A Igreja Protestante
A implantação do catolicismo da Restauração significou uma autêntica revolução dentro da própria Igreja no Brasil. Os imigrantes alemães, entretanto, trouxeram em sua bagagem cultural outro elemento inovador para o futuro do Brasil: o Protestantismo.
O Brasil esteve sempre aberto a qualquer tipo de comerciante, aventureiro, estudioso ou cientista. Oficialmente, porém, vedava-se o acesso aos não católicos. É óbvio que se contavam muitos protestantes entre os comerciantes que circulavam no Pais e se estabeleceram definitivamente aqui, havia muitos acatólicos. Apos a expulsão dos holandeses a entrada de protestantes foi controlada com maior rigor. Durante o período colonial esse controle visava de modo especial os calvinistas franceses, o anglicanos, os protestantes alemães e outros. Gouveia de Mendonça resumiu assim a presença protestante no Brasil no decorrer dos séculos XVII e XVIII.
No entanto, não é de se crer que, apesar da forte interdição, não passassem pelas malhas da fiscalização numerosos exemplares de heterodoxia religiosa. Alguns nomes de família já aportuguesados mostram que essa penetração se deu ao longo dos séculos XVII e XVIII. É o caso dos Arzão (Arzam), Lins, Cavalcanti, Doria, Hollanda, Accioly, Furqim, Lems (Leme), Van der Ley (Vanderley), etc. Alguns desses nomes traem sua origem de nações protestantes. Mas, seja através de casamentos ou de outros instrumentos de assimilação da cultura, ou até mesmo de repressão religiosa, esses esporádicos protestantes nada significaram para a configuração religiosa do Brasil. Diluíram-se na massa Ibero-Católica. Conclui-se que no período colonial, após as invasões dos franceses (Rio de Janeiro e Maranhão) e holandeses (Bahia e Pernambuco), não havia traço de protestantismo no Brasil porque, embora possam ser detectados imigrantes individuais originários de áreas geográficas protestantes, não há indício de pratica de culto, o único fator que poderia configurar a presença da religião protestante. Assim, ao iniciar-se o século 19 não havia nenhum indício de protestantismo no Brasil, situação para a qual dera sua contribuição a presença de delegados do Santo Ofício, presença que embora não fosse de causar horror, era suficiente para arrefecer o entusiasmo de algum heterodoxo mais afoito. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p.132).
A questão da presença protestante iria assumir dimensões bem diferentes com a abertura dos portos por D. João VI em 1808. Essa nova etapa é descrita oor Gouvêa de Mendonça:
Um ato político de gratidão, ou melhormente de dependência, da Coroa Portuguesa para com a Inglaterra, contraída na luta contra as forças napoleônicas é que abriu as portas do Brasil ao protestantismo. Pelo edito Real de 28 de janeiro de 1808, seu primeiro ato ao chegar ao Brasil, D. João VI declarou abertos os portos às nações amigas, dissimulado privilégio de obrigação e gratidão para com os ingleses. Significou, apesar disso, a introdução do Brasil no comércio internacional, prioritariamente nas mãos de países protestantes. Começaram então a chegar ingleses com seu comércio de tecidos e ferragens e com eles, naturalmente os protestantes. Foram também surgindo suíços, irlandeses e outros. Estava longe ainda a aceitação formal de acatólicos no Brasil, mas introduzia-se o princípio da tolerância que, como sempre acontece, é acompanhada de normas restritivas. O Edito Real foi seguido de um decreto formal, promulgado no Rio de Janeiro, em 25 de novembro de 1808, que liberava o comércio e a indústria a todos os imigrantes aceitáveis, independentemente de raça e religião, assim como prometia terras gratuitas com privilégios e atrativos antes só reservados aos portugueses. Embora o decreto especificasse que a imigração em grandes grupos devia ser composta de católicos romanos, isto nem sempre aconteceu e não foi obedecido na íntegra. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 132-133)
Como era de se prever o Edito Real franqueando os portos brasileiros ao comércio com todos os países amigos, complementado pelo Decreto de 25 de novembro do mesmo ano, abrira o caminho sem retorno para a entrada de não católicos, via comércio internacional. Os acatólicos daquela fase eram, na sua totalidade, protestantes de confissão luterana. A legislação a respeito iria consolidar e ampliar o espaço aos não católicos, preparando a política oficial adotada na Constituição Imperial de 1824. Nos mais de 50 anos da sua vigência foram sendo introduzidos arranjos e composições, na medida em que os protestantes e, a partir de 1850 os liberais, iam conquistando um espaço definitivo no cenário nacional brasileiro. Finalmente a Constituição da República consagraria o princípio da completa liberdade e igualdade religiosa.
Do que se disse até aqui ficou claro que os acatólicos que entraram no Brasil na esteira do comércio internacional, pertenciam às mais diversas denominações protestantes da Europa. Nenhuma delas chegou a implantar uma organização eclesiástica propriamente dita. Não ultrapassavam os limites de pequenas comunidades urbanas que se reuniam nos seus locais de culto que, por imposição legal, não podiam mostrar aparências externas de templo.
Somente a partir de 1824 começaram a ser postas as bases para uma Igreja Protestante no verdadeiro sentido do termo, dotada de uma relativa unidade doutrinaria e disciplina religiosa. O substrato para essa Igreja foi formado pelos imigrantes protestantes alemães que somavam maioria entre as sucessivas levas de imigrantes que desembarcaram a partir de 1824, no Rio Grande do Sul e a partir de 1850 também em Santa Catarina. Portanto a Igreja que os imigrantes trouxeram foi a Igreja Protestante Alemã que se tornaria conhecida como Igreja Evangélica de Confissão Luterana. A partir de 1900 surgiu também uma filial do Sínodo de Missouri, a Igreja Luterana do Brasil.
A organização tanto de uma quanto da outra assemelhou-se em muito e até identificou-se com a da Igreja Católica. Sua base foram as comunidades organizadas em torno de uma igreja ou capela de uma escola e de um cemitério. Em não poucos núcleos coloniais em que coexistiram comunidades católicas e protestantes, à primeira vista ficava difícil identifica-las.
O que fez com que a Igreja Protestante representasse de fato algo inusitado no contexto brasileiro, foi a sua condição de herética quando vista do lado católico. No regime de padroado que vigorava no Brasil Império não havia previsão para a existência de outra Igreja a não ser a oficial, a Católica. O protestantismo não deixava ser uma presença espúria perante a lei e seus templos não podiam exibir sinais exteriores de locais de culto, como por ex., torres, cruzes na fachada ou outros que os identificassem. Seus matrimônios e batizados não gozavam de legitimidade, fazendo com que a convivência conjugal fosse considerada e tratada como concubinato. Os protestantes eram obrigados a sepultar seus mortos fora dos muros dos cemitérios oficiais católicos, ou na porção não benta, reservada para os suicidas e as crianças falecidas sem batismo.
Toda essa situação de ilegalidade até o advento da República, não impediu que o protestantismo tomasse pé e lançasse raízes definitivas nas áreas de colonização alemã, principalmente no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Este fato não causa estranheza quando se toma em consideração que em torno de 54% dos imigrantes alemães e seus descendentes foram e são protestantes. Algumas composições, alguns arranjos e algumas brechas na legislação, além disso a simpatia dos republicanos durante as três últimas décadas do Império, diminuíram em muito o desconforto dos protestantes no contexto do regime de padroado. A constituição imperial proibia no seu artigo 171, parágrafo 5, a perseguição por motivos religiosos. Com essa providência qualquer tipo de procedimento de natureza inquisitorial perdera o amparo legal. Evidentemente estava aberto o caminho para a tolerância e finalmente para a aceitação da presença dos acatólicos e sua participação no convívio nacional. Faltava apenas a legitimação formal, o que veio a acontecer com a Constituição da República.
Mais acima já tivemos ocasião de apontar como a Igreja Protestante começou por formar comunidades solidamente estruturadas em torno de suas igrejas, escolas, cemitérios e demais elementos da infraestrutura comunal. Sob o aspecto dessa organização formal e visível, a diferença entre católicos e protestantes, chega ser irrelevante. As diferenças, entretanto, tornam-se palpáveis quando se observa e analisa a maneira como as duas Igrejas apascentavam seus rebanhos. Já mostramos mais acima alguns dos elementos e estratégias utilizadas pela Igreja Católica para firmar pé no contexto regional e nacional brasileiro.
Os protestantes contaram desde o início da sua presença no Rio Grande do Sul com uma assistência religiosa mais ou menos regular. Já na primeira leva de imigrantes desembarcou um pastor em São Leopoldo. Os imigrantes católicos começaram a contar com uma assistência pastoral regular somente a partir de 1849. Acontece, porém, que os protestantes enfrentaram incalculáveis dificuldades ao organizarem a sua Igreja. Estruturaram-se à base de comunidades livres e independentes, entregues aos assim chamados “pseudo-pastores” ou “pastores-colonos”, carentes de uma preparação adequada à função e sem investidura oficial para exercer a missão de pregadores.
Até a chegada do pastor Borchard a São Leopoldo (1864), os poucos pastores que atuavam no Rio Grande do Sul o faziam por iniciativa pessoal. Nenhuma instituição os tinha enviado ao Brasil. As igrejas evangélicas territoriais da Alemanha, até então, não se tinham preocupado com os seus membros que haviam deixado o país. Em consequência, no que diz respeito à preservação e cultivo da sua fé, os imigrantes evangélicos estavam entregues à própria sorte. Adeptos de uma religião apenas tolerada pela Constituição do Império, sem poder contar com o auxílio do Estado para questões referentes à “sua” Igreja, os imigrantes estavam postos diante de uma encruzilhada: resignar-se a abandonar a Igreja Evangélica, já que por ela também tinham sido abandonados, ou procurar soluções em seu próprio meio. Enveredando por este segundo caminho, foi que se abriu a oportunidade para o surgimento dos assim chamados “pseudo pastores” ou pastores livres, sem vinculo com nenhuma instituição eclesiástica, senão apenas com a comunidade, que era, também ela, uma comunidade livre. (Witt, Osmar, 1996, p. 60).
Até a década de 1860, portanto, não se pode falar na existência de uma Igreja entre os protestantes do Rio Grande do Sul. Havia sim uma tal ou qual unidade de fé protestante, pregada por pastores sem formação específica e sem mandato oficial, praticada em comunidades independentes, sem vinculação institucional nem entre eles, nem com alguma Igreja territorial da Alemanha.
É perfeitamente compreensível que esse tipo de pastor de modo geral fosse visto com muita reserva pelos pastores ordenados. Entende-se também que o despreparo teológico e pastoral condenasse ao descrédito essa iniciativa da parte de não poucas comunidades que, por essa via, haviam tentado superar o grave impasse a que os levara ao isolamento e ao abandono religioso. De outra parte a experiência fez com que as comunidades se comportassem como mini-igrejas inteiramente independentes. Terminaram por consolidar seus próprios referenciais de fé, doutrina e disciplina religiosa. É óbvio que numa situação dessas o nível da religiosidade e da prática da religião, dependesse exclusivamente da atuação do pastor e do empenho da comunidade. Não havia uma Igreja que lhes desse respaldo, que zelasse por um mínimo de unidade doutrinária e organização hierárquica.
Uma Igreja com essas características opôs, como é óbvio, muitos e consideráveis obstáculos no momento em que os pastores teologicamente bem formados, oficialmente ordenados e enviados pelas igrejas alemãs, foram encarregados de conferir um mínimo de unidade na pregação e na organização eclesiástica.
Para uma análise que vá alem destes aspetos mais aparentes é preciso entender a oposição dos pastores livres não apenas como oposição a certas pessoas que estavam nesta função. A existência dos “livres” é que garantia às comunidades evangélicas a manutenção do seu “independentismo”, isto é, sua resistência a uma Igreja estruturada nos moldes da Igreja que tinham conhecido na Alemanha. (Witt, Osmar, 1996, p. 60)
Witt cita também a manifestação de um colono publicada no Sonntagsblaltt, 12 (35): 1899, sob o titulo: Erinnerungen eines deutschen Ansiedlers in Brasilien.
Nós não queremos deixar que nos comandem e dêem lições! Não foi para isso que viemos ao Brasil. Não se pagará mais nenhum centavo! Se não for mais do agrado do pastor, ele que se vá! Certamente conseguiremos outro que fará o trabalho ainda mais barato! (Witt, Osmar, 1996, p. 62)
Esta Igreja que poderia ser chamada de Igreja de emergência, caracterizada pelas distorções que acabamos de apontar, começou a ceder espaço a uma outra, organizada segundo perspectivas mais amplas e doutrinariamente mais consistente. A partir do final da década de 1860 entraram em cena os pastores itinerantes. Enviados e assistidos pela Igreja Alemã, começaram a percorrer as comunidades evangélicas dispersas pelo interior do Estado. Sua missão resumia-se em realizar cultos e pregações e na medida do possível organizar as comunidades e despertar nelas a consciência da necessidade de fomentar uma Igreja dotada de um mínimo de unidade. Os pastores itinerantes transformaram-se nos agentes mais importantes do restabelecimento dos laços de união entre as comunidades e do próprio Sínodo depois de sua criação em 20 de maio de 1886.
A implantação da pregação itinerante também encontrou justificativa na necessidade de fortalecer o Sínodo fundado em 20 de maio de 1886. O itinerante deveria ser um propagandista da ideia de unir as comunidades numa instituição maior. Para muitos evangélicos a proposta de filiar suas comunidades a um Sínodo soava como intromissão indevida em seus assuntos. Esta postura não deixa de ser curiosa, ainda mais se considerarmos que entre os descendentes de imigrantes alemães havia um forte espírito associativo em diferentes esferas da vida social. No que se refere à Igreja, no entanto, muitas vozes dispensavam qualquer organização que fossem além dos limites da comunidade local. Esta realidade custou muito trabalho aos pastores, que viam na expansão da organização sinodal a única forma de responder à missão da Igreja Evangélica em solo rio-grandense. A resistência a uma Igreja institucionalizada tinha como uma de suas razões as dificuldades econômicas experimentadas pelos colonos. Tudo que pudesse implicar em gastos maiores deveria ser evitado. (Witt, Osmar. 1996, p. 67)
O grande mérito dos pastores itinerantes consistiu no fato de terem sido os artífices abnegados do reagrupamento das comunidades dispersas por todo o Rio Grande do Sul. Restabeleceram os laços mínimos entre os fieis e a Igreja Protestante com sua doutrina, sua disciplina e sua organização. O pastor itinerante tornou-se uma figura lendária, que, montado em sua mula partia em busca do seu rebanho. Não importava onde viviam suas ovelhas espirituais, se na barranca do rio Uruguai, em linhas pioneiras no interior de Santa Rosa, Ijuí, Panambi, Erechim ou Passo Fundo. Para lá se dirigia o pastor, reunia os fieis, organizava um culto e animava o rebanho com suas pregações. Mal comparado o pastor assemelhava-se a um outro personagem engendrado pelas circunstâncias da época e que percorria as mesmas estradas, os mesmos caminhos e as mesmas trilhas quase intransitáveis: o caixeiro viajante. Um era caixeiro viajante da palavra de Deus e da unidade dos fieis, o outro caixeiro viajante de mercadorias e cultura. Assim como o caixeiro viajante de mercadorias matinha em funcionamento toda uma rede de comércio, assim o “caixeiro viajante” de Deus carregava no seu alforje a bíblia e com ela na mão tornou-se o coartífice da implantação do Sínodo Rio-Grandense. Enfrentou sacrifícios incalculáveis, viajando meses a fio longe da família, sem reclamar nenhuma recompensa material. Animava-o uma única paixão: servir a causa da sua Igreja.
Até aquele momento, 1860, a Igreja Protestante em implantação no Rio Grande do Sul, exibia o perfil de uma Igreja confinada à comunidade. Tratava-se de uma Igreja mantida pela comunidade, servindo os interesses a comunidade. A autonomia comunitária fazia com que cada comunidade se constituísse numa mini-igreja isolada e autônoma. Nela os fieis providenciavam tudo em função de suas carências religiosas. Apagara-se quase por completo a consciência da dimensão de uma Igreja com aspirações de expansão mundial. Conforme Martin Dreher
( ... ) Vai surgindo uma Igreja que tem sua característica no pronome possessivo “nossa”. Os primeiros cultos foram realizados em “casas”, em choupanas construídas nas picadas. Cantava-se, rezava-se e liam-se palavras da Bíblia ou de alguns livros de pregação. Logo, bastante cedo, foi construído o primeiro prédio comunitário, uma escola que serviria, concomitantemente, de templo. Desse prédio derivou-se um binômio constante para o protestantismo de imigração no Brasil, igreja e escola. A escola será sempre escola de primeiras letras, ao contrário da escola edificada mais tarde pelo protestantismo de missão, que pretenderá atingir as elites brasileiras. Essa escola quer possibilitar o aprendizado do Catecismo. O estudo do Catecismo das áreas do protestantismo de imigração, áreas com os mais baixos índices de analfabetismo no Brasil. Igreja e escola perfazem o centro da vida, na qual, ao lado da escola-igreja se encontra o cemitério. ( ... ) Nessa estruturação eclesiástica tudo é “nosso”, na expressão comunitária desses agricultores: nossa igreja, nossa escola, nosso cemitério, nosso pastor. A conseqüência eclesiológica dessa Igreja comunitária é que “a” Igreja, com o passar dos anos, mais e mais, vai terminar nos limites da colônia, faltando a percepção para a catolicidade da Igreja. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 122)
A ausência da verdadeira visão eclesiológica mais abrangente torna-se visível, ainda, pela circulação de vários tipos de catecismos. Freqüentes eram os desentendimentos quando se tratava do arranjo interno das igrejas e capelas. Os crucifixos, as velas e as flores, importantes para o culto luterano, eram rejeitados como idolatria pelos calvinistas.
No contexto brasileiro, essa organização é marginal e é justamente em sua marginalidade que é interessante para os primórdios da implantação do novo modelo social e econômico, que se procura introduzir no Brasil. Seu universo religioso é muito pouco ortodoxo. Nele sobrevivem os fortes de corpo e de espírito. As relações com o divino ajudam a sobreviver. Numa religião que era deles, habituaram-se a comunicar-se diretamente como divino, sem intermediação do clérigo, ou quando muito através do clérigo-colono, fruto do ambiente. Quando da vinda dos clérigos europeus, certamente haveria de ocorrer um choque, pois o universo religioso seria deles tirado. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 122)
A passagem da Igreja das comunidades independentes e autônomas foi marcada com a chegada do pastor Hermann Borchard a São Leopoldo em 1864. Uma das suas maiores preocupações foi promover um autêntico projeto de Igreja no Rio Grande do Sul, reunindo numa organização eclesiástica as comunidades dispersas por toda a região colonial do Estado. Concretizou-se essa sua idéia ao fundar em 1868 o Sínodo Evangélico da Província do Rio Grande do Sul. A escassa participação dos leigos na iniciativa fez com que o Sínodo fosse, antes de mais nada, uma organização limitada a pastores. Com o retorno de Borchard a Alemanha em 1870, o Sínodo continuou existindo apenas no papel, até 1876, quando foi extinto. Um ano antes chegara a São Leopoldo o pastor Dr. Wilhelm Rotermund. Caberia a ele, apos longas discussões e inúmeras reuniões preparatórias, organizar o Sínodo Riogradense e em 1886 dar-lhe existência legal.
Seu estilo vai vingar, pois conta desde o início com o apoio dos elementos da pequena burguesia urbana das áreas de imigração, com o apoio dos professores e agricultores bem situados. Vinga por outro lado, por não exercer pressão sobre as congregações, mas por ser, essencialmente, órgão representativo dos evangélicos frente aos poderes constituídos. Assim, resguardando a autonomia comunitária local da velha tradição imigrante, controlada pelo pastor formado na Europa, o qual deve ser concomitantemente o elo de ligação com a estrutura que vai se desenvolvendo, Rotermund estabelece um modelo que será seguido pelos protestantes de emigração em outras regiões do Brasil. (Imigrações e Igreja no Brasil, 1993, p. 125)
Além ou paralelamente à sua missão religiosa e confessional a Igreja Protestante e de modo especial seus pastores e o próprio Sínodo, cumpriram outra tarefa. Muito mais do que a Igreja Católica dos imigrantes a Igreja Protestante dos Imigrantes foi um instrumento eficaz na preservação da identidade alemã, o Deutschtum, a Germanidade, no Rio Grande do Sul. Este papel ficou ainda mais visível quando foi desencadeada a Campanha de Nacionalização, por ocasião da implantação do Estado Novo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Os executores daquela Campanha voltaram a atenção especial para os pastores e instituições protestantes. Com ou sem razão foram vistas como redutos do germanismo, refratários à integração nacional e até cabeças de ponte do nacional socialismo no Brasil. Os registros da policia da época tentam apresentar dados, muitos deles flagrantemente exagerados ou de veracidade duvidosa ou visivelmente distorcidos. A simples e pura equivalência atribuída à germanidade e ao nazismo, foi o responsável por terem sido jogados na vala comum os poucos pastores adeptos do nazismo, com a maioria contrária e hostil ao nacional socialismo. Mas esta questão já foi tratada exaustivamente na obra clássica de Martin N. Dreher: Igreja e Germanidade.
Finalizando as considerações sobre a Igreja Protestante no Brasil e de modo especial no Rio Grande do Sul, é licito afirmar que a sua implantação encontrou duas grandes dificuldades iniciais: a primeira de ordem legal e a segunda de ordem circunstancial. No Império Brasileiro, sob o regime do padroado, a religião do Estado, a única legalmente aceita era a católica. Todas as demais situavam-se fora da lei, sendo seus atos ilegais e nulos. Os impasses mais sérios ocorriam quando da legitimação dos matrimônios, batizados, sepultamentos e a realização dos cultos. A segunda dificuldade dizia respeito às condições físicas e sócio-culturais em que se deu a implantação da Igreja Protestante. O isolamento e a dispersão das comunidades por vastas regiões, perigosamente agravada pela ausência de clérigos minimamente preparados, resultaram numa Igreja fragmentada em comunidades religiosamente autônomas. Perdera-se quase por completo a visão de uma unidade eclesiológica propriamente dita. A reconquista da noção de pertencimento a uma Igreja de vasta abrangência, dotada de um mínimo de unidade doutrinária, disciplinar e pastoral, foi difícil e em alguns casos chegou a ser traumática. Nesta caminhada que começou nos anos 60 do século XIX foram decisivos a retomada do interesse pela Igreja-Mãe da Alemanha enviando pastores formados e ordenados, a fundação do Sínodo Riograndense e o monumental esforço dos pastores itinerantes.
Conclusões
A instalação em território brasileiro de imigrantes vindos da Europa Central e do Norte representou um fato inteiramente novo na história do Brasil, como mais acima já lembramos. Foi inédito sob vários aspectos. Implantou a pequena propriedade familiar voltada para uma agricultura diversificada, generalizou a formação de comunidades solidamente organizadas em torno de suas igrejas, escolas e instalações de lazer, fomentou e desenvolveu uma variada infra-estrutura artesanal, que em não poucos casos evoluiu para indústrias de pequeno e médio porte, foi a responsável pelo surgimento de uma sólida e numerosa classe media rural. Uma das contribuições mais significativas e mais substantivas, porém, foi o perfil de Igreja ou Igrejas, que de então para cá atenderam e continuam atendendo os fieis das diversas confissões religiosas.
Os imigrantes católicos alemães, italianos, poloneses e outros, trouxeram como contraponto o catolicismo da Restauração Católica, o catolicismo que retornara à ortodoxia do Concílio de Trento e afinava rigorosamente a sua maneira de ser com os ditames disciplinares emanados do governo central da Igreja em Roma; um catolicismo que reconhecia como única autoridade o papa em Roma e as hierarcas por ele legitimadas; um catolicismo que rejeitava a intromissão dos poderes laicos em questões de fé e disciplina religiosa; um catolicismo fundamentado na comunidade eclesial, constantemente revigorada e renovada por meio de uma vida sacramental intensa e permanente.
Se o catolicismo da Restauração já significou uma forma de Igreja sob todos os aspectos estranha, quanto mais a Igreja Protestante. Sem legitimidade legal no Pais e considerada herética tanto pelo catolicismo de tradição luso-brasileira, quanto pelo catolicismo da Restauração, enfrentou imensas dificuldades para conquistar o seu espaço no cenário brasileiro. Viveu numa situação de ilegalidade durante todo o período do Império. Todos os arranjos e abrandamentos na legislação não foram capazes de alterar essencialmente a condição de ilegalidade, de ilegitimidade, de cidadãos de segunda categoria.