Infelizmente as instituições de ensino a começar pelo fundamental, passando pelo ensino médio, de graduação universitária, terminando com a pós-graduação, não preparam os estudantes para o diálogo inter-científico e filosófico. O estímulo prematuro para a profissionalização e especialização consolida, desde muito cedo, a consciência, a convicção de que saber e conhecer significam a mesma coisa, isto é, penetrar o mais fundo possível na natureza de algum objeto, ou dominar até as últimas minúcias os macetes do exercício de alguma profissão. Alimenta-se no fundo a ilusão de que se está a caminho para responder todas as perguntas, inclusive encontrar a “Verdade”. E o resultado vem a ser aquele tão bem descrito por Teilhard de Chardin: “De síntese em síntese desmontada, deparamo-nos no final com uma pilha de engrenagens desmontadas ou um sem número de partículas que se esvaem”. Chegou o momento de tentar remontar a máquina cujas peças conhecemos até os últimos detalhes, reunir “as partículas que se esvaem” numa nova síntese e, o que é mais importante, procurar um sentido, um significado comum, um “alfa” que explique o “donde” e um “ômega” que sinalize o “para onde”.
O tempo urge. Valendo-nos do chavão por todos conhecido, estamos na vigésima quinta hora, para tentar reverter o processo da “desconstrução de todas as referências”, na opinião de Alexandro S. Caldera. Respira-se uma atmosfera de temor que a pós-modernidade leve a análise, melhor dito talvez, o desmonte, a um extremo tal, que o retorno a um mínimo de coerência no comportamento das pessoas, torne-se em extremo problemático. O que nos falta nesse impasse é um corpo de intelectuais aliados a um corpo de cientistas ideologicamente descomprometidos, que reflitam com profunda seriedade sobre o que está acontecendo. Já nesse primeiro requisito tropeçamos numa realidade que torna ainda mais dramática a “vigésima quinta hora”.
As obras dos grandes pensadores do século XX, contendo os esforços dos seus autores em oferecer alternativas para novas sínteses, circulam apenas em públicos seletos e restritos. “A grande filosofia” está fora de moda e, por isso mesmo, em baixa. Cá e lá ouve-se a voz solitária de um Umberto Ecco ou algum representante da Filosofia da Interculturalidade. Não muito mais. Nomes e obras como de Nietzsche, Heiddeger, Jaspers, Sartre, Bloch, etc., parecem-se como personagens perdidos nas brumas do tempo. As discussões em diversos níveis em que são analisados os problemas sociais, políticos, econômicos e similares, contam com a participação de políticos, governantes, sociólogos, jornalistas, representantes de ONGS, ativistas de movimentos sociais, ecochatos, ecoparanóicos, ecopicaretas, ecointeresseiros e por aí vai. Pouco ou nenhum espaço fica reservado para uma reflexão mais consistente de natureza filosófica, histórica, científica ou ética. O confronto de ideias e dados mais sérios são raros e restritos a algum fórum do tipo “Fronteiras do Pensamento”. E mesmo nesses casos o convite aos conferencistas privilegia os nomes de pensadores que estão na moda. Não interessa em primeiro lugar um confronto de ideias sério, honesto, desarmado e humilde, dos problemas que angustiam o homem pós-moderno. Esses encontros mais se parecem com um desfile de vaidades e egos tanto dos organizadores quanto dos participantes. São eventos que estagnam ao nível do “vanitas vanitatum omnia vanitas” – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.
Como se pode ver, se o diagnóstico que vínhamos fazendo, está minimamente correto, a solução para a errática civilização pós-moderna, não é simples nem viável a curto prazo. As constatações lógicas que nos vêm orientando até aqui, permitem resumir a problemática em algumas questões de fundo.
Primeiro. O mais crítico nessa situação centra-se na rubrica formação. E por formação entende-se aqui uma reorientação da própria natureza da cosmovisão e, consequentemente, da forma como as pessoas dela se apropriam. Começa pela mobilização de todos os meios e instrumentos disponíveis em favor de uma inversão na perspectiva da formação do cidadão. Na cabeça dos planejadores e executores das políticas de formação, a começar pelo fundamental até a pós-graduação, a visão centrífuga comanda as ações. Aliás as realidades são percebidas nessa perspectiva também pelas pessoas em geral. Poderíamos chamar o fenômeno de resultado socializado do mundo desmontado pela pós-modernidade. Já nos referimos mais vezes a esse problema. A preocupação, em casos extremos levados a uma verdadeira obsessão, pelo detalhe, pelo acontecimento em si, pela peça da máquina, pelo momento, dita as estratégias e os métodos de formação. As estratégias inspiradas na compreensão centrífuga do mundo, orientam, consciente ou inconscientemente, a formação dos cidadãos, em direção a essa versão da realidade.
Segundo. O outro desafio vem da própria natureza da pós-modernidade. Sua visão de um mundo “desmontado”, induz a uma percepção fragmentada de tudo que nele ocorre. Essa situação realimenta e acirra ainda mais a sensação da autonomia dos fragmentos. Essa dinâmica é poderosamente estimulada pelos resultados espetaculares que o método analítico-indutivo, pela sua natureza centrífugo, tem a oferecer. Aliás a entrada triunfal desse método como contraponto ao sintético-dedutivo, com o despertar das Ciências Naturais, transformou-se naquele “maravilhoso instrumento ao qual devemos todos os nossos progressos”, no dizer de Teilhard de Chardin. Entretanto, ele não deixou de chamar a atenção aos riscos que a utilização desse método nos expõe quando levado a extremos e sem as devidas precauções. A pós-modernidade está aí para dar inteira razão ao sábio jesuíta, que nasceu e viveu, e principalmente pensou e pressentiu profeticamente o que estava por vir. Trata-se de um autêntico representante daqueles dos quais costuma-se afirmar que “nasceram cedo demais”.
Terceiro. Embora o método analítico-indutivo continue sendo o poderoso motor que impulsiona o progresso de quinhentos anos para cá, seu potencial tem limites e riscos. É capaz de despertar em não poucos cientistas a convicção da onipotência. A análise tem a oferecer a cada dia que passa, um número sem conta de novidades em todos os campos científicos. Encontra respostas para interrogações que o homem vem formulando há incontáveis séculos. Estimula o desenvolvimento de tecnologias que permitem avançar em direção a respostas para questões que mais intrigam a curiosidade, como: “como começou tudo; qual a matéria prima de que é feito o universo; como começou a vida; quais as leis que fazem funcionar o macrocosmos, o microsmos, o nanocosmos; o homem com sua inteligência reflexa é apenas mais uma espécie viva, apenas um antropoide um pouco mais evoluído? Milhares de laboratórios especializados nos grandes centros de pesquisa, ocupam-se com esses e muitos outros questionamentos.
A absoluta maioria são de uma inegável utilidade direta ou indireta. Atuam de fato como motores do progresso no sentido mais completo do termo. E como os resultados do progresso vem a ser uma moeda de dupla face, isto é, o bem-estar do homem de um lado e a ameaça da sua ruína, do outro, nos laboratórios são desenvolvidos conhecimentos e instrumentos que podem tanto servir a uma quanto a outra finalidade. Dessa forma o avanço das pesquisas potencializa tanto a cara quanto a coroa que resultam do progresso. Algumas dessas conquistas, como a penetração na estrutura atômica, seu funcionamento, seu potencial energético de aplicação prática, tanto para fins pacíficos quanto para bélicos, tanto para promover o bem-estar do homem, quanto para a sua ruína, são exemplares. É um caso emblemático de como a Ciência Natural termina avançando sobre as fronteiras das Ciências do Espírito. As conquistas empíricas terminam mexendo com a Ética e a Moral. Mas não é nosso objetivo entrar mais a fundo nessa discussão, pelo menos de momento. Queremos alertar apenas que o conceito de progresso implica, de um lado na melhora das condições, do outro pode levar à ruína da humanidade. Como a destinação das conquistas científicas depende de uma opção humana, elas necessariamente implicam numa opção ética. A Ciência deixa de ser objetiva, inócua ou neutra, para municiar decisões que têm como fundo, motivações de outra natureza.
Depois de chamar a atenção para dupla face do progresso turbinado pelas conquistas científicas, quero demorar-me um pouco mais no lado da sombra, apontado por Teilhard de Chardin depois de falar do “instrumento maravilhoso” que é a pesquisa científica que parte da análise ou da desconstrução de sínteses. Se a destinação prática dos resultados das pesquisas implica em questões como a ética, o cenário histórico global que resultou não é menos paradoxal. O paradoxo faz parte da própria natureza do método analítico. Para avançar no conhecimento científico é forçoso desdobrar as realidades em componentes estruturais e funcionais. Quanto mais se avança mais se disseca, desmonta, desdobra. O risco está exatamente no desmonte progressivo que a análise estimula e exige. Chega-se a um ponto em que, diante de pilhas de engrenagens, circuitos, peças, átomos, moléculas, tecidos, não se percebe mais o todo, o conjunto que integravam como partes funcionais. Avança-se e aprofunda-se enquanto aparecerem resultados e enquanto ainda houver esperança de surpresas. Não são poucos os pesquisadores que se flagram perplexos diante da “pilha de peças” da máquina que desmontaram e das “partículas que se esvaem” e perguntam: E o sentido de tudo isso? Toma conta deles a sensação de terem participado de um “parto de montanha e nasce um ridículo camundongo”, como diriam os romanos na sua lendária sabedoria.
Problema dos cientistas e da ciência pode objetar alguém. Nem tanto. Na medida em que durante os últimos séculos as pesquisas se diversificaram; na medida em que os especialistas se multiplicaram; na medida em que os resultados das investigações aceleraram o progresso da humanidade, conceitos, princípios, valores e dogmas tradicionais intocáveis, foram sendo contestados, discutidos, minados pela base, postos em dúvida e, finalmente, arquivados nos museus da história. Um a um velhos paradigmas e referências foram desconstruídos. Caldera afirma; “A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas”. Para depois concluir: “O protótipo do homem dominante é o do bárbaro digital”. (Caldera), 2004, p. 91).