numa vida depois da morte, realidades que constatamos também hoje entre todos os povos primitivos, como comprova a gigantesca obra de seis volumes de Wilhelm Schmidt, com o titulo: “A Origem da Ideia de Deus”. (...) Nosso amigo e antepassado foi um poderoso artista, antes de mais nada um acabado pintor em preto e branco. Já em outra parte cantei um hino de louvor nesse sentido. Tiremos o chapéu perante o nosso antepassado caçador, inventor, artista dos tempos primigênios. (Rambo, Balduino. Três Meses na América. p. 401)

O conhecimento de que nos acabamos de ocupar é tão verdadeiro e tão útil quanto o conhecimento oferecido pelos recursos mais modernos. Como estes cumpre perfeitamente a finalidade essencial de suprir as necessidades do quotidiano naquelas circunstâncias. Avaliado de outra perspectiva, tem sido o primeiro passo, o primeiro elo na cadeia da construção do conhecimento. Sem esse primeiro elo não teria havido um segundo, um terceiro e os demais, ou simplesmente não teria havido construção de conhecimento algum. Com essa constatação impõe-se nada mais nada menos do que conceber o conhecimento como síntese e validar a “intuição” como um caminho objetivamente tão legítimo quanto a “dedução” e a “indução” para produzi-lo. Mais.  Durante milênios foi a ferramenta por excelência com a qual o homem lançou as bases e consolidou os corpos de conhecimento que terminaram nas grandes culturas do ocidente, da oriente próximo, médio e remoto, das altas culturas da América, e das milhares de culturas regionais e locais, dispersas pelos cinco continentes e as ilhas dos oceanos. Um outro fato não pode ser ignorado. Nos diversos grandes complexos culturais definiram-se, aos poucos, métodos e técnicas com a finalidade de lidar com a complexificação crescente. As cosmovisões daí resultantes, os desafios práticos engendrados pelo aperfeiçoamento tecnológico, a tendência natural do homem de obter respostas às perguntas colocadas pelo quotidiano, terminaram por formular propostas de métodos capazes de dar conta da tarefa. Dessa forma a civilização greco-romana como fundamento imediato da cultura ocidental consolidou quinhentos anos antes da nossa era o caminho da “lógica dedutiva” da linha Aristotélica e a Platônica com acento na “compreensão intuitiva”. Depois de séculos sob a influência do Platonismo, a redescoberta de Aristóteles com sua lógica racional e retilínea arredou-o para um plano secundário. Com a entrada triunfal das Ciências Naturais no cenário da dinâmica civilizatória, o empirismo, a experimentação, a observação, a análise e a indução como método de trabalho, foram-se impondo. Aos poucos o método sintético-dedutivo e o analítico indutivo, diminuíram cada vez mais a importância da “intuição” como fonte legítima de conhecer e explicar as realidades e dar uma contribuição de fundo para construção do conhecimento. Relembrando. Francis Bacon reduziu os pilares do conhecimento ao método “analítico-indutivo” e ao “sintético-dedutivo”. A “intuição” parece não ter tido lugar na sua mente racionalista. A utilidade dos dois métodos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo que oferecem quase que exclusivamente os elementos que conferem o perfil ao conhecimento que está sendo produzido pelo mundo afora e legitimado como tal, vem acompanhado de não pequenos riscos e lacunas. Teilhard de Chardin, como já registramos mais acima, depois de classificar o método analítico-indutivo como “esse maravilhoso instrumento do progresso”, chamou a atenção para o paradoxo ao que leva quando de uma aposta irrestrita nos seus resultados. Diante do monte de peças de uma máquina desmontada, perde-se a noção da própria máquina e da função de cada peça quando em funcionamento; de tanto dissecar um tecido ou um órgão vai-se a compreensão de que pertenceu a um ser vivo e de que fora desse contexto, não passa de uma estrutura orgânica qualquer e as informações que pode dar confinam-se ao nível da química e da física. O efeito generalizado dos limites da indução e da dedução formam a base da fragmentação em todos os níveis e em todos os setores que molda o rosto perturbador da pós-modernidade. 

[ Reflexões ]

Construção do Conhecimento

O recurso à metáfora foi sempre uma boa saída para tornar palpáveis pensamentos abstratos. A construção das sínteses do conhecimento tanto em áreas específicas, quanto numa síntese global, assemelha-se ao desenvolvimento de uma árvore. Escolhemos como representante emblemático a araucária, o símbolo das florestas do sul do Brasil. Observando com um pouco mais de atenção um desses gigantes várias vezes seculares, ele oferece todos os elementos de que necessitamos, para tornar compreensível a construção do conhecimento como uma síntese. Semelhante aos humanos suas raízes vigorosas mergulham fundo na mãe terra. De um lado garantem a solidez necessária para que o tronco e a copa que sobem a trinta, quarenta ou mais metros, resistam à fúria dos temporais. De outro lado captam os sais minerais e demais nutrientes através das radícolas nas extremidades das ramificações das raízes. Pela seiva são transportadas para o alto para dar vida ao todo, até as agulhas mais extremas. Na trajetória pelo tronco, pelos galhos e tufos de agulhas, são processados e incorporados na estrutura. Tudo acontece de forma harmônica, como é próprio de um sistema vivo, como é uma araucária. Assim como a araucária, para realizar a síntese do conhecimento, o homem capta a matéria prima no mundo mineral para garantir a vida.  E é nesse nível que a capacidade de reflexão entra em ação simultaneamente com os instintos. Estes, por assim dizer, fazem o papel de plataforma, de raízes sobre as quais a inteligência reflexa vai construindo o vigoroso tronco da majestosa árvore do conhecimento. Dele projetam-se para os lados e o alto os galhos. Tudo muito esbelto e harmonioso, mas sólido, vigoroso, simétrico, majestoso e imponente. O escritor Sérgio Farina, apaixonado pelas araucárias da sua terra natal, Veranópolis, costumava compará-las a alguém rezando com os braços levantados para o alto. O escritor Renato Dalto no texto que acompanha as fotos de Eduardo Tavares na obra “Aparados da Serra – Na trilha do Pe. Rambo”, resumiu o perfil da araucária: “Na visão de baixo para cima os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra, para ver que há raízes fortes encravadas no chão”.  Reunindo os muitos simbolismos que uma araucária secular é capaz de sugerir, revela-se também como uma metáfora perfeita para o conhecimento. Suas raízes entram fundo no chão. Nas entranhas virgens da terra captam entre rochas, húmus, cascalhos, areias e aluviões, os nutrientes que garantem a sua vitalidade, sua estrutura, sua solidez e sua imponência. Seu tronco sólido e simétrico, elevando-se a prumo em busca das nuvens e do firmamento, prova a síntese bem sucedida dos processos vitais que a construíram. 

Na metáfora a que recorremos, minerais retirados da terra e da atmosfera são transformados em nutrientes e elementos estruturais característicos da espécie taxonômica da araucária. As mesmas matérias primas minerais entram na concretização de todas as outras espécies vegetais, conferindo-lhes as características de individualidade de acordo com o DNA de cada uma. Araucárias, cedros, carvalhos, gramíneas, flores do campo, musgos, todos são alimentados pelas mesmas matérias primas minerais. Todos, portanto, alimentam-se da mesma fonte, mas apresentam-se em milhões de formas individuais devidas às características genéticas   somadas às influências do meio ambiente. De maneira análoga o conhecimento começa a ser gerado a um nível em que o instintivo, o intuitivo e racional no homem se aliam, se confundem e se estimulam mutuamente. A matéria prima na araucária é captada pelas raízes e levada pela seiva, subindo a dezenas metros até as agulhas mais altas. A raízes que captam a matéria prima necessária para a construção do conhecimento são os cinco sentidos. As cores, as luzes e sombras, os espetáculos que empolgam, assustam ou comovem, as paisagens, os panoramas, as coreografias da natureza, entram pelos olhos. Os sons, os ruídos, as melodias, as dissonâncias, os sussurros, os uivos, os gritos, os choros, as risadas, as gargalhadas, o farfalhar das folhas, enfim a sinfonia ou as sinfonias dos sons da natureza, tem como porta de entrada o ouvido. O olfato capta os odores, os perfumes exalados pelas flores, pelas ervas, pela chuva, pela natureza como um todo, os maus cheiros denunciando decomposição, estagnação, mofo e podridão. Pelo tato transmitem-se as mensagens de um aperto de mão, de um abraço silencioso mais eloquente que palavras, de um afago, de uma palmada, de uma pancada, de uma arranhada, de uma mordida, de um ferimento, das dores, da brisa, do calor, do frio. Enfim o gosto é o responsável pela triagem dos alimentos e bebidas indispensáveis para a sobrevivência. O que significam as raízes para uma araucária os cinco sentidos significam para o homem, isto é, por meio deles permite-se o acesso às fontes de matérias primas que sustentam a vida biológica e municiam a construção do conhecimento que, por sua vez, determina o perfil da cultura. E, concluindo a metáfora: o ser humano ao morrer perde todos os sentidos e sobra apenas um cadáver. A araucária privada de suas raízes deixa de ser uma árvore para sobrar apenas madeira.

Como os sais minerais e demais nutrientes da nossa metáfora sofrem um processo de transformação para adequá-los às características de uma araucária, assim também as imagens, os sons, os gostos, os odores e as sensações são captados pelos sentidos como matéria prima. Para transformarem-se em conhecimento passam por um processo de significação e resignificação do papel que lhes cabe desempenhar na vida dos indivíduos e das sociedades humanas. Este processo é, em grandes linhas, alimentado pela tradição histórico-cultural em que ocorre e pelas idiossincrasias pessoais. As “matérias primas” captadas pelos sentidos passam por essa dupla via de significação na medida em que são incorporadas harmonicamente no corpo do conhecimento de alguma tradição cultural. As cores não ocorrem como tais na natureza, não são dados naturais objetivos.  O fato objetivo que vem a ser a base das cores e de suas combinações, são ondas luminosas de comprimentos diferentes. Para que a luminosidade emitida por um comprimento determinado seja percebida pelo olho como vermelha, azul, branca ou verde, não passa de uma convenção cultural que requer um aprendizado. A criança aprende que o vermelho é vermelho e o verde é verde, o branco é branco e o preto é preto. Mais. O simbolismo que acompanha as cores foi sendo consolidado pela tradição cultural. A mesma simboliza eventualidades opostas em culturas diferentes. Na cultura ocidental o branco inspira um clima festivo, simboliza a pureza, indica com uma bandeira branca a vontade de suspender as inimizades e convidar para a celebração da paz. Em outras tradições como por ex., na chinesa o branco significa luto. Na mesma linha vai o preto. Um traje preto com seus acessórios pode estar associado ao luto e a momentos que requerem respeito, sobriedade, a ocasiões de importância e de significado fora do comum, inclusive no traje da noiva entre descendentes de vesfalianos no sul do Brasil. 

Seria demasiadamente longo e não há necessidade de  insistir  que o que vale para as cores encontra aplicação, em cada caso à sua maneira, nos outros quatro sentidos. O que todos têm em comum é o de servirem como pontes, como janelas que permitem o contato das pessoas   com o mundo externo. A perda da visão ou da audição impossibilita ao cego ou ao surdo situar-se, movimentar-se e entender-se no universo de luzes, cores, paisagens, panoramas e   espetáculos da natureza, de um lado, e do mundo de sons, dissonâncias, sinfonias e harmonias que povoam o seu entorno. O surdo costuma ser mudo porque o ouvir vem a ser a condição espontânea para desenvolver a capacidade de falar e vem a ser o caminho mais importante para apropriar-se da língua a qual, por sua vez, é veículo convencional normal para contatar e manusear o universo simbólico e conceitual da cultura. Imagine-se agora uma pessoa privada da visão, da audição e como consequência também da fala. Estará condenada a passar uma existência na escuridão total e no silêncio mais absoluto. Nenhum artifício técnico é capaz de compensar satisfatoriamente tal limitação. Se a história registra casos de uma superação do problema ao nível da escritora norte-americana Hellen Keller cega, surda e muda, são, por assim dizer, exceções da exceção. Numa situação extrema de falha de todos os sentidos, a pessoa passaria a ser um ente vivo, reduzido à total inanição, inviável, a não ser por artifícios técnicos, semelhante ao estado de coma profunda ou anestesia geral. 

O conhecimento começa, portanto, a ser gerado a partir das informações captadas pelos sentidos e lavados aos centros de processamento do cérebro. A capacidade reflexiva, influenciada, de um lado pela própria natureza das informações, e do outro, pelas características culturais, somadas à percepção idiossincrática do receptor, molda o perfil do conhecimento, um processo por sua natureza dinâmico e sintético.  É nesse patamar “pré-científico” que são dados os primeiros passos em direção da construção do conhecimento. O termo “pré-científico” viria a ser injusto se fosse entendido como “o ainda não científico”. 

[ Reflexões ]

Theodosius Dobzhansky, um dos geneticistas mais importantes e mais influentes do século XX, explicitou, com rara precisão, a interdependência entre instinto e racionalidade, quando da elaboração da cultura. Como a cultura em última análise é fruto do conhecimento, a afirmação que ele faz da gênese e evolução da cultura é, por extensão, válida também para o conhecimento.

O homem e só ele possui a capacidade de pensamento simbólico e ter consciência de si mesmo. O ser humano tem a capacidade de contemplar-se como objeto entre outros objetos. Como consequência é capaz de optar, de relacionar e controlar-se a si mesmo, da mesma forma como está em suas mãos dominar e controlar a natureza. Da mesma maneira como os demais seres vivos, a natureza fornece as impressões sensoriais. Os animais conhecem as circunstâncias que os rodeiam, mas o homem tem a consciência do seu conhecimento.  Todas as espécies de multicelulares morrem, mas o homem é o único animal que sabe que vai morrer. A espécie humana e outras espécies biológicas evoluíram e se encontram em plena evolução, mas só o homem descobriu o fato da evolução. Como consequência somente o homem, se assim o desejar, pode aceitar ou rejeitar a linha da evolução, imposta pelas forças cegas da natureza. Só ele tem condições de entender, controlar e orientar a sua própria evolução. (Dobzhansky, Theodosius, 1969,  pág. 152.)

A tentativa de descrever a gênese da construção do conhecimento desde o seu nascedouro, não pode ignorar os pressupostos formulados por Dobzhansky. Colocado na perspectiva da evolução o homem evoluiu em dois planos: no biológico e no cultural. No biológico o processo evolutivo fundamenta-se nas mesmas bases bioquímicas das demais milhões de espécies de seres vivos. A natureza biológica resume-se no mesmo DNA de uma ameba, de uma planta, de um vertebrado, de um mamífero ou do homem. Sob este aspecto, portanto, o homem comporta-se exatamente da mesma forma   como uma ave, um peixe ou um vegetal. As características condicionadas pelo DNA, são transmitidas de geração em geração. Não podem ser compartilhadas a não ser pelos descendentes diretos.

Mas o que faz a diferença entre o homem e demais espécies vivas é sua capacidade de reflexão e, por isso mesmo, ter consciência de si mesmo e das realidades em sua volta. Isto se chama conhecer, isso se chama desenvolver uma cultura. Acontece que a capacidade de conhecer, de desenvolver cultura, não se herda pelo DNA. Aprende-se e transmite-se via aprendizado individual e coletivo. Foi, novamente Dobzhansky que resumiu com rara propriedade a questão.

O sentido técnico em que o termo “cultura” está sendo empregado aqui, todos os povos modernos e antigos, avançados e primitivos o possuem. A cultura não consiste apenas naquilo que se aprende nos livros e nos bons manuais. Compreende muito mais do que isso.  Consiste na soma total de hábitos, crenças, costumes, linguagens, técnicas, de modo geral tudo aquilo que pensam e fazem as pessoas como resultado de um aprendizado anterior. A cultura é exclusivamente humana. Nas demais espécies zoológicas só se encontram os vestígios mais rudimentares de transmissão cultural, suficientes para convencer os evolucionistas de que nossos antepassados humanos possuíam elementos a partir dos quais evoluiu a capacidade cultural no decorrer da história. A linguagem humana constitui-se numa característica especialmente distintiva da cultura. Por meio dela a cultura é transmitida de geração em geração. As assim chamadas “linguagens animais”, os gritos, os cantos ou ruídos por meio dos quais uma ave ou um mamífero se comunica com seus semelhantes são, na realidade, fenômenos muito distintos da linguagem humana. As palavras que a compõem são símbolos convencionais que representam objetos, ações e relações. A linguagem humana é muito mais eficiente como meio de comunicação pois, revela a capacidade de pensamento simbólico e abstração, dos quais se percebem apenas rudimentos entre os animais. (Dobzhansky. Op. Cit. p. 153)

Na passagem que acabamos de citar Dobzhansky condensou com perfeição os elementos desencadeadores do conhecimento. Mesmo que não faça uso do termo “conhecimento”, todos os elementos que o envolvem, encontram-se no conceito de “cultura”. Afinal, tanto um quanto o outro, lidam com o mesmo objeto formal, isto é, a construção da história do homem através dos tempos. Tomadas essas precauções, estamos em condições de acompanhar a evolução do conhecimento. E, para não ficar patinando em reflexões teóricas e abstratas, tentemos acompanhar a trajetória da construção do pensamento em algumas áreas que se tornaram os pilares mestres de culturas e civilizações. Pretendemos emprestar atenção especial à evolução do conhecimento em algumas delas. 

[ Reflexões ]

Partindo da convicção de que os primeiros humanos eram portadores de um cérebro capaz de operações reflexas, na sua essência iguais às do homem atual, temos condições de imaginar como tudo começou. Não faz grande diferença se o potencial de raciocínio de então era menor do que o do homem de hoje. O que importa é que em ambos os casos está presente o grau de reflexão suficiente para desencadear operações mentais que levam à construção do conhecimento. Quem sabe uma analogia entre a ontogênese e a filogênese do homem seja útil nesse esforço. Não é da nossa intenção requentar a discussão de cem anos passados, quando Ernst Haeckel formulou a “Lei Biogenética Fundamental”, que afirma que a ontogênese, a evolução individual, era o resumo da filogênese, a evolução em geral. É uma questão a ser resolvida ao nível dos estudos da evolução. De qualquer forma, observa-se um paralelismo muito sugestivo entre o despertar da consciência reflexa de uma criança e a manifestação dos sinais da presença da mesma, há muitos milênios entre os “primitivos” seres humanos. Não há dúvida de que traçar um paralelismo entre a evolução ontogenética e filogenética aplicada à evolução da construção do conhecimento, tem seus limites. O despertar da criança para a consciência reflexa e, a partir daí, para a construção do seu conhecimento, é um fenômeno que podemos acompanhar no quotidiano. O mesmo já não é possível em se tratando da infância da humanidade. Há a saída pelo recurso à analogia e, por que não, à imaginação. Considerando bem, a imaginação nos leva mais longe. Evidentemente a imaginação não pode dispensar, neste caso, um mínimo de objetividade, melhor, uma objetividade possível. E essa objetividade  possível nos garante tanto a analogia com o aprendizado de uma criança, quanto  a experiência do quotidiano quando as pessoas tomam consciência dos desafios, procuram entendê-los, inventam formas para resolvê-los e criam as tecnologias e instrumentos específicos, traçam o caminho a seguir executam as ações necessárias para solucionar os problemas.


Que essa sequência de procedimentos pressupõe inteligência reflexa, dispensa teorias complicadas. Da mesma forma como o humano do terceiro milênio, os humanos de quinhentos mil anos ou mais atrás, assumiram a mesma atitude frente aos desafios da vida. Não importam nem as circunstâncias, nem a origem, nem a natureza do problema, constata  o fato de que entra em atividade o complexo mecanismo do raciocínio. Na identificação dessa situação o instinto contribui em dose mais ou menos elevada. A avaliação que segue requer o concurso da inteligência, requer reflexão. Os dois níveis de conhecimento estão sempre presentes. O processo costuma ser desencadeado pela reação instintiva do homem frente a uma eventualidade. O fato é identificado pelo instinto. A partir do momento, porém, em que se dá a constatação, ou se toma consciência do fato, entra em ação o poder da reflexão. No animal o processo estagna ao nível da constatação e da tomada de consciência. Em consequência também o conhecimento não evolui para além e para cima desse patamar. Observa-se ainda que, por isso mesmo, as respostas de que o animal dispõe, ficam confinadas também no patamar da constatação e da tomada de consciência, o que equivale ao conhecimento instintivo. Nessa situação a resposta só pode ser uma, isto é, aquela prevista pela própria natureza instintiva de cada caso em particular. Em se tratando do homem a constatação e a tomada de consciência são apenas o ponto de partida, a base sobre a qual a inteligência reflexa vai operar, a matéria prima com que vai construir o conhecimento. E nesse processo de construção do conhecimento   contribuem diferentes fatores que decidem o rumo que a operação mental vai tomar, a configuração que se vai imprimir e o perfil que resulta no final. E nessas diversas fases e dimensões do processo influem as circunstâncias concretas em que cada situação concreta acontece. Elas são corresponsáveis pela forma como se dá a constatação, os estímulos e a consciência. Tomemos como exemplo a morte de uma pessoa. Constatado o fato e tomado consciência do que aconteceu, entra em ação uma sequência de processos mentais reflexivos sobre o significado daquele fato. Procura-se explicar o acontecimento em si, as repercussões sobre o próprio defunto, sobre seus familiares, sobre as pessoas das suas relações mais chegadas, sobre o grupo social ao qual pertenceu. Tudo isso acontece já ao nível da inteligência reflexa. A morte é vista e avaliada na moldura do cenário cultural em que ocorreu. As reflexões sobre o destino do defunto acontecem na perspectiva do imaginário e das crenças cultivadas no grupo social em que viveu. A repercussão social é avaliada de acordo com o significado do seu status, da posição e importância do falecido no seu grupo social. 


No esforço de acompanhar a construção do conhecimento, partindo da base formada pelos estímulos de natureza instintiva, é estimulante percorrer os estágios evolutivos nos quais a inteligência reflexa vai dando as coordenadas. Como não dispomos de dados materiais objetivos, para reconstituir a história do conhecimento daqueles tempos remotos não há outra saída a não ser recorrer a ilações. Formam um caminho legítimo, contanto que se tomem algumas precauções. É importante conduzir a lógica partindo de uma premissa válida e confiável. E parece aceitável como pressuposto suficientemente seguro, a convicção de que a natureza humana permaneceu na sua essência a mesma, desde o primeiro humano dotado de inteligência reflexa até os cientistas de hoje decifrando o código genético ou penetrando no âmago da natureza física e biológica do universo. 


Basta observar as reações das pessoas no quotidiano ao se defrontarem com uma eventualidade qualquer. Não importa se são situações pessoais, fenômenos naturais, animais ou acontecimentos coletivos. O primeiro impacto vem acompanhado de reações de natureza instintiva, esperáveis em tais situações. Passado o primeiro susto, admiração e surpresa, entra em cena a inteligência reflexa.  A pessoa se recompõe, procura arredar para um segundo plano os efeitos causados pelas reações instintivas e irracionais e trata de encarar a situação com parâmetros racionais. Uma reflexão calma e sóbria permite inteirara-se objetivamente dos acontecimentos, entender ou não entender do que se trata, avaliar as consequências, buscar soluções adequadas, traçar estratégias, optar por meios e ferramentas eficientes e, por fim, tentar solucionar o problema. Essa sucessão de procedimentos nos moldes de um fluxograma usual em projetos, assume no homem no começo da pré-história, contornos de todo espontâneos e informais. Aliás reações parecidas são comuns entre as pessoas do povo simples e pouco letrado. O importante na questão não é como, ou a que nível é levado, à base de que métodos as coisas acontecem, mas a energia, o motor que dá partida e depois move o processo uma vez em andamento, isto é, a capacidade de reflexão. E o pressuposto que permite o raciocínio já esteve presente, na sua essência pelo menos, nos primeiros humanos, assim como nas pessoas mais cultas e sábias de hoje.


[ Reflexões ]

O conhecimento pré-científico

O ponto de partida para entender a maneia peculiar de ser, agir e pensar do homem, deve ser procurado na sua natureza. Parece que ainda não se caracterizou com maior acerto a natureza do homem do que a velha Filosofia grega. “O homem existe como os minerais – o homem existe e vegeta como as plantas – existe, vegeta, sente e possui instintos como os animais, mas pela inteligência reflexa que lhe permite raciocinar, eleva-se a uma categoria inteiramente nova.  No esforço de entender os mecanismos e processos que comandam a construção do conhecimento, não se pode ignorar a complexa realidade que vem a ser o homem. É óbvio que a natureza químico-física, que determina a composição, a estrutura e as funções orgânicas influem mais indireta do que diretamente, no comportamento. Isso vale de modo especial para as atividades responsáveis pela produção do conhecimento. É nesse nível que a ferramenta “sine qua non” vem a ser a inteligência reflexa.  Não é menos verdade, porém, que essa capacidade não se configura num “epifenômeno” que opera nas e sobre as estruturas de um organismo feito de matérias comuns à natureza e na natureza. A inteligência reflexa não se vale do organismo material e dos seus órgãos e funções, como uma plataforma operacional, no sentido do velho dualismo de Hans Driesch. Nele se afirma que o “princípio vital”, no nosso caso, a inteligência reflexa, age sobre as estruturas matérias e as funções que nelas ocorrem, como o “capitão comanda o navio”. Hoje diríamos: como um operador comanda um supercomputador. 

No caso dos seres vivos em geral e do homem em particular, o dualismo de Driesch e dos seus seguidores no começo do século XX, foi superado pela concepção organísmica e sistêmica de Ludwig von Bertalanffy em meados do século XX. Mas para subsidiar a análise das bases e mecanismos da gênese do conhecimento, a partir da “intuição”, ou se preferirmos, no estágio pré-científico, a concepção da “antropogênese” de Teilhard de Chardin, parece ser muito mais útil. Na sua grandiosa visão da unidade do universo, da natureza, culminando no aparecimento do homem portador de inteligência reflexa, é central o conceito “Consciência”. Embora não perceptível, melhor talvez, não atual, ela está de alguma forma presente de forma potencial no universo e na natureza em todos os níveis de “complexidade”, outro conceito chave em Teilhard. Na medida em que a complexificação se acentua pela agregação e incorporação de sempre mais novos elementos, a consciência sobe gradativamente à tona, iluminando com intensidade crescente as realidades que integram a natureza. Cada passo mais adiante e mais acima na complexificação, abre caminho para mais consciência. Até o nível dos vegetais e categorias zoológicas inferiores, o elemento “consciente” da consciência, permanece latente, melhor talvez, em potencial. Mesmo nessas categorias é possível perceber sinais de consciência. Protozoários como as algas diatomáceas, amebas e bactérias, circulam no meio líquido em que vivem, obedecendo a impulsos comandados pelo “instinto” da sobrevivência, próprio para cada espécie. Na dinâmica da evolução como Teilhard de Chardin a concebeu, estamos frente a uma manifestação efetiva de consciência rudimentar. A diatomácia, a ameba, a bactéria, tem “consciência”, tem “conhecimento”, do espaço e do meio em que circulam e realizam o ciclo da existência individual e da espécie. Instinto, consciência, conhecimento, parecem em última análise objetos de uma discussão secundária. O que de fato importa é que a diatomácia ou o tripanosoma se encontram num estágio de complexificação evolutiva que lhes oferece os meios que permitem a mobilidade suficiente no meio em que encontram o alimento e cumprem o ritual da reprodução e perpetuação da espécie. 

Saltando alguns degraus na complexificação evolutiva encontramos os peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Em cada um desses grupos observa-se um nível de “consciência” sempre mais “consciente”. Um peixe, um batráquio, um lagarto, um sabiá, um cachorro, conhece, tem consciência, cada qual de acordo com seu grau de evolução e à sua maneira, por onde circular, com que se alimentar, como se reproduzir, que sinais são de alerta e quais os sinais, atitudes e os sons para se comunicar. Não se pode negar que no fundo estamos diante de um tipo, de uma forma de “conhecimento”. Se há conhecimento há consciência. Se há consciência e conhecimento, há “memória”. A experiência do quotidiano ilustra muito bem o que acabamos de teorizar. Um cachorro que apanhou uma única vez com uma vassoura, evita esse artefato sempre que puder, ainda mais quando estiver nas mãos da pessoa que lhe aplicou a vassourada. O cachorro aprendeu que a vassoura não é coisa boa quando nas mãos de uma determinada pessoa. Parece que não há dúvida de que a reação do cachorro na presença daquela pessoa com uma vassoura na mão, implica tanto em consciência, quanto em memória. Outro exemplo não menos ilustrativo é o da vaca pastando num piquete cercado com um fio de arame eletrificado. Depois do primeiro choque o animal não se aproxima mais do fio. O dono pode desligá-lo tranquilamente porque a vaca, com a experiência desagradável, fixou na   memória o acontecido e tem consciência de que aquele fio não é coisa que se toque. Vão na mesma linha as experiências realizadas com os reflexos condicionados. 

Os exemplos mostram que os animais possuem memória e consciência. Por meio delas munem-se do “conhecimento” necessário para garantirem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Convém lembrar, porém, que se trata de um conhecimento instintivo e, por isso mesmo, não   permite mudanças, adaptações, reformulações ou alternativas, a não ser que sejam induzidas por um agente externo. Não se pode, portanto, falar num verdadeiro “aprendizado”. Tudo se passa ao nível dos reflexos condicionados pois, os animais se ressentem da carência de “reflexão”, ausente do seu potencial de desenvolver conhecimento. Dito de outra forma. É lícito falar em inteligência em se tratando de um animal, com a ressalva de que não é “inteligência reflexa”, prerrogativa exclusiva do homem. Sendo assim, os animais por mais “inteligentes” que possam ser, são incapazes de parar diante de um problema que se lhes antepõe, entender a sua natureza, analisar formas e alternativas de solução, optar por aquela que promete melhores resultados. Esse tipo de procedimentos é privativo do homem, porque tem à sua disposição o inesgotável potencial da “inteligência reflexa”. Carente dessa prerrogativa o animal não tem como recorrer a alternativas. Ou o instinto comporta uma solução dentro dos limites de suas potencialidades, ou fica sem alternativas para superar a situação. 

Pelo simples fato de o homem, em comum com os animais, vir equipado com os mesmos instintos, não há como não aceitar que o seu comportamento se ressente desse seu lado animal. Como movimentar-se nas eventualidades da vida, implica a um nível considerável, da sua condição de animal, entram na construção do conhecimento muito mais elementos de origem e natureza instintiva do que se percebe à primeira vista ou, quem sabe, se gostaria de admitir.

Pelo visto chegamos na fronteira, na faixa de transição, na qual se passa gradativamente, “sensim sine sensu”, do conhecimento puramente animal-instintivo para o humano-racional-reflexo. O conhecimento animal vai passando para um segundo plano na medida em que o potencial instintivo tiver dado o que tinha a dar. Na entrada da faixa de transição o conhecimento do homem quase se confunde ainda com o de animais mais próximos a ele na escala taxonômica, como são os antropoides. Mas uma vez desencadeada essa transição, a dinâmica da construção do pensamento acelera-se no ritmo de uma progressão geométrica. No final da travessia os instintos que o homem continua compartilhando com os animais, vão ocupar um lugar secundário no perfil do conhecimento. São subsumidos, melhor talvez, pouco perceptíveis, à semelhança das raízes de uma árvore. São indispensáveis para o abastecimento do tronco, galhos e folhas, com os nutrientes indispensáveis para conferir solidez à majestade por ex., de uma araucária secular. 

A busca da razão determinante que permitiu ao homem a travessia do “Rubicão” que marca a fronteira entre o conhecimento animal e humano, termina na consciência reflexa. A diferença entre o conhecer por instinto e o conhecer pela reflexão, pode ser formulado da seguinte forma: o animal valendo-se do instinto “sabe” as coisas, o homem valendo-se da inteligência reflexa, é capaz de “saber o porque do seu saber”. Nesta distinção está implícita a explicação para a fronteira intransponível para o “saber e o conhecimento animal”. No homem, ao contrário, não se vislumbra um limite que barre o avanço, a diversificação, o enriquecimento e o aperfeiçoamento do conhecimento. O dínamo desse processo chama-se inteligência reflexa. Ela permite as operações mentais necessárias para superar os impasses da vida, responder os “porquês”, analisar e comparar situações, formular conceitos abstratos, seguir caminhos alternativos em situações idênticas, recorrer a soluções diferentes para resolver os mesmos desafios. Só assim foi possível que a humanidade começasse discretamente em algum lugar na terra, a epopeia vitoriosa da construção do conhecimento. A inteligência reflexa foi o motor que movimentou e movimenta ainda hoje as culturas localizadas dos coletores, caçadores, pastores, agricultores e as grandes civilizações históricas. E, enquanto homens povoarem a terra, essa história continuará, marcada por períodos de exuberância, de feitos espetaculares, alternando com fases de fluxo e refluxo, até que o derradeiro ser humano fechar as comportas do caudal da história da humanidade. Depois disso, a “terra sem gente”, como se intitula o seriado da televisão, retornará ao silencio, à quietude e, porque não, ao marasmo e à mesmice, entregue às leis da química, da física, da biologia e dos instintos e a história entrará numa “era de solidão”, uma “era eremozoica” no entender de Edward Wilson. 

Posto nesses termos convido a acompanhar os diversos passos, ou se preferirmos, os diversos estágios da ascensão histórica da construção do conhecimento “intuitivo pré-científico”. A entrada em cena do primeiro ser humano portador de inteligência reflexa, marcou o momento em que a relação de interdependência com o ambiente natural começou a entrar numa fase inteiramente nova. Pouca ou nenhuma diferença faz a data histórica e o local em que ocorreu. Tão pouco importa se aquele primeiro ser humano foi resultado da evolução natural ou não. Também não faz diferença a fisionomia externa mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. O que de fato fez a diferença foi a capacidade de raciocinar, de executar operações reflexas. Significou na entrada da história da vida de um fato qualitativamente novo. A discussão entre os cientistas, filósofos e teólogos de hoje resume-se na pergunta se esse salto de qualidade, essa travessia do Rubicão, significou apenas a conquista de mais um nível na progressão da evolução, ou se é devida a uma causa externa a ela. Não é nossa intenção aprofundar aqui essa polêmica. 

O fato é que a capacidade de raciocinar, de assumir uma atitude reflexiva perante a própria existência e do seu entorno, revolucionou na sua própria natureza o conhecimento. A relação passiva própria do comportamento instintivo, cedeu lugar a uma relação ativa comandada pela capacidade de refletir. E com isso a própria natureza do conhecimento e da consciência assumiram uma dimensão impensável até então. 

Não dispomos de dados e de informações objetivas materiais de como começou e prosperou a construção do conhecimento, a partir dessa nova relação do homem consigo mesmo e com o mundo que cercava. Os registros de informações isoladas e esparsas, como artefatos líticos e fragmentos de ossos, não permitem uma avaliação mais precisa. Dados em número suficiente para reconstituir culturas, só a partir dos 20000 anos passados ou depois. Uma imagem da atividade do homem antes desse período só com o recurso à lógica, à imaginação e à ilação.