A escola comunitária e o professor comunitário
As Circunstâncias
A transposição de migrantes, emigrantes ou imigrantes, dependendo do ponto do vista que se olha, oferece sempre duas faces. De um lado o migrante que parte para um outro país ou para um outro continente, para não mais retornar, deixa para trás toda uma história pessoal e coletiva e, pouco a pouco, distancia-se das raízes. Em contrapartida é forçado a se inserir num outro ambiente geográfico, numa outra realidade social, numa outra tradição cultural.
Esta caminhada dos migrantes assume proporções mais ou menos dramáticas, dependendo das situações em que essa trajetória acontece. São importantes fatores como a distância que separa a terra de origem e o local de destino, a época histórica em que as migrações acontecem e as características das tradições culturais em que os migrantes são obrigados a se inserir. Esses fatores representam, entre outros, os elementos que determinam o ritmo do distanciamento das raízes e da inserção na nova realidade. Exemplificando. O emigrante do século dezoito viajava da Europa para a América do Norte em veleiros e depois passava meses, anos e até o resto da vida, sem se comunicar com os parentes, amigos e conhecidos que ficaram trás. Voltar para uma visita ou em definitivo, nem pensar. Entre o ponto de partida e o destino, a barreira instransponível do oceano, a erradicação de um lado era inevitável e o enraizamento do outro acontecia compulsoriamente, acompanhado de todos os traumas imagináveis. Mais tarde, a partir da segunda metade do século dezenove o deslocamento por terra de trem e a travessia do oceano em navios a vapor, melhorou sensivelmente a situação.
Um outro fator não pode ser esquecido quando se acompanha os emigrantes que vão estabelecer-se em terra estranha, é a transposição para um ambiente geográfico diferente. A relevância dessa questão assume importância na medida em que as circunstâncias ambientais das terras de origem exibem características mais parecidas ou menos parecidas daquelas do destino. Assim por ex., os imigrantes que se estabeleceram nos Estados Unidos e o Canadá, encontraram florestas com uma composição fitogeográfica semelhante daquela da Europa. A maioria das espécies de árvores e a distribuição relativa das coníferas com as de folhas dos dois continentes, assemelhavam-se em muito. O mesmo já não se podia afirmar do sul do Brasil. Uma floresta pluvial quase impenetrável, formada por espécies desconhecidas para um europeu e nelas vivendo animais, pássaros e insetos também desconhecidos, cobria as terras destinadas as imigrantes. No sul do Brasil acresceu ainda a dificuldade de adaptação à inversão das estações no ciclo anual e a ausência de invernos rigorosos com neve e muito frio.
Essa situação colocou os imigrantes alemães diante de uma série de desafios de não pequeno tamanho. Resumimos aqui, em poucas palavras, os mais significativos.
O primeiro desafio consistiu em aprender a lidar com a mata virgem, como derrubá-la, como livrar-se dos troncos e galhos, como tornar o chão arável. A este nível estabeleceram-se os primeiros contatos com os luso-brasileiros e os índios da região. Deles copiaram os métodos de como criar condições de sobreviver e consolidar a sua situação em condições tão adversas. Aprenderam a limpar o mato com foice para, depois, derrubar as árvores grandes com o machado. Para se livrar das árvores e arbustos, depois de secos, os imigrantes recorreram ao método indígena da coivara queimando o material seco.
O segundo desafio a ser enfrentado foi bem mais complicado, mas de um significado cultural muito mais profundo. Referimo-nos à transferência dos referenciais simbólicos, relacionados com a floresta da Europa com suas árvores, suas plantas e seus animais, para a mata no Sul do Brasil com suas árvores, suas plantas e seus animais. A importância dos processos que acontecem neste particular, não raro escapa ao historiador ou são por ele considerados de importância menor. Acontece, porém, que neste particular residem elementos explicativos relevantes, quando se pretende entender a gênese e a dinâmica dos processos culturais. Começa pelo fato de que o homem vive numa relação existencial, numa relação simbiótica com o meio geográfico em que se encontra, tanto a nível biológico, quanto psicológico, cultural e religioso. É este sentido que a relação com a natureza, a relação exploratória, a relação de prazer, a relação hostil, o clima de mistério, moldam os traços e os contornos da paisagem em que o imigrante construiu a sua nova terra natal, a sua nova “Heimat” a sua nova “Querência”. E, visto deste ângulo, o entorno geográfico deixa de significar um mero potencial para garantir a subsistência, para transformar-se numa paisagem humanizada que chega a um nível tal de abstração, que se costuma falar na “paisagem como sendo um estado de espírito”.
O terceiro desafio que esperava pelo imigrante na sua chegada, foram os homens, os povos e as culturas estranhas. Nenhuma das ondas imigratórias dos últimos séculos encontrou as terras de destino despovoadas. Na América do Norte entraram em condições de superioridade numérica e, principalmente, tecnológica. Os nativos terminaram massacrados, os sobreviventes confinados em reserva e as pessoas e culturas reduzidas a curiosidades antropológicas.
Com os imigrantes alemães no sul do Brasil as coisas deram-se de maneira bem diferente. Encontraram os luso-brasileiros solidamente instalados na Província de São Pedro. Estes concentravam em suas mãos o poder econômico nas estâncias de criação de gado, no comércio com a movimentação de tropas de gado e as caravanas de mulas que levavam cargas de charque e couros até as praças do centro do País. Aos imigrantes alemães, na condição de grupo minoritário foram destinadas terras devolutas. A justaposição geográfica com entorno luso-brasileiro e o isolamento étnico, cultural e lingüístico, social e político, colocaram os novos colonizadores diante de um desafio de grandes proporções: evitar a qualquer custo o retrocesso cultural e religioso dos filhos e netos e, ao mesmo tempo, providenciar para que as gerações nascidas aqui no Brasil, brasileiros, portanto, pelo princípio do “ius soli”, isto é, pelo fato de terem nascido em solo brasileiro, assumissem conscientemente a condição de cidadãos deste País. Dispunham de uma única saída para o impasse. Garantir um nível mínimo de formação básica e a preservação do mais essencial da religião e da religiosidade.
A escola de comunidade
Para superar o impasse os imigrantes recorreram a um instrumento muito familiar na Europa: a escola. Não há necessidade de insistir que nas condições em que a primeira geração de imigrantes lutou pela sobrevivência, a escola exibisse a rusticidade da vida na mata virgem da época. Em todo o caso desde a implantação da primeira escola, já durante a primeira década da imigração, foram-lhe confiadas cinco tarefas de capital importância.
Primeira. Garantir aos filhos dos colonos uma formação elementar que ultrapassasse o mero nível de alfabetização formal. A criança concluindo o período escolar deveria saber ler, escrever, fazer as quatro operações básicas de aritmética, realizar o cálculo de juros simples.
Segunda. Aprender os rudimentos da religião. Resumia-se, em grande linhas, no aprendizado do catecismo, leitura e compreensão da História Sagrada do Antigo e Novo Testamentos, familiarização com as obrigações relacionadas com prática e a disciplina religiosa.
Terceira. Em parceria com a família a escola deveria desempenhar o papel de guardiã da tradição cultural. Para evitar uma quebra na tradição era preciso permanecer fiel aos costumes, hábitos, valores, a maneira de ser, o caráter, a língua, enfim, a identidade étnica amadurecida durante a longa tradição história desses imigrantes. Sem este cuidado teriam passado por um processo de deculturação quase inevitável, seguida de conseqüências desastrosas sobre a identidade étnica.
Quarta. Cabia à escola ainda preparar as crianças para se tornarem membros úteis da comunidade em que estavam inseridas. Este aspecto tinha um significado todo especial para os imigrantes alemães. Na tradição germânica as comunidades locais formavam, na verdade, o verdadeiro fundamento da nação. As comunidades bem estruturadas, coesas, solidárias e conscientes da responsabilidade pelo bem-estar das pessoas nela integradas, garantiam a solidez e a coesão interna, quando organizadas numa nação.
Quinta. Embora até o final do século dezenove não tivesse sido tão explícita, havia mais uma preocupação dos imigrantes, principalmente em relação aos filhos e netos. Como tinham emigrado com o propósito de não retornar, não havia como não se inserir existencialmente no novo contexto geográfico e humano. Esta preocupação se torna explícita quando da implantação de um currículo comum para todas essas escolas, a partir do começo do século XX. Nele foi introduzido o aprendizado da língua portuguesa e o estudo da história, geografia do Brasil, ou “da Pátria”, como costumavam dizer, somada à familiarização com as realidades desta “nova Pátria”.
Com essa imensa tarefa à sua raiz, a escola comunitária aparece como uma instituição de ensino “sui generis”. Todas as escolas deste tipo, católicas e protestantes tinham como uma de suas metas principais o cultivo da tradição e a preservação da identidade étnica. Nelas ensinavam-se também os princípios da fé cristã, inculcavam-se preceitos morais e as regras de conduta que deles emanava. Neste sentido foram escolas confessionais. Essas escolas propunham-se ainda colaborar na inserção dos descendentes dos imigrantes na realidade nacional, despertando neles a consciência da cidadania.
Com essa tarefa complexa a executar, a escola comunitária teuto-brasileira, constitui-se, na história da educação brasileira como uma instituição de ensino peculiar e, até certo ponto, contraditória. Egon Schaden referindo-se à essa característica, escreveu:
Refletindo necessariamente os conflitos culturais em que se viam envolvidos os colonos, a escola teuto-brasileira não podia deixar de caracterizar-se pela sua ambigüidade, ou seja, por funções em parte contraditórias. De um lado, os colonos compreendiam a conveniência de integrar-se no meio nacional; de outro, procuravam transmitir às novas gerações os valores e os padrões de sua cultura. (Schaden, Egon. 1966, p. 66)
As colocações acima mostram que os imigrantes confiaram à escola tarefas aparentemente conflitantes. Expressavam, contudo, as preocupações que os afligiam nas circunstâncias peculiares em que se encontravam. Não havendo modelo institucional no qual se pudessem inspirar, recorreram ao princípio elementar do bom senso: “ajuda-te e Deus te ajudará”. A escola nascida neste contexto, ambígua ou não, contraditória ou não, prestou inestimáveis serviços durante o primeiros cem anos da imigração.
Em linhas gerais a escola comunitária cumpriu a missão de que foi encarregada. Salvou os descendentes dos imigrantes da decadência cultural. Manteve as comunidades coesas e num nível religioso apreciável. Prepararam os imigrantes e seus descendentes para se tornarem cidadãos conscientes e participantes da vida nacional.
Não resta dúvida de que sem a escola com suas características peculiares, não se explicaria a multiplicação e o florescimento das sociedades recreativas, culturais e artísticas, até nas comunidades mais remotas e isoladas. A quase inexistência de analfabetos possibilitou o surgimento de um comércio dinâmico. Das modestas escolas de aldeia saíram os artesãos que construíram as bases de um segmento considerável da indústria e da economia do Sul do Brasil. Personalidades de expressão regional e nacional, na economia, política, ciências e religião, começaram a sua trajetória nessas despretensiosas escolas de comunidade.
As primeiras tentativas de implantação de escolas foram bem modestas. Nada de instalações bem acabadas, nada de material didático além do estritamente indispensável, nada de professores com formação especializada. As construções em que funcionaram as primeiras escolas, eram tão precárias como as casas dos colonos daquela época. Elas foram descritas em versos pelo poeta “Homo”, que traduzidos livremente soam mais ou menos assim:
No meio da picada, ergue-se uma casinha, bem perto do caminho. Não é, afinal de contas, um palácio pois, as paredes são de varas trançadas e revestidas de barro em ambos os lados, detalhe que, com certeza, não as enfeita. Dentro há um compartimento só e o telhado é de tabuinhas. (Familienfreund Kalender, 1922, p. 104 )
Se os prédios escolares eram modestos e até miseráveis, modestos eram também os resultados que se esperavam da escola. O que se ensinava não passava do mínimo essencial, resumindo-se no aprender a ler, a escrever, a contar e os rudimentos do catecismo e da História Sagrada. Modesto e reduzido era também o material escolar, limitado a um quadro negro rústico, uma lousa (Schiefertafel) de ardósia e um estilete em vez de lápis ou pena para escrever (Griffel) do mesmo material. Um relato do colono Mathias Hansen, na época morador do Jammertal, assim descreveu o nível de ensino da escola:
Quando o pequeno Mathias atingiu a idade de freqüentar a escola, o pai mandou-o para a escola em Dois Irmãos. Foi equipado com cartilha, lousa e estilete, alem de caneta, tinta e papel. O severo mestre-escola examinou tudo que o pequeno Mathias levava e sentenciou: “Tudo bem com a cartilha, lousa e estilete, mas o que pretendes com caneta, tinta e papel”? “Ora, aprender a escrever, respondeu o pequeno aluno”. “Oh, disso não precisamos. Teu pai o que está pensando? Podes devolvê-lo. Aqui não somos estudantes”. (Amstad, Theodor, 1999, p. 472)
Não há dúvida que também os professores deixassem muito a desejar. As primeiras escolas costumavam ser regidas por pessoas que não tinham formação específica para o exercício da função, ou então por colonos aos quais o trabalho na agricultura era pesado demais. Karl Fouquet descreveu assim a situação.
Nas pequenas escolas rurais, colonos e artífices faziam às vezes de professores. Tratava-se de pessoas que não haviam logrado êxito em outros ramos de atividade ou que ainda não se haviam definido por uma determinada profissão. Alguns eram inválidos ou padeciam de alguma deficiência, que os impossibilitava para o exercício do trabalho pesado. Muitos, porém, eram religiosos que se compadeciam do desamparo intelectual da juventude ou que se sentiam no dever de auxiliar aqueles que haviam sido abandonados pela sorte, em meio a imensas florestas. Tanto a média do nível de ensino, quanto seus resultados não podiam deixar de ser modestos, mormente se se levar em conta que os cursos nunca excediam a três ou quatro anos, sendo a freqüência bastante irregular. As longas caminhadas a pé ou a cavalo tinham efeito contraproducente. Além disso os pais necessitavam dos filhos para o trabalho e nem todos reconheciam a necessidade da freqüência assídua à escola. Acresce que, para muitos, o pagamento das taxas escolares, feito em moeda ou em produtos coloniais, representava pesado encargo. A despeito de tanta dificuldade, foi de tais escolas que saíram os comerciantes e os industriais pioneiros da economia sulina. A essas escolas particulares – assim como as suas congêneres as colônias italianas e polonesas – devemos o fato de, no Estado do Sul, a porcentagem de analfabetos se mantenha há um século abaixo da media geral do País. (Fouquet, Karl, 1974, p. 171)
A constatação de Fouquet é reforçada na publicação sobre o tema: “Auswanderungsproblem” – “O Problema emigração”, edição de 1912:
Entre as forças docentes das escolas elementares católicas há um pequeno número de professores com formação seminarística. A maioria “se torna professores ensinando”. Entre os últimos, apesar das deficiências de formação, há não poucos que obtiveram êxitos apreciáveis. (Das Auswanderungsproblem, 1912, p. 24)