[ Reflexões ]

Neste cenário desenham-se alguns riscos que precisam ser enfrentados se não quisermos cair na vala comum das suas vítimas. O autor que acabamos de citar, os enumera: “Há que evitar três  riscos para preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e todo o valor por um indefinido processo de construção e a defesa da identidade e da diferença própria, negando a  identidade e a diferença alheias”. (...) “Ou evitando que a pluralidade de culturas se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos”. (Caldera, 2004, p. 93.)

Mas não só a nível de filósofos e cientistas, a quem afeta toda essa problemática diretamente   fazem-se ouvir advertências de peso. Nos intervalos em que redigia esse texto li o ensaio da escritora Lya Luft, publicado na revista Veja, edição 2204, de 16 de fevereiro de 2011. Vale a pena reproduzir o começo desse ensaio intitulado: A maior ironia: 

Com o ensino cada vez pior – e ainda por cima sendo cada vez mais difícil conseguir uma reprovação -, temos gente saindo das universidades quase sem saber coordenar pensamentos e expressá-los por escrito, ou melhor, sem saber o que pensar das coisas, desinformados e desinteressados de tudo. Fico imaginando como será em algumas décadas. A ignorância alastrando-se pelas casas, escolas, universidades, escritórios, congressos, senados... Multidões de consumistas   ululando nas portas de gigantescos shopings, países inteiros saindo da obscuridade - não pela democracia, mas para participar da orgia de aquisições e entrar na modernidade. Em algumas coisas sou pessimista: essa é uma delas. Mas acredito que os que ainda quiserem pensar, estudar, descobrir, inventar, pintar, dançar, cantar e escrever, vão viver numa espécie de ilha. Talvez em universidades tradicionais ou ultra-adiantadas, ou no aconchego de bibliotecas em casa (...). Já existem em países adiantados intelectuais, pensadores, pesquisadores, cientistas pagos, simplesmente para pensar, criar, inventar, descobrir. (Veja, ed. 2204, nº 7, 2011, p. 22)

A escritora Lya Luft apontou no ensaio ao que acabamos de nos referir, para alguns pontos de grande valia para a nossa reflexão. O primeiro tem relação íntima com a “desconstrução dos paradigmas, abolição dos valores sociais, políticos e econômicos, éticos, religiosos e morais”, sobre os quais nos alerta Alexandro S. Caldera. A escritora aponta com o dedo o rosto visível   desse pano de fundo. Estigmatiza os efeitos concretos e práticos causados pela fragmentação que se alastra por todos os setores e níveis da sociedade pós-moderna. Recuperando-se, por assim dizer, do susto que o cenário lhe causou, encontra razões para vislumbrar uma luz no fundo do túnel. A existência de pensadores, cientistas, artistas, teólogos entregues, antes de qualquer outro interesse, a aprofundar as reflexões, penetrar sempre mais fundo nos objetos de suas investigações. Acumulando saberes e agregando-lhes qualidade e abrindo o leque de significados, preparam a matéria prima, para com ela como ponto de partida, construir um conhecimento que mereça esse nome.

Acontece que não é com vozes de alerta isoladas ou a advertência de “franco atiradores” que se aconselha partir para uma cruzada em busca da reversão desse quadro. Dois pressupostos são fundamentais. Ambos igualmente determinantes. O primeiro é aquele ao qual nos referimos mais acima. Exigem-se instituições de ensino em todos os graus e níveis, nas quais os estudantes encontrem condições para municiarem-se dos conhecimentos e das ferramentas, que os habilitam a lidar com a complexidade do mundo no qual irão atuar. Somente assim estarão em condições de compreender que, cada qual como indivíduo, representa uma gota no grande oceano da construção do conhecimento; que com outros trilhões de gotas formam um grande conjunto; que por insignificante que possa parecer o conhecimento individual, ele melhora ou piora a qualidade do todo. É fundamental que a formação dos estudantes, não importa o caminho específico e individual que cada um escolher, tenha essa consciência. Superam-se com isso dois impasses. Em primeiro lugar, entram em cena pesquisadores e ou pensadores cônscios de que lhes compete explorar campos e objetos limitados, partes de uma realidade maior. Os saberes que vão reunindo são parcelas que têm valor na medida em que contribuem para a construção do conhecimento que engloba todos os saberes individuais integrados harmonicamente. Nisso consiste a sua riqueza, vigor e solidez.  Em segundo lugar, e como consequência lógica da anterior, a aceitação e o respeito pelos que os outros pesquisam e pensam, pelos esforços dos estudiosos dos que se dedicam a outros objetos ou os abordam a partir de perspectivas diferentes. O respeito e a aceitação levam à valorização dos esforços dos outros e suas conclusões, não só das Ciências Naturais ou das Ciências do Espírito como, e, porque não, da sabedoria popular. Num cenário desses obviamente só há espaço para espíritos desarmados, honestos, despidos de preconceitos, humildes, conscientes do seu papel em contribuir para o avanço dos conhecimentos e, ao mesmo tempo, cônscios das suas limitações. Não há, portanto, espaço para arrogantes soberbos, donos da verdade, pregadores de dogmas tanto científicos quanto filosóficos ou teológicos 

Um cenário desses favorece o diálogo interdisciplinar. O cientista troca resultados e conclusões com o filósofo e o teólogo e este, por sua vez, procura validar suas teses e doutrinas à luz das descobertas da Ciência. Embora tímida ainda, a realidade desse diálogo inter-saberes, cá e lá já se anuncia no horizonte. Já tivemos várias vezes ocasião para trazer exemplos. Permito-me concluir essa parte da reflexão com o apelo do prof. Edward Wilson. Wilson ficou conhecido na década de 1970 pela posição radical em favor de uma visão materialista do mundo. Em 2006, entretanto, publicou o livro “The Creation – an appeal to save life on Earth”. Nesse livro no  formato de de u diálogo, convida um pastor evangélico, para que Ciência, Filosofia, Religião e Teologia se deem as mãos, a fim de resolver as intrincadas questões que envolvem o binômio homem-natureza. Pelo visto rendeu-se à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para superar os impasses criados pela relação equivocada do homem com o ambiente natural.

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem nossas diferenças metafísicas têm um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos, pessoas éticas, patrióticas, altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos com a mesma intensidade santificar a vida humana e compartilharmos o amor à Criação.  (E. Wilson, 2008, p. 188)


Edward Wilson como entomólogo, descobriu aos poucos que os insetos que estudou a vida toda, vão sugerindo muito mais do que as características taxonômicas que revelam à primeira vista. Seu conterrâneo e contemporâneo Francis Collins chegou à mesma conclusão, partindo do estudo e do mapeamento do genoma humano. Identificou-o como um código que nada mais é do que a “Linguagem de Deus”, título que deu a seu famoso livro, no qual nos deixou o depoimento:

Apesar de eu, no fim das contas, passar da Ciência Física a Biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira das várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, “qual seria a explicação para a inexplicável eficiência da Matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda da natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade do sobrenatural, seria isso também uma intuição da mente de Deus? Teriam Einstein e Heisenberg e outros encontrado o divino. (Fr. Collins 2007, p. 7)  

Para concluir essa parte da nossa reflexão sobre a construção do conhecimento, o dr. Collins acrescentou o testemunho de Stephen Hawkings, com a observação que esse físico não costuma ser muito ligado a considerações metafísicas.

Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão do porque de nós e o universo existirmos. E se encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana – pois, então conheceremos a mente de Deus. Seriam essas descrições matemáticas da realidade indicações de alguma inteligência superior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus? (Hawking, 2015, p.  229)

As manifestações dos dois renomados cientistas, Francis Collins e Edward Wilson, não são vozes isoladas no meio científico. A eles somam-se muitos outros como Stephen Hawkings, Eisntein, Heisenberg, von Braun, von Bertalanffy, A. Portmann, Keppler, Copérnico, Newton, Alessandro Volta, Ampère, Gauss, Liebig, Darwin, Robert Mayer, Marconi (prêmio Nobel), Milikan (prêmio Nobel), Eddington, Albert Einstein (prêmio Nobel), Max Plank (prêmio Nobel), Schrödinger (prêmio Nobel), Wernher von Braun,  Charles Townes (prêmio Nobel), Alan Sandage,  Thomas Edison e muitos outros.  A “Amercan Scientific Affiliation” reúne-os numa associação, aberta a todo aquele que, de alguma forma, aceita discutir a abertura da Ciência para a Filosofia e, por que não, a Teologia. A essa organização vem somar-se a   PAC – Pontifícia Academia de Ciências – onde essas questões de fronteira são discutidas e analisadas por cientistas das mais diversas filiações confessionais, como também agnósticos e ateus. Aliás, o atual presidente da PAC é um químico protestante suíço.

Há um aspecto nessa questão que merece destaque. Os nomes que compõem a lista daqueles que, direta ou indiretamente, se dispõem ao diálogo e a troca de resultados entre os diversos   campos do conhecimento, são especialistas com carreiras e fama consolidadas. Chegaram às suas convicções como o resultado, como que a síntese conclusiva, de uma longa caminhada de investigações, pesquisas e reflexões. Não poucos, senão a maioria, desenvolveram o esforço científico num tempo em que reinava um clima de desconfiança, de rejeição e até de guerra declarada contra as Ciências Humanas e as Ciências do Espírito. Entre eles destacam-se  Edward Wilson, Francis Collins, Stephen Hawkings. Depois de muito pesquisar, depois de responder pergunta por pergunta que suas investigações sugeriam, depois de se depararem com os limites dos recursos técnicos e científicos, despertaram par a possibilidade de que não estava unicamente em suas mãos, responder a todas as questões. Coerentes e honestos como manda ser um cientista e mais ainda um sábio de verdade, escancararam as janelas em busca de outros horizontes. Encontraram-nos em outras dimensões do conhecimento, na Filosofia, na Teologia, na Tradição, no Conhecimento popular e na Intuição.

Constitui-se, sem dúvida, um fato auspicioso a constatação de que existe clima e disposição para o diálogo “interconhecimentos” ou “interdisciplinar”. Acontece, porém, que esse movimento   decorre como resultado final das conclusões de cientistas com carreira consolidada e ou pensadores amadurecidos nas suas reflexões. Não seria oportuno, quem sabe, inverter a situação? Significa incentivar e reforçar nas instituições de ensino, ou implantar naquelas que não a praticam, reintroduzir naquelas que a abandonaram, uma política acadêmica visando desenvolver uma visão interdisciplinar do conhecimento. Neste caso os futuros cientistas, humanistas, teólogos e filósofos, já sairiam das escolas e universidades preparados para desenvolver suas especialidades nessa perspectiva. Poupar-se-ia   assim todo um desvio longo, tortuoso e muitas vezes sofrido, para que cada um chegue lá por conta própria, se é que chega. É impossível avaliar o que uma decisão nesse sentido importa em termos de conhecimento a ser produzido, tanto em quantidade quanto em qualidade. 

This entry was posted on segunda-feira, 3 de outubro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.