Bicentenário da Imigração - 53

Finalmente nos dias dois e três de abril de 1923, na Assembléia Geral dos Professores, comemorativa dos 25 anos da existência da entidade, foi decidida a criação da Escola Normal. O Jornal do Professor publicou a seguinte “conclamação ao reverendo clero, professores e amigos da escola”: 

A décima primeira  Assembléia Geral da Associação do Ensino Católico, em Porto Alegre concretizou o desejo tão longamente cultivado de fundar  uma instituição  para a formação  dos professores. Essa instituição para a formação de professores católicos que gozou  de aprovação expressa de sua excelência reverendíssima o sr. Arcebispo Metropolitano D. João Becker, iniciará em breve as suas atividades em Estrela. A Associação  Riograndense dos Professores arrecadou, como fundo inicial para a manutenção desta obra  tão importante para a catolicidade, a soma de quinze contos. A intenção é aumentar esse fundo para cinqüenta a sessenta contos. Com os juros desse  capital mais contribuições posteriores, será possível arcar com a manutenção do Seminário destinado aos professores. (Lehrerzeitug, 1923, nº 6, p. I)

Uma análise dos estatutos da nova Escola Normal, alguns pontos merecem atenção.

Primeiro. Embora regida por estatutos próprios, a Escola Normal foi o fruto da iniciativa da Associação dos Professores e permaneceu sob sua orientação como uma das suas atividades normais. Prova-o o fato de a autoridade maior, responsável pela gestão da escola, ser o Conselho Fiscal  formado pelo presidente, o tesoureiro e o redator do boletim da Associação dos Professores, um assistente eclesiástico indicado pela Cúria Metropolitana e um quinto integrante indicado pela Sociedade União Popular. A eles cabia escolher o Diretor da escola. 

Segundo. Os estatutos demonstram que a Escola Normal  estava sujeita a uma severa vigilância da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Alguns dispositivos dos estatutos deixam bem clara essa situação. 

O Diretor da Escola escolhido pelo Conselho Fiscal tinha que ter a aprovação da Cúria para poder ser efetivado no cargo (§15). À mesma Cúria ficava reservada a prerrogativa de escolher e nomear o professor de religião, sacerdote ou leigo, bem como estipular a remuneração quando religioso. No caso de o professor de religião fosse um sacerdote e quisesse lecionar outra disciplina além da religião, necessitava igualmente autorização da Cúria (§1-18).  A autoridade eclesiástica mantinha um controle rigoroso sobre o material didático, principalmente os livros. Os livros de religião, tanto para o uso dos alunos como do professor, exigiam o beneplácito da Cúria para evitar que neles se veiculassem ensinamentos em dissonância com   doutrina católica e os bons costumes (§34). A concluir o curso normal, o candidato a professor era obrigado a se submeter a um exame de conclusão, presidido pelo representante do Arcebispo Metropolitano (§35). A solução dos casos omissos nos estatutos cabia ao Conselho Fiscal, sempre de acordo com a Cúria (§39). No mesmo parágrafo previa-se a competência da Assembléia Geral dos Professores para modificar os estatutos, ressalvando-se novamente que a entrada em vigor exigia a aprovação da Cúria. 

Não resta pois, nenhuma dúvida que a autoridade eclesiástica exercia uma vigilância  e uma fiscalização permanente, por meio do seu representante de confiança no Conselho Fiscal e pelos dispositivos estatutários que foram apontados. Pertencia à Cúria Metropolitana o papel de última instância em tudo que dizia respeito a questões de natureza administrativa, curricular, didático-pedagógica e, de modo  especial, doutrinária. Estamos, portanto, diante de uma instituição de formação confessional no sentido mais rigoroso do termo. O motivo não  deixa dúvidas. Em jogo estava a formação de professores católicos comprometidos, capazes de, também nas disciplinas profanas e na sua conduta pessoal, servirem de exemplo e de fermento para a vida católica no meio rural. Este objetivo fica explícito nos estatutos que regiam a Escola Normal.  Para ser admitido à Escola exigia-se do candidato, conforme o § 21, os seguintes documentos:

§ 21. À admissão da Escola Normal, precederá  um exame devendo o aspirante ao professorado ter completado 15 nos e apresentar:
a) um atestado de conducta passado pelo pároco, provando a capacidade moral e intelectual do candidato.
b) Uma declaração do pai, tutor ou outros interessados, responsabilizando-se pelas despesas dos estudos. (Lehrerzeitung, 1923, nº 7, p. 1-7)

O § 25 dos mesmos estatutos traçou, em poucas palavras o perfil do professor comunitário que se pretendia formar na Escola Normal:

§ 25 Na formação dos candidatos ao magistério parochial, a Escola Normal terá em mira professores, que sejam habilitados para educarem bons católicos e dignos cidadãos, sem prejuízo do direito à língua e do caráter étnico de sua origem. (Lehrerzeitung, 1923, nº 7, p. 1-7)

Traduzir na prática didático-pedagógica os conteúdos para que os egressos da Escola estivessem em condições de cumprir a sua missão nas comunidades coloniais constituiu-se no grande desafia da Escola. Tanto a sua montagem, desde a infra-estrutura, quanto o material didático e, principalmente, o currículo, demonstram essa preocupação. Para começar  para  sede da escola foi escolhida a pequena cidade de Estrela. De fato  ela começou a funcionar em 1924 em Arroio do Meio e partir de 1929, até o seu fechamento em 1938 em Hamburgo Velho. A preferência por um centro menor no interior baseava-se no princípio de que não era aconselhável que os futuros professores fossem formados longe do ambiente social em que iriam atuar mais tarde como profissionais. 

Mas é o currículo praticado na Escola que nos oferece os elementos que compunham  o cerne do professor colonial imaginado para a época. Com alguns anos de experiência chegou-se à conclusão que a duração da formação não deveria ser inferior a três anos. A Escola alcançara o seu apogeu em 1938, ano em que também ela foi vitima da Campanha de Nacionalização. O currículo então praticado foi extraído do boletim do professor de janeiro/fevereiro de 1937.

Disciplina             C. Adiantado C. Médio C. Inferior Estágio
1. Religião                 2                 4 4
2. H. Da ped. e Metodol. 3 1 - -
3. Psicol.Pedagógica 3    1 - -
4. Alemão                 4 4 5 5
5. Português                 5 5 5 5
6. Matemática                 3 3 4 5
7. Hist. Da Al. e Brasil 2 2 2 2
8. Hist. Natural                 2 2 2 -
9. Geografia geral de Brasil 2 2 2 2
10. Desenho e Caligrafia 1 1 2 2
11. Contabilidade                 2 2 - -
12.Canto, violino, harmônio 2 2 2 2
13. Educ. Física         2 2 2 2

(Lehrerzeitung, 1937, nº 1/2, p. 1)

O espaço disponível nesta publicação não permite uma análise exaustiva do currículo em foco com todo o potencial de formação nele contido. Não é difícil, entretanto, visualizar que com ele pretendia-se formar o protótipo do professor comunitário colonial; o personagem presente em todas as comunidades organizadas; presente em todas as ocasiões, religiosas ou profanas; o a amigo sempre disposto  ajudar; o líder por todos respeitado, o modelo de virtudes sociais, humanas e religiosas; o elemento humano indissoluvelmente vinculado e comprometido com a sorte da comunidade a que servia. 

A perseverança de muitos dos professores  comunitários, por dezenas de anos e pela vida toda, não se explica pelos salários que percebiam, pelo prestígio de que gozavam. Prendia-os a consciência de estarem cumprindo uma missão confiada a eles como uma vocação semelhante a um sacerdócio. Somente desta forma explica-se o terem dado o melhor de si no exercício do magistério e a liderança comunitária em localidades, muitas vezes pequenas, afastadas, pobres e isoladas, considerando que a formação recebida lhes franqueava as portas  para opções de vida mais rentáveis e convidativas.

A Campanha de Nacionalização varreu do cenário educacional das escolas comunitárias do sul do Brasil, este personagem que durante um século, foi a alma das comunidades teuto-brasileiras e o responsável que o analfabetismo nelas fosse uma exceção quando no restante do País, se situava em níveis preocupantes. Fechando este texto quero citar a opinião do Pe. Balduino Rambo, referindo-se ao significado da retirada de cena do professor comunitário, vitimado pela Campanha de Nacionalização.

Para colocar todo esse problema nos seus devidos moldes, é necessário frisar de novo, que o dano mais sensível não veio da abolição do alemão, mesmo na forma extrema de o limitar à igreja, mas nos fenômenos que acompanharam a nacionalização brusca das escolas. Nas comunidades de origem alemã, igreja e escola foram os dois  pólos ao redor dos quais gravitava toda a vida pública; nas comunidades evangélicas, pastor e professor muitas vezes eram uma e a mesma pessoa; nas católicas, o professor costumava ser a mão direita do vigário, como sacristão, dirigente do canto litúrgico, organizador das festas, responsável pelas devoções dominicais nas capelas filiais nos domingos sem missa, catequista nas escolas das picadas secundárias. O professor paroquial estava de tal maneira ligado aos interesses mais vitais da comunidade, que em tempos antigos, sua morte, sua mudança, seu afastamento voluntário ou forçado, constituíam  a perene causa de preocupação, dissensões e até a formação de partidos hostis. (Rambo, Balduino. 1958, p. 17)

(Obs. A história e a natureza da Escola comunitária foi contemplada com um livro do autor dessa matéria, com o título: A Escola Comunitária Teuto-Brasileira pela Editora Unisinos, 1994. O mesmo autor  publicou também pela Editora Unisinos em 1996 o livro intitulado: A Escola Comunitária Teuto-Brasileira: A Associação dos Professores e a Escola Normal).

Bicentenário da Imigração - 52

O professor na História  da escola comunitária

A história da escola comunitária teuto-brasileira pode ser divida em  etapas. Cada uma delas revela de um lado o nível de formação que se oferecia aos alunos e, do outro, o tipo de corpo docente responsável por ela. 

O primeiro período foi de 1824-1850. Define-o o caráter emergencial tanto do nível do ensino ministrado, como dos métodos pedagógicos, do material didático e do preparo dos docentes. O ensino  neste período restringia-se ao absolutamente necessário. O caráter emergencial da escola mostrava-se de várias formas. As próprias instalações físicas não passavam de recintos com paredes trançadas com varas e revestidas com barro, cobertos com tabuinhas, em nada diferentes  das primeiras moradias dos colonos. A escola podia funcionar também na própria residência do professor. O caráter precário dessas escolas ficava evidente também pelo material didático nelas utilizado. Resumia-se num quadro negro rústico,  algum mapa, a lousa e o estilete de ardósia. Caneta, papel e tinta só bem  mais tarde.

Mas o que identificava, de modo especial, esse período foram os professores sem uma formação específica para a função. Raros eram os profissionais do magistério. Tratava-se, ou de pessoas menos aptas para a agricultura, ou de pessoas com uma instrução um pouco melhor, ou de artesãos que dedicavam uma parte do seu tempo a ensinar as crianças, ou de religiosos que se compadeciam da penúria em termos de educação dos colonos. Às instalações precárias e à deficiência na formação, os professores tiveram que cumprir a sua missão, superando outros inconvenientes próprios da época. A duração do período escolar irregular e muito curto. Costumava ser de alguns meses até o máximo de um ou dois anos. Como era irregular a duração de período escolar assim também era irregular a freqüência da escola. Entre os motivos dessa situação conta-se, em primeiro lugar, as distâncias até a escola que as crianças eram obrigadas a percorrer, a pé ou a cavalo. À distância somava-se a precariedade das estradas, não raro trilhas perigosas no meio do mato. As dificuldades de percorrê-las acentuavam-se em muito durante o inverno e nas épocas de chuva no outono e na primavera. A evasão temporária da escola nos períodos do plantio na primavera e colheita no outono, costumava ser outro fator negativo para a educação escolar da época. Os pais retinham os filhos em casa para auxiliarem na lavoura ou cuidarem das casas e dos irmãos menores, enquanto os adultos era requisitados de  sol a sol, nos dois períodos de pique do trabalho na propriedade. 

Apesar de todos esses problemas, contratempos, percalços, dificuldades e deficiências, é forçoso creditar a essas escolas de emergência, com seus mestres  improvisados, a façanha de terem  salvo a primeira geração dos filhos dos imigrantes nascida no Sul do Brasil,  da desculturação, da deterioração dos costumes, do enfraquecimento da fé e do desinteresse pelas práticas religiosas. 

Segundo período; 1850-1900-1938. Se o primeiro período cobriu os 25 primeiros anos da imigração, o segundo cobre os 50 anos seguintes. O primeiro caracterizou-se pelo nascedouro da escola comunitária entre os imigrantes alemães, mostrando  em todos os sentidos seu perfil de instituição de emergência. No segundo período a escola consolida-se como uma instituição que, ao lado da igreja, do cemitério, das oficinas dos artesãos, das casas de comércio, dos locais de lazer, não pode ser dispensada. Não se encontra um comunidade organizada sem a sua escola. Uma das conseqüências foi a  multiplicação das escolas no mesmo ritmo da multiplicação dos novos núcleos coloniais e formação de novas comunidades de colonos. As  10 escolas católicas em funcionamento em 1850, saltaram para 50, um acréscimo, portanto, de 400% em apenas 25 anos. Vários fatores colaboraram nessa dinâmica. A primeira geração aqui nascida tornara-se adulta, somada a intensificação do desembarque de  novos imigrantes vindos da Alemanha, começou o avanço sobre novas fronteiras de colonização no vale do Caí, Taquari, Pardo e Jacuí. 

Além da superação das dificuldades dos primeiros 25 anos a colonização veio a contar com um novo e poderoso fator de dinamização. Em agosto de 1849 chegaram à colônia de São Leopoldo os dois primeiros jesuítas. A eles seguiram-se muitos outros nas décadas seguintes. Fixaram residência em Dois Irmãos e São José do Hortêncio. Partindo destes postos avançados prestaram assistência religiosa a todos os colonos da região. Encontraram as comunidades organizadas em torno de suas escolas e, de imediato, intuíram a importância destas como fatores de primeira ordem para manter o nível cultural, religioso e moral da população. De então em diante, a escola contou com a aprovação, o aval e o apoio irrestrito dos padres que vinham chegando.  Os nomes de muitos deles  acham-se indelevelmente vinculados com a escola. Sobressaem nesta fase os nomes dos padres Klueber, Feldhaus, Queri, Gasper e Steinhart. Mais tarde acresceram os nomes dos padres  Amstad, Rick, Lassberg, Hann e muitos outros.

Se os padres jesuítas vindos da Europa representaram uma importante fator de dinamização da escola e da educação entre os colonos, verificou-se também uma sensível elevação do nível da formação profissional dos professores. A improvisação das décadas anteriores foi, aos poucos, superada, pela entrada de um corpo docente profissionalizado e com formação específica. Desta forma a multiplicação numérica e dispersão geográfica, vem acompanhada pela melhora da qualidade do ensino ministrado. Durante a segunda parte do século dezenove entrou em cena um número apreciável de professores com formação seminarística (formal) imigrados diretamente da Alemanha. Entre eles destacaram-se nomes como dos professores Wallau e Volkmer em Porto Alegre.  Müssnich no Morro dos Bugres, pertencente a Dois Irmãos, M. Bittenbender no Frankental, também na área de Dois Irmãos, Vier no Erval, Adams em Dois Irmãos e Maratá, no Maratá encontramos ainda o prof. Rücker, na Walachai o professor Wickert, na Picada Café W. Jung, Picada Café ainda C. Fuehr e Birnfeld, O professor Ody lecionou na Vila Nova e  São José do Hortêncio, O prof. Back regeu a escola de São José e Linha Francesa e o prof. Phillipsen a escola de D. Diogo (São José do Sul), o professor M.  Schütz a escola de Bom Jardim (Ivoti). Em Estrela atuou o prof. Schmidt e, em Santa Cruz o prof. Hillesheim. Ainda na região de Santa Cruz destacaram-se os professores Brixner e Simonis com 41 e 35 anos de magistério respectivamente. 

Os mestres que acabamos de nomear e muitos outros compuseram o núcleo de homens  inteiramente dedicados ao magistério nas escolas comunitárias. Coube a eles dar forma institucional a elas, unificar gradativamente a duração do período de freqüência à escola, propor um currículo unificado e formular uma proposta didático pedagógica comum a todas.  A implantação efetiva deste perfil da escola aconteceria  na reunião anual da Associação dos Professores e Educadores Católicos, em Bom Princípio no ano de 1902. 

O dia 26 de março de 1898 representa uma data decisiva na história da qualificação do ensino nas escolas comunitárias e da profissionalização e formação dos professores. Durante o primeiro Congresso Geral dos alemães católicos do Rio Grande do Sul, realizado naquela data em Harmonia, foi fundada a Associação dos Professores e Educadores Católicos. Esta data marca, de fato, o momento em que a escola comunitária alcançou a idade adulta em todos os sentidos. A rede de escolas católicas contava naquela data com 82 escolas. O corpo docente pode ser considerado profissionalizado com a habilitação específica obtida  em escolas normais ou em instituições similares. Poucos eram ainda os docentes improvisados que se “tornaram professores lecionando”.

Como se acaba de registrar a Associação dos Professores tratou de imediato de formalizar a entidade, dando-lhe personalidade jurídica, por meio de estatutos que foram aprovados na assembléia geral em Bom Princípio, 1º de abril de 1902 e registrados no cartório distrital de Dois Irmãos em 1907. 

Por várias razões a Assembléia Geral de Bom Princípio foi de capital importância para o futuro da escola comunitária. A duração do período de freqüência da escola foi fixado em quatro anos. Foi implantado um currículo único para todas as escolas sob a responsabilidade  da Associação dos Professores, fruto de um filosofia educacional consolidada, ditada pela experiência de setenta anos. A garantia de uma unidade mínima na condução da escola ficou a cargo, principalmente de um informativo de circulação mensal, editado pela Associação dos Professores e pelas assembleias gerais anuais da Associação: “Lehrerzeitung – Jornal do Professor.” 

Perfil do Professor.
Nesta caminhada de sete décadas, o contexto peculiar em que a escola comunitária teuto-brasileira se consolidou, definiu-se aos poucos o perfil dos mestres que foram os responsáveis por ela. E quando se fala em contexto peculiar entendem-se as características da própria organização comunal servida pela escola e o papel que coube ao professor desempenhar, além do de mestre-escola.

A análise da formação das  comunidades coloniais teuto-brasileiras no Sul do Brasil, mostra que duas lideranças garantiram  a sua consolidação: os padres, de modo especial os jesuítas e os professores responsáveis pelas escolas. Em termos de importância fica muito difícil decidir a favor de um ou de outro. Em todo o caso, cronologicamente, encontramos o professor  antes do padre, regendo as escolas de emergência das duas primeiras décadas, liderando a organização das comunidades e, na medida do possível, mantendo viva a fé e a prática  religiosa.

A tarefa do professor não se esgotava com o ensinamento das primeiras letras, os rudimentos mais indispensáveis do cálculo e ensino do catecismo. A investidura como mestre-escola credenciava-o para assumir tarefas que extrapolavam as quatro paredes de um escola. Cabia-lhe liderar atividades importantes referentes à religião e  a sua pratica, iniciativas de natureza social, cultural e econômica. Sua presença inconfundível, marcou indelevelmente  o perfil dessas comunidades até o final da década de 1930, quando a Campanha de Nacionalização arredou criminosamente e para sempre do cenário colonial esse personagem tão familiar.

Uma comunidade podia dispensar perfeitamente  a presença permanente de um padre. Bastava, a rigor, uma ou outra visita por ano a fim de regularizar a situação sacramental dos fieis, de modo especial os batizados e os matrimônios. O professor, pelo contrário, residia com sua família na comunidade e sempre estava a postos. Sua presença, seus conselhos, suas opiniões, enfim, sua liderança não podiam ser dispensadas. Fazia o papel de árbitro nas disputas, de conselheiro nas dúvidas, de modelo de virtudes, de orientador e guia seguro. Com todas essas funções a cumprir o professor de então se equiparava, sob muitos aspectos, com o diácono leigo na Igreja de hoje. O professor Lúcio Kreutz na sua tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e publicada com o titulo: O Professor  Paroquial – Magistério e Imigração Alemã, assim se referiu ao professor:

O professor  paroquial é personagem típico da zona de colonização teuto-brasileira no sul do Brasil. Ele é fruto da iniciativa dos imigrantes  alemães e seus descendentes na tentativa de estabelecerem-se econômica e culturalmente nas colônias que lhes eram destinadas. Seu surgimento tem raízes na já tradicional preocupação com a questão escolar entre os alemães.  As funções do professor  paroquial junto às comunidades rurais católicas dos teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul, eram muito mais  amplas  e diversificadas do que as meramente docentes e restritas à escola. Ele foi um elemento de unificação, um agente de síntese e promoção das percepções do grupo humano no qual se inseria ativamente, seja no campo social, político, religioso e cultural. ( Kreutz, Lúcio, 1991, p. 102   )

Os atributos que se acabam de enumerar  como próprios do professor comunitário  acham-se discriminados no Manual Didático-Pedagógico elaborado pelo prof. Rudi Schäfer, editado em 1924:

A habilitação do professor
O exercício adequado de sua função exige do professor uma considerável preparação corporal, espiritual e moral.

O professor necessita de um corpo sadio sobretudo para enfrentar  os esforços exigidos pela sua missão. São principalmente  a visão, a audição e o aparelho fonador que precisam corresponder à profissão.

È o óbvio que o professor esteja de posse dos conhecimentos  necessários. Quem não domina suficientemente os conhecimentos, não estará em condições de transmiti-los. A tudo isso é preciso aliar  a capacidade didático-pedagógica, sem a qual de nada adianta o mais rico cabedal de conhecimentos. Em parte trata-se de um dom natural. Pode, contudo, ser adquirido a um nível satisfatório, por meio do esforça e dedicação. Para tanto o presente livro pretende ajudar. 

Acima de tudo, porém, o professor precisa ficar atento, que a educação fundamenta-se especialmente no exemplo. Não pode dispensar uma sólida formação moral, não apenas na escola, como deverá ser um modelo na vida pública e familiar. 

A virtude maior do professor é o amor às crianças que lhe são confiadas. É o sol que fecunda toda uma ação educadora.

Para garantir a satisfação do professor em sua atividade repleta de bênção, mas discreta e trabalhosa, são indispensáveis a satisfação e a ausência de ambições exageradas. 

Não se proíbem ao professor, como a qualquer outra pessoa, as diversões permitidas em sociedade. Quando os encontros sociais se dão com pessoas de espírito nobre, estimulando conversas também de nível, só podem trazer bênção. O bom humor e a alegria sentem-se aí em casa.  

Para uma profissão tão importante requer-se uma esmerada formação profissional. Os tempos estão superados em que se confiava a tarefa de lecionar a qualquer desocupado que dominava alguns conhecimentos. Em primeiro lugar exige-se que o futuro professor adquira um conhecimento aprofundado em todas as disciplinas constantes do currículo da escola. É preciso que saiba mais e com maior profundidade do que aquilo que deve ensinar aos alunos. Quem não souber mais do que vai ensinar aos  alunos, não será capaz de apresenta-lo com profundidade. 

Cabe ao professor considerar como sua área específica o tirocínio didático-pedagógico. Princípios e regras  por si só não são capazes de produzir um educador. Mesmo que aprenda com cuidado as lições didático-pedagógicas, não se transforma, por isso só, nem num professor, nem num educador. O mestre se faz com a prática. A tarefa da didática consiste em mantê-lo na direção certa  evitar que se desgarre do caminho correto. Onde quer que atuem homens, é impossível evitar o erro, nem mesmo no ensino e na educação. É preciso, porém, evitar as falhas enquanto possível.  É para isso que serve a didática e a pedagogia. 

É evidente que o professor não pode permanecer no nível de formação que adquiriu durante o tirocínio profissional. É preciso ampliar os conhecimentos. Uma formação pela metade e ilusória se crê na condição de dominar o campo do saber todo inteiro, pelo simples fato de não perceber sua vastidão. Soma-se a isso que, sem o esforço de ampliar a formação, os próprios conhecimentos com  o tempo se diluem.

Os meios mais eficazes para o aperfeiçoamento do professor são:

Uma preocupação conscienciosa  daquilo que irá ensinar; leitura assídua de bons livros; o relacionamento com homens instruídos; assembléias e reuniões de professores. 

A preparação do professor para o ensino deve compreender: 1º o que ensinar, 2º  o como ensinar.

Esta preparação é especialmente  proveitosa quando o jovem  professor a escreve no papel e a fixa com exatidão na mente.

Uma assídua leitura de bons livros auxilia o aperfeiçoamento do professor. Não raro são eles que lhe oferecem  a única oportunidade de encontrar uma companhia culta. Não pode prescindir dela sob pena de correr o risco de sua formação se encolher e seus pensamentos se empobrecerem. 

O relacionamento com homens cultos significa para o professor, como para qualquer pessoa, um meio de ampliar a formação. Para o jovem professor é de grande estímulo frequentar as escolas nas quais atuam mestres mais antigos e mais experientes. Aprenderá assim mais depressa e com maior segurança do que nos livros.

Como quarto meio de aperfeiçoar e ampliar a formação devem ser consideradas as assembléias  de professores, quando forem bem conduzidas e como conseqüência desenvolverem  a consciência  profissional e o amor à vocação. (cf. Schär, Rudolpf, 1924, p. 7-9)

O professor paroquial, prefiro chama-lo professor comunitário, portanto, encarnava para as comunidades teuto-brasileiras, no caso católicas, a liderança  por excelência e sob hipótese nenhuma dispensável. As demais lideranças importantes, como os padres, os negociantes e outras espontâneas, ocupavam, em relação ao professor, uma posição de segunda instância. Essa posição ímpar, acompanhada de atribuições  de fundamental importância, exigia do professor uma habilitação peculiar e, por isso mesmo,  complexa. 

Uma característica de grande significado diferenciava o professor da época do professor ou a professora de hoje. O exercício do magistério comunitário era encarado e assumido como uma autêntica vocação de vida. O professor não se equiparava a um profissional qualquer. Ele próprio se considerava e os outros o consideravam como alguém investido da sagrada missão de conduzir a comunidade ao encontro do seu bem-estar material, social e cultural, tendo em vista, em última análise o bem-estar espiritual.

É neste nível que se situa o divisor que separa a natureza do magistério comunitário da primeira  metade do século vinte, do conceito que prevalece hoje. A largura do fosso tem as dimensões  exatas do compromisso assumido por alguém que age motivado por uma autêntica vocação e aquele que exerce suas funções de professor levado por motivações  friamente profissionais. 

Esta diferença foi identificada pelo professor Lúcio Kreutz em sua tese já várias vezes citada. 

E a ação educacional constituía em fazer andar, estimular o avanço para a perfeição e de Deus. Considerado como guardião desta ordem e destes valores, cabia ao professor paroquial assegurá-los  não apenas pelo ensino, mas especialmente  pelo seu exemplo de vida e pela sua incansável atuação no campo religioso e social. Era ofício seu fomentar a já notável religiosidade dos camponeses, levando-a a seu melhor desenvolvimento. E toda a história do professor paroquial comprova que esta sua missão só era fecunda quando realizada em harmonia e sob orientação do clero local. Junto com o padre, ele era responsável pela organização e animação das comunidades rurais.

Atribuía-se, portanto, ao professor paroquial uma função basicamente educativa, normativa e religiosa. A diversidade de suas funções se hierarquizava  nesta prioridade, em função da suposta harmonia e ordem pré-estabelecida. Daí a concepção do magistério e suas extensões de serviço social como uma vocação, um sacerdócio, uma missão. (Kreutz, Lúcio, 1991, p. 102-103)

Compreende-se, assim, que a figura do professor  vinha envolta numa atmosfera de respeito e veneração. Não era um homem qualquer, um homem comum. Embora casado e pai de família, envolvia-o uma aura quase mística. Representava tudo que se venerava na comunidade: as virtudes humanas e religiosas, os valores familiares, sociais, culturais, morais e religiosos. Como guardião desses tesouros entende-se que, qualquer desvio do comportamento dele esperado, fosse levado tão a sério pelas comunidades.

Que a tarefa do professor se avizinhava  em muito da missão do sacerdote, pode-se concluir de certos termos empregados na época. As escolas normais que formavam os professores eram conhecidas como Seminários para Professores (Lehrerseminare), numa concepção muito próximos dos Seminários para a formação do clero (Priesterseminare). Não se tratava de instituições de formação profissional quaisquer. Nelas admitiam-se os candidatos selecionados, recomendados pelas comunidades, portadores  de um atestado de idoneidade  subscrito pelo pároco, comprovando serem exemplares nas virtudes  sociais e religiosas. Os critérios de  seleção em nada ou muito pouco diferiam daqueles utilizados na seleção dos candidatos aos seminários de formação do clero. O professor poderia ser chamado de um sacerdote não ordenado, não credenciado  para a administração dos sacramentos, mas idôneo, habilitado e autorizado para todas as outras tarefas de um sacerdote. Hoje convidaríamos a imensa maioria desses professores comunitários para exercer o ministério do diácono leigo. 

Implícita ou explicitamente  a questão da habilitação o corpo docente das escolas comunitárias foi como que uma preocupação permanente de todo o texto que apresentamos até aqui. E faz todo o sentido já que o professor foi o personagem central não só da educação nas escolas  como da vida comunitária. Se é verdadeiro que a escola comunitária é impensável sem o mestre-escola, igualmente é verdadeiro que, sem o seu professor, faltava a alma para uma comunidade. Superada a fase crítica das primeiras décadas da implantação do projeto de colonização, o corpo docente das escolas comunitárias foi sendo qualificado. Professores portadores de uma habilitação específica, formados e escolas normais da Alemanha tomaram o lugar dos pioneiros das primeiras décadas. Foram eles que, no final do século dezenove terminaram por consolidar o perfil e  a dinâmica que as comunidades esperavam da escola. 

Para preencher as vagas que se abriam por diversas razões nas escolas já existentes e as novas que se abriam com a fundação de novas escolas, dispunham-se de profissionais egressos, na sua maioria, de escolas de aperfeiçoamento, de seminários de formação do clero ou de juvenatos de congregações religiosas, ou de seminários de formação específica (escolas normais). Nos dois primeiros casos os jovens com uma boa formação, mas não específica para o magistério, costumavam passar por uma espécie de estágio junto a um mestre veterano para, só depois, assumir uma escola. Acontece que apenas uma pequena porcentagem dos egressos das instituições religiosas se decidiam pelo magistério nas escolas de comunidade. A maioria tomava outro rumo. Os professores formados em escolas normais vinham da Alemanha. Por essa razão os padres jesuítas não tardaram em encontrar uma forma para oferecer formação específica para os jovens que pretendiam dedicar-se ao magistério colonial.

Os jesuítas alemães aperceberam-se desde logo de uma questão de fundo inerente à dinâmica que as colônias alemãs deixava clara. O ritmo acelerado da  multiplicação numérica e a rápida expansão geográfica, deixavam claro duas coisas. A primeira. A médio prazo não haveria como  a crescente demanda  na assistência pastoral ser suprida por religiosos vindos da Europa. A segunda. Da mesma forma não haveria como suprir com professores formados em escolas normais da Alemanha. Era preciso encontrar uma saída doméstica para o impasse inevitável, no prazo de algumas décadas. Não havia dúvida que nas comunidades coloniais não faltavam vocações tanto para o sacerdócio quanto para o magistério. Coube ao Pe. Feldhaus, como superior da Missão dos jesuítas alemães  no Rio Grande do Sul, tomar as medidas concretas para formar sacerdotes e professores.

O Colégio Nossa Senhora da Conceição, foi fundado em  1869 em São Leopoldo, exatamente com esse duplo objetivo: Formar sacerdotes e professores nativos. Deveria ser a versão brasileira do Seminário de formação de sacerdotes e Seminário de formação de professores. E, de fato, nos primeiros anos cumpriu essa função. Tanto assim que os primeiros sacerdotes, filhos de imigrantes alemães começaram a sua formação na instituição. Mas o Conceição não demoraria em abrir as portas para candidatos de qualquer procedência e com mais diversos objetivos profissionais. Com isso deixou de formara exclusivamente sacerdotes e professores. Mesmo assim o Colégio de São Leopoldo contou sempre entre os seus egressos futuros sacerdotes e professores.

Uma vez consolidada e em pleno funcionamento, a Associação dos Professores e Educadores Católicos, levou a sério o nível de formação dos novos professores. Foi por essa razão que ela acalentou, desde a sua criação em 1898, a fundação de uma Escola Normal para a formação de professores  oriundos do próprio meio em que iriam atuar. A idéia não pôde ser posta em prática devido a uma série de fatores que não vem ao caso tratar aqui. 

Bicentenário da Imigração - 51

A escola comunitária e o professor comunitário

As Circunstâncias
A transposição de migrantes, emigrantes ou imigrantes, dependendo do ponto do vista que se olha, oferece sempre duas faces. De um lado o migrante que parte para um outro país ou para um outro continente, para não mais retornar, deixa para trás toda uma história pessoal e coletiva e, pouco a pouco, distancia-se das raízes. Em contrapartida é forçado a se inserir num outro ambiente geográfico, numa outra realidade social, numa outra tradição cultural.

Esta caminhada dos migrantes assume proporções mais ou menos  dramáticas, dependendo das situações em que essa trajetória acontece. São importantes fatores como a distância que separa a terra de origem e o local de destino, a época histórica em que as migrações acontecem e as características das tradições culturais em que os migrantes são obrigados a se inserir. Esses fatores representam, entre outros, os elementos que determinam o ritmo do distanciamento das raízes e da inserção na nova realidade. Exemplificando. O emigrante do século dezoito viajava da Europa para a América do Norte em veleiros e depois passava meses, anos e até o resto da vida, sem se comunicar com os parentes, amigos e conhecidos que ficaram trás. Voltar para uma visita ou em definitivo, nem pensar. Entre o ponto de partida e o destino, a barreira instransponível do oceano, a erradicação de um lado era inevitável e o enraizamento do outro acontecia compulsoriamente, acompanhado de todos os traumas imagináveis. Mais tarde, a partir da segunda metade do século dezenove o deslocamento por terra de trem e a travessia do oceano em navios a vapor, melhorou sensivelmente a situação. 

Um outro fator não pode ser esquecido quando se acompanha os emigrantes que vão estabelecer-se  em terra estranha, é a transposição para um ambiente geográfico diferente. A relevância dessa questão assume importância  na medida em que as circunstâncias ambientais das terras de origem exibem características mais parecidas ou menos parecidas daquelas do destino. Assim por ex., os imigrantes que se estabeleceram  nos Estados Unidos e o Canadá, encontraram florestas  com uma composição fitogeográfica semelhante daquela da Europa. A maioria das espécies de árvores e a distribuição relativa das coníferas com as de folhas dos dois continentes, assemelhavam-se em muito. O mesmo já não se podia afirmar  do sul do Brasil. Uma floresta pluvial quase impenetrável, formada por espécies desconhecidas para um europeu e nelas vivendo animais, pássaros e insetos também desconhecidos, cobria as terras destinadas as imigrantes. No sul do Brasil acresceu ainda a dificuldade de adaptação à inversão das estações no ciclo anual e a ausência de invernos rigorosos com neve e muito frio. 

Essa  situação colocou os imigrantes  alemães diante de uma série de desafios de não pequeno tamanho. Resumimos aqui, em poucas palavras, os mais significativos.

O primeiro desafio consistiu em aprender a lidar com a mata virgem, como derrubá-la, como livrar-se dos troncos e galhos, como tornar o chão arável. A este nível estabeleceram-se  os primeiros contatos com os luso-brasileiros e os índios da região. Deles copiaram  os métodos de como criar condições de sobreviver e consolidar a sua situação em condições tão adversas. Aprenderam a limpar o mato com foice para, depois, derrubar as árvores grandes com o machado. Para se livrar  das árvores e arbustos, depois de secos, os imigrantes recorreram ao método indígena da coivara queimando o material seco.

O segundo desafio a ser enfrentado foi bem mais complicado, mas de um significado cultural muito mais profundo. Referimo-nos à transferência  dos referenciais simbólicos, relacionados com a floresta da Europa com  suas árvores, suas plantas  e seus animais, para a mata no Sul do Brasil com suas árvores, suas plantas e seus animais.  A importância dos processos que acontecem neste particular, não raro escapa ao historiador ou são por ele considerados de importância menor. Acontece, porém, que neste particular residem elementos explicativos relevantes, quando se pretende entender a gênese e a dinâmica dos processos culturais. Começa pelo fato de que o homem vive numa relação existencial, numa relação simbiótica com o meio geográfico em que se encontra, tanto a nível biológico, quanto psicológico, cultural e religioso. É este sentido que a relação com a natureza, a relação exploratória, a relação de prazer, a relação hostil, o clima de mistério, moldam os traços e os contornos da paisagem em que o imigrante construiu a sua nova terra natal, a sua nova “Heimat” a sua nova “Querência”. E, visto deste ângulo, o entorno geográfico  deixa de significar um mero potencial para garantir a subsistência, para transformar-se numa paisagem humanizada que chega a um nível tal de abstração, que se costuma falar na “paisagem como sendo um estado de espírito”.

O terceiro desafio que esperava pelo imigrante na sua chegada, foram os homens, os povos e as culturas estranhas. Nenhuma das ondas imigratórias dos últimos séculos encontrou as terras de destino despovoadas. Na América  do Norte entraram em condições de superioridade numérica e, principalmente, tecnológica. Os nativos terminaram massacrados, os sobreviventes confinados em reserva e as pessoas e culturas reduzidas a curiosidades antropológicas. 

Com os imigrantes alemães no sul do Brasil as coisas deram-se de maneira bem diferente. Encontraram os luso-brasileiros solidamente instalados na Província de São Pedro. Estes concentravam em suas mãos o poder econômico nas estâncias de criação de gado, no comércio com a movimentação de tropas de gado e as caravanas de mulas que levavam cargas de charque e couros até as praças do centro do País. Aos imigrantes alemães, na condição de grupo minoritário foram destinadas terras devolutas. A justaposição geográfica com entorno luso-brasileiro  e o isolamento étnico, cultural e lingüístico, social e político, colocaram os novos colonizadores diante de um desafio de grandes proporções: evitar a qualquer custo o retrocesso cultural e religioso dos filhos e netos e, ao mesmo tempo, providenciar para que as gerações nascidas aqui no Brasil, brasileiros, portanto, pelo princípio do “ius soli”, isto é, pelo fato de terem nascido em solo brasileiro, assumissem conscientemente a condição de cidadãos deste País. Dispunham de uma única saída para o impasse. Garantir um nível mínimo de formação básica e a  preservação do mais essencial da religião e da religiosidade. 

A escola de comunidade
Para superar o impasse os imigrantes recorreram a um instrumento muito familiar na Europa: a escola. Não há necessidade de insistir que nas condições em que a primeira geração de imigrantes lutou pela sobrevivência, a escola exibisse a rusticidade da vida na mata virgem da época. Em todo o caso desde a implantação da primeira escola, já durante a primeira década da imigração, foram-lhe confiadas  cinco tarefas de capital importância.

Primeira. Garantir aos filhos dos colonos uma formação elementar que ultrapassasse o mero nível de alfabetização formal. A criança concluindo o período escolar deveria saber ler, escrever, fazer as quatro operações básicas de aritmética, realizar o cálculo de juros simples.

Segunda. Aprender os rudimentos da religião. Resumia-se, em grande linhas, no aprendizado do catecismo, leitura e compreensão da História Sagrada do Antigo e Novo Testamentos, familiarização com as obrigações relacionadas com prática e a disciplina religiosa.

Terceira. Em parceria com a família a escola deveria desempenhar o papel de  guardiã da tradição cultural. Para evitar uma quebra na tradição era preciso  permanecer fiel aos costumes, hábitos, valores, a maneira de ser, o caráter, a língua, enfim, a identidade étnica amadurecida durante a longa tradição história desses imigrantes. Sem este cuidado  teriam passado por um processo de deculturação  quase inevitável, seguida de conseqüências desastrosas sobre a identidade étnica.

Quarta. Cabia à escola ainda preparar as crianças para se tornarem membros úteis da comunidade em que estavam inseridas. Este aspecto tinha um significado todo especial para os imigrantes alemães. Na tradição germânica as comunidades locais formavam, na verdade,  o verdadeiro fundamento da nação. As comunidades bem estruturadas, coesas, solidárias e conscientes da responsabilidade pelo bem-estar das pessoas nela integradas, garantiam a solidez e a coesão interna, quando organizadas numa nação.

Quinta. Embora até o final do século dezenove não tivesse sido tão explícita, havia mais uma preocupação dos imigrantes, principalmente em relação aos filhos e netos. Como tinham emigrado com o propósito de não retornar, não havia como não se inserir existencialmente no novo contexto geográfico e humano. Esta preocupação se torna explícita quando da implantação de um currículo comum para todas essas escolas, a partir do começo do século XX. Nele foi introduzido o aprendizado da língua portuguesa e o estudo da  história, geografia do Brasil, ou “da Pátria”, como costumavam dizer, somada à familiarização com as  realidades desta “nova Pátria”.

Com essa imensa tarefa à sua raiz, a escola comunitária aparece como uma instituição de ensino “sui generis”. Todas as escolas deste tipo, católicas e protestantes tinham como uma de suas metas principais o cultivo da tradição e a preservação da identidade étnica. Nelas ensinavam-se também  os princípios da fé cristã, inculcavam-se preceitos morais e as regras de conduta que deles emanava. Neste sentido foram escolas confessionais. Essas escolas propunham-se ainda colaborar na inserção dos descendentes dos imigrantes na realidade nacional, despertando neles a consciência da cidadania.  

Com essa tarefa complexa a executar, a escola comunitária teuto-brasileira, constitui-se, na história da educação brasileira como uma instituição de ensino peculiar e, até certo ponto, contraditória. Egon Schaden referindo-se à essa característica, escreveu:

Refletindo necessariamente os conflitos culturais em que se viam envolvidos os colonos, a escola teuto-brasileira não podia deixar de caracterizar-se pela sua ambigüidade, ou seja, por funções em parte contraditórias. De um lado, os colonos compreendiam a conveniência  de integrar-se no meio  nacional; de outro, procuravam transmitir às novas gerações os valores e os padrões de sua cultura. (Schaden, Egon. 1966, p. 66)

As colocações acima  mostram que os imigrantes confiaram à escola tarefas aparentemente conflitantes. Expressavam, contudo, as preocupações que os afligiam nas circunstâncias peculiares em que se encontravam. Não havendo modelo institucional no qual se pudessem inspirar, recorreram ao princípio elementar do bom senso: “ajuda-te e Deus te ajudará”. A escola nascida neste contexto, ambígua ou não, contraditória ou não, prestou inestimáveis serviços durante o primeiros cem anos da imigração. 

Em linhas gerais a escola comunitária cumpriu a missão de que foi encarregada. Salvou os descendentes dos imigrantes da decadência cultural. Manteve as comunidades coesas e num nível religioso apreciável. Prepararam os imigrantes e seus descendentes para se tornarem cidadãos conscientes e participantes da vida nacional.

Não resta dúvida de que sem a escola com suas características peculiares, não se explicaria a multiplicação e o florescimento das sociedades recreativas, culturais e artísticas, até nas comunidades mais remotas e isoladas. A quase inexistência de analfabetos possibilitou o surgimento de um comércio dinâmico. Das modestas escolas de aldeia saíram os artesãos que construíram as bases de um segmento considerável da indústria e da economia  do Sul do Brasil. Personalidades de expressão regional e nacional, na economia, política, ciências e religião, começaram a sua trajetória  nessas despretensiosas escolas de comunidade.

As primeiras tentativas de implantação de escolas foram bem modestas. Nada de instalações bem acabadas, nada de material didático além do estritamente indispensável, nada de professores com formação especializada. As construções em que funcionaram as primeiras escolas, eram tão precárias como as casas dos colonos daquela época. Elas foram descritas em versos pelo poeta “Homo”, que traduzidos livremente soam mais ou menos assim:

No meio da picada, ergue-se uma casinha, bem perto do caminho. Não é, afinal de contas, um palácio pois, as paredes são de varas trançadas e revestidas de barro em ambos os lados, detalhe que, com certeza, não as enfeita. Dentro há um compartimento só e o telhado é de tabuinhas. (Familienfreund Kalender, 1922, p. 104 )

Se os prédios escolares eram modestos e até miseráveis, modestos eram também os resultados que se esperavam da escola. O que se ensinava não passava do mínimo essencial, resumindo-se no aprender a ler, a escrever, a contar e os rudimentos do catecismo e da História Sagrada. Modesto e reduzido era também o material escolar, limitado a um quadro negro rústico, uma lousa (Schiefertafel) de ardósia e um estilete em vez de lápis ou pena para escrever (Griffel) do mesmo material. Um relato do colono Mathias Hansen, na época morador do Jammertal, assim descreveu o nível de  ensino da escola: 

Quando o pequeno Mathias atingiu a idade de freqüentar a escola, o pai mandou-o para a escola em Dois Irmãos. Foi equipado com cartilha, lousa e estilete, alem de caneta, tinta e papel. O severo mestre-escola examinou tudo que o pequeno Mathias levava e sentenciou: “Tudo bem com a cartilha, lousa e estilete, mas o que pretendes com caneta, tinta e papel”? “Ora, aprender a escrever, respondeu o pequeno aluno”. “Oh, disso não precisamos. Teu pai o que está pensando? Podes devolvê-lo. Aqui não somos estudantes”. (Amstad, Theodor, 1999, p. 472)

Não  há dúvida que também os professores deixassem muito a desejar. As primeiras escolas costumavam ser regidas por   pessoas que não tinham formação específica para o exercício da função, ou então por colonos aos quais o trabalho na agricultura era pesado demais. Karl Fouquet descreveu assim a situação.

Nas pequenas escolas rurais, colonos e artífices faziam às vezes de professores. Tratava-se de pessoas que não haviam logrado êxito em outros ramos de atividade ou que ainda não se haviam definido por uma determinada profissão. Alguns eram inválidos ou padeciam de alguma deficiência, que os impossibilitava para o exercício do trabalho pesado. Muitos, porém, eram religiosos que se compadeciam do desamparo intelectual da juventude ou que se sentiam no dever de auxiliar aqueles que haviam sido abandonados pela sorte, em meio a imensas florestas. Tanto a média do nível de ensino, quanto seus resultados não podiam deixar de ser modestos, mormente se se levar em conta que os cursos nunca excediam a três ou quatro anos, sendo  a freqüência  bastante irregular. As longas caminhadas a pé ou a cavalo tinham efeito contraproducente. Além disso os pais  necessitavam dos filhos para o trabalho e nem todos reconheciam a necessidade da freqüência assídua  à escola. Acresce que, para muitos, o pagamento das taxas escolares, feito  em moeda ou em produtos coloniais, representava pesado encargo. A despeito de tanta dificuldade, foi de tais escolas que saíram os comerciantes e os industriais pioneiros da economia sulina. A essas escolas particulares – assim como as suas congêneres as colônias italianas e polonesas – devemos o fato de, no  Estado do Sul, a porcentagem de analfabetos se mantenha há um século abaixo da media geral do País. (Fouquet, Karl, 1974, p. 171)

A constatação de Fouquet é reforçada na publicação sobre o tema: “Auswanderungsproblem” – “O Problema emigração”, edição de 1912:

Entre as forças docentes das escolas elementares  católicas há um pequeno número de professores com formação seminarística. A maioria “se torna professores ensinando”. Entre os últimos, apesar das deficiências de formação, há não poucos que obtiveram êxitos apreciáveis. (Das Auswanderungsproblem, 1912, p. 24)

O Projeto Educacional dos Jesuítas no sul do Brasil





Em agosto de 1849, desembarcaram em Porto Alegre os padres jesuítas Augustin Lipinski e Johann Sedlac, acompanhados do irmão leigo Anton Sontag. Os superiores os tinham mandado para o sul do Brasil com a missão imediata de prestar assistência religiosa permanente aos colonos alemães aí radicados desde 1824. A metade católica desses colonos ficara durante os primeiros 25 anos privada de assistência religiosa regular. Para de alguma maneira compensar essa falta, os colonos organizaram comunidades solidamente estruturadas em torno de capelas e escolas e respetivos cemitérios. Compensaram de alguma forma a missa oficiada por sacerdotes com o culto dominical leigo presidido por alguém da comunidade. Na escola, ao lado da alfabetização, da leitura, do cálculo, a religião ocupava um espaço privilegiado. Supria e compensava-se assim de alguma maneira a ausência de sacerdotes na catequese na primeira geração dos nascidos aqui no sul do Brasil.

Nas décadas seguintes, os membros da Ordem foram chegando em número crescente.  Expulsos da Alemanha  pelo “Kulturkampf”, aportaram entre 1870 e 1890 jesuítas de excelente formação acadêmica, dotados de um grande abertura para com os desafios da época. Ao aqui chegarem encontraram as comunidades organizadas em torno de suas capelas, escolas e cemitérios. Encontraram, assim, postas as bases para, de imediato, partirem para uma ação pastoral promissora e, ao mesmo tempo, incentivarem a formação profana e religiosa das novas gerações.

Junto à tabuada, as quatro operações, o ler e o escrever, as crianças familiarizavam-se também com os fundamentos da religião. Essa realidade fez com que os padres se dessem conta do significado da escola como suporte à pastoral. E, no caso específico daquelas comunidades coloniais, o professor veio a desempenhar o papel de auxiliar e eventual substituto dos padres em funções que não eram privativas do sacerdote. A começarem a atividade pastoral o Pe. Lipinski em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em São José do Hortêncio, encontraram 10 escolas em pleno funcionamento na colônia alemã de São Leopoldo.  Nos casos em que não se dispunha de  uma capela para os cultos dominicais, eles eram realizados na própria escola. O professor que, durante a semana, dedicava o tempo ou  parte dele ao ensino, presidia o culto nos domingos. Entende-se assim que o professor ocupasse a posição de líder daquelas comunidades. Depois da chegada dos padres tornou-se o intermediário entre eles e os membros da comunidade. E nas comunidades filiais das paróquias o professor ocupava uma posição similar aos diáconos leigos de hoje. Não havendo missa aos domingos por falta de sacerdote, cabia ao professor presidir o culto, fazer os batizados de emergência e presidir os sepultamentos. Além disso cabia-lhe o papel de conselheiro dos colonos nas mais diversas situações e demandas  de natureza material, familiar, social, religiosa e outras. Pode-se afirmar que, nas comunidades  filiais o professor, sob muitos aspetos foi mais importante no quotidiano dos colonos do que o próprio padre.

O resultado foi que se consolidou uma estreita colabora entre a atividade pastoral propriamente dita e a educação nas escolas. Aliás não estamos falando de um novidade  na história dos Jesuítas. Quanto mais apurada a formação do povo, tanto mais fácil e eficiente a conquista espiritual. Santo Inácio, antes de fundar a Ordem foi com seus companheiros doutorar-se em humanidades na universidade de Paris. Fundada a Ordem, o espaço reservado para a educação nas mais diversas  instituições do Ensino Fundamental, Médio e, principalmente, no nível superior em universidades,  mereceu atenção igual à pastoral e à evangelização propriamente dita. O peso dado à educação tinha o seu fundamento numa lógica muito simples. O êxito na pregação do evangelho e a aceitação dos princípios doutrinários e disciplinares depende diretamente do nível de formação de uma determinada população. Fazer com que o humanismo cristão seja o norte no exercício das profissões liberais, ser referência nas decisões econômicas, políticas, administrativas e governamentais, assim como apontar o rumo para o ensino e a pesquisa, fez e faz ainda hoje parte da razão de ser da Ordem. Os exemplos ilustrativos são muitos. Não é aqui o lugar para lista-los. Basta lembrar que, ao longo dos caminhos percorridos pelas sucessivas gerações  dos discípulos de Santo Inácio, multiplicaram-se instituições de todos os níveis na Itália, Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha, França, Índia, Japão, Brasil, na América Latina, Central e do Norte, ou em qualquer outro local onde foram abertas novas fronteiras de evangelização. O mesmo aconteceu no sul do Brasil. Na medida em que o ritmo de novas fronteiras de colonização foram abertas nos vales de caí, Taquari, Pardo, Jacuí, seguidos da Serra, Missões e Alto Uruguai, dezenas de comunidades se consolidaram em torno de suas igrejas, capelas e escolas comunitárias. Entre 1824 e 1850 foram criadas 10 escolas. Entre 1850 e 1875 acresceram mais 40, um aumento, portanto, de 400%. No final do século XIX o número elevara-se para 150. A última relação das escolas comunitárias católicas é de 1936, dois anos, portanto de a Campanha de Nacionalização fechá-las. Na lista contam 398 escolas. Somadas às de confissão luterana que eram sensivelmente mais numerosas, falamos em 1000 ou pouco mais dessas escolas. Detalhes de natureza institucional, administrativa, didático pedagógica encontram-se nos dois volumes sobre a Escola Comunitária já mencionados no começo dessa série de publicações. 

Um segundo capítulo não menos importante chama a atenção às instituições de ensino  médio com a abertura do Colégio Nossa da Conceição em São Leopoldo, em 1869. O ensino superior teve o seu começo em 1913 com o Seminário Central destinado à formação do clero diocesano e regular no nível da Filosofia e Teologia, culminando em 1969 com a implantação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

NB. A história do Projeto Educacional dos Jesuítas no sul do Brasil encontra-se detalhado no livro da minha autoria sob o título “Um Sonho e uma Realidade”, publicado pela Editora Unisinos em 2009.




Bicentenário da Imigração - 50

A implantação do projeto da Restauração Católica encontrava-se em pleno andamento no Sul do Brasil, sob o comando de D. Cláudio Ponce de Leão, bispo do Rio Grande do Sul. Em atenção a essa realidade os jesuítas do Ginásio Anchieta introduziram no quotidiano da instituição, vários instrumentos de grande eficácia a serviço da implantação do Projeto de Igreja. Foram eles o Apostolado da Oração, as Congregações Marianas, os Retiros Espirituais de Santo Inácio, o estímulo para a freqüência dos Sacramentos, e outros mais. As décadas de 1920, 1930 e 1940, podem ser consideradas de maior sucesso do Ginásio Anchieta, tanto o que diz respeito ao nível de formação profana dos seus egressos, quanto à formação de um laicato católico, no qual se destacou um elite intelectual de grande influência. O surgimento e a formação desse laicato e dessa elite deve-se, de modo especial, às Congregações Marianas. Os padres que dirigiam o Ginásio deram-se conta muito cedo de que era preciso acompanhar os ex-alunos no período em que freqüentavam a universidade e mais adiante na vida profissional, sob pena de, com o andar do tempo, a base adquirida nos anos do Ginásio, esmorecer e esvair-se de todo. A fim de prevenir esse mal, funcionavam nos recintos do Anchieta Congregações Marianas para os alunos próprios, para  universitários, para formados e para comerciantes militares, artesãos, operários, etc. Fica evidente com isso que o Ginásio Anchieta  atuou como escola de formação de uma elite católica autêntica e combativa, que marcou muito forte o período acima mencionado. Foi de modo especial a congregação dos estudantes universitários, sob a orientação do Pe. Werner von und zur Mühlen, que plasmou o grupo de intelectuais católicos de grande influência  na década de 1930. Além de ocuparem espaço e marcarem presença com profissionais liberais, como magistrados, funcionários públicos, militares,  políticos, influíram fortemente nos rumos da então Universidade do Rio Grande do Sul. O Dr. Armando Pereira Câmara, um dos nomes mais destacados do grupo, ocupou em 1937 a reitoria da Universidade. Quando no início da década de 1940 foi implantada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um número expressivo dos catedráticos fundadores tinham pertencido ou pertenciam  ainda aos quadros da Congregação Mariana com sede no Anchieta. 

Na época predominava entre os jesuítas  mais influentes no meio intelectual, a convicção que a docência numa universidade pública, em termos de influência doutrinaria indireta, era mais eficaz do que manter uma universidade própria. Segundo eles a demanda do envolvimento na administração, na burocracia, não compensava os resultados em termos de fermento humanístico cristão. Deve ter sido também um dos argumentos de peso que decidiu pela não aceitação da oferta por parte do Arcebispo, de assumir a Universidade Católica do Rio Grande do Sul, fundada em 1942.

Somente em 1953, em circunstâncias profundamente  modificadas pelo após-guerra, o Pe. Urbano Thiesen, conseguiu por parte do Ministério da Educação, a oficialização do Curso de Filosofia, o primeiro das perto de cinco dezenas de cursos de graduação e quase duas dezenas de cursos de pós-graduação stricto sensu, que hoje integram a Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Seguido a mesma orientação de valer-se da educação como instrumento de evangelização, os jesuítas da Missão do Sul do Brasil, ocuparam um outro ponto estratégico. Desta vez o local escolhido foi Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. 

A Ilha do Desterro, hoje Florianópolis, contou com a presença esporádica de jesuítas desde 1622. Naquele ano o Pe. Francisco Dias Velho instalou aí uma residência, sendo por isso considerado o fundador da cidade do Desterro. Em 1651 juntaram-se a ele mais dois padres vindos de São Paulo. Em 1747 o rei D. João de Portugal solicitara dois padres jesuítas para fundar um colégio. O projeto não passou dos primeiros passos porque em 1759 os jesuítas foram expulsos de Portugal e de suas possessões ultramarinas. 

Depois da restauração da Ordem em 1814 não demorou muito  para que o Desterro acolhesse novamente jesuítas para fundar um colégio. Desta vez o motivo foi sua expulsão da Argentina pelo ditador Rosas. Os padres transferiram-se para o Desterro com 80 alunos. Não demorou para que muitos filhos de brasileiros também freqüentassem o colégio. Entre 1850 e 1853, sete padres morreram  de febre amarela, tornando inviável  a continuidade da instituição. Em 1865 o Governo Imperial assinou um acordo com a Província Romana da Ordem, segundo o qual o Governo garantia um subsídio aos professores e os jesuítas se comprometiam  a abrir um ginásio. Mas durante o Gabbinete Rio Branco, de orientação maçônica, um tal ou qual clima de Kulturkampf que reinava no Brasil, fez com que os subsídios demorassem a ser pagos. A situação tornou-se insustentável e em 1870 os padres decidiram fechar o ginásio, optando por uma residência em Nova Trento, uma colonização de imigrantes italianos, 80 quilômetros mais para o norte.

Em resumo foi  esta a história que precedeu ao atual Colégio Catarinense. Desde o desembarque dos primeiros jesuítas no Desterro se passaram 440 anos. Três colégios foram abertos e os três fechados.

Nos primeiros anos do século vinte, circunstâncias favoráveis terminaram por influenciar na decisão dos jesuítas alemães, responsáveis pela Missão no sul do Brasil, de lançarem mão de uma quarta tentativa de fundação de um colégio no antigo Desterro. O governador do Estado Vidal Ramos estudara no Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo, assim como os filhos de uma série de famílias influentes da capital do Estado de Santa Catarina. Desejavam contar com um  colégio de jesuítas na ilha. A tudo isso veio somar-se  o bom relacionamento do Pe. Schuler com a população e o entusiasmo de monsenhor Topp, pároco da cidade. Numa visita à Missão em 1905 o Pe. Provincial Schäfer, convidado a visitar Florianópolis, ficou tão bem impressionado que determinou a fundação do colégio. 

Digno de nota é o fato de que o Colégio Catarinense ter surgido pelo estímulo e interesse de ex-alunos do Conceição em São Leopoldo. Firmou-se e consolidou-se apesar de todas as dificuldades. Contou com a vantagem de por anos ter sido a única instituição de ensino reconhecida pelo governo e a única de nível mais elevado no Estado. Por suas salas de aula passaram gerações de comerciantes, políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, magistrados, governadores do Estado, ministros e até um presidente da República interino. Como seu congênere, o Colégio Anchieta, cumpriu e ainda hoje cumpre, já  centenário, a missão que os fundadores lhe propuseram.

Os superiores da Missão do Sul do Brasil não se esqueceram de Pelotas, segunda cidade mais importante  do Rio Grande do Sul no começo do século vinte. A data oficial da fundação do Colégio Gonzaga, oriundo de uma escola dos jesuítas, recua na verdade para o ano de 1895. Em 1899 contava com 62 alunos, número que subiu para 301 em 1905  e 319 em 1907. O crescimento acelerado foi devido a um decreto de equiparação provisória ao D. Pedro II em 1902 e definitiva em 1905. O Colégio Gonzaga encerrou suas atividades apos cumprir rigorosamente, embora em escala mais modesta, a missão dos seus irmãos maiores, o Anchieta e o Catarinense. 

A jurisdição da Província Sulbrasileira da Companhia de Jesus estende-se também sobre  o estado do Paraná. Em sua capital os jesuítas  fundaram  na década de 1950 o Colégio Medianeira. Planejado nos mesmos moldes dos seus congêneres em Porto Alegre,  Florianópolis, Pelotas e Rio Grande. Também este continua prestando excelentes serviços à causa da educação na capital de um dos estados mais prósperos do Pais.

Este breve esboço da atividade dos jesuítas no Sul do Brasil, mostra como eles recorreram à educação em todos os níveis como um dos instrumentos mais eficazes para promover a obra da cristianização. Nada mais fizeram do  que manter-se fiéis à tradição da Ordem, inspirada na visão missionária do seu fundador que considerava a formação integral da pessoa humana como pressuposto para a promoção da Maior Glória de Deus.

(Obs. O Projeto Educacional dos jesuítas foi contemplado pelo autor da presente matéria com um livro com o título: “Um Sonho e  uma Realidade”.  Editora Unisinos  2.009).

Bicentenário da Imigração - 49

O Projeto Educacional dos Jesuítas

Apesar das enormes dificuldades enfrentadas pelos padres Lipinski e Sedlac nos primeiros anos da sua atividade pastoral entre os imigrantes alemães do Brasil, o projeto da colonização começava a emitir  sinais de consolidação.

Finalmente em 1858 aportaram os padres Michael Kellner e Bonifaz Klüber e o irmão leigo Franz Rutkamp. O reforço veio em boa hora. O campo da atividade pastoral entrara num ritmo de expansão fora do comum. Na direção oeste do Estado do Rio Grande do Sul, estavam sendo abertas novas fronteiras de colonização, nos vales do Rio Taquari, Pardo e Jacuí. Dezenas de novas comunidades foram sendo organizadas nas picadas abertas na mata virgem. No mesmo ritmo multiplicaram-se igrejas, capelas e escolas. Não demorou e novas paróquias surgiram: São Leopoldo em 1859, santa Cruz em 1865, Porto Alegre em 1867, Bom Jardim em 1867, Estrela em 1873, Montenegro em 187l, Bom Princípio em 1873, São Salvador em 1875, São Sebastião em 1881, Feliz em 1884, Novo Hamburgo em 1895, Taquara em 1898. Em termos espaciais essas paróquias cobriam uma área de aproximadamente 250 por 50 quilômetros. A maioria delas foi implantada pelos padres jesuítas e na primeira fase por eles administradas. 

Paralelamente à expansão da infra-estrutura eclesiástica deu-se a multiplicação das escolas comunitárias. Entre 1824 e 1850 foram criadas 10 dessas escolas. Até 1875 acresceram mais 40, um aumento, portanto, de 400%. Ao termino do século dezenove o número subira a 150. O resultado deste esforço no plano educacional é facilmente imaginável. Alem de significar um poderoso e decisivo aliado no incentivo à religiosidade, evitou a instalação do analfabetismo entre os imigrantes alemães e seus descendentes. 

Se os primeiros jesuítas alemães haviam sido convocados para socorrer  espiritualmente os colonos alemães, sua missão na verdade não se restringiu à pastoral propriamente dita. Os padres espanhóis que em 1842 se fixaram em Porto Alegre, receberam do bispo do Rio de Janeiro a incumbência de renovar e dinamizar o catolicismo na Província do Rio Grande do Sul, de acordo com o que previa o Projeto da Restauração Católica em vias de implantação em toda a Igreja. Sua atividade pastoral pautou-se, desde o começo, de acordo com essa perspectiva. Depois que a Missão passou para a jurisdição da Província Alemã, a linha mestra desse objetivo não sofreu modificação. A implantação  do espírito da Igreja da Restauração entre toda a população, independentemente da origem étnica, motivou os jesuítas que vinham chegando em número cada vez maior, a lançar mão de um dos instrumentos evangelizadores mais conhecidos e mais tradicionais da Ordem: A educação em todos os níveis. O que se passou no sul do Brasil nada mais foi do que colocar a serviço da evangelização esse instrumento infalível.

Ao assumirem a missão pastoral entre as comunidades de imigrantes alemães, encontraram essas organizadas em torno de suas capelas e, principalmente, em torno de suas escolas. A capela até que podia ser dispensada, a escola não. Os padres acharam assim postas as bases para, de imediato, porem em andamento uma promissora atividade pastoral e, ao mesmo tempo, cuidar da educação popular que, por sua vez, significava a garantia do êxito da primeira. Até aí as escolas haviam assegurado o ensino religioso paralelamente com a formação profana. As crianças aprendiam simultaneamente a tabuada, as quatro operações, o ler e o escrever, os rudimentos essenciais da religião e assimilavam os preceitos morais e disciplinares da Igreja. Essa realidade fez com que os padres intuíssem, desde logo, o grande alcance da escola. E não vacilaram. Fieis aos preceitos a Ordem fizeram da escola e da educação o grande aliado na atividade pastoral. Desde então trabalharam com convicção de que a compreensão das verdades da fé e a interiorização do espírito cristão, acontece via educação. A partir daí a  escola e a educação passaram a ser uma  das suas grandes prioridades. 

Os primeiros contatos com os assentamentos  dos colonos alemães convenceram os jesuítas de um fato inegável. Os núcleos de colonização consolidavam-se no mesmo ritmo em que se multiplicavam. A evolução de um bom número deles  em centros urbanos com um comércio crescente, uma industrialização incipiente, dotada de grande potencial de crescimento, somada a uma sociedade em processo de urbanização, ocupariam, em questão de uma ou duas gerações, o espaço de não poucas comunidades de colonos. Em segundo lugar  não havia dúvida de que no Rio Grande do Sul o poder político e a hegemonia econômica, concentrava-se exclusivamente nas mãos dos estancieiros de origem luso-açoriana. Frente a essa realidade não restava dúvida de que os imigrantes alemães e seus descendentes permaneceriam à mercê à margem da dinâmica política e econômica por mais algumas décadas, na hipótese de não se partir para iniciativas capazes de franquear aos filhos dos colonos os caminhos da ascensão social e conseqüentemente o acesso às decisões políticas e econômicas. Confinar as comunidades alemãs em suas picadas e linhas equivalia a condená-las à estagnação, à decadência e ao insucesso. O bom senso e a lógica mandavam que fossem construídas, o mais depressa possível, pontes em  condições de superar a justaposição, no mesmo espaço geográfico e reunidos sob o mesmo regime jurídico e legal, de lusos, açorianos, alemães e, mais tarde italianos, poloneses e demais vertentes étnicas. Somente assim seria possível assegurar para o futuro a consciência de uma cidadania comum, a serviço da mesma nação. Perguntar a um jesuíta pelo caminho a ser escolhido, significava perguntar o óbvio: a escola, a educação, a formação em sintonia com as exigências concretas do tempo.

De um lado era inadiável  criar e fazer funcionar uma instituição de ensino capaz de formar lideranças  econômicas, sociais, educacionais, políticas e religiosas, acessível a todas as procedências étnicas. De outro lado não há necessidade de insistir que, pela sua própria natureza, as escolas comunitárias não estavam em condições de assumir essa tarefa. Impunha-se, portanto, a criação de escolas de nível mais elevado, preparadas para receber os filhos das oligarquias estancieiras e oferecer-lhes a formação e a educação exigida para cumprirem as funções que no futuro lhes caberia exercer na sociedade local, regional, nacional e até internacional. A escola deveria formar ao mesmo tempo as primeiras gerações de lideres religiosos e leigos surgidos  entre os imigrantes.

O ensino elementar já não bastava para responder às exigências de formação que se vinham manifestando também no seio das comunidades coloniais. A consolidação e o êxito da colonização haviam alcançado um nível tal que para os filhos dos colonos, dos artesãos, dos comerciantes, etc., a formação elementar já não bastava. Exigiam-se conhecimentos técnicos mais apurados para tocar uma casa de comércio de maior porte, desenvolver empreendimentos artesanais em indústrias nascentes e sobretudo o manejo da língua do Pais. De outra parte tornava-se cada vez mais visível entre os filhos dos imigrantes aspiração de, por meio de uma formação mais elaborada, abrir caminho para os postos de maior relevância na sociedade, como o magistério, o sacerdócio, a medicina, a jurisprudência e, por que não, a vida pública na condição de funcionários, políticos, magistrados, militares, diplomatas, etc. 

Essa situação fez com que o Pe. Feldhaus, recém nomeado pároco de São Leopoldo, começasse com tratativas concretas para a instalação  e uma escola que ultrapassasse o nível do ensino elementar. Como primeira evidência impunha-se a aquisição de instalações apropriadas para acomodar a escola e os alunos. 

Os prédios desativados de um antigo moinho de tanino, de um curtume e de uma casa de  moradia, localizados próximos ao rio ao lado da igreja, terminaram sendo o local escolhido para abrigar a futura escola. A aquisição da propriedade foi autorizada pelo Pe. Ponza, visitador da Missão, então subordinada à Província Romana e, em 22 de junho de 1869, aconteceu a assinatura dos documentos de transferência da propriedade. 

O Colégio que abriu as portas para os 12 primeiros alunos,  e foi solenemente inaugurado por D. Sebastião Dias Laranjeira, bispo da diocese do Rio Grande do Sul, na festa do Rosário de 1869, com o nome  de Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo. Naquele momento, com certeza, ninguém teria sido capaz de prognosticar a importância que o “Conceição”, como seria carinhosamente chamado por alunos, ex-alunos e a sociedade em geral, desempenharia nos 40 anos que se seguiram, formando uma influente elite intelectual para o Estado e o Pais. O respeito e o reconhecimento que conquistou pode ser avaliado pela manifestação de um ex-aluno, o médico e botânico João Dutra, feita no final da década de 1930: “Eu doaria aos jesuítas todos os meus bens se fizessem funcionar novamente uma instituição de ensino como foi o Colégio Conceição”. 

O colégio fora inicialmente pensado pelos fundadores como seminário para a formação do clero e seminário ou escola normal para a formação de professores. Uma seqüência de percalços, porém, chegaram a comprometer seriamente a consolidação da obra. Ora foi a concorrência de escolas protestantes, ora a enchente devastadora de 1873, forçando a interrupção temporária das atividades, ora o clima hostil ao clero, principalmente aos jesuítas, durante o gabinete Rio Branco, ora o episódio Mucker, ora o susto causado pela varíola, etc. Não faltaram também momentos de grande estímulo como foi a visita por parte do Presidente do Estado acompanhado pelo bispo, aproveitando o lançamento da pedra fundamental para a estrada de ferro Porto Alegre – São Leopoldo. Um outro fator decisivo para a continuidade do Colégio, foi a chegada a São Leopoldo de um número considerável de reforços de jesuítas de ótima formação, expulsos da Alemanha pelo Kulturkampf.

Aos alunos das primeiras  levas exclusivamente de origem alemã, foram-se somando, em número crescente até se tornarem maioria, filhos de luso-brasileiros. A instituição na condição de seminário tanto para a formação  de sacerdotes como de professores provara, em pouco tempo, ser ilusória. Uma decisão tomada em 1877 imprimiria então ao Conceição o rumo definitivo até o  encerramento das suas atividades em São Leopoldo em 1912. O Colégio apostou na preparação dos seus alunos para os chamados “Exames Parcelados”, realizados em Porto Alegre. O resultou superou todas as expectativas. Entre os seis candidatos conceituados como excelentes, figuravam três do Colégio Conceição, todos filhos de imigrantes: Nicolau Knob, Heinrich  Konzen e Lucas Hansel. O fato obteve tamanha repercussão que o jornal “Deutsche Zeitung”, notório pela hostilidade aos jesuítas registrou: 

Fomos informados que os alunos Nicolau Knob, Heinrich Konzen e Lucas Hansel de fato se distinguiram. De maneira alguma concordamos com a orientação do ensino e da educação dos jesuítas. Não nos é licito, entretanto, deixar de cumprir o dever de justiça, reconhecendo os resultados exitosos da instituição tornados públicos.  (Deutsche Zeitung) 

Com esse resultado o gelo estava quebrado e o Colégio Conceição enveredou por um ritmo de crescimento acelerado. O número de alunos foi crescendo de ano para ano. Só para se ter uma idéia desse crescimento: em 1880 os alunos somavam 65 e dez anos depois, em 1890 eram 223.

A década de 1880 marcou a consolidação tanto física como acadêmica do Colégio Conceição. Foram erguidos os prédios definitivos que abrigavam todos os setores da instituição: alojamentos para os alunos, salas de aula, um amplo salão de atos  e teatro, museu, laboratórios, capela, moradia dos padres, oficinas, etc. No plano acadêmico uma estrutura, um currículo e um regime disciplinar severo, inspirado no famoso Colégio Stella Matutina, que os jesuítas mantinham em Feldkirch na Áustria, conferiu consistência e profundidade à formação dos alunos. O estudo de línguas, a formação clássica, complementada por disciplinas de cunho mais prático e profissional, fez com que os egressos do  Conceição não tivessem dificuldades maiores em competir em qualquer nível. Nos seus apontamentos pessoais o Pe. Johannes Rick, por algum tempo professor da instituição anotou:

No tempo em que lecionei Matemática e História Natural no Ginásio Nossa Senhora da Conceição a instituição estava equiparada aos ginásios do Estado, significa que os egressos podiam freqüentar universidades. O currículo durava seis anos e estava abarrotado com um monstruoso conteúdo didático. Só para as línguas: português, latim, grego, francês, inglês e alemão, exigia-se mais conteúdo do que nos ginásios alemães de oito anos. A atividade como um todo era insalubre, corporal e espiritualmente em todos os sentidos. Encontrei os alunos no seu conjunto aplicados e também inteligentes, alguns até prematuros. Obviamente não era possível profundidade. Excetuando as revoluções que faziam parte da vida sulamericana e que repercutiam intermitentemente no internato, o comportamento dos alunos era tão bom quanto nos ginásios alemães. A disciplina germânica agradava aos pais, mas com certeza nem sempre aos alunos! (Rick, 2.004, p. 18)

A fama do Conceição como instituição de ensino de alto nível, espalhara-se no início dos aos noventa, por todo o Sul do Pais e até despertara as atenções das autoridades educacionais federais. De todo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e até do Paraná afluíam os alunos, filhos de fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais, funcionários graduados, etc., para na condição de internos, assimilar uma sólida  formação acadêmica e plasmar suas personalidades em meio a uma atmosfera de cultura, religiosidade de alto nível e de uma disciplina quase prussiana.

O Pe. Balduino Rambo, referido-se ao período do apogeu do Colégio Conceição, escrevendo, em 1958, a biografia do Pe. Rick na revista Montfort da Áustria, assim se manifestou:

O Ginásio Conceição em São  Leopoldo, então no auge de sua atuação, fora pensado originalmente como Seminário para formar professores para as colônias. Depois de pouco tempo abriu as portas também para a juventude de língua portuguesa. Conquistou rapidamente tamanha fama que, ainda hoje, ecoa como uma longínqua saga no ouvido dos alunos ainda vivos. Cavalgando durante semanas acorriam os filhos dos fazendeiros ricos por 600 quilômetros de distância, vindos de todos os recantos do Estado e até do Estado de Santa Catarina. Em Porto Alegre e nas cidades vizinhas, era de bom tom que os rapazes estudassem em São Leopoldo. (Rambo, Balduino, 1958, p.9)

A esta altura faltava ao Conceição conquistar mais um titulo: o de “equiparado ao Colégio D. Pedro II”. O Pe. Schupp resumiu a façanha assim:

Desta vez foi o Pe. Konrad Menz, prefeito geral, que se empenhou pessoalmente na questão com extraordinário entusiasmo e extrema energia, junto ao Ministro da Educação e junto a outras personalidades com poder de decisão.  Tudo se encaminhou para uma solução favorável e finalmente no dia três de fevereiro de 1890, o Ministro assinou o decreto de nº 3580, conferindo à instituição o caráter de um “Gymnasio equiparado”. Este ato teve como conseqüência que a instituição, embora sob a fiscalização de um funcionário do governo, um “fiscal delegado”, detinha as credenciais legais para realizar não apenas os exames de madureza, como também conferir o grau de bacharel. Desta maneira alcançara-se tudo, tanto na organização material quanto na consolidação interna do Colégio. Em relação ao primeiro o Pe. Luiz Sarazin, como excelente ecônomo, soube salvaguardar os interesses da obra e em relação ao segundo o grande mérito cabe ao Pe. Mereg. Este último levou o Colégio ao apogeu como instituição de ensino. (Schupp, 2.004, p. 18)

O episódio da equiparação do Colégio Conceição levanta uma questão digna de reflexão. O Colégio dos Padres é contemplado com uma demonstração suprema de reconhecimento por parte das autoridades da República recém instalada. Pelo fato de consagrar o regime de separação do Estado e da Igreja, era de se esperar no mínimo uma protelação da equiparação duma instituição sob a condução e orientação de jesuítas, a maioria deles vítimas do Kulturkampf na Alemanha. Um segundo ponto, até certo modo complementar, tem relação com o fato de persoalidades muito influentes na República, como Rui Barbosa, articulavam um projeto de lei visando expulsar os jesuítas do Pais. Se, apesar de tudo, a equiparação foi concedida, é sinal que o Colégio Conceição gozava  de um conceito inquestionável e contava com o apoio e a  provação de personalidades não menos influentes. 

Embora o Colégio Nossa Senhora da Conceição se tivesse desviado significativamente da sua proposta original como Seminário de formação de sacerdotes e Escola Normal para a formação de professores contribuiu contudo decisivamente, de forma indireta, para com a renovação espiritual e cultual. Desde a sua fundação até o seu encerramento passaram pelas suas salas de aula, mais de 2000 alunos internos. Entre os egressos  do Conceição contam-se comerciantes, industriais, magistrados, médicos, dentistas, advogados, militares, professores, políticos, administradores públicos, sacerdotes. Outros ainda ocuparam postos na hierarquia eclesiástica incluindo um  arcebispo.

Formando elites atuando em todas as esferas da vida civil, militar e eclesiástica, o Ginásio Nossa Senhora da Conceição foi o grande responsável direto e indireto por uma série  de benefícios para o clero e a Igreja. Entre eles merecem citação: o nível do ensino e o contato pessoal com os padres devolveu a eles, em grande parte o respeito, desfez preconceitos de modo especial em relação aos jesuítas, a religião voltou a fazer parte da vida de uma parcela crescente da sociedade. O Pe. Schupp resumiu a questão:

É óbvio que entre os alunos houvesse sempre aqueles  nos quais qualquer arte de educar resultava estéril. Isso, entretanto, não impediu que lentamente uma nova percepção tomasse conta de camadas sempre mais amplas da sociedade, levando aos poucos a uma total reviravolta da opinião pública em favor da religião e do estado religioso. Evidentemente isso não significa que o povo começasse logo a praticar a religião. Até chegar a esse ponto era necessário ainda um bom tempo. Não se pode ignorar também o fato de que os alunos que no tempo do Colégio freqüentavam os sacramentos, apos o seu egresso, afastavam-se, na sua grande maioria da religião. Mas o terreno para um futuro melhor estava preparado e isso se deve em última análise ao Colégio de São Leopoldo e com isso o Colégio cumpriu a sua missão. (Schupp, 2.004, p. 20)

Infelizmente e, 1912 a lei Rivadavia privou o Colégio Senhora da Conceição do status de equiparado ao D. Pedro II.

Além da perda da equiparação do Conceição com o D. Pedro II, um segundo fator de peso não menor, levou à decisão do encerramento das atividades da instituição como colégio interno para leigos. A evolução de Porto Alegre para centro econômico, financeiro e cultural, além de administrativo de que gozava como capital do Estado, rendeu-lhe um desenvolvimento extraordinário em todos os sentidos. Tornou-se o mais importante pólo de atração para comerciantes, industrialistas, profissionais liberais, artistas, artesãos, intelectuais, militares, funcionários, magistrados, etc. etc. Esse processo colocou São Leopoldo cada vez mais na posição de cidade periférica de segunda grandeza.

Face à nova realidade gerada com a perda da equiparação e a crescente hegemonia de Porto Alegre, foram decisivos para o encerramento das atividades do Colégio Conceição como internato para leigos e a concentração do esforço na formação de lideranças no Ginásio Anchieta na capital, com a opção paralela pelo regime preferencial de externato. É do Pe. Schupp a observação:

Impuseram-se as nítidas vantagens do externato sobre o internato: a maior liberdade, tão importante para a formação do caráter e a livre decisão dos alunos  em aceitar a prática da religião, somados à maior facilidade para estabelecer uma sintonia da parte da instituição e os pais. (Schupp, 2.004, p. 20)

Além desses motivos mais visíveis um outro contribuiu para a decisão. Em 1903 o Ginásio Anchieta conseguira também a equiparação ao  D. Pedro II, na condição de externato do Conceição de São Leopoldo. Essa conquista imprimiu-lhe um crescimento fora do comum. Tanto assim que em pouco tempo o número de alunos subiu para 300 e logo depois para 400, com pedidos de vagas em contínuo aumento. 

A evolução dos acontecimentos e a interdependência  dos dois ginásios, um como externato do outro, não tardou em revelar uma serie de inconvenientes. A administração comum de ambos, somada à complicação oriunda do planejamento e execução dos programas de ensino, aconselhavam a desvinculação entre si das duas instituições. Sem perda de tempo o Pe. Johannes Lütgen, reitor em São Leopoldo, muniu-se de uma carta de recomendação do Dr. Borges de Medeiros, Presidente do Estado e, com ela na mão, viajou para o Rio de Janeiro. Escudado pela intermediação de personagens importantes, logrou a separação dos dois  ginásios, mediante um decreto do Ministério da Educação datado em 23 de junho de 1809. A partir daí o número de alunos do Anchieta não parou de crescer. Num único ano foi preciso recusar mais de 100 candidatos. Consolidaram-se assim os pressupostos para que o Ginásio Anchieta enveredasse pelo caminho da formação sólida que fez dos egressos de suas salas de aula candidatos competitivos, para as vagas oferecidas pelas  faculdades e cursos superiores então existentes. Convém ainda chamar a atenção que o Anchieta, embora  disputando hoje o espaço com dezenas de escolas públicas e privadas, de alguma forma, continua cumprindo a sua missão original, isto é, oferecendo um ensino de qualidade e uma sólida formação do caráter aos alunos que o freqüentam. 

Acontece que para os jesuítas  a finalidade dos colégios, universidades e demais instituições de ensino que mantém, perseguem um objetivo que ultrapassa em muito a simples formação acadêmica ou profissional. Esses não passam de instrumentos limitados que exigem a complementação por outros