[ Reflexões ]

Conhecimento por Intuição e Criatividade

Até aqui vínhamos fazendo considerações sobre os métodos sintético-dedutivo e analítico-indutivo, tão populares quando se fala em construção do conhecimento. Constatamos também que esses dois métodos, melhor quem sabe, duas vias que levam ao conhecimento, desde a Renascença, gozam da flagrante preferência dos cientistas de um lado e dos filósofos do outro. O sintético-dedutivo é uma herança que vem consolidada desde a Idade Média. Impôs-se como o instrumento metodológico mais conhecido e popular quando o assunto era produzir conhecimento. Relegou para um lugar secundário o Platonismo e seus adeptos. Depois que Tomás de Aquino e demais pensadores e intelectuais da sua linha, digamos assim, tiraram o pó da obra do Estagirita e a “cristianizaram”, ele veio a ser a estrada real sobre a qual se movimentava o conhecimento, até o advento das Ciências Naturais. Platão e o Platonismo movimentavam-se à margem do caudal principal. A concepção sintética-dedutiva-lógica de Aristóteles, ditava a moda para organizar o universo do conhecimento. Sem dúvida esse caminho percorrido com o auxílio de um aparato teórico-metodológico que deixava a sensação de muita segurança, levava uma evidente vantagem sobre o Platonismo. Neste o componente “intuição”, garantia de um lado liberdade muito maior do que a fria lógica aristotélica. Do outro, entretanto, suas demonstrações e conclusões, ressentiam-se da certeza, por assim dizer matemática, “do preto sobre o branco”, da racionalidade da lógica.  

A hegemonia do conhecimento produzido a partir da abordagem sintético-dedutiva começou a ser disputada na medida em que as Ciências Naturais se consolidavam, como fonte de conhecimento. Até então o que se sabia sobre a natureza em todos os sentidos, fora obtido pela via sintético-dedutiva. O mundo natural, a geografia, a botânica, a zoologia, eram vistas e pensadas como objetos da Filosofia e ou da Teologia. Não demorou, porém, o crescente interesse pelas realidades, fatos e fenômenos naturais. Constatou-se que se tratava de um conhecimento de natureza essencialmente diferente do universo da especulação filosófica, o que levou à busca de um caminho próprio para o estudo da natureza. Dito de outra forma. Buscou-se o método adequado, pois, as explicações à base de categorias especulativas, vistas a partir de uma perspectiva sintético-dedutiva, já não satisfaziam. As evidências reveladas pela observação empírica imediata, deixava evidente as limitações do método tradicional. 

Não demorou para impor-se a convicção de que no campo das Ciências Naturais, era forçoso inverter a direção na qual deveria ser conduzida a investigação. Em vez de começar partindo do todo para explicar as partes, da síntese, via dedução, deveria começar-se explicando as partes para, pela via analítico-indutiva chegar ao todo. Estavam assim definidas as bases teórico-metodológicas que polarizaram no último meio milênio a construção do conhecimento no campo das Ciências do Espírito, das Ciências Naturais e das Ciências Humanas. A Francis Bacon cabe o mérito da formulação teórica das bases da produção do conhecimento em Método Sintético-Dedutivo e Analítico- Indutivo.

Mas por mais abrangentes, compreensivos e conclusivos que fossem esses métodos, eles deixaram à margem a “intuição” como via legítima de chegar ao conhecimento. Essa via e o conhecimento que dela resulta, são vistos com desconfiança tanto pelo racionalismo filosófico quanto pelo racionalismo científico. Costuma-se afirmar que a esse tipo de conhecimento falta a legitimidade dos dados empíricos das Ciências Naturais assim como da lógica racional   retilínea e sem brechas para a contestação. Nas últimas décadas a via intuitiva para a construção do conhecimento, vem conquistando adeptos e espaço. O curioso é que a iniciativa não parte nem do lado da Filosofia, nem tão pouco das Ciências Naturais. Essa preciosa e oportuna redescoberta da intuição como método de produzir conhecimento vem da sua utilidade pedagógica no processo da aprendizagem. O Pe. Alfonso Borrero chama a atenção para essa singularidade.

Especialíssima importância se dá na Pedagogia moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas que tem como base principal a intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de elementos prévios e, por assim dizer, cria algo novo, que mais adiante é passível de aprimoramento posterior e procedimentos racionais, utilizando o raciocínio metodológico da indução e da dedução.
Por isso, no exercício da criatividade que se vale da intuição da mente, não se  deixam de todo de lado, os métodos que conferem rigor ao pensamento racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis para movimentar-se  nas fronteiras do saber adquirido, passando pelas percepções intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN. 1992, nº 20, p. 15-16)

À legitimação da intuição acresce a percepção do homem comum dos fatos e fenômenos que o cercam e enriquece sobremodo o conhecimento. De modo especial ganha em qualidade. O conhecimento intuitivo credencia-se assim como conhecimento legítimo, no mesmo nível do analítico-indutivo e do sintético-dedutivo. Goza da mesma legitimidade tanto dos conhecimentos chamados pré-científicos, quanto os populares próprios das pessoas comuns. Justifica-se reservar um espaço conveniente para uma reflexão mais demorada, devido à importância de cada um deles em particular. Mais ainda se contamos com a possibilidade de riscos a que nos expomos. Acontece, porém, que o fracasso nessas circunstâncias, pode até ser bem-vindo, pois aplicando correções e caminhos alternativos, chega-se a resultados positivos.

[ Reflexões ]

Interdisciplinaridade

A reflexão aprece suficientemente amadurecida para avançar mais um passo e formular a pergunta: Qual então o caminho a ser enveredado pelas instituições das futuras gerações de especialistas e pensadores, para que o conhecimento que irão construir, seja de fato o resultado da síntese de muitos saberes parciais ou setoriais? Em outras palavras. Qual o fundamento epistemológico que oferece potencial suficiente para realizar essa síntese? De tudo que foi apontado durante as reflexões que vimos fazendo, a resposta parece óbvia: a Interdisciplinaridade. A correta compreensão da Interdisciplinaridade pede alguns esclarecimentos preliminares.

Primeiro. Síntese do conhecimento não significa a sua redução a um nível, por exemplo, o “científico”, como o propõe o Positivismo. Nem tão pouco a síntese do conhecimento se realiza no plano da Filosofia ou da Teologia. Os múltiplos conhecimentos particulares ou setoriais, são qualitativamente diferentes entre si. Os conhecimentos das realidades naturais, históricas, sociais, psicológicas, políticas, econômicas, etc. são legitimados a partir de fundamentos epistemológicos próprios, ditados pela natureza do objeto de que se ocupam. Sendo assim, forçar uma síntese a um único nível, violenta a natureza das coisas e leva a uma compreensão equivocada da realidade global. 

Segundo. As diferenças qualitativas próprias de cada objeto de investigação particular, por sua  vez, aponta para dois aspectos que precisam ser tomados em consideração. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que cada objeto como, por ex., o clima, a história de um povo, o equilíbrio ambiental, a criminalidade, vale-se de instrumentos próprios de aproximação. Significa que cada um pede uma abordagem e compreensão até certo ponto, sem recorrer a conhecimentos oriundos de outra fonte. Essa relativa autonomia significa, de outra parte, que para chegar à Filosofia não se tenha que partir necessariamente da Ciência, ou à Teologia a partir da Filosofia. Dito de outra maneira.  O filósofo não precisa ser cientista, nem o teólogo também filósofo, nem o historiador geógrafo e linguista, o que não significa que não seja de uma enorme utilidade, o trânsito em campos completares daquele que concentra os esforços do investigador. Em segundo, lugar não se pode esquecer que a “descontinuidade” qualitativa dos objetos particulares de investigação encontra seus limites, quando se parte em busca da síntese global do Conhecimento. Embora como resumiu o Pe. Borrero,

(...) a descontinuidade implique na autonomia das disciplinas particulares, porque cada uma e cada setor de disciplinas se constroem sobre suas próprias bases. (...) A autonomia relativa, contudo, não impede relações e interdependências. Por exemplo. A Filosofia dá   muito a pensar ao cientista e vice-versa.  Os conhecimentos se complementam, corrigem e se controlam mutuamente. Desta maneira se realiza uma urdidura, uma articulação interdisciplinar complexa e dinâmica, no processo da construção do conhecimento. (Cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20, p. 7)

Resulta assim uma relação de interdependência e não de dependência, nem de independência. Não se fala em dependência pois, nesse caso criaríamos uma situação de subordinação. É óbvio no caso em que, por ex., uma disciplina depender de outra, a condicionante ocupa um lugar mais acima na escala de importância, do que a condicionada. Uma situação de dependência configura-se quando os conhecimentos de matemática condicionam os cálculos de estruturas, os conhecimentos de química, são pressupostos para as pesquisas celular. Dito de outra maneira. Não se fazem cálculos estruturais sem conhecimentos mínimos de matemática, nem se realizam análises do comportamento bioquímico do DNA, sem dominar a natureza dos processos da química orgânica. Na relação de dependência de áreas de conhecimento, estabelece-se, portanto, uma situação em que há um conhecimento condicionante e outro condicionado. A pesquisa de um objeto condicionado só tem chances de dar resultados quando o investigador vem munido com os conhecimentos prévios na área do saber condicionante. Os exemplos que acabamos de citar parecem não deixar dúvidas. Não cabe como exemplo a relação que se estabelece entre a Filosofia e a Ciência, entre a Teologia e a Filosofia. Não se pressupõem conhecimentos filosóficos para realizar pesquisas científicas e vice-versa. A relação que nesse caso se configura é de interdependência e de complementariedade, não de dependência ou de condicionamento. Em outras palavras. A Filosofia tem muito a lucrar se tomar em consideração os resultados das pesquisas científicas. Da mesma forma os dados científicos observados e ou interpretados à luz da Filosofia ou da Teologia, só podem ser enriquecidos nos seus significados. Nos ambientes em que se pratica esse diálogo interdisciplinar como rotina ou base metodológica para a produção do conhecimento, os saberes e conhecimentos setoriais “complementam-se, corrigem-se e controlam-se mutuamente. Resulta daí uma articulação interdisciplinar complexa, dinâmica em todas as fases e níveis da construção do Conhecimento. (cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20).

Em resumo pode-se afirmar que, em se tratando de uma situação de dependência, uma disciplina ou área de conhecimento ocupa a posição de “conditio sine qua non”, já que o condicionado só prospera em função do condicionante. Ou ainda. A dependência e a subordinação definem a natureza da relação. 

Demoremo-nos um pouco mais na situação da interdependência e complementariedade, o que pode ser denominado também de independência relativa. A independência diz respeito tanto ao objeto quanto à base teórico-metodológica, com que é tratado. A relatividade dessa independência ou autonomia de resultados, no que diz respeito à sua interpretação, repercute concreta e praticamente na vida dos indivíduos, na sociedade, no meio ambiente, na formação da cosmovisão. 

A interdependência da qual nos vimos ocupando, não é linear e uniforme. Assume grau e importância condicionada por cada situação concreta, cada momento histórico e a natureza das realidades interdependentes. Um exemplo ilustrativo oferece o estudo da História na sua relação mútua com a Geografia. Pela sua própria natureza o homem tem as raízes fincadas no seu entorno geográfico. Este garante-lhe a sobrevivência, o progresso e a prosperidade, pondo à disposição os alimentos e os abrigos indispensáveis para viver e sobreviver. O entorno geográfico oferece também estímulos, símbolos e inspirações, indispensáveis para dar forma, vida e colorido ao imaginário pois, inspira-se nesse esse mundo complexo povoado por seres e personagens os mais inusitados.  Ao arranjo e disposição das estrelas e as constelações que formam, desde a remota pré-história atribuíram-se personalidades e significados, consolidando a Astrologia e elaborando horóscopos, que ainda hoje não podem reclamar de falta de público e popularidade.  Da mesma forma uma fatia mais do que importante da História, teve o seu perfil moldado pelos elementos do meio em que o homem buscou e encontrou os alimentos. A história dos povos agricultores desde o neolítico, não tem como ser escrita, com um mínimo de objetividade, sem tomar em consideração, as peculiaridades geográficas que serviram de cenário. O tipo e a forma da posse e uso da terra, tem muito mais a ver com as características topográficas e ou climatológicas, do que muitos enxergam ou gostariam de aceitar. Historicamente falando quando e, principalmente, em que circunstâncias, surgiu o modelo de uso coletivo das terras produtivas? Ele se impôs em áreas de terras nas quais, por ex., foi preciso recorrer à irrigação. Acontece que um sistema regional de irrigação, como no vale do Nilo, exige uma complexa e vasta rede de canais. Essa pela própria natureza implica num comprometimento coletivo. Para começo de conversa num projeto de irrigação naquele tempo e, dispondo dos recursos técnicos de então, nada podia ser feito sem um engajamento coletivo. A lógica do processo levou à valorização da terra e da água como um bem de todos. Todo aquele que estivesse comprometido com o progresso comum, tinha direito ao uso-fruto da terra e da água, mas não à posse, não à propriedade da terra. Assim não havia nem espaço nem condições de alguém cercar uma área, trancar as porteiras com cadeados, receber a flechada os intrusos e declarar-se dono de direito sem permitir qualquer interferência. O que pretendemos mostrar com esse exemplo é que no desenho do perfil histórico, o modelo de organização social, econômica, política e religiosa, tem tudo a ver com os condicionamentos físico-geográficos. Mais. O corpo de valores que conferem alma ao convívio humano organizado, traem nas suas cores, formas e significados uma inconfundível influência do meio.

Não é intenção aqui aprofundar essa discussão. O propósito consiste em mostrar que fazer história sem tomar em conta o chão, o cenário, o palco sobre o qual aconteceu e ainda acontece, leva a equívocos de interpretação muito sérios. Eis uma prova de que interpretar corretamente na sua complexidade, no presente caso, um fato histórico, requer conhecimentos complementares. Mais exatamente. É preciso partir de uma base teórico-metodológica interdisciplinar. Não significa que se pretende explicar, por exemplo, um fato histórico com as peculiaridades geográficas nas quais aconteceu. A compreensão da História como uma ciência epistemológica e metodologicamente de natureza própria, beneficia-se em muito, na sua forma e na riqueza dos significados, quando estudada à luz da geografia, também uma ciência com identidade e autonomia epistemológica, metodológica e conceitual própria. Da mesma forma e, continuando com o exemplo da História, esta vai buscar em outras áreas complementares, como a Etnografia, a Etnologia, a Antropologia, a Arqueologia, a Linguística, a Filosofia, etc., a explicação para os caminhos, desvios e atalhos singulares, verificados em períodos e situações particulares. O que vale para a História aplica-se em termos a toda e qualquer outra área de   conhecimento. 

[ Reflexões ]

Neste cenário desenham-se alguns riscos que precisam ser enfrentados se não quisermos cair na vala comum das suas vítimas. O autor que acabamos de citar, os enumera: “Há que evitar três  riscos para preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e todo o valor por um indefinido processo de construção e a defesa da identidade e da diferença própria, negando a  identidade e a diferença alheias”. (...) “Ou evitando que a pluralidade de culturas se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos”. (Caldera, 2004, p. 93.)

Mas não só a nível de filósofos e cientistas, a quem afeta toda essa problemática diretamente   fazem-se ouvir advertências de peso. Nos intervalos em que redigia esse texto li o ensaio da escritora Lya Luft, publicado na revista Veja, edição 2204, de 16 de fevereiro de 2011. Vale a pena reproduzir o começo desse ensaio intitulado: A maior ironia: 

Com o ensino cada vez pior – e ainda por cima sendo cada vez mais difícil conseguir uma reprovação -, temos gente saindo das universidades quase sem saber coordenar pensamentos e expressá-los por escrito, ou melhor, sem saber o que pensar das coisas, desinformados e desinteressados de tudo. Fico imaginando como será em algumas décadas. A ignorância alastrando-se pelas casas, escolas, universidades, escritórios, congressos, senados... Multidões de consumistas   ululando nas portas de gigantescos shopings, países inteiros saindo da obscuridade - não pela democracia, mas para participar da orgia de aquisições e entrar na modernidade. Em algumas coisas sou pessimista: essa é uma delas. Mas acredito que os que ainda quiserem pensar, estudar, descobrir, inventar, pintar, dançar, cantar e escrever, vão viver numa espécie de ilha. Talvez em universidades tradicionais ou ultra-adiantadas, ou no aconchego de bibliotecas em casa (...). Já existem em países adiantados intelectuais, pensadores, pesquisadores, cientistas pagos, simplesmente para pensar, criar, inventar, descobrir. (Veja, ed. 2204, nº 7, 2011, p. 22)

A escritora Lya Luft apontou no ensaio ao que acabamos de nos referir, para alguns pontos de grande valia para a nossa reflexão. O primeiro tem relação íntima com a “desconstrução dos paradigmas, abolição dos valores sociais, políticos e econômicos, éticos, religiosos e morais”, sobre os quais nos alerta Alexandro S. Caldera. A escritora aponta com o dedo o rosto visível   desse pano de fundo. Estigmatiza os efeitos concretos e práticos causados pela fragmentação que se alastra por todos os setores e níveis da sociedade pós-moderna. Recuperando-se, por assim dizer, do susto que o cenário lhe causou, encontra razões para vislumbrar uma luz no fundo do túnel. A existência de pensadores, cientistas, artistas, teólogos entregues, antes de qualquer outro interesse, a aprofundar as reflexões, penetrar sempre mais fundo nos objetos de suas investigações. Acumulando saberes e agregando-lhes qualidade e abrindo o leque de significados, preparam a matéria prima, para com ela como ponto de partida, construir um conhecimento que mereça esse nome.

Acontece que não é com vozes de alerta isoladas ou a advertência de “franco atiradores” que se aconselha partir para uma cruzada em busca da reversão desse quadro. Dois pressupostos são fundamentais. Ambos igualmente determinantes. O primeiro é aquele ao qual nos referimos mais acima. Exigem-se instituições de ensino em todos os graus e níveis, nas quais os estudantes encontrem condições para municiarem-se dos conhecimentos e das ferramentas, que os habilitam a lidar com a complexidade do mundo no qual irão atuar. Somente assim estarão em condições de compreender que, cada qual como indivíduo, representa uma gota no grande oceano da construção do conhecimento; que com outros trilhões de gotas formam um grande conjunto; que por insignificante que possa parecer o conhecimento individual, ele melhora ou piora a qualidade do todo. É fundamental que a formação dos estudantes, não importa o caminho específico e individual que cada um escolher, tenha essa consciência. Superam-se com isso dois impasses. Em primeiro lugar, entram em cena pesquisadores e ou pensadores cônscios de que lhes compete explorar campos e objetos limitados, partes de uma realidade maior. Os saberes que vão reunindo são parcelas que têm valor na medida em que contribuem para a construção do conhecimento que engloba todos os saberes individuais integrados harmonicamente. Nisso consiste a sua riqueza, vigor e solidez.  Em segundo lugar, e como consequência lógica da anterior, a aceitação e o respeito pelos que os outros pesquisam e pensam, pelos esforços dos estudiosos dos que se dedicam a outros objetos ou os abordam a partir de perspectivas diferentes. O respeito e a aceitação levam à valorização dos esforços dos outros e suas conclusões, não só das Ciências Naturais ou das Ciências do Espírito como, e, porque não, da sabedoria popular. Num cenário desses obviamente só há espaço para espíritos desarmados, honestos, despidos de preconceitos, humildes, conscientes do seu papel em contribuir para o avanço dos conhecimentos e, ao mesmo tempo, cônscios das suas limitações. Não há, portanto, espaço para arrogantes soberbos, donos da verdade, pregadores de dogmas tanto científicos quanto filosóficos ou teológicos 

Um cenário desses favorece o diálogo interdisciplinar. O cientista troca resultados e conclusões com o filósofo e o teólogo e este, por sua vez, procura validar suas teses e doutrinas à luz das descobertas da Ciência. Embora tímida ainda, a realidade desse diálogo inter-saberes, cá e lá já se anuncia no horizonte. Já tivemos várias vezes ocasião para trazer exemplos. Permito-me concluir essa parte da reflexão com o apelo do prof. Edward Wilson. Wilson ficou conhecido na década de 1970 pela posição radical em favor de uma visão materialista do mundo. Em 2006, entretanto, publicou o livro “The Creation – an appeal to save life on Earth”. Nesse livro no  formato de de u diálogo, convida um pastor evangélico, para que Ciência, Filosofia, Religião e Teologia se deem as mãos, a fim de resolver as intrincadas questões que envolvem o binômio homem-natureza. Pelo visto rendeu-se à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para superar os impasses criados pela relação equivocada do homem com o ambiente natural.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos, pessoas éticas, patrióticas, altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade santificar a vida humana e compartilharmos o amor à Criação.  (E. Wilson, 2008, p. 188)


Edward Wilson como entomólogo, descobriu aos poucos que os insetos que estudou a vida toda, vão sugerindo muito mais do que as características taxonômicas que revelam à primeira vista. Seu conterrâneo e contemporâneo Francis Collins chegou à mesma conclusão, partindo do estudo e do mapeamento do genoma humano. Identificou-o como um código que nada mais é do que a “Linguagem de Deus”, título que deu a seu famoso livro, no qual nos deixou o depoimento:

Apesar de eu, no fim das contas, passar da Ciência Física a Biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira das várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, “qual seria a explicação para a inexplicável eficiência da Matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda da natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição da mente de Deus? Teriam Einstein e Heisenberg e outros encontrado o divino. (Fr. Collins 2007, p. 7)  

Para concluir essa parte da nossa reflexão sobre a construção do conhecimento, o dr. Collins acrescentou o testemunho de Stephen Hawkings, com a observação que esse físico não costuma ser muito ligado a considerações metafísicas.

Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão do porque de nós e o universo existirmos. E se encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana – pois, então conheceremos a mente de Deus. Seriam essas descrições matemáticas da realidade indicações de alguma inteligência superior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus? (Hawking, 2015, p.  229)

As manifestações dos dois renomados cientistas, Francis Collins e Edward Wilson, não são vozes isoladas no meio científico. A eles somam-se muitos outros como Stephen Hawkings, Eisntein, Heisenberg, von Braun, von Bertalanffy, A. Portmann, Keppler, Copérnico, Newton, Alessandro Volta, Ampère, Gauss, Liebig, Darwin, Robert Mayer, Marconi (prêmio Nobel), Milikan (prêmio Nobel), Eddington, Albert Einstein (prêmio Nobel), Max Plank (prêmio Nobel), Schrödinger (prêmio Nobel), Wernher von Braun,  Charles Townes (prêmio Nobel), Alan Sandage,  Thomas Edison e muitos outros.  A “Amercan Scientific Affiliation” reúne-os numa associação, aberta a todo aquele que, de alguma forma, aceita discutir a abertura da Ciência para a Filosofia e, por que não, a Teologia. A essa organização vem somar-se a   PAC – Pontifícia Academia de Ciências – onde essas questões de fronteira são discutidas e analisadas por cientistas das mais diversas filiações confessionais, como também agnósticos e ateus. Aliás, o atual presidente da PAC é um químico protestante suíço.

Há um aspecto nessa questão que merece destaque. Os nomes que compõem a lista daqueles que, direta ou indiretamente, se dispõem ao diálogo e a troca de resultados entre os diversos   campos do conhecimento, são especialistas com carreiras e fama consolidadas. Chegaram às suas convicções como o resultado, como que a síntese conclusiva, de uma longa caminhada de investigações, pesquisas e reflexões. Não poucos, senão a maioria, desenvolveram o esforço científico num tempo em que reinava um clima de desconfiança, de rejeição e até de guerra declarada contra as Ciências Humanas e as Ciências do Espírito. Entre eles destacam-se  Edward Wilson, Francis Collins, Stephen Hawkings. Depois de muito pesquisar, depois de responder pergunta por pergunta que suas investigações sugeriam, depois de se depararem com os limites dos recursos técnicos e científicos, despertaram par a possibilidade de que não estava unicamente em suas mãos, responder a todas as questões. Coerentes e honestos como manda ser um cientista e mais ainda um sábio de verdade, escancararam as janelas em busca de outros horizontes. Encontraram-nos em outras dimensões do conhecimento, na Filosofia, na Teologia, na Tradição, no Conhecimento popular e na Intuição.

Constitui-se, sem dúvida, um fato auspicioso a constatação de que existe clima e disposição para o diálogo “interconhecimentos” ou “interdisciplinar”. Acontece, porém, que esse movimento   decorre como resultado final das conclusões de cientistas com carreira consolidada e ou pensadores amadurecidos nas suas reflexões. Não seria oportuno, quem sabe, inverter a situação? Significa incentivar e reforçar nas instituições de ensino, ou implantar naquelas que não a praticam, reintroduzir naquelas que a abandonaram, uma política acadêmica visando desenvolver uma visão interdisciplinar do conhecimento. Neste caso os futuros cientistas, humanistas, teólogos e filósofos, já sairiam das escolas e universidades preparados para desenvolver suas especialidades nessa perspectiva. Poupar-se-ia   assim todo um desvio longo, tortuoso e muitas vezes sofrido, para que cada um chegue lá por conta própria, se é que chega. É impossível avaliar o que uma decisão nesse sentido importa em termos de conhecimento a ser produzido, tanto em quantidade quanto em qualidade. 

[ Reflexões ]

Infelizmente as instituições de ensino a começar pelo fundamental, passando pelo ensino médio, de graduação universitária, terminando com a pós-graduação, não preparam os estudantes para o diálogo inter-científico e filosófico. O estímulo prematuro para a profissionalização e especialização consolida, desde muito cedo, a consciência, a convicção de que saber e conhecer significam a mesma coisa, isto é, penetrar o mais fundo possível na natureza de algum objeto, ou dominar até as últimas minúcias os macetes do exercício de alguma profissão. Alimenta-se no fundo a ilusão de que se está a caminho para responder todas as perguntas, inclusive encontrar a “Verdade”. E o resultado vem a ser aquele tão bem descrito por Teilhard de Chardin: “De síntese em síntese desmontada, deparamo-nos no final com uma pilha de engrenagens desmontadas ou um sem número de partículas que se esvaem”. Chegou o momento de tentar remontar a máquina cujas peças conhecemos até os últimos detalhes, reunir “as partículas que se esvaem” numa nova síntese e, o que é mais importante, procurar um sentido, um significado comum, um “alfa” que explique o “donde” e um “ômega” que sinalize o “para onde”.

O tempo urge. Valendo-nos do chavão por todos conhecido, estamos na vigésima quinta hora, para tentar reverter o processo da “desconstrução de todas as referências”, na opinião de Alexandro S. Caldera. Respira-se uma atmosfera de temor que a pós-modernidade leve a análise, melhor dito talvez, o desmonte, a um extremo tal, que o retorno a um mínimo de coerência no comportamento das pessoas, torne-se em extremo problemático. O que nos falta nesse impasse é um corpo de intelectuais aliados a um corpo de cientistas ideologicamente descomprometidos, que reflitam com profunda seriedade sobre o que está acontecendo. Já nesse primeiro requisito tropeçamos numa realidade que torna ainda mais dramática a “vigésima quinta hora”.

As obras dos grandes pensadores do século XX, contendo os esforços dos seus autores em oferecer alternativas para novas sínteses, circulam apenas em públicos seletos e restritos. “A grande filosofia” está fora de moda e, por isso mesmo, em baixa. Cá e lá ouve-se a voz solitária de um Umberto Ecco ou algum representante da Filosofia da Interculturalidade. Não muito mais. Nomes e obras como de Nietzsche, Heiddeger, Jaspers, Sartre, Bloch, etc., parecem-se como personagens perdidos nas brumas do tempo. As discussões em diversos níveis em que são analisados os problemas sociais, políticos, econômicos e similares, contam com a participação de políticos, governantes, sociólogos, jornalistas, representantes de ONGS, ativistas de movimentos sociais, ecochatos, ecoparanóicos, ecopicaretas, ecointeresseiros e por aí vai. Pouco ou nenhum espaço fica reservado para uma reflexão mais consistente de natureza filosófica, histórica, científica ou ética. O confronto de ideias e dados mais sérios são raros e restritos a algum fórum do tipo “Fronteiras do Pensamento”. E mesmo nesses casos o convite aos conferencistas privilegia os nomes de pensadores que estão na moda. Não interessa em primeiro lugar um confronto de ideias sério, honesto, desarmado e humilde, dos problemas que angustiam o homem pós-moderno. Esses encontros mais se parecem com um desfile de vaidades e egos tanto dos organizadores quanto dos participantes. São eventos que estagnam ao nível do “vanitas vanitatum omnia vanitas” – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.

Como se pode ver, se o diagnóstico que vínhamos fazendo, está minimamente correto, a solução para a errática civilização pós-moderna, não é simples nem viável a curto prazo. As constatações lógicas que nos vêm orientando até aqui, permitem resumir a problemática em algumas questões de fundo. 

Primeiro. O mais crítico nessa situação centra-se na rubrica formação. E por formação entende-se aqui uma reorientação da própria natureza da cosmovisão e, consequentemente, da forma como as pessoas dela se apropriam. Começa pela mobilização de todos os meios e instrumentos disponíveis em favor de uma inversão na perspectiva da formação do cidadão. Na cabeça dos planejadores e executores das políticas de formação, a começar pelo fundamental até a pós-graduação, a visão centrífuga comanda as ações. Aliás as realidades são percebidas nessa perspectiva também pelas pessoas em geral. Poderíamos chamar o fenômeno de resultado socializado do mundo desmontado pela pós-modernidade. Já nos referimos mais vezes a esse problema.  A preocupação, em casos extremos levados a uma verdadeira obsessão, pelo detalhe, pelo acontecimento em si, pela peça da máquina, pelo momento, dita as estratégias e os métodos de formação. As estratégias inspiradas na compreensão centrífuga do mundo, orientam, consciente ou inconscientemente, a formação dos cidadãos, em direção a essa versão da realidade. 

Segundo. O outro desafio vem da própria natureza da pós-modernidade. Sua visão de um mundo “desmontado”, induz a uma percepção fragmentada de tudo que nele ocorre. Essa situação realimenta e acirra ainda mais a sensação da autonomia dos fragmentos. Essa dinâmica é poderosamente estimulada pelos resultados espetaculares que o método analítico-indutivo, pela sua natureza centrífugo, tem a oferecer. Aliás a entrada triunfal desse método como contraponto ao sintético-dedutivo, com o despertar das Ciências Naturais, transformou-se naquele “maravilhoso instrumento ao qual devemos todos os nossos progressos”, no dizer de Teilhard de Chardin. Entretanto, ele não deixou de chamar a atenção aos riscos que a utilização desse método nos expõe quando levado a extremos e sem as devidas precauções. A pós-modernidade está aí para dar inteira razão ao sábio jesuíta, que nasceu e viveu, e principalmente pensou e pressentiu profeticamente o que estava por vir. Trata-se de um autêntico representante daqueles dos quais costuma-se afirmar que “nasceram cedo demais”. 

Terceiro. Embora o método analítico-indutivo continue sendo o poderoso motor que impulsiona o progresso de quinhentos anos para cá, seu potencial tem limites e riscos. É capaz de despertar em não poucos cientistas a convicção da onipotência. A análise tem a oferecer a cada dia que passa, um número sem conta de novidades em todos os campos científicos. Encontra respostas   para interrogações que o homem vem formulando há incontáveis séculos. Estimula o desenvolvimento de tecnologias que permitem avançar  em direção a respostas  para questões que mais intrigam a curiosidade, como: “como começou tudo; qual a matéria prima de que é feito o universo; como começou a vida; quais as leis que fazem funcionar o macrocosmos, o microsmos, o nanocosmos; o homem com sua inteligência reflexa é apenas mais uma espécie viva, apenas um antropoide um pouco mais evoluído? Milhares de laboratórios especializados nos grandes centros de pesquisa, ocupam-se com esses e muitos outros questionamentos. 

A absoluta maioria são de uma inegável utilidade direta ou indireta. Atuam de fato como motores do progresso no sentido mais completo do termo. E como os resultados do progresso vem a ser uma moeda de dupla face, isto é, o bem-estar do homem de um lado e a ameaça da sua ruína, do outro, nos laboratórios são desenvolvidos conhecimentos e instrumentos que podem tanto servir a uma quanto a outra finalidade. Dessa forma o avanço das pesquisas potencializa tanto a cara quanto a coroa que resultam do progresso. Algumas dessas conquistas, como a penetração na estrutura atômica, seu funcionamento, seu potencial energético de aplicação prática, tanto para fins pacíficos quanto para bélicos, tanto para promover o bem-estar do homem, quanto para a sua ruína, são exemplares. É um caso emblemático de como a Ciência Natural termina avançando sobre as fronteiras das Ciências do Espírito. As conquistas empíricas terminam mexendo com a Ética e a Moral. Mas não é nosso objetivo entrar mais a fundo nessa discussão, pelo menos de momento. Queremos alertar apenas que o conceito de progresso implica, de um lado na melhora das condições, do outro pode levar à ruína da humanidade. Como a destinação das conquistas científicas depende de uma opção humana, elas necessariamente implicam numa opção ética. A Ciência deixa de ser objetiva, inócua ou neutra, para municiar decisões que têm como fundo, motivações de outra natureza. 

Depois de chamar a atenção para dupla face do progresso turbinado pelas conquistas científicas, quero demorar-me um pouco mais no lado da sombra, apontado por Teilhard de Chardin depois de falar do “instrumento maravilhoso” que é a pesquisa científica que parte da análise ou da desconstrução de sínteses. Se a destinação prática dos resultados das pesquisas implica em questões como a ética, o cenário histórico global que resultou não é menos   paradoxal. O paradoxo faz parte da própria natureza do método analítico. Para avançar no conhecimento científico é forçoso desdobrar as realidades em componentes estruturais e funcionais. Quanto mais se avança mais se disseca, desmonta, desdobra. O risco está exatamente no desmonte progressivo que a análise estimula e exige. Chega-se a um ponto em que, diante de pilhas de engrenagens, circuitos, peças, átomos, moléculas, tecidos, não se percebe mais o todo, o conjunto que integravam como partes funcionais. Avança-se e aprofunda-se enquanto aparecerem resultados e enquanto ainda houver esperança de surpresas. Não são poucos os pesquisadores que se flagram perplexos diante da “pilha de peças” da máquina que desmontaram e das “partículas que se esvaem” e perguntam: E o sentido de tudo isso? Toma conta deles a sensação de terem participado de um “parto de montanha e  nasce um ridículo camundongo”, como diriam os romanos na sua lendária sabedoria.

Problema dos cientistas e da ciência pode objetar alguém. Nem tanto. Na medida em que durante os últimos séculos as pesquisas se diversificaram; na medida em que os especialistas se multiplicaram; na medida em que os resultados das investigações aceleraram o progresso da humanidade, conceitos, princípios, valores e dogmas tradicionais intocáveis, foram sendo contestados, discutidos, minados pela base, postos em dúvida e, finalmente, arquivados nos museus da história. Um a um velhos paradigmas e referências foram desconstruídos.  Caldera   afirma; “A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas”. Para depois concluir: “O protótipo do homem dominante é o do bárbaro digital”.  (Caldera), 2004, p. 91). 

[ Reflexões ]

O Método analítico-indutivo.

Se para a Filosofia e a Teologia a dedução partindo do todo, constitui-se no método mais apropriado, as Ciências Naturais pedem, pela própria natureza do seu objeto, o método analítico-indutivo como via de aproximação. Teilhard de Chardin chamou-o de “esse maravilhoso instrumento ao qual devemos todo o progresso de que desfrutamos”. Como aconteceu com o método sintético-dedutivo, o analítico-indutivo, fundamenta-se em última análise numa compreensão peculiar do universo, da natureza e do homem. O fato de alguém tentar entender e explicar as partes, a partir da unidade da qual fazem parte, ou de alguém procurar uma lógica e uma convergência partindo das partes, analisando-as, dissecando-as e decompondo-as, faz uma grande diferença. 

Na medida em que as Ciências Naturais foram ocupando o seu espaço e consolidando seus campos do saber específico, fizeram com que o método analítico-indutivo, ocupasse cada vez mais espaço. Esse movimento começou a tomar corpo no final da Idade Média. Acelerou o ritmo e foi-se impondo durante a Renascença. Até então os fenômenos da natureza eram entendidos sob a ótica de princípios filosóficos e teológicos, via dedução. Não é que se desprezasse a observação empírica. Pelo contrário. A natureza foi sempre, como não podia deixar de ser, para o filósofo antigo, um cenário de observações múltiplas. Oferecia dados e experiências concretas, inspirando nelas uma boa fatia de suas especulações filosóficas. Trilharam, porém, o tradicional caminho indicado pelo método dedutivo. O que os preocupava era o essencial que conferia sentido e razão de ser para as realidades naturais. As leis empíricas responsáveis pela mecânica natural, situavam-se fora do horizonte das preocupações dos filósofos. 

Mas já nos séculos finais da Idade Média sábios como Roberto Grosseteste (1175-1253), Alberto Magno (1206-1258), Nicolau de Oresme (nascido em 1306), mestres de Oxford, Paris, Colônia, Freiburg e outros, foram precursores do método analítico-indutivo. Mas é com a Renascença que acontece a sua entrada triunfal. A partir daí definiram-se os dois caminhos, os dois métodos que continuam polarizando os esforços para entrar na compreensão da essência da Natureza, objeto ontológico comum. Referindo-se a essa situação, isto é, o objeto ontológico, ele é susceptível a aproximação tanto pela dedução quanto pela indução, o Pe. Borrero observou.

Quem sabe a mútua compreensão dessa realidade tenha o poder de superar o confronto que se verifica hoje entre filósofos e cientistas, que deixa perplexo o político encarregado de decidir políticas científicas. Essa superação tem condições de tornar-se realidade a curto prazo com adoção do objetivo epistemológico da interdisciplinaridade.  (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 22)

Deixemos para mais tarde uma análise mais aprofundada do recurso à interdisciplinaridade como caminho para superar o impasse entre a Filosofia e a Ciência. Aproveitamos o momento par intercalar algumas considerações sobre a História da Ciência. Pelo que vínhamos falando poder-se-ia tirar a conclusão equivocada de que as Ciências Naturais entraram na História a partir do final da Idade Média. Entretanto, creio que se pode afirmar sem medo de errar, que a História da Ciência tem a duração da própria História do homem. A partir do momento, em que em alguma savana da África, ou em qualquer outro ponto do mundo, apareceram as primeiras criaturas dotadas de “inteligência reflexa”, de “racionalidade”, entrou em cena a “Noosfera” na terminologia de Teilahrd, um nível, uma esfera de vida, de todo inédita. Sem romper com o passado existencialmente enraizado na “Litosfera”, na “Biosfera” e na “Atmosfera”, o homem inauguraria um caminho novo de convivência e relacionamento com o mundo que o cercava. Sem romper e sem superar os condicionamentos que como animal o prendiam ao entorno geográfico, vem munido com as ferramentas capazes de fazer dele um ser superior a todos os demais. Pela inteligência reflexa, pela consciência do seu pertencimento ao mundo natural, o levaria à condição de formular perguntas e buscar respostas a fim de compreender-se a si mesmo e o mundo em que vive. Valendo-se da capacidade de observar, formular perguntas, buscar respostas, encontrar soluções alternativas, refletir sobre sentidos e significados, o homem há dezenas, centenas, quem sabe milhões de anos, foi acumulando conhecimentos de todo nível e natureza. De um lado observando, experimentando, selecionando, foi entendendo os fatos e realidades, descobrindo relações e correlações, identificando e compreendendo as leis que regem a natureza. De outro lado procurou entender e explicar os “porquês” e formular respostas para as incógnitas, os mistérios da natureza e da sua própria existência.

Rigorosamente falando, os primeiros coletores de frutos e sementes, os primeiros caçadores e pescadores, valeram-se dos mesmos meios e métodos do homem de hoje, ao lidar com os desafios do quotidiano. Observando, comparando, selecionando, testando, descartando, concluindo, aprenderam a compreender e organizar o mundo. Tanto a nível material, quanto psicológico, imaginário, religioso foi organizando os dados acumulados e com eles, dando forma a um corpo de conhecimentos. Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica global estão presentes verdadeiras práticas científicas e filosóficas desde que o homem se fez homem. Mais ainda. As práticas e os métodos não se distinguem essencialmente dos formulados por Francis Bacon (1561-1626) e que hoje fundamentam a produção do conhecimento. Observando a natureza os homens de então valiam-se da “análise” como ferramenta para a identificação e compreensão dos fatos e fenômenos. Num segundo momento recorreram à indução com o propósito de dar significados ao que observavam. Gradativamente os conhecimentos hauridos das mais diversas fontes consolidaram-se num corpo coerente e legítimo de conhecimento. 

Situando a Filosofia e a Ciência nessa perspectiva histórica, verdadeiras práticas filosóficas e científicas estiveram sempre presentes. A cosmovisão ou as cosmovisões que daí resultaram terminaram por consolidar o imaginário no qual o componente mágico-religioso ocupou um lugar privilegiado. Sobre essa base, pois, estava preparado o terreno para prosperarem filosofias e religiões. A partir delas e num passo adiante, o homem consolidou um universo conceitual de sínteses e invertendo a perspectiva, começou a interpretar a realidade que o cercava. Foi tomando forma a segunda via de aproximação teórico-metodológica. Francis Bacon a definiria com via “sintético-dedutiva”. Ambora não chegassem até os nossos dias provas materiais para afirmar essa lógica dos acontecimentos, não deixa de ser legítima. Legítimo então é concluir também que os seres humanos daqueles tempos remotos já praticavam ciência no sentido rigoroso do termo e, consequentemente, produziam conhecimento digno desse nome. Também aqui vale a sentença: “Nihil novi sub luna” – “nada de novo abaixo da lua”. 

Diversificaram-se as observações, aperfeiçoaram-se os métodos e técnicas, sofisticaram-se e apuraram-se os instrumentos de investigação e respectivas tecnologias e assim ampliaram-se e aprofundaram-se os conhecimentos. A razão de ser desse estado de coisas, a explicação última, a condição “sine qua non”, deve ser buscada na inteligência racional que acompanha a humanidade desde a sua mais remota origem. As Ciências foram cultivadas desde há muitos séculos e milênios. As investigações científicas e a construção do conhecimento veem desde a antiguidade mais remota. Bacon ao formular sistematicamente os métodos básicos, o analítico-indutivo e sintético-dedutivo, deu um significativo impulso ao que já vinha sendo feito nesse campo. Galilleo contribuiu decididamente para o “boom” científico nos últimos séculos com seu “Arrazoado Experimental”, em outras palavras, a análise do fenômeno a partir da decomposição em seus elementos quantificáveis e passíveis de expressões algébricas funcionais. O que presenciamos hoje em termos de avanços tanto quantitativos quanto qualitativos nas ciências empíricas, foi possível aos pesquisadores valendo-se dos princípios e bases teórico-metodológicas, formuladas por Bacon e Galileo. O fascínio pelos resultados é tamanho que se tornou convicção corrente de que o único conhecimento válido é o científico. O Positivismo de Conte levou ao exagero a via experimental e “positiva” e o Neo-Positivismo com seu “método-empírico-lógico”, prega que, o que não for redutível a esses parâmetros, simplesmente não faz sentido.

Encontramo-nos, portanto, frente a um cenário no qual, de um lado, as conquistas e avanços são indiscutíveis. Do outro, entretanto, corre-se o risco de ignorar e ou desqualificar na construção do conhecimento o valor e a importância da contribuição da Filosofia e das Ciências do Espírito em geral. A questão assume proporções ainda mais polêmicas, quando se procura a possibilidade de incluir no corpo dos conhecimentos aceitos como legítimos, aqueles acumulados no decorrer da história. As dificuldades são respeitáveis. De saída não se escapa do poder do preconceito de muitos cientistas, de que só é conhecimento digno desse nome, aquele que tem como base provas empíricas, ou “positivas”. Mas deixemos para mais adiante a discussão, relativa à legitimidade “científica” dos conhecimentos elaborados desde a pré-história remota. 

O que interessa nesse momento resume-se em um cenário teórico-metodológico favorável para a troca sem preconceitos de informações entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Trata-se do passo inicial para começar um diálogo honesto do que cada um dos campos tem a oferecer para o enriquecimento do conhecimento em si. Espera-se que desse diálogo nasça o reconhecimento mútuo da validade e importância daquilo que cada qual tem a oferecer. E por fim é lícito esperar que as Ciências tanto Naturais quanto as Humanas e do Espírito, aliem-se e comprometam-se, num esforço sincero em busca de uma síntese elaborada a partir de muitos saberes; para que as “muitas doutrinas”, inclusive à primeira vista conflitantes, se harmonizem em busca de um ponto de encontro comum. Em outras palavras. Que a partir da “multiplicidade das doutrinas”, se encontre a “verdade que é uma só” – “Doctrina multiplex – Veritas una”. 

Uma vez acertado o diálogo é fundamental decidir pelo caminho a percorrer e as ferramentas a serem utilizadas. Em outras palavras. Como e a que nível deverá acontecer esse diálogo para autorizar a perspectiva de um resultado que satisfaça a ambos os lados. 

O ponto de partida parece consistir em que os interlocutores falem a mesma língua ou pelo menos línguas que ambos entendam. Isso significa que os conceitos emitidos de parte a parte, expressem sentidos que sejam corretamente inteligíveis por ambos os lados. Isso implica no fato de que o filósofo ou o teólogo tenham um mínimo de familiaridade e compreensão com os conceitos emitidos por um geneticista, um biólogo, um astrônomo, um físico ou um geólogo. De outra parte algum especialista em qualquer ramo das Ciências Naturais, precisa estar consciente que sentido o filósofo atribui, por ex., ao conceito “princípio de causalidade”, “causalidade primeira, causalidade secundária”, “lógica dos processos”, etc. conceitos e significados que não fazem parte do mundo conceitual do cientista. Com isso não se pretende insinuar que o astrônomo ou geneticista, tenha que ser filósofo ou teólogo no sentido corrente do termo. Significa, isso sim, que ambos, filósofos e cientistas, filosofem e pesquisem com um mínimo de sensibilidade, compreensão e respeito mútuo. Como já tentamos mostrar mais acima, este é um dos maiores, senão o maior dos obstáculos que precisa ser superado para consolidar o diálogo entre os dois arraiais. 

[ Reflexões ]

O método sintético-dedutivo  

A via da caminhada sintético-dedutiva, começada pelos filósofos gregos mais antigos, foi definitivamente consolidada por Aristóteles. Sua obra traduzida para o árabe recebeu mais tarde sua versão latina. Os escritos de Platão não tiveram a mesma sorte. Por isso mesmo não foram tão conhecidos na Idade Média. De outra parte a obra de Aristóteles ofereceu aos pensadores do Medio evo uma verdadeira enciclopédia do saber elaborado até aquela altura da história. Nela o Estagirita discorreu sobre todos os campos do saber, menos a medicina e a matemática. Demorou-se na metafísica, na física, astronomia, ciências naturais, fisiologia, ética, estética e política. Explorou sobretudo o potencial da lógica. A lógica funciona para Aristóteles como eixo polarizador, como “Leitmotiv”, como norteador transdisciplinar de todo o seu pensamento. O Pe. Alfonso Borrero resumiu assim a importância de Aristóteles na Alta Idade Média.

A lógica de Aristóteles funcionava em todo o momento como “disciplina diagonal”, ou nexo de articulação nos currículos da Idade Média. Não é então de se admirar que para a segunda Idade Média, dominada por essa massa de saber coerente e deslumbrada por uma inteligência fora do comum, que Aristóteles se convertesse no representante da verdade e ideal de perfeição humana. Encarnava o príncipe dos que sabem, o poder do saber encarnado, a garantia para os que ensinam. Aristóteles ensinava e era ensinado; era objeto de discussão e comentários. Era explicado e seus conceitos eram trabalhados, como aconteceu na obra de Tomas de Aquino. (ASCUN. Borrero. Nº 20, p. 19)

E de maneira concisa e clara o Pe. Borrero resumiu em poucas linhas, o que Aristóteles significou para a construção do conhecimento, em primeiro lugar na Idade Média e na primeira geração de universidades. 

Foi por essa via, pela lógica como referência, para a construção do conhecimento, que Aristóteles entrou nas escolas e universidades. O seu saber dirige-se para as mentes sedentas do saber. Na percepção dos medievais Aristóteles era, antes de mais nada, ciência. Antes mesmo de ser filosofia, reveste-se de valor próprio como “saber científico”, e não como uma relação ou parentesco com alguma atitude religiosa que a impõe. Pelo contrário, o Aristotelismo parece em princípio incompatível com a postura religiosa, tanto da cristã quanto da maometana. Entre outras doutrinas aquelas que ensinam a eternidade do mundo, são abertamente contrárias às verdades da religião revelada, incluindo com isso um Deus Criador. Por essas razões Aristóteles foi condenado pelas autoridades responsáveis pela ortodoxia religiosa. Os filósofos da Idade Média trataram então de repensar o Estagirita e torná-lo compatível com a doutrina cristã e seus dogmas religiosos. Esse esforço alcançou o triunfo maior com Santo Tomas de Aquino. Ele, por assim dizer, cristianizou Aristóteles e fez dele a base do ensino ocidental. O aristotelismo converteu-se no “itinerarium mentis in Dei” – “o caminho da investigação que leva a mente até Deus, objetivo maior da universidade da Idade Média. É o “Deus-Pensamento” de Aristóteles ao lado do “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino”. (ASCUN, 20, p.19)

A universidade medieval fundamentava a consistência da produção do conhecimento na sabedoria dos antigos, compendiadas nas famosas “Sumas” ou “Sínteses”.  A maneira de apresentar as questões seguia o mesmo padrão e orientava-se pelo mesmo método e guiava-se pela mesma lógica na condição de “transdisciplina”. 

No contexto da presente reflexão sobre a construção do conhecimento, cabe um aprofundamento maior do “aristotelismo cristianizado” por Tomas de Aquino. O importante está no fato de que a lógica como “transdisciplina” polarizou todo o esforço na produção do conhecimento. O fato de o “aristotelismo cristianizado” polarizar todo o trabalho intelectual valendo-se da lógica como “transdisciplina”, resultou no “Deus-Pensamento”. Chega-se assim à conclusão de que tanto o “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado, quanto o “Deus-Bem” de Platão e o “Deus Uno” de Plotino, representa o centro das reflexões dos filósofos, que buscam a raiz do pensamento num fundamento pré-existente. Em outras palavras. Uma síntese prévia fornece os elementos a partir dos quais se deduz a natureza e a razão de ser das muitas maneiras de se tornar visível e palpável. Em outras palavras ainda. Parte-se da unidade para explicar a pluralidade. Ou ainda. Entender o  plural pelo uno.

Pouca ou nenhuma diferença faz o nome dado ao  “uno” ou “unidade”, se é no sentido do “Deus-Pensamento” do aristotelismo cristianizado por Tomás de Aquino, do “Deus-Bem” de Platão, do “Deus Uno” de Plotino, do “Deus infinito em ato e o universo em potência” de Nicolau de Cusa, da “Razão como fonte da Ciência  e a Ética” de Sócrates, a “Moral bem supremo e fonte da Ciência” de Confúcio, a “Razão” de Kant, o “Cogito ergo sum” de Descartes, O Deus “in fieri” – “der werdende Gott”, de Hegel.  Poderíamos levar ao indefinido as referências nessa direção. Parecem o bastante para ilustrar o que vimos afirmando. A grande Filosofia, para não falar em Teologia, construiu, como constrói ainda hoje, o conhecimento a partir de referenciais postos, a partir de uma síntese prévia. Valendo-se da dedução parte-se para a compreensão das partes, as correlações entre elas e o seu significado em função do todo. A pluralidade é explicada pela unidade. Com a supremacia do Aristotelismo, o método predominante na produção do conhecimento, veio a ser o sintético-dedutivo-unificante. O esforço intelectual para chegar à compreensão das causas últimas, relegava para um segundo plano o interesse pelas diretamente observáveis. Não se perdia tempo com a explicação dos fenômenos imediatos, dos acontecimentos rotineiros, dos dados concretos e a interpretação dos seus significados. O que interessava ao filósofo, alinhado principalmente com o aristotelismo, era o conhecimento como tal. Com isso o valor maior cabia à Metafísica. Para a filosofia medieval havia uma verdade objetiva e dada. Apropriar-se dessa verdade acontecia via assimilação. Tratava-se de um método realista para considerar a relação objeto-sujeito, manifestado numa cosmovisão unificante. (cf. ASCUN, 1992, 20, p. 18)