Bicentenário da Imigração - 37

A Velha Guarda dos Caixeiros Viajantes.

Na  raiz de uma história, seja ela de um povo, de uma instituição ou de uma atividade, encontram-se, invariavelmente os fundadores, aquelas personalidades que colocaram as bases sobre as quais  os seus continuadores puderam desenvolver o seu trabalho.Também os caixeiros viajantes contaram  no nascer e desenvolver da sua história com o seus “heróis fundadores”, personagens com características individuais  marcantes, personagens com traços épicos e românticos, empreendedores, honestos e de bem com a vida. No “Riograndenser Musterreiter” foram assim retratados. 

Um dos caixeiros viajantes mais antigos foi Hugo Emmermann. Nasceu em Dorneken e no ano de 1870 veio a Porto Alegre. A firma de ferragens  de Guilherme Bier ofereceu-lhe o primeiro emprego. Mais tarde fundou a Firma Ernesto Bemke & Cia, tendo como sócios Ernesto Bemke e  Hugo Lau. Em 1883 desligou-se desse empreendimento e começou a viajar para F. J. Friedrichs, dedicada ao mesmo ramo. Faleceu prematuramente no ano seguinte. Todos que o conheceram e com ele trabalharam guardam dele, mesmo depois do seu falecimento, a lembrança de um fiel cumpridor do dever e de um colaborador dedicado. 

Um dos representantes mais bem quistos dentre os caixeiros viajantes foi Allbrecht Lorenz. Nascido em Berlim, em 1847, emigrou, em 1871, primeiramente para Montevidéu e Buenos Aires. Passou aí por não poucas peripécias e sem sucesso empenhou-se de corpo e alma em construir alguma coisa de sólido. Quem escutasse seus relatos sobre aquele período ficava pasmo sobre as muitas maneiras com que Lorenz tentou conquistar a sorte para si, mas sem êxito. Em 1872 veio para Porto Alegre e encontrou colocação na Firma  F. A. Engel. Mais tarde empregou-se no estabelecimento de N. Lammers no ramo de tecidos. Não demorou para desligar-se por falta de rentabilidade do negocio e empregou-se como viajante na Firma de Bernhard Wahrlich. Alguns anos mais tarde abriu mão do posto de viajante para, durante algum tempo, tornar-se proprietário de terras no Caminho Novo. Depois tentou a sorte com um hotel. Tudo deu errado. Retornou então à profissão de caixeiro viajante. Por muitos anos percorreu a colônia a serviço de C. J. Schilling. Quando esa firma abriu uma filial em São Sebastião do Caí em 1891, com o nome de Otto Schilling & Cia, Lorenz assumiu a direção até o seu falecimento em 1893. 

Lorenz foi o primeiro presidente do Clube dos Caixeiros Viajantes em 26 de dezembro de 1885. Foi estimado como poucos pela população da colônia. Seu falecimento abriu uma dolorosa lacuna na pequena família dos seus companheiros de profissão. Eles ainda hoje se recordam com prazer  do seu inesgotável repertório de histórias e piadas, com as quais sabia temperar com muito bom humor qualquer encontro. Lembram seu nome também como um autêntico representantes dos bravos caixeiros viajantes alemães. 

Um outro veterano da velha guarda temos na pessoa de Heinrich Fuhrmeister. Faleceu em Wiesbaden em 1898, para onde se refugiara para descansar depois de longos anos de trabalho e de uma vida bem sucedida. Nasceu em Stöterlingen, perto de Osterwieck no Harz. Desembarcou em 1873 em Porto Alegre e empregou-se na Firma de Fazendas Hoffmann & Cia, localizada na Esquina  Caminho Novo e Doca. Mais tarde entrou em sociedade com Carl Pohlmann tocando o negócio sob a razão social de Firma Pohlmann & Cia. Em 1898 retirou-se da atividade comercial. Passou a firma a seus sucessores F. G. Bier e Emil Ullmann, atual presidente do clube dos Caixeiros Viajantes. Uma extraordinária consciência do dever e uma exatidão à toda a prova, marcaram todas as ações desse homem inteiramente dedicado ao trabalho. Infelizmente não lhe foi dado usufruir no final da vida os frutos dos seus esforços. Na cidade ou na colônia quem não conhecia o velho Fuhrmeister, um dos mais conhecidos dentre os caixeiros viajantes? Merece ser lembrado aqui. 

Não menos popular foi Albert Deistel, nascido em 12 de dezembro de 1852 em Klostermannsfeld. Imigrou para o Brasil em 1877 encontrando sua primeira colocação na firma Carlos Daudt. Nos longos anos que viajou pela colônia a serviço deste estabelecimento, conquistou muitas simpatias com sua jovialidade. Mais tarde estabeleceu-se por conta própria no ramo do comércio de ferro bruto. Também ele tinha chegado ao ponto de, após o sacrificado período de caixeiro viajante, permitir-se uma vida mais sossegada. Um mal latente, entretanto, manifestou-se de repente e de forma aguda, levando-o ao leito do qual não se ergueu mais. Seus numerosos  colegas e amigos, que, ou viajaram em sua companhia, ou mais tarde privaram sob seu telhado e em companhia da sua família, nunca esquecerão o velho e jovial camarada, a quem devem não poucas e agradáveis  iniciativas. 

A esta altura queremos lembrar o nome de outros que a morte  subtraiu do nosso meio. Infelizmente não dispomos de maiores informações sobre as suas vidas e suas atividades. São eles Jacob Sehl, Paul Meinhardt e Johann Ostmann. 

É sabido por todos que também Carl von Kosertiz há tempo cerrou os olhos. Ele que foi um homem corajoso, de visão clara e coração aberto, desapareceu prematuramente  deixando uma lacuna para o todo da germanidade no Rio Grande do Sul. Com espírito perspicaz acompanhou todos os grandes movimentos da germanidade em nosso Estado confiados à sua vigilância. Realizou muito, tanto no campo social como no político. Não se furtou em empenhar a sua liderança marcadamente germânica, mesmo que fossem iniciativas de pequeno porte. Procurava imprimir um espírito, uma forma de conduzir as coisas com objetivo de preserva-las. Um exemplo do seu empenho foi por ex., o Clube dos Caixeiros Viajantes de Porto Alegre. Como pessoa foi uma personalidade  cativante, uma figura que se impunha pela inteligência e pela bondade, sabendo influenciar no bom sentido e sabendo exercer sua liderança sem se fazer notar, sobre todas as camadas e todas as classes  da população. Os caixeiros viajantes o consideravam como um modelo em tudo, a tal ponto  que ainda hoje guardam um alto conceito deste grande batalhador. Todos sem exceção passariam pelo fogo por ele. A proa da cordialidade recíproca foi o apreço entre o tribuno popular e a “velha guarda”. 

Otto Drügg nasceu em Porto Alegre em 1853. Sua primeira atividade como viajante foi para a Casa C. J. Schilling. Depois da morte do cunhado W. Hamann, liquidou o negocio de porcelanas deste pois, sua personalidade de ferro sentia mais afinidade com ferragens. Entrou então para a Firma B. Wahrlich, percorrendo para ela a colônia durante longos anos. Mais tarde trabalhou na mesma condição pra F. O. Friedrichs. Além disso desenvolveu como sócio  a sua  atividade na Firma A. Ribeiro & Cia Sucessores e quando a firma passou para as mãos do seu irmão C. A. Drügg ou Carlos Daudt & Cia, associou-se a elas. Acreditamos não estarmos errando ao afirmar que esse veterano caixeiro viajante, ainda hoje, após longos anos, olha com orgulho para essa classe por todos respeitada e cujos quadros integra. E não são apenas seus numerosos amigos na mata virgem, como também seus colegas que demonstram a mais espontânea das alegrias quando cruzam com a figura por todos conhecida, vestindo suas roupas coloridas e montado numa soberba mula. 

Alfred Schrunk é outro desses caixeiros viajantes típicos da velha guarda. Neste meio tempo preferiu aposentar a vida de caixeiro viajante da ativa para mandar outros viajar a seu serviço. Tanto então como agora o Clube dos Caixeiros Viajantes o considera, com muita satisfação, como um dos seus associados. Também ele preservou a fidelidade e a dedicação à profissão que lhe foi tão cara. Nasceu em 1860 em Rivera no Uruguai. Teve a sua formação na Alemanha, transferindo-se em 1876 para o Rio de Janeiro e  em 1877 para Porto Alegre. Começou como funcionário da diretoria dos transportes de imigrantes para a recém começada  colonização de Garibaldi e Bento Gonçalves. Conquistou o apreço de todos os imigrantes a ele confiados, numa época em que nem  sempre recebiam tratamento humano por parte dos funcionários do governo. Prova é o fato de que quando muitos anos depois o autor dessas linhas viajou para aquela região, em especial no alto Forromeco, muitos colonos perguntavam por notícias e num tom de indisfarçável amizade  recordavam-se do seu “gordo Schrunk” e nunca se esqueciam de mandar-lhe saudações. 

Nosso velho amigo Emil Both  é do grupo daqueles que há muito descobriram que é mais cômodo deixar  que o caixeiro desbrave o caminho do que ele próprio se encarregar  da tarefa. Há anos trocou a vida de caixeiro viajante pela de um comerciante-modelo e como tal cultiva com seus ex-colegas o antigo e bom relacionamento que lhe ficou tão caro desde que, em 1870, começou a carreira na condição de empregado de Friedrichs e Birnfeld. Nasceu em Hamburgo em 1844. Em 1870 deixou Waterkant para trás e procurou a sorte em Porto Alegre. Em 1880 abriu uma loja de “delicadezas” no Caminho Novo. Não passava, na verdade, de uma máscara  da verdadeira identidade de todas as tavernas. Nas suas dependências encontravam-se constantemente, nas horas convenientes e não convenientes, os corifeus da vizinhança. Discutiam, como manda o figurino, sob o efeito de “substâncias” nobres, os males e as boas coisas da pátria e deles próprios, sem se importar com o crescente nervosismo do dono da taberna com a sua eterna conversa  fiada. Não poucas  idéias excelentes  vieram à luz sob a vigilância do tranqüilo senhor. Os companheiros de mesa assistiram com pesar a sua retirada para a sossegada contemplação de uma casa de comércio da colônia. Se hoje alguém passar por São Sebastião do Caí e não tiver idéia do que fazer com a noite, certamente não perde nada em bater na aconchegante salinha dos fundos do “tio-viajante”, onde se reúne constantemente uma alegre companhia. 

Não é a qualquer um que é reservado viajar como caixeiro durante vinte anos. Heinrich Techner realizou essa façanha. Nascido em 1852, em Wagestadt na Silésia austríaca , desembarcou em Porto Alegre em 1874. Empregou-se na casa de  comércio de fazendas de C. J. Schilling, Viajou para a firma até transferir-se para Bastian & Meyer e mais tarde para Bastian & Cia. Faleceu em 1901 depois de ter-se tornado sócio  e trabalhado 21 anos na mesma casa. 

Leopold Bastian trabalhou com Teschner na Firma Bastian &  Neyer. Nasceu em São Leopoldo em 1854 e em 1871 transferiu-se para Porto Alegre  e começou a percorrer a colônia como caixeiro viajante a serviço de H. Born. Em 1874 passou para Barbedo & Bastian e em seguida  tornou-se sócio de B & M. Muitos anos se passaram desde que encilhou pela última vez a sua mula para, de botas e esporas, apresentar aos filhos da mata virgem as maravilhas da sua firma. Seria conhecê-lo pouco se achássemos que ele não se recorda com prazer das suas atividades como jovem, que lhe serviram como escola preparatória completa para a sua condição de comerciante estabelecido por conta própria. 

J. G, Magnus foi o colega de Bastian  na Firma Barbedo Bastian. Nasceu em Torres e com 24  anos veio a Porto Alegre, em 1875. Na condição de  caixeiro viajante a serviço da citada firma, percorreu a região do mato e do campo. Passou depois para a Firma Chaves & Almeida onde exerceu a mesma função. Já em 1883 estava em condições de estabelecer-se  com firma própria. 

Philipp Becker dedicou-se durante vinte anos à profissão de  caixeiro viajante para no fim trabalhar como procurador no mesmo estabelecimento. Conhecido na praça 15 de novembro como homem de ferro, foi o único que ousou deixar-se fotografar com um chapéu pouco condizente com um caixeiro viajante. Nasceu aqui em 1853 e iniciou sua carreira no ramo das ferragens na Firma Böhmer & Dörken.

O homem que  de forma alguma conseguiu, ou melhor, não quis deixar de viajar, foi o moselano Ernst Schneiders, nascido em Cron em 1851. Desembarcou nas nossas praias  em 1871 e encontrou colocação na casa de ferragens de Th. Friedrichs & Birnfeld. Mais tarde administrou um negocio em comissão, estabelecendo-se em 1880 por conta própria em com uma firma de porcelanas, ferragens e miudezas, com ênfase especial às últimas. Costumava-se dizer: O que não se encontra em lugar nenhum em Porto Alegre, acha-se em algum lugar no Schneiders. 

Grande é o nùmero daqueles que aprenderam com mais ou menos proveito a cartilha de caixeiro viajante, na escola do Schneiders. Quem lidou durante anos com a diversidade de sortimentos, a começar pelas imensas torradeiras para preparar farinha, até as pulseiras para senhoras, podia ter certeza que aprendeu alguma coisa e encontrava colocação em algum lugar. 

Bicentenário da Imigração - 36

O Caixeiro Viajante e sua Mula

O deslocamento desde as casas matrizes de Porto Alegre em busca dos comerciantes do interior, implicava  numa série de desafios a serem enfrentados e vencidos. Para começar era preciso escolher o melhor e mais seguro meio de locomoção. Numa época em que as primeiras ferrovias estavam sendo construídas e a navegação fluvial estreava nos rios da região, a locomoção terrestre constituía-se  na forma mais rápida e mais segura para alcançar todas as picadas, também as mais afastadas, sem falar da própria Campanha, cavalgando nas condições mais precárias que se podem imaginar.

Nessas circunstâncias a mula foi a montaria mais aconselhada por ser um animal  pouco exigente, rústico, robusto, versátil, de considerável longevidade, bem maior do que a dos cavalos, embora lenta, embora despida da aura e da fama dos lances épicos do cavalo do gaúcho. Aliás a mula já se imortalizara na História do Rio Grande do Sul por ter sido um dos esteios da pujança econômica no período do charque. Caravanas e mais caravanas de mulas seguiram para o centro do Pais, umas após as outras carregadas de charque, percorrendo a lendária  estrada das mulas, partindo do interior do Estado, passando por Porto Alegre, Viamão, Glorinha, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Vacaria, Lages, atravessando todo o estado de Santa Catarina, Paraná, até São Paulo e Minas Gerais. E no momento em que no Rio Grande do Sul entrava  na nova fase de vitalidade e progresso econômico, a mesma mula foi reconvocada para participar no processo como peça fundamental.  Desta vez não mais como mera besta de carga, mas como portadora dos intermediadores do comércio, que carregavam em sua bagagem algo a mais do que amostras, faturas, encomendas e pagamentos. No seu lombo viajavam  também as novidades e as notícias, vindas da capital do Estado, do Pais inteiro e do grande mundo, para repercutirem  nos povoados e moradores mais distantes do interior colonial e da Campanha.

Dessa forma o caixeiro viajante e sua mula compunham uma simbiose quase perfeita capaz de desincumbir-se  a contento da tarefa que lhes cabia: garantir o pulsar da economia regional veicular a cultura, fazer circular informações de toda a ordem entre a capital, os centros urbanos e as picadas mais remotas. Por seu intermédio chegavam as notícias dos acontecimentos nacionais e internacionais. Desempenhavam, portanto,  o papel do jornal, do rádio e do correio. Atuavam, enfim, como poderoso antídoto contra o isolamento, a estagnação, a involução e o empobrecimento econômico, social, cultural e físico das comunidades do interior.

Em momento algum da história a mula, esse animal tão útil em inúmeros países e, ao mesmo tempo considerado o escravo entre os animais, desprezado, símbolo da falta de inteligência, da teimosia irracional e de uma estupidez primigênia e insanável, experimentou um reconhecimento de sua utilidade tão explícita e tão sincera como lhe foi dedicada pelo caixeiro viajante. Nos versos com o titulo “Mula Morta”, Cyclop (pseudônimo do caixeiro viajante Alfred Wiedemann) cantou em versos o que a mula significou para esses agentes comerciais. 

Era uma vez um caixeiro viajante que há muitos anos cavalgava a sua mula. Onde quer que se encontrasse, irradiava o seu alto astral, porque a profissão de caixeiro viajante lhe dava prazer. Tinha uma velha mula que não venderia nem  por cinco contos. Cavalgava-a  conforme as regras da velha escola, enfrentando sem medo, as pequenas e as grandes dificuldades. Em muitas ocasiões pelearam duras escaramuças juntos. (Riograndenser Musterreiter, p. 157)

Arthur Spindler, outro caixeiro viajante caracterizou, também em versos e na forma de diálogo a relação entre o caixeiro e sua mula.

Tens quase trinta anos. Passaste por inúmeras borrascas. Sempre me carregaste em segurança nas horas negras e nos momentos agradáveis. Nunca vacilaste ou renegaste a caminhada. Passamos juntos, apenas nós dois, incontáveis e inesquecíveis noites no meio do mato. Inteiramente a sós cruzamos o campo, tendo como companhia apenas as cobras, as rãs e as corujas. Apesar de não conversares comigo, eu te entendia. Sem errar e para a minha sorte interpretava o teu relinchar ao longe. É verdade, não poucas vezes te evadiste do potreiro durante a noite. Mas a tua magnífica voz indicava ao dono irritado onde te encontravas. Não demorava e ouvia-se: “peguei!” E  quantas não foram as memoráveis  ocasiões em que nós dois atolamos no lodo. Foi preciso abandonar a  sela e os estribos para depois continuar. Teu apetite foi sempre grande e sadio. Mostravas-te  satisfeito quando te serviam tanto milho, quanto raízes ásperas, pasto picado ou palha seca. E quando os outros zombavam de mim, tu me demonstravas simpatia. Na condição de uma autêntica mula não me abandonaste diante da ameaça de um acidente iminente. Agora nunca mais passarás necessidade. No dia em que eu próprio assumir a chefia, até o dia da tua morte tranqüila, irás privar comigo pois, só te montarei para passear. 

E na poesia “O velho Caixeiro Viajante”, novamente de Alfred Wiedemann, encontramos os versos carregados de nostalgia. “Já não tenho mais mula para encilhar e, como nos velhos tempos, cavalgar por aí, pelo mundo afora. Meu velho amigo “Hans” continua em paz o  teu caminho. Nós dois nos entendíamos tão bem, nós dois, tu e eu” (Cyclopiade, p. 88)

E numa outra poesia Wiedemann volta a homenagear a mula.

Nós próprios estamos curtidos como nunca e entendemos de todo o tipo de negócios. E contudo a estimada mula nos é tão familiar como se fosse  um parente nosso. Nas viagens cuidamos de nós por último, como o manda o dever de cavaleiro. Trata o “Hans” primeiro, depois senta na mesa. (Cyclopiade, p. 158)

E um pouco mais adiante.

O orelhudo nos é muito útil na viagens. Onde quer que nos demoramos em sua companhia, na casa do Jacó Rick ou de Matias Lütz, a conta é religiosamente dividida. Em não poucas colônias ouve-se dizer no momento em que se pretende regatear o pernoite: O pasto para o senhor e sua mula importa em vinte e cinco mil réis. (Riograndenser Musterreieter, p. 64)

O viajante Wiedemann dedicou a seu colega uma poesia  intitulada: “O caixeiro viajante”, por ocasião da Fahnenweihe em 1886, com os seguintes versos, que reproduzimos em prosa. 

Bem cedo às cinco da madrugada encilha e com o pôr do sol encerra a caminhada, caso a mula não se tenha esquecido de andar neste meio tempo, ou assustada o tenha atirado no barro. Por horas, sem parar, conversa com sua companheira, a mula. (Riograndenser Musterreiter, p. 108)

Para encerrar os comentários sobre o relacionamento entre o caixeiro viajante e a sua mula, apenas mais uma amostra extraída da poesia “Mula Morta” de Alfred Wiedemann. Depois de descrever a morte da mula estaqueada nas ripas de um alambrado ao saltar do cercado para a roça.

O que seria capaz de causar-te tristeza maior? As lágrimas escorriam como a resina. Meu bom e estimado Emil Barz, a tua dor é compreensível para qualquer um. Depois que levamos até o local definitivo aquela que por tanto tempo te serviu com fidelidade, entre lamentos escreveste, em meio às faturas, no teu livro de viagem: Aí jazes sobre a relva verde, tu que foste o maior prazer para os meus olhos. Estás livre agora, para gramar descansada, ó mais estimado e mais elegante entre os animais. Quem daqui em diante carregar as bruacas pela picada, já feitas sob medida para ti? Quem trotará pela noite levando a sua carga com tanta segurança? (Riograndenser Musterreiter,  p.157)

Bicentenário da Imigração - 35

Enquanto no verão o sol castiga o viajante, no inverno os lodaçais, os arroios e os rios transbordados, dão-lhe muito trabalho. O animal só avança passo a passo pelos caminhos enlameados que cruzam o mato. Transpor os vaus impetuosos ou os rios numa canoa, segurando no cabresto o animal que nada ao lado, transforma-se numa verdadeira batalha. A mula resfolega ruidosamente, assusta-se e é preciso muito cuidado para que não termine debaixo da canoa e a vire. Nesse tipo de   viagens e travessias alguns viajantes e muitos colonos já perderam a vida. Nas  estradas do campo formam-se no inverno extensos atoleiros, na maioria das vezes de pouca profundidade. Passá-los montado não significa propriamente uma diversão. Além de tudo o caixeiro é obrigado a viajar sob muita chuva. Caso resolvesse aguardar tempo bom, estaria condenado a mofar, por semanas, numa casa de comércio qualquer, retido pela chuva, inconveniente que de qualquer forma lhe acontece nas ocasiões em que os arroios sobem repentinamente, tornando a travessia impossível por alguns dias. O poncho de pano azul forrado com flanela vermelha ou o poncho de borracha protegem-no da chuva que cai por dias seguidos. É inevitável  que os pés se molhem e às vezes a água entra nas botas. O viajante toma aqui e acolá um copinho de cachaça de cana ou de conhaque para prevenir-se contra as más conseqüências que mais adiante sobrevêm na forma de reumatismo. 

Viajar pela Campanha é coisa  bem diferente. Em primeiro lugar muitos que viajam por lá o fazem somente de trem. A maioria deles são brasileiros. Não se trata de caixeiros viajantes no rigoroso sentido do termo. Nas cidades da Campanha as coisas se apresentam muito mais civilizadas do que nas colônias alemãs e italianas. Não é costume que o viajante coma ou beba algo nas casas de comércio com o objetivo de receber encomendas. É obrigatório, porém, que no dia da chegada faça uma visita aos fregueses, os saúde sem falar em negócios, a não ser, no máximo de passagem. Esse procedimento chama-se “passar pomada”.  Passar pomada ou um certo cerimonial é indispensável no relacionamento comercial com os brasileiros. Se eventualmente algum comerciante for até o hotel, o viajante costuma jogar bilhar ou cartas com ele  o convida para tomar uma cerveja, vinho chartreuse ou conhaque. Pode acontecer também que o viajante faça uma visita na casa de comércio. No verão senta-se na frente da casa com o comerciante e conversa com ele de preferência sobre política. Todo o brasileiro com alguma formação é um político apaixonado. É óbvio que a última guerra civil com  seus horrores amorteceu de alguma forma o fanatismo partidário e reduziu drasticamente as manifestações de natureza política.

Depois de passar a indispensável pomada, o viajante precisa certificar os fregueses que, sem falta, no dia seguinte terá que viajar. Desta forma, na maioria dos casos, confiam-lhe encomendas de considerável volume. O relacionamento entre o viajante e o comerciante  costuma ser de total cordialidade. O comportamento usual adotado pelos viajantes seria interpretado como pura barbárie entre os polidos brasileiros. 

As viagens mais  perigosas e mais difíceis são aquelas que adentram fundo na Campanha, ou avançam, quem sabe, até a região da fronteira, território dos bugres, dos índios mansos, que foram os primitivos donos das terras. Partindo da última estação do trem, o viajante embrenha-se no campo sem fim. Cavalga em companhia de dois peões, quase sempre  descendentes de bugres. Na sua frente tange de 20 a 30 mulas de reserva. Parte delas carrega a indispensável bagagem  para a viagem, utensílios de cozinha e gêneros alimentícios. Muitos viajam em diligências de sua propriedade pois, na Campanha as estradas são largas e transitáveis. Mesmo assim, não pode dispensar os animais de reserva e os peões que são também os vaqueanos ou os conhecedores do caminho. Assim cavalga-se ou roda-se dias a fio por estradas empoeiradas  no verão e cobertas de lama no inverno, em busca de uma localidade, de uma cidadezinha e de  fregueses. Durante a viagem surge aqui e acolá uma fazenda que, em caso de emergência, oferece um pernoite hospitaleiro. Encontram-se também vendas isoladas que cobram preços fabulosos por qualquer produto. Costumam homiziar tipos rudes tomando cachaça. Trata-se dos assim chamados gaúchos, tropeiros e criadores de gado, a serviço de fazendeiros das proximidades. São indivíduos selvagens, dispostos a matar. É preciso responder-lhes cordialmente e com a palavra certa, ao convite de tomar com eles um copo de cachaça, sob pena de correr risco de vida. É preciso evitar que percebam que o viajante carrega muito dinheiro. Naquelas ermos, naquelas regiões vazias de gente, onde o braço da lei não chega, em meio a essa gente rude e meio selvagem, meio índios, os mais pavorosos assassinatos, motivados ou pela política, ou por mulheres, ou por cavalos, ou por dinheiro estão na ordem do dia. Por causa dessa situação os  viajantes não poucas vezes preferem acampar ao relento e não raro não lhes resta outra alternativa. Os peões e o próprio viajante revezam-se montando guarda, para precaver-se contra assaltos de ladrões. Uma viagem dessas pela Campanha costuma durar três meses, no final dos quais o viajante  carrega somas muito grandes. Os meios para enviar o dinheiro diretamente aos centros de comércio estão pouco desenvolvidos pois, no interior antigamente não havia bancos. Até há pouco os pagamentos eram feitos aos próprios viajantes. É uma vantagem que o nosso dinheiro é de papel facilitando com isso o seu transporte.  No tempo em que circulava ouro e prata, o viajante se via obrigado a aceita-lo e carrega-lo em mulas. (cf. Riograndenser Musterreiter).

O “Riograndenser Musterreiter”  resumiu da seguinte forma a relação que se estabeleceu entre os caixeiros viajantes, os seus patrões em Porto Alegre e os comerciantes do interior colonial.

Quanto maior o tamanho dos sacrifícios que cada comerciante individualmente seria obrigado a fazer para resolver seus problemas, deslocando-se a Porto Alegre, tanto mais bem vinda era a intermediação do viajante comercial, livrando-o de tamanho incômodo e transtorno. Tanto maior costumava ser também o reconhecimento para com aquele que providenciava para a visita do seu caixeiro ocorresse de acordo com uma programação prévia, permitindo que o dinheiro e a encomendas estivessem pontualmente providenciadas.

A consequência direta dessa reciprocidade no atendimento dos interesses mútuos, foi o estabelecimento de uma grande cordialidade entre os comerciantes e os viajantes. Pressionada pelas circunstâncias dos anos de maus negócios que seguiram mais tarde, em poucos casos, essa feliz relação não logrou resistir. Mesmo assim, para felicidade nossa, sobreviveu até hoje ao menos na sua essência. Por essas mesmas razões o papel do caixeiro viajante assumiu importância e influência maior do que poderia ter sido em circunstâncias menos adversas. 

Exigia-se dele, em primeiro lugar, um físico sadio, capaz de suportar sem problemas, durante meses, as oscilações do clima, os temporais, as chuvas, o calor, o frio. Longas e cansativas eram as cavalgadas pela mata úmida, cruzando vales, enfrentando as corredeiras dos rios e os leitos pedregosos dos arroios que descem das encostas. Não poucas vezes foi preciso pernoitar em meio  da mãe-natureza. As próprias moradias dos amigos comerciantes que lhes serviam de hospedaria, ofereciam acomodações deveras modestas. Quem não fosse um cavaleiro experimentado ou quem não suportasse cavalgadas ininterruptas, por dias seguidos, não tinha estofo para a tarefa. Não se tratava apenas de suportar os riscos da viagem. Impunha-se também manter uma perene boa disposição. Naquele tempo como hoje era proibido apresentar-se aos fregueses de cara amarrada, apesar de torrado pelo sol ou depois de a cavalgadura afundar até a barriga no lodaçal e a bombacha, o poncho e as botas exibirem as marcas inconfundíveis do acontecido. 

Além de um bom relacionamento pessoal  havia outros predicados que não podiam faltar. A condução e o fechamento correto dos negócios durante as viagens, exigia dele, antes de mais nada, um espírito sadio e jovial, visto que as circunstâncias permitiam apenas três ou quatro visitas anuais aos fregueses, urgia aproveitar a ocasião e valorizar o curto espaço de tempo disponível e resolver, sem deixar dúvidas, questões de alguma forma relacionadas com o comércio. 

Em todas as eventualidades o vendeiro encontrava no caixeiro viajante um conselheiro oportuno e leal. Pelo fato de os jornais não chegarem a tempo, cabia-lhe informar sobre tudo o que se passava no mundo. Veiculava em primeira mão tanto as notícias relativas ao grande mundo, cujos altos e baixos repercutiam, por seu intermédio, nas picadas mais distantes, quanto os preços da banha e do feijão, tão importantes no interior colonial. Os caixeiros viajantes tinham obrigação de estar a par da política do Pais pois, já naquela época, oscilações neste particular interferiam nos interesses comerciais. Em muitos casos cabia a ele assumir as tarefas de correio que funcionava mal, devido às precárias condições das comunicações. Pelo fato de circular por toda a parte e devido à sua lendária disposição para servir, eram-lhe confiadas as mais diversas encomendas. 

As circunstâncias naquele tempo eram evidentemente patriarcais. O tratamento familiar por “tu” que costumava predominar no relacionamento entre fregueses e caixeiros, sugere bem a atmosfera de cordialidade e de transparência em que se processava a valorização recíproca. Observando que hoje muita coisa mudou para pior no que se refere à transparência, fazemos votos para que  esse “tu” tão simpático, torne a significar o símbolo universal de uma confiança que reboa do fundo da alma. 

É óbvio que todos os acertos feitos pelo viajante tinham a força de um compromisso, inclusive naqueles casos em que não se exarava nenhum documento escrito. Acontecia que o vendeiro se acostumava a enxergar no viajante o seu “patrão”, no lugar do chefe deste, a quem, na maioria dos casos, costumava conhecer apenas pelo nome impresso em negrito nas faturas. Resultava daí uma certa facilidade quando mais tarde o viajante resolvia estabelecer-se por conta própria. Seu relacionamento com a população da colônia e da Campanha facilitava-lhe a vida no momento em que era preciso um bom volume de capital vivo, quantia que em outras circunstâncias teria sido indispensável para montar uma firma própria. 

Explica-se assim que a maioria das casas de comércio alemãs na Porto Alegre de hoje, têm como proprietários, antigos caixeiros viajantes. Em alguns casos foram admitidos depois de pouco tempo como sócios das casas para as quais tinham viajado. Em outros casos as casas foram novamente postas a funcionar pelos antigos viajantes. Pois, na época havia no âmbito do grande comércio espaço e campo de ação suficientes para os que dispunham de uma boa dose de coragem. Todos ganhavam bem, o agricultor, o vendeiro, o pequeno e o grande comerciante. Quem na época não era vítima de algum infortúnio todo especial em seus negócios, conquistava, quase sempre, uma situação sólida.

E com que boa disposição o caixeiro viajante  partia para o seu campo de trabalho pois, a vida na colônia era tranqüila, sossegada, ao ponto de ser quase mais bonita do que a da cidade. E que satisfação quando se espalhava a notícia: o viajante X estará com certeza no Kerb! Sem dúvida haveria muitas novidades e algo para rir. Das imensas bruacas de couro o seu dono costumava desempacotar, além das amostras de mercadorias, muita outra coisa, da qual nunca se tinha ouvido falar e que fornecia assunto para as conversas de velhos e jovens, até a próxima vista.

O texto que acabamos de citar reproduz com grande fidelidade o perfil do caixeiro viajante da primeira geração. Cronologicamente situa-se nas últimas décadas do século dezenove e na primeira do século vinte. Corresponde à fase  de pioneirismo desse tipo de profissão. O isolamento físico, social, cultural e econômico das comunidades do interior colonial, geograficamente delimitadas pelas bacias fluviais que têm o seu ponto de convergência  em Porto Alegre, capital do Estado. É nesse cenário  geográfico, em meio a essa realidade humana e nessa conjuntura histórica, que é preciso  inserir, compreender e explicar o singular personagem que foi o caixeiro viajante. Os representantes comerciais de hoje, herdeiros remotos da profissão, em muito pouco lembram o que foi e principalmente o que ele significou no final do século XIX e no começo do passado. 

Encontramos assim entre os caixeiros viajantes daquela época, figuras  sadias de corpo e espírito. Desenvolveram uma certa originalidade, conseqüência da vida livre e da consciência do cumprimento fiel do dever nem sempre fácil. Essa originalidade não era, com certeza, o lado pior da personalidade, visto que, aliada a uma postura de legítima auto estima, só tinha condições de surgir e desenvolver-se onde reinava uma concepção de vida natural, sem artificialismo, avessa à estreiteza tacanha. A maneira harmoniosa de comportar-se imprimia a marca de todo o seu modo de pensar e sentir. Despertava nos círculos que frequentava uma transparência sincera e de um caráter digno de admiração, apesar da aparente rudeza. (Riograndenser Musterreiter, p. VIII)

Os elementos, as características, as virtudes que compunham a personalidade do caixeiro viajante, cobrem um largo espectro. Vão desde um imperturbável bom humor, mesmo nos lances mais difíceis da vida profissional, passando pela cordialidade, pelo amor à vida de quase aventureiro, pela disposição de enfrentar qualquer tipo de situação, pela alma de poeta romântico, pela total transparência na maneira de ser e agir, pela honestidade à toda a prova, pela confiabilidade, pela lealdade. Todas essas virtudes foram de alguma forma imortalizadas em prosa e verso, pelos próprios caixeiros viajantes ou pelos seus admiradores.

Há, entretanto, mais uma característica que torna os caixeiros viajantes digno de nota. Na sua quase totalidade foram personalidades cultas que manuseavam  com maestria a língua, tanto em prosa como em verso. O exemplo mais acabado é a coletânea  de poesias do caixeiro Alfred Wiedemann, conhecido pelo pseudônimo “Cyclop”, uma alusão ao personagem mitológico “Cíclope” que tinha um olho só na testa (Wiedemann só tinha um olho). Seus versos retratam com rara felicidade e precisão as peculiaridades do  período histórico que vai de 1890 a 1920, apreciado de uma forma nada convencional pois, o autor era um representante comercial que escreveu poesia. A quase obsessão literária dos caixeiros viajantes fez com que uma série de relatos  das assembléias do Clube dos Caixeiros Viajantes da década de 1890, fossem redigidas em verso.

Alem dos versos de Alfred Wiedemann  encontram-se no Riograndenser Musterreiter  versos de Carl Naschold, Arthur Spindler, Ernst Niemayer, Traugott Bechler, Natas (pseudônimo de Arno Phillip), Wilhelm Wustrow, Wilhelm Süffert, Emil Schlabitz.

 As circunstâncias peculiares de tempo e espaço durante as décadas finais do século dezenove e as primeiras do século vinte, plasmaram o personagem inconfundível do caixeiro viajante, familiar em todo o Rio Grande do Sul. Assim como é impossível conceber um gaúcho sem o cavalo, o laço, a bombacha, o pala, as botas e as esporas, assim a mula, as botas, as esporas, o poncho, as bombachas e as bruacas de couro, compunham o perfil desse centauro peculiar que foi o caixeiro viajante.

Bicentenário da Imigração - 34

O Caixeiro Viajante

A partir dos anos cinquenta do século XIX, a colonização alemã no Rio Grande do Sul, entrou na fase definitiva de consolidação. Os primeiros vinte e cinco anos, 1824-1950, caracterizaram-se pela abertura  das primeiras picadas  na Colônia de São Leopoldo e arredores. Os imigrantes tomaram pé  na terra estranha e habituaram-se a lidar com as peculiaridades e os obstáculos que encontraram. Superadas as principais  dificuldades de  adaptação às novas e desconhecidas circunstâncias, tanto de natureza geográfico-ambiental, quanto do manejo da mata e dos solos, como dos sócio-culturais e políticas, chegara o momento de colher os primeiros frutos concretos. Também neste período inicial, a capacidade do imigrante de lidar com situações extremas de conflito começaram, gradativamente a forjar o perfil étnico do teuto-brasileiro. A Guerra dos Farrapos, 1835-1845, apesar de todos os seus lances deploráveis, teve também seus resultados positivos. Os imigrantes submetidos a um duro aprendizado demonstraram  que tinham estrutura e versatilidade para, não apenas sobreviver, mas prosperar, numa província marcada por constantes distúrbios  de natureza social e política.

Ao mesmo tempo em que a região colonial se consolidava e começava a dar sinais evidentes de prosperidade, estabeleceram-se nos centros urbanos como Rio Grande, Pelotas e, especialmente, Porto Alegre, casas de importação e exportação, especializadas nos mais diversos  ramos, ao lado de estabelecimentos comerciais de todos os tamanhos.  Rio Grande o único porto marítimo do Rio Grande do Sul, liderou o grande comércio ligado à importação e exportação. Em Pelotas localizaram-se  os grandes abatedouros, em torno dos quais nasceram indústrias alemãs que manufaturavam as sobras: sebo, vísceras, patas, ossos, etc., transformando-as em volumes apreciáveis de sabão, velas, cola, farinha de osso e adubo.

Dois fatores fizeram com que, a partir de 1850, Porto Alegre assumisse, gradativamente, o papel de pólo comercial e industrial maior do Estado, relegando Pelotas e Rio Grande para um segundo plano. 

O primeiro motivo foi avanço da colonização para fora do vale do Rio dos Sinos. A partir da década de 1850, a porção média das bacias do Caí, Taquari, Pardo, Jacuí até Santa Maria da Boca do Monte, foi sendo rapidamente desbravada. Em poucas décadas os excelentes solos daquelas bacias fluviais foram conquistadas à mata e transformadas em ricos celeiros de produtos agrícolas: feijão, milho, tabaco, batata, mandioca. Produziram grandes volumes de banha de porco, resultado do aproveitamento do milho e da mandioca como ração básica na criação de suínos. Quase todo o feijão consumido em São Paulo e no Rio de Janeiro procedia do Rio Grande do Sul, mais especificamente da  região colonial alemã. 

Em meio ao avanço sobre as novas fronteiras de colonização, definiu-se rapidamente uma eficiente rede de comunicação e circulação, via fluvial, com Porto Alegre. As cinco bacias fluviais principais, colonizadas por alemães e mais tarde pelos italianos e poloneses, integraram uma vasta região geo-econômica, que convergia para Porto Alegre, capital do Estado, sede do governo e da burocracia oficial, centro financeiro, comercial e industrial e principal porto de navegação interna, porta de saída  e de entrada, via porto Rio Grande, para a exportação e importação de mercadorias, produtos e manufaturados. 

Ao mesmo tempo cresceu o volume de excedentes de produção tanto nas áreas de colonização mais antiga como nas recentemente desbravadas. A boa cotação do feijão, da banha, do tabaco, da farinha de mandioca, no mercado nacional e internacional, aumentou cada vez mais a circulação de riqueza, elevou o nível de vida e tornou a população cada vez mais exigente. O resultado desse quadro fez-se visível numa exuberância crescente da atividade econômica. Cresceu a procura por produtos importados não só nos centros urbanos maiores, como nas picadas coloniais mais distantes. 

Neste contexto consolidou-se, a partir da década de 1850, uma complexa rede de comércio, cobrindo toda a região colonial, compreendendo as  bacias fluviais que formam o Guaíba, tendo como ponto de convergência Porto Alegre, capital do Estado. Simplificando o esquema, essa rede apresentava as seguintes características. Nas picadas do interior colonial estabeleceram-se   casas de comércio locais, as “vendas”. Elas compravam dos colonos os excedentes produzidos por eles: banha, feijão, batata, farinha de mandioca, galinhas, ovos e outros mais. Essas mercadorias eram transportadas e entregues a estabelecimentos intermediários de maior porte, localizados junto aos terminais de navegação fluvial de São Leopoldo no Rio dos Sinos, em Caí e Montenegro no rio Caí, em Estrela, Lajeado e Mariante no Taquari, Santa Cruz do Sul no rio Pardinho, Candelária no Rio Pardo,  Cachoeira do Sul no Rio Jacuí. O mesmo fenômeno verificou-se  nas estações que foram sendo implantadas ao longo da ferrovia, com seus ramais que cruzavam a região colonial. As mercadorias eram embarcadas no trem ou em barcos que os entregavam  nas grandes casas de  comércio sediadas em Porto Alegre. Toda essa movimentação dava-se também no sentido contrário. No retorno aos portos fluviais ou às estações do trem no interior, barcos e trens transportavam as mercadorias para cobrir as necessidades do interior colonial. Descarregados e armazenados em depósitos e armazéns, eram transportadas em carroções, puxados por várias parelhas de mulas, até as vendas nas picadas mais remotas. 

À primeira vista o esquema parece simples e funcional. Havia, porém, um problema vital a ser resolvido. Sem a sua solução a máquina carecia de lubrificação: o intermediário nos negócios, o personagem capaz de manter vivas  ininterruptas nas relações comerciais entre todos os elos da cadeia, partindo do grande comércio atacadista da capital, passando pelos entrepostos maiores e terminando na venda mais rústica no  remoto interior colonial. Para exercer este papel é que surgiu a figura do Caixeiro Viajante, o personagem encarregado de percorrer a região colonial e oferecer as novidades que estavam sendo apresentadas pelas casas importadoras de Porto Alegre e depois retornar com as encomendas feitas pelos comerciantes.

Foram circunstâncias todo peculiares sob as quais foi posto em movimento e se manteve o vinculo entre o nosso centro de comércio e o “hinterland” mais afastado do Rio Grande do Sul.

Com a finalidade de superar as dificuldades dos comerciantes do interior e para assegurar o intercâmbio com o grande centro de comércio, utilizando os precários  meios de transporte, impôs-se há muito tempo a necessidade de fazer viajar representantes  credenciados. Sua Missão resumia-se na procura do “vendeiro” no seu próprio estabelecimento, oferecer-lhe  a oportunidade de remeter seu dinheiro sem que fosse obrigado a abandonar o seu negócio por um tempo maior, encomendar as mercadorias tomando como base as amostras apresentadas pelos caixeiros viajantes. 

Foi preciso percorrer vastas e inóspitas regiões cobertas de mata, cortadas por caminhos raros e quase intransitáveis. Na época também já se viajava pelas intermináveis planuras verdes da Campanha. As ferrovias ainda eram desconhecidas entre nós. Vapores pequenos e precários percorriam, aqui e acolá, o Rio Jacuí e o Sinos, ou ligando em viagens irregulares os entrepostos comerciais do Taquari, o Porto dos Guimarães (São Sebastião do Caí) e o  afamado “Passo” de São Leopoldo. (Riograndenser Musterreiter, p. VII)

No período aqui considerado, 1880-1930, o cenário de trabalho dos caixeiros viajantes cobria, não só toda a área de colonização alemã, de Taquara a Santa Maria e os primeiros núcleos de Passo Fundo, Soledade, Cruz Alta, Ijuí, Santa Rosa, .... Incluía também as colônias italianas mais antigas, principalmente o eixo Garibaldi - Bento Gonçalves – Veranópolis, assim como praticamente toda a Campanha. Nos relatos de caixeiros constam viagens para fazer a praça até em Uruguaiana. Não há necessidade de insistir que essas viagens implicavam num elevado teor de risco, por uma série de circunstâncias próprias da época. 

Uma viagem no lombo de uma mula até Cachoeira do Sul, até Veranópolis ou até Alegrete e Uruguaiana, por si só significava já um desafio gigantesco. Exigia do caixeiro um preparo físico e uma disposição psicológica fora do comum. Para as pessoas de hoje, acostumadas a todo tipo de facilidades, fica difícil imaginar sequer uma cavalgada de semanas e até meses em condições de dificuldades extremas. 

Falar do caixeiro viajante significa falar da natureza, da alma da prática comercial na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. O oposto é também verdadeiro. Querer caracterizar o comércio daquele período exige que se fale do papel fundamental que nele coube ao caixeiro viajante. Uma descrição do caixeiro viajante Carl Naschold de 1913, imortalizou o caixeiro no seus traços mais característicos. Reproduzimos o texto traduzido do original alemão, publicado no Riograndenser Musterreiter: 


A vida do caixeiro viajante rio-grandense constitui-se num maravilhoso poema. Quem sabe apresenta-se alguém que reúna essa jóia  numa única canção. Reúna numa única canção esse apetite indomado, essa atividade  cheia de aventuras e persistência em meio a uma natureza toda peculiar, em meio às florescentes colônias alemãs e à Campanha rica em cidades. 

O benigno leitor e a sempre graciosa leitora queiram emprestar asas à imaginação e deixar-se transportar comigo até uma das picadas alemãs, isto é, viajar comigo por uma daquelas estradas que cruzam as picadas alemãs. Vamos a cavalo e avançamos num trote lento e suave como é costume aqui, para não cansar  demais nem o homem nem o animal. À direita e à esquerda áreas  de mato alternam-se com potreiros, roças cultivadas e mordias. Essas últimas costumam ficar a uma boa distancia umas das outras e um pouco recuadas da estrada. Um muro ou uma cerca protegem as moradias e os potreiros, evitando que cavalos, reses, porcos e outros animais se evadam. 

Aproximamo-nos de uma casa que fica perto da estrada. Diante da porta encontramos, em alguns casos sim e outros não, algumas árvores de sombra. O que nunca falta são postes e sobre eles traves  transversais, ou pelo menos argolas para prender os nossos cavalos. Encontramo-nos diante de uma casa de comércio, de uma assim chamada “venda”. Apeamos pois, a nossa intenção é conhecer caixeiros viajantes que tem como cenário de trabalho as vendas. A atenta dona da venda se apressa em oferecer uma cadeira para a nossa bela leitora, facilitando o desmontar com o vestido comprido. As mulheres da  colônia, na maioria dos casos,  costumam andar a cavalo com vestido curto, sendo que algumas cavalgam bem à maneira dos homens. Saímos da luz ofuscante do dia e entramos na agradável penumbra da venda protegida da claridade com cortinas. Saudamos os presentes com um aperto de mão como é costume no País, quando são de alguma forma conhecidos. Depois sentamo-nos num banco em frente à mesa da loja chamada balcão. As senhoras que nos acompanharam sentam-se em cadeiras que lhes são oferecidas. Pedimos uma garrafa de cerveja nacional pois, a cavalgada ao sol nos rendera uma grande sede. Para as senhoras há licor, água com extrato de framboesa  e doces.

Apesar dos muitos detalhes típicos a serem ainda observados está na hora de nos ocuparmos com o caixeiro viajante. Encaminhamo-nos até a porta e eis que se aproximam dois cavaleiros, sobre a cabeça chapéus de abas largas e caídas, um poncho esvoaçando ao vento, lenço no pescoço, botas de cano alto munidas com grandes esporas, o relho, com a direita segurando chicote de cabo curto, a pistola na guaiaca, o cinturão com a bolsa do dinheiro, confeccionada de pele de castor ou outro animal qualquer. Ainda não é certo que se trata de caixeiros viajantes  pois, este é o traje nacional do Rio Grande do Sul e o mais adequado para as viagens do interior. Um dos homens ainda moço carrega atrás de si, pendendo de ambos os lados da cela, duas grandes bruacas de couro marrom. É o distintivo do caixeiro viajante. Passam por nós, erguem levemente o chapéu, saltam das mulas, passam o cabresto pela argola do poste o prendem-no na trave transversal. Entram na venda e saúdam a vendeira com um aperto de mão. Perguntam pelo dono da casa, pela família toda e de modo especial pelas filhas da casa. Os colonos presentes também os  saúdam como  velhos conhecidos. O motivo está nas muitas festas na colônia de que os viajantes participam e em cada uma das ocasiões em que se acham presentes, cabe-lhes o papel mais importante. São dançarinos desenvoltos e valentes bebedores. Os  filhos da colônia a quem surrupiam as garotas reconciliam-se com eles pela sua maneira espontânea e elegante. Mandam servir dúzias da “inglesa”, isto é, cerveja estrangeira. Conhecem as piadas mais engraçadas, sabem contar os acontecimentos políticos e são o jornal vivo para a colônia. Cabe a eles formar a opinião pública dos colonos e dos comerciantes do interior. Durante a recente revolução rio-grandense eram vistos pelo governo como perigosos propagandistas dos maragatos, em outras palavras perturbadores da ordem, o que obviamente não passou de uma injustiça. Com raras exceções defendiam o único ponto de vista razoável: manter as colônias neutras frente à guerra fratricida de brasileiros contra brasileiros. Os caixeiros viajantes representam em todo o caso um poder. São os pioneiros do comércio alemão e os defensores do germanismo. Conquistam muitos amigos e muito apoio na colônia, são convidados para padrinhos e a maioria encontra suas mulheres nas melhores famílias da colônia.

A vendeira informa aos dois caixeiros que o marido saiu a cavalo para voltar em seguida. Não vai demorar porque à noite haverá “música”, isto é, baile na casa, para o qual estavam obviamente convidados a ficar. Em tais ocasiões os caixeiros são hóspedes sempre bem vindos para os comerciantes pois, gastam bastante e garantem a movimentação para o estabelecimento. O dono das grandes bruacas, um viajante de fazendas, convenceu-se logo que com o reboliço na casa não havia esperança para qualquer tipo de acerto e resignou-se com a sorte. Mas o outro viajante para secos e molhados, isto é, mercadorias para o consumo na colônia pretendia continuar a viagem, porque tinha a concorrência nos calcanhares e, com certeza, não é nenhuma diversão quando um outro tira a nata do leite. A gente mesmo prefere fazê-lo. Enquanto tentava argumentar entrou o vendeiro, saudou os dois com alarde: “viajando de novo por aqui?” Sacode-lhes amigavelmente as mãos  enquanto os interpela: “Se não ficarem para o baile não compro nada. Hoje não se faz negocio”. Depois desta o viajante para secos e molhados conformou-se também. O primeiro levou a sacola com as roupas, os livros de leitura e um par de chinelos para dentro e o segundo suas grandes e pesadas bruacas de couro, presas uma na outra com uma longa tira. 

Desencilharam as mulas, colocaram uma caixinha com meia quarta de milho na frente de cada uma. Depois de comerem o milho soltaram-nas no potreiro, uma ampla área de pasto cercada com arame. Os cavalos e as mulas que pastam  no potreiro costumam ser reunidas em torno de um grande coxo comum no qual recebem milho para comer. Animais estranhos costumam receber o trato à parte porque são impedidos de comer no coxo pelos coices dos  de casa.

A primeira coisa que os viajantes fazem logo após a saudação, é pedir  uma ou duas garrafas de cerveja, de preferência nacional. Um grande número de cervejeiros abastece as colônias com um produto de qualidade aceitável. A cerveja importada é vendida por dois e meio a três mil réis a garrafa, muito cara para as condições de hoje. É óbvio que o negociante participe. Sua mulher também é convidada para um copo. Depois a conversa deslancha e versa sobre todo o tipo de novidades de natureza política, pessoal e humorística. O tomar cerveja serve de preâmbulo para começar os negócios. Daí para frente as coisas se tornam mais fáceis para o caixeiro, especialmente quando viaja para uma casa bem conceituada, porque os comerciantes raramente compram de um único e do mesmo ramo. Costumam comprar dos viajantes de quase todas as firmas, em parte porque no ramo dos tecidos a diversidade do sortimento o exige e em parte porque de alguma forma cultivam uma tal ou qual amizade com todos os caixeiros e também porque eles “consomem” alguma coisa. Alguns comerciantes instalados  em locais estratégicos, consolidaram um negocio lucrativo com a circulação dos viajantes. Mantêm uma espécie de hospedaria na qual eles gostam de pernoitar. Nessas ocasiões costumam bebericar principalmente quando há vários reunidos. O negociante bebe com eles à vontade, vinho à mesa e cerveja depois, diverte-se com a conversa e termina lucrando na comida e na bebida e no pernoite, mesmo cobrando preços módicos. De qualquer forma todo o comerciante concede acolhida ao viajante quando este é surpreendido pela noite, porque nas picadas da colônia não há hotéis. Só se encontram nos núcleos maiores. Via de regra os preços são acessíveis. São exceções os negociantes  conhecidos como notórios exploradores  de viajantes. Mais frequentes são os hoteleiros que conseguem resultados fabulosos com a manipulação de contas por meio de cálculos fantásticos. Um deles tinha o costume de anotar sempre uma segunda garrafa de cerveja ou vinho indistintamente para todos os viajantes, a titulo de penalidade pelo incômodo causado ao dono da casa. Aplicava a penalidade também nos casos em que o hospedeiro estava mal disposto ou se esquivava para providenciar bebida. Acontece que o hotel er o único na cidadezinha onde se encontrava  boa bebida e, o que era mais importante, onde também as mulas eram servidas com um bom pasto. Por isso, apesar de tudo, era procurado por quase todos os viajantes. Não é de se admirar que esse tipo de hoteleiro acumulava em pouco tempo uma fortuna. 

Neste meio tempo os dois viajantes liquidaram diversas garrafas de cerveja acompanhados pelo negociante. A filha crescida da casa entrou saudou os viajantes com um jovial aperto de mão, manifestando satisfação pelo fato de os dois ficarem para a “musica” e manifestando  uma certa contrariedade porque o dos secos e molhados pretendia seguir viagem. Pede desculpas porque para a noite a espera muito trabalho. Numa “música” como aquela janta-se e toma-se café e como consequência há muito que fazer na cozinha. Alem disso é preciso arrumar, varrer e limpar o armazém onde normalmente acontece o baile,  enfeitá-lo com leques de coqueiro e taquaras. Estearina ralada  é espalhada pelo assoalho para torná-lo escorregadio. Uma garrafa de vinho do Reno presa a uma grinalda verde é pendurada no meio do salão. Ela é imediatamente reposta logo que algum rapaz toma coragem para baixar esse enfeite relativamente caro. 

Em meio ao fluxo do alegre entretenimento o caixeiro não perde de vista os negócios, obviamente sem deixar transparecer nada. Aparentemente sem segundas intenções procura descobrir, com perguntas e observações casualmente  entremeadas na conversa, que mercadorias  estão faltando ao vendeiro. Procura fazer amizade com o “caixeiro”, que é o faz tudo nas casas  de comércio da colônia e ao mesmo tempo é responsável pelo andamento da casa, fazendo o papel de guarda-livro, de correspondente, de balconista, supervisor do estoque, peão e professor da casa. É dele que o caixeiro viajante procura obter as informações a respeito do que falta em mercadorias. Inspeciona também   as prateleiras e dá uma volta pelo armazém. Munido com todas as informações ataca finalmente o negociante. Este quase sempre costuma fazer objeções dizendo que não precisa de nada, que vende muito pouco e assim por diante, para finalmente fechar uma vultosa encomenda. 

O viajante para secos e molhados tem consciência  que a concorrência está no seu encalço. Sabe também que na manhã seguinte depois do baile não haverá negocio porque  o negociante  quer dormir, ou está de mau humor, ou tem que atender os fregueses. Saca energicamente o livro e, como secos e molhados não requerem amostras e os livros são relativamente poucos, o negociante se aproxima depois de alguma resistência. Pergunta pelos preços dos artigos principais, faz saber que gostaria de um preço um pouco melhor. De tudo quer o melhor para finalmente fazer a encomenda. Em seguida o viajante apresenta a relação dos artigos constantes  em seu livro e que ainda não haviam sido discutidos. Um ou outro deles  irá completar a encomenda. O segundo viajante procura ajudar o colega da maneira mais discreta possível. De vez em quando joga uma palavra no meio capaz de convencer o negociante  a ficar com o artigo ou um número maior do mesmo. Nesta questão o câmbio eternamente flutuante desempenha um papel importante. Estimula ou desestimula a compra na medida em que se prevê a queda ou a elevação dos preços.

As encomendas estão concluídas, quando se aproximam mais três viajantes: um representante  de ferragens, um de porcelanas e um de sabão, todos obrigatoriamente montados e suas mulas. Um caixeiro viajante montado em cavalo é uma raridade, quase uma aberração. Nas colônias montanhosas os cavalos não tem resistência suficiente para viagens que duram semanas. Acontece um grande e alegre alvoroço. Obviamente pede-se cerveja à vontade e um conversa animada tem andamento. Todos sem exceção são homens moços que levam uma vida livre quase sem freios, sadios e preparados para enfrentar qualquer tipo de intempérie. Mostram-se indiferentes à chuva torrencial, ao sol escaldante, a estradas escorregadias, enlameadas ou beirando precipícios, a arroios caudalosos, aos perigos nas  trilhas solitárias no mato e aos riscos das estradas sem fim da Campanha. Carregam uma faca, mas muitos viajantes, por comodidade, levam as pistolas na bruaca ou na bolsa junto ao poncho. Não conhecem medo. Tomando em conta o grande número de caixeiros viajantes permanentemente na estrada, constitui-se numa raridade extraordinária alguém ser assaltado. Este fato é tanto mais admirável quando qualquer um sabe que eles costumam carregar muito dinheiro e são obrigados a passar por regiões onde só mora gente cor de café com leite. A maioria deles abate um ser humano com o mesmo sangue frio com que sangram uma rês. Mas esse povinho costuma ser covarde e indolente. Entre  eles como entre os luso-brasileiros os assassinatos para roubar são  menos freqüentes  do que por ciúmes, por mulheres, pelo jogo ou pelas carreiras, ocasiões em que as vitimas são muitas.

Neste meio tempo anoiteceu. A dona da casa chama para dentro da venda: venham jantar! E todos sentam-se à mesa. O feijão que raras vezes falta é servido com carne seca ou carne de porco, farinha de mandioca, arroz, ovos fritos com linguiça e, por fim, um liquido suspeito semelhante a café,  feito mais de cevada, milho ou feijão do que de café. A tudo isso soma-se pão de centeio e “Schmier”.  Como é dia de “musica” oferece-se, em consideração aos viajantes, algumas amostras do cardápio do baile: um pouco de chucrute, batata, carne de porco, galinha, massa e pêssegos cozidos. Por fim serve-se um bolo bem ordinário. 

Depois do jantar os viajantes dirigem-se ao recinto do baile. Ainda não há ninguém. Poucas moças estão sentadas nos compridos bancos encostados nas paredes. De pé junto ao balcão alguns colonos tomam cachaça ou uma garrafa de cerveja. O pequeno estrado destinado aos músicos está ainda vazio. Eles chegaram há algum tempo, desencilharam os cavalos, soltaram-nos no potreiro e de momento estão jantando. Os músicos são honrados colonos. Como amadores ensaiaram nas horas de folga sob a regência de um “maestro” conhecedor de música. Nos períodos em que a plantação o permite dirigem-se, ora para um, ora para outro local, em viagens a cavalo de um dia ou mais. À noite tocam em bailes, casamentos, bênçãos de igrejas, ganhando um bom dinheiro. A plantação na roça não pode ser  negligenciada. É óbvio que na ausência  do marido as mulheres se encarregam do mais urgente. Aliás em qualquer situação as mulheres da colônia são obrigadas a trabalhar mais do que os homens. Não só auxiliam com toda a dedicação na roça, como tomam conta dos filhos e da casa, enquanto os homens  descansam. 

Aos poucos o salão enche. Os colonos vem chegando em companhia das mulheres, dos rapazes e das moças, a maioria a cavalo, os das redondezas a pé. Excetuando-se as cidades, anda-se aqui  muito pouco a pé, pois os caminhos são ruins, os cavalos baratos e para o transporte dos produtos o colono os precisa de qualquer maneira.

Os colonos usam chapéu de abas largas e às vezes poncho. Além disso, não se observa nada de especial em seus trajes. O chapéu e o poncho são tirados  e guardados na entrada no salão. Acontece também que nos bailes coloniais um ou outro rapaz provocador dança de chapéu, poncho, botas e esporas. As moças usam vestidos de chita clara e sapatos baixos e na maioria das vezes também espartilhos. Por falta de  quem tome conta, as mulheres levam com freqüência as crianças de peito. Elas são acomodadas em camas colocadas num quarto qualquer. 

A banda ocupa o seu lugar e toca a primeira marca. Não se costuma dançar a “polonaise”. Os rapazes dirigem-se até as moças  e sem muita cerimônia as convidam. Elas evitam geralmente a recusa. Dança-se bem e com desenvoltura. O salão está apinhado e acontecem fortes cotoveladas nas costelas. Os mais velhos parados junto à mesa como de costume bebem coragem para em seguida precipitarem-se com qualquer uma das mulheres nos braços, misturando-se na confusão do aperto. Durante a dança o dialogo é praticamente impossível. Aliás não há grande necessidade para tanto.  É difícil entender-se em meio à musica de instrumentos de metal, o sapatear cadenciado, os gritos roucos de alguns e os assobios imprevistos. Terminada a dança, a dama é conduzida diretamente para o banco ou dá-se primeiro uma circulada pelo salão. Não poucos rapazes, numa atitude  mal vista, não largam a sua garota durante a noite toda. Durante a pausa os homens encaminham-se para a mesa e bebem com vontade, quase sempre cerveja. Beber vinho é considerado uma ofensa segundo os costumes daqui. Outros são convidados a acompanhar, sendo preciso mandar abrir não só uma mas várias garrafas de cerveja. Aquele que manda colocar na mesa meia dúzia ou uma dúzia de cerveja inglesa, conquista o maior respeito.  É neste particular que os viajantes  não escapam para conquistar a simpatia do hospedeiro e dos comerciantes que de alguma forma participam da “música”. Os viajantes evidentemente não se fazem de rogados.

Enquanto os homens bebem demais o mundo feminino geralmente  recebe de menos. Um ou outro dos rapazes providencia uma gasosa, um copo de água com framboesa ou uma garrafa de cerveja. Há também os homens que se lembram das mulheres e estas oferecem para as vizinhas. Mas na maioria das vezes elas  se vêem obrigadas  a reclamar antes de receberem alguma coisa. De resto elas comem e bebem muito pouco durante a “música”. Pela meia noite elas são conduzidas até uma mesa por seus pares. A comida é a mesma que já mencionamos, seguida de café e cuca. 

Um ou outro manda meia dúzia de cervejas para os músicos no estrado. Eles são muito sensíveis em relação a isso e reclamam quando são esquecidos. Em troca é permitido pedir que toquem um dança especial, uma “marca” a pedido. Todos participam da dança. A seqüência das danças fica, na maioria dos casos, entregue à vontade dos músicos. É rara uma programação impressa. Um dos músicos faz uma coleta durante a dança. Costuma dar-se um patacão, isto é, dois mil réis ou mais por uma noite inteira. 

Depois da janta a dança continua solta até clarear o dia. Não poucos rapazes enamorados deixam-se ficar sentados no banco com o braço dado com sua garota, alheios ao reboliço em volta ou quem sabe, adormecido com a cabeça reclinada no seio dela. Nestas coisas o homem costuma ser bastante desenvolto e nada melindroso. 

Durante a noite toda os dois caixeiros viajantes bebericaram com aplicação e dançaram de preferência com as mulheres e as filhas dos negociantes, sem contudo mostrar-se indiferentes  a outras beldades. Deitam-se de madrugada para dormir e levantar cedo. Estão habituados a tudo isso e pois seus corpos foram temperados e são  versáteis. O viajante para secos e molhados  que já resolveu seus negócios manda buscar a mula no potreiro para tratá-la com milho, toma uma xícara de café enquanto come lingüiça e pão preto. Para cobrir as despesas do hospedeiro com aparência deplorável, convida os colegas e o hospedeiro para um conhaque. Os outros oferecem também uma dose e os copos são enchidos e esvaziados várias vezes. Finalmente liberta-se dos seus colegas que tentam convencê-lo  a ficar, deixa uma saudação para a mulher e filha do dono da casa que ainda dormem e cavalga pelo ar puro e fresco da manhã. A mula descansada  avança disposta pelo caminho de argila endurecida. As montanhas estão azuladas, as matas exalam perfumes, os rios e arroios fumegam, no firmamento lampejam os primeiros clarões da aurora. É a hora em que a poesia inunda  o coração do viajante, é a hora em que aos brados externa toda a sua indômita vontade de viver. Apeia em todas as vendas onde pretende ou onde tem ocasião para realizar negócios. Em cada uma dessas vendas é obrigado a beber alguma coisa. O sol se eleva cada vez mais. O calor aumenta sem parar. Sorte sua quando pode cavalgar na sombra do mato. Quando, porém, a viagem se estende  pelo campo aberto sem proteção, por estradas largas sem árvores, os raios do sol o atingem como flechas ou de cima ou reverberados  pelo chão. Cavalga num mar de luz e claridade. Obriga-se a enterrar o chapéu fundo na testa, a fim de  evitar que os olhes se ofusquem. O calor espreme o suor por todos os poros. Chegando após o almoço nessas  condições numa venda, deita-se para dormir uma hora enquanto deixa a mula descansar. Depois segue viagem pela canícula e pelo pó da estrada. Com a aproximação do crepúsculo, acompanhado com suas sombras e seu frescor, com satisfação avisa enfim o objetivo da viagem. A mula avança com maior rapidez  e leveza do que de manhã e relincha alegremente ao avistar a cidadezinha que lhe é familiar. Uma dessas mulas experimentadas dos caixeiros viajantes conhece todos os caminhos tantas vezes percorridos e sem ser mandada pára na frente das casas de comércio e das pousadas. Não raro os viajantes obrigam-se a apear por um momento diante de uma casa em que não pretendia entrar, para o animal então resolver seguir caminho  sem problemas. 

Bicentenário da Imigração - 33

Na entrada do século vinte a colonização alemã atingira proporções tais que  a infra-estrutura das comunidades já não tinha condições de atender satisfatoriamente às exigências  que o progresso e  dispersão geográfica para regiões sempre mais afastadas traziam como conseqüência inevitável. Foi preciso pensar em meios e estratégias capazes de acompanhar o constante aumento da produção, as exigências econômicas, o bem estar social, o aprimoramento da escola e educação, a elevação do nível cultural, a dinamização da religião e religiosidade. A agricultura reclamava métodos de produção mais aprimorados e a introdução de novas culturas. A criação de animais exigia a melhoria genética e novas raças. Enfim era preciso acompanhar o ritmo do progresso, sob pena de ficar à margem da dinâmica do Pais. 

Cônscias dessa realidade as lideranças leigas e religiosas fundaram em 1900 a Associação Riograndense de Agricultores. Seus idealizadores demonstraram uma abertura de visão fora do comum e sob vários aspectos precoce para a época. A Associação propôs como finalidade a defesa e o incentivo da economia regional e nacional, estimulando a produção dos mais diversificados bens a fim de diminuir a dependência do estrangeiro pelas importações  e, ao mesmo tempo, dar início à instalação de pequenas indústrias. Com o tempo elas deveriam evoluir para um parque industrial regional diversificado e moderno. O que, entretanto, se constituiu numa surpresa  maior foi o fato de a Associação dos Agricultores pelos seus estatutos ter sido uma proposta interconfessional, interétnica e intercultural. Fundada pelas lideranças católicas, convidou os protestantes para a participarem assim como os ítalo e luso-brasileiros. 

A interconfessionalidade tornou-se realidade desde o começo. Já na primeira assembléia geral em 1900, os padres católicos e os pastores protestantes, as lideranças de ambas as confissões e os simples colonos, sentavam-se unidos na mesa de debates. Juntos analisavam os problemas existentes, procuravam soluções e traçavam as linhas de ação que lhes pareciam convir mais. As querelas de natureza doutrinaria e disciplinar não interferiam.

O primeiro obstáculo para um êxito mais duradouro da Associação dos Agricultores tinha a ver com uma participação menos significativa  dos luso-brasileiros e dos ítalo-brasileiros, motivada pela língua. O segundo obstáculo teve a ver com a economia praticada pelos lusos da campanha e dos campos de cima da serra. Os problemas específicos envolvendo as grandes estâncias de criação de gado, em nada se assemelhavam daqueles que eram próprios das pequenas propriedades em que se praticava uma agricultura familiar diversificada. A efêmera vida da Associação foi mais um dado que impediu que ela rendesse mais resultados.

Mesmo assim os imigrantes  alemães no Rio Grande do Sul desmentiram com sua Associação, a acusação de terem cultivado o isolamento em relação às demais etnias e culturas da região. De outra parte os católicos e protestantes anteciparam-se em sessenta anos ao Concílio Vaticano II e ao Conselho Mundial das Igrejas, deixando de lado séculos de disputas e guerras, para  se aliarem em torno de um projeto comum de promoção humana. 

Dos debates, das propostas e das conclusões resultantes das assembléias gerais, passaram para a prática algumas decisões que iriam marcar em definitivo a economia dos estados do Sul. A mais importante delas foi a implantação das primeiras cooperativas de crédito e de produção na região colonial alemã e italiana. A primeira cooperativa de crédito começou a atuar em Nova Petrópolis em 1902. Foi o marco inicial, o ponto de partida para que, em pouco tempo, dezenas delas  socorressem os colonos desejosos  de assegurar as suas economias ou valer-se de empréstimos a juros acessíveis. Às cooperativas de crédito seguiram-se  cooperativas de produção, de consumo, de comercialização e outras mais. A Associação dos Agricultores patrocinou  as  cooperativas de crédito financiaram a colonização de Cerro Largo e Santo Cristo, na região das Missões. A Associação preocupou-se também em difundir técnicas modernas de manejo do solo, a introdução de novas culturas, enfim, a modernização da agricultura. Dela partiu o primeiro alerta contra a derrubada sem freios das matas e as conseqüências funestas que daí poderiam resultar. 

Foi uma lástima que a Associação Rio-grandense de Agricultores tenha tido uma existência tão efêmera. Na assembléia geral de 1909 em Taquara foi transformada em sindicato rural. Os motivos alegados foram as leis federais que regulamentavam as associações de classe. A Associação optou pela modalidade de um sindicato para usufruir os benefícios legais. No fundo, porém, outros motivos devem ter contribuído. Entre eles provavelmente a impossibilidade de engajar  os luso brasileiros e os ítalo-brasileiros devido a diferença das línguas e das disparidades  da economia  praticada pelos primeiros. Pelo que se pode deduzir  das entrelinhas dos documentos da época, é legítimo concluir que outros fatores devem ter contribuído. Do lado católico certas autoridades eclesiásticas acompanhavam com apreensão o relacionamento diuturno e amistoso com os protestantes. A mesma preocupação inquietava também algumas lideranças protestantes. 

O padre jesuíta Theodor Amstad, idealizador principal da Associação Rio-grandense de Agricultores, limitou-se em suas Notas Autobiográficas, a uma lacônica observação ao tratar do assunto. Afirmou que foi sua primeira experiência  no campo do associativismo; que a entidade fora pensada em termos inter-confessionais e inter-étnicos; e que a experiência fora prematura. 

A esta altura já não importam os motivos reais que determinaram a breve existência da Associação. O que lhe confere, na verdade, uma importância única foi o modelo proposto, a visão ampla dos seus idealizadores e o espírito desarmado em relação aos outros grupos confessionais e étnicos. Na sua atuação concreta conseguiu em apenas dez anos, pôr em marcha um projeto de desenvolvimento humano global, fundamentado no princípio da solidariedade, da cooperação e do compromisso mútuo. Se hoje o cooperativismo é uma realidade, se seu logotipo pode ser encontrado em qualquer núcleo colonial um pouco maior dos três estados do Sul, é prova de que o modelo proposto na primeira década do século XX prometia algo de consistente. Há muito tempo as cooperativas ultrapassaram as fronteiras da região colonial alemã. Os ítalo-brasileiros e os luso-brasileiros aderiram a elas com entusiasmo.

Escrever a história da economia do Sul do Brasil ignorando a importância da Associação Rio-grandense de Agricultores, significa omitir uma parcela de vital importância. Mas, com o encerramento das atividades da Associação não esmoreceu a vontade de associar-se. Lamentavelmente a colaboração interconfessional e interétnica teve que ser arquivada pelo menos a médio prazo. Católicos e protestantes partiram, cada qual, para um projeto próprio e independente. 

Os protestantes criaram a Liga União Colonial que pautou seus objetivos de acordo com o que haviam aprendido e praticado na Associação dos Agricultores. Empenharam o melhor das suas energias  no sentido de assegurar aos colonos sob sua responsabilidade, os meios necessários para o progresso material, cultural e religioso. 

Em 1912 os católicos fundaram a sua própria associação, inspirada nas associações católicas da Alemanha, Suíça e Áustria. Chamaram-na  de Sociedade União Popular, (Volksverein). Escolheram como lema a frase de São Paulo: “Omnibus Omnia – Tudo para todos”. Como a sua congênere protestante foi marcada com uma forte orientação confessional. O principal articulador da Sociedade União Popular foi o Pe. Amstad, que fora também a alma da Associação Riograndense de Agricultores. Contou, desde o começo, com a fiel colaboração do jornalista Hugo Metzler e dos padres Johannes Rick, Max von Lassberg, Franz Murmann e muitos outros.

A nova associação foi, em linhas gerais, uma versão católica confessional da Associação dos Agricultores. Em vez de assembléias gerais promoviam de dois em dois anos  Congressos Gerais, os “Katholikentage”. Nessas ocasiões submetia-se ao um balanço rigoroso a situação religiosa, social, econômica e cultural. Os problemas eram identificados e analisados, propostas soluções e traçadas estratégias. Os anais desses  congressos gerais dão bem uma idéia do que foram e o que significaram. Infelizmente também eles foram vitimas da Campanha de Nacionalização e da Segunda Guerra Mundial. No começo da década de 1950 houve várias tentativas de retoma-los, mas as circunstâncias profundamente alteradas fizeram com que não passassem de tentativas. 

Desde a sua fundação a Sociedade União Popular contou com uma publicação periódica própria, O “Sankt Paulusblatt”. Com suas edições mensais veiculava  pela região colonial informações, orientações, notícias ao mesmo tempo em que oferecia matérias de leitura recreativa. A publicação constitui-se numa verdadeira mina para quem quiser realizar um estudo completo do que foi a colônia alemã entre 1912 e 1960. A publicação sobrevive ainda, mas reduzida a um meio de informações apenas de interesse social e  religioso, além de matérias de recreação.

Depoimento do Pe. Rick
As mudanças ocasionadas entre os imigrantes alemães devido às circunstâncias peculiares  no sul do Brasil, foram magistralmente caracterizadas pelo Pe. Rick, um dos mais argutos lideres da colonização na primeira metade do século XX. 
  
O relativo isolamento do Hunsrück pelo ano de 1824, caracterizou também a primeira colônia alemã no rio Caí e Sinos. Não existiam nem caminhos, nem estradas. Na época nem na Europa se conhecia o telégrafo nem telefone. Apenas havia disponível um tal ou qual serviço postal. A mata estendia-se para o interior aparentemente ao infinito, despovoada à exceção das aldeias de alguns índios selvagens. Pode-se deduzir, portanto, que os alemães povoadores da mata não foram influenciados por qualquer outra circunstância. 

O clima era radicalmente diferente daquele das suas terras de origem. Subtropical, vizinhando-se por exemplo daquele da Lombardia. Excluindo os três meses  de verão muito quentes, é ameno, assemelhando-se às condições reinantes no mês de junho da Europa, com  a diferença que ocorrem muito mais dias ensolarados. A luz e o sol conferem cores vivas às flores e aos homens uma jovialidade que conduzem a uma tal ou qual superficialidade.

Para atender às necessidades corporais havia tudo em abundância uma vez superadas as dificuldades dos primeiros anos. No novo lar, portanto, havia  grandes diferenças  em relação ao antigo. Sem dúvida foi necessário um trabalho duro também aqui, até mais do que no Hunsrück. Eram, porém, recompensados  com alimentos de boa qualidade, coisa de que não raro se sentia faltava nas terras de origem. 

O atendimento às  exigências  do espírito e da alma contudo era precário. A escolaridade resumia-se  no começo  ao mínimo. Faltavam simplesmente professores  formados ou  os poucos formados não suportavam  indefinidamente as condições  miseráveis. Assim, devido à primeira das circunstâncias, o nível de instrução das crianças na escola mostrava-se em extremo precário. Encontravam-se, entretanto, entre os adultos, pessoa com escolaridade suficiente capaz de oferecer às crianças a instrução elementar mais indispensável. Durante 40 anos  não se contou com sacerdotes que falassem a língua dos imigrantes.

Exigiam-se muitos dias de viagem  para receber os sacramentos do batismo e do matrimônio. É verdade que se realizavam regularmente devoções nas quais se liam os sermões dos manuscritos do Goffine. Em certas ocasiões celebrava-se até um  culto solene. Nessas ocasiões o fabriqueiro realizava  as cerimônias no altar. Omitiam-se, como é óbvio, os atos  privativos de um sacerdote. Para essa primeira geração de imigrantes, porém, não havia  nem confissões, nem  missa, nem comunhão. A partir de 1849 chegaram então sacerdotes alemães. Com eles foi salva tanto a formação incluindo a religiosidade. Hoje florescem paróquias nos locais dos antigos assentamentos, colégios de irmãos e irmãs. 

Frente a essa constatação notam-se as seguintes mudanças em relação àquelas da terra de origem:  Para os alemães o transplante para o interior da floresta significou, apos alguns anos, uma melhora nas condições  físicas  de vida. As condições  culturais e espirituais, porém, foram muito piores e por um longo tempo. O revigoramento físico é demonstrado pela idade avançada alcançada por muitos alemães natos, embora não houvesse médicos naquela época. As populações aqui nascidas acreditam inclusive numa espécie de lei da natureza, responsável pela longevidade maior do europeu imigrado, do que a dos brasileiros de origem européia aqui nascidos. Os primeiros europeus alcançaram idades entre 70 e 90 anos e os seus descendentes de 60 a 70. É evidente e indiscutível que a primeira e a segunda geração produziu homens excepcionalmente vigorosos. Hoje a quarta  e a quinta geração mostra um teuto-brasileiro mais  franzino e menos robusto. Todavia não faltam hoje – sob o aspecto corporal – representantes legítimos  do vigor alemão. O habitante primitivo, o guarani, ostentava uma estatura pequena e uma corpo franzino. A evolução parece indicar que o teuto-brasileiro irá, neste sentido, aproximar-se dele. A superabundância  de alimentos conduz a uma alimentação exagerada. Talvez se deva ao comer demais, de modo especial o constante consumo de carne, o inegável declínio da robustez física. Será que para tal não contribui também a alimentação irregular das crianças, associada ao consumo precoce de carne?. Observei muitas vezes crianças não desmamadas servir-se de uma coxa de galinha cozida.

Conclui-se de tudo isso que, apesar das circunstâncias inteiramente diversas, os teuto-brasileiros não se diferenciavam essencialmente dos alemães  do reino, até 1870. A própria língua continuou sendo o dialeto do Hunsrück misturado com meia dúzia de palavras brasileiras. A maioria prefere ainda hoje esse dialeto ao alemão erudito. Há alguns anos quando cavalgava  por um caminho estreito na mata virgem de uma colônia nova, veio ao meu encontro um carro de bois, sem dar espaço para passar. O carroceiro só me notou no último momento. Desculpe padre eu acabei de pegar o “Brummbär” no correio e não me contive e ataquei  a leitura (Brummbär é um tabloide humorístico no dialeto do Hunsrück).

A primeira geração de alemães morreu. Os modernos meios de comunicação ocasionaram o contato com todo o mundo circundante. Nas escolas do governo e também nas escolas particulares, alemães de melhor nível começaram a insistir no aprendizado da língua do país. A participação política penetrou  nas colônias e o serviço militar obrigatório tornou-se universal. Todas essas influências  induziram uma variação pela qual os teuto-brasileiros se diferenciaram dos alemães das terras de origem Os teuto-brasileiros distinguem-se ainda hoje pela religiosidade, pela operosidade, pela parcimônia, pelo espírito caseiro, pela preocupação com a escola e igreja e pelo senso quase fanático pela ordem. É possível distinguir os assentamentos alemães  dos demais, pelas linhas retas em que costuma derrubar o mato, pelas cercas bem alinhadas, pela casa aconchegante, pelos jardins e pomares e pelas roças limpas e sem inço. Essa herança preciosa  perdura até hoje. Entrementes os teuto-brasileiros livraram-se de alguns defeitos. Os primeiros imigrantes, por exemplo, eram chegados ao consumo da cachaça. Até os anos oitenta há registros de  queixas neste sentido nos livros de tombo das igrejas. De então para cá desapareceram. Os teuto-brasileiros de hoje representam o povo mais sóbrio que eu conheço. O bêbado  passou a ser uma aparição rara, enquanto entre os italianos, ainda hoje é muito freqüente. O brasileiro de hoje oferece a cuia ao visitante. A cuia é um porongo pequeno oco e seco. Enchido com erva (ilex paraguaiensis) – popularmente  chamado de mate. Sobre ela se despeja água quente. Introduz-se uma cânula de metal, que na extremidade munida com alargamento com orifícios e na extremidade superior com um bocal. Um por um os participantes esvaziam a cuia.  Novamente cheia passa para  o seguinte. Desta maneira a cuia faz a roda como se fosse um cachimbo da paz. Os imigrantes do Hunsrück  perderam a característica de brigões. O egoísmo alemão e a desunião perduram até hoje, mas são superáveis com muito mais facilidade, porque o teuto-brasileiro de hoje é menos teimoso. Os antigos aceitavam uma palavra dura mas honesta, os jovens já não. Neste caso eles se retraem e fica difícil reconquistá-los. São assustados, quietos e impressionáveis. A rudeza sem destruir a elegância na maneira de ser dos antigos, cedeu lugar a uma aproximação da índole mais suave do brasileiro. Os antigos educavam os filhos com rigor. Essa situação mudou. O relacionamento com os filhos assumiu uma linha fortemente temperada pelo coração e pelos sentimentos. De outra parte as crianças são menos rebeldes do que os meninos tipicamente alemães. Sob este aspecto ao menos o teuto-brasileiro de hoje afasta-se, de forma menos desejável, da maneira de ser dos pioneiros.   Palavra empenhada por um alemão  já não se caracteriza pela mesma solidez de antigamente. Os primeiros imigrantes sobreviviam no meio da mata sem qualquer garantia legal. No relacionamento das pessoas e nos negócios o que importava era a palavra empenhada. Tornou-se uma máxima o dito: “Eu não engulo a minha própria palavra”. Hoje, não raro acontece que “se engole” a palavra juntamente com o documento.

A atitude em relação à terra de origem é morna  entre os que nasceram aqui. A Alemanha situa-se num distante próximo ao lendário. O homem  comum  é incapaz de imaginar com exatidão o que seja essa terra. Não está em condições de entender a sua realidade política.  Não é de se admirar já que ele também não se preocupa muito com o que acontecer aqui no país. É um bom brasileiro. Trabalha com aplicação, paga regularmente os impostos, apresenta-se  para o serviço militar, vota num candidato, mesmo que não saiba que tipo de personalidade ele é. Se perguntado, em quem votaste?, a resposta pode ser esta: “votei num certo bichão”. 

Foram postos em andamento mecanismos  associativos com a finalidade de promover os próprios interesses. Acham-se em fase de concretização e, em certos casos, em pleno funcionamento, A Sociedade União Popular, A Liga, As Caixas, novas Colonizações e Cooperativas. Reunir os alemães  para um empreendimento comum requer, entretanto, um trabalho enorme. Neste particular não se percebe nenhuma mudança em relação aos antigos  imigrantes.

A grande maioria dos alemães são colonos. Contudo nos últimos anos a fundação e o desenvolvimento  de centros urbanos, número considerável deles encaminhou-se  para o comércio e a indústria. Devido às famílias numerosas – dez filhos parece ser a media – foi preciso, de tempos em tempos, instalar novas colônias mais para o interior, iniciativas a cargo do governo ou de companhias particulares. As colonizações patrocinadas pelo governo são inter-étnicas e inter-confessionais, por isso mesmo menos procuradas, enquanto as de iniciativa privada são assentamentos homogêneos. Elementos saídos das antigas colônias  nos anos setenta,  (1870), ocuparam Lajeado, Estrela, Santa Cruz e Venâncio Aires. No começo do século XX, seguiram Sobradinho, Selbach, Serro Azul, (Cerro Largo)  Santa Rosa e Ijuí. Desta forma os alemães haviam-se aproximado do rio Uruguai. Naquela mesma época os protestantes fundaram Neu Würtenberg. (Panambi)  A colonização por alemães católicos transpôs e 1925 o rio Uruguai, entrando no estado de Santa Catarina e aproximando-se da fronteira com a Argentina. Um pouco antes, povoadores protestantes vindos da Alemanha tinham-se estabelecido em Porto Feliz, (Mondai) mais ao norte. A Sociedade União Popular fundou a colônia católica  ainda em fase de implantação. Porto Novo sede paroquial é o centro dela.  Também no futuro os colonos alemães avançarão com certeza cada vez mais sobre a mata virgem. Os membros das famílias mantem uma coesão até comovente. Os pais acompanham os filhos quando casam e se dirigem para as colônias novas. Nas colônias antigas a terra é muito cara. Torna-se assim impossível os pais adquirir aí terras para todos os filhos. Nas colônias novas conseguem adquirir terra o bastante para todos os filhos, com o dinheiro economizado, alem de sobrar ainda uma boa soma. Enquanto existir tanta mata virgem  no interior é preciso saudar como bem vindo esse tipo de ocupação pois, é a válvula de escape que impede que as colônias antigas se enfraqueçam. (Até aqui o Pe. Rick)

Pelo que se pode concluir por essas páginas, os imigrantes alemães e seus descendentes cumpriram, e ainda estão cumprindo uma importante missão no cenário nacional brasileiro. Emigraram das então empobrecidas regiões  da Europa central com a esperança de edificar em terras brasileiras um futuro mais promissor para si próprios e seus descendentes. O Brasil lhes pôs à disposição as vastas áreas cobertas de florestas que cobriam em grande parte os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Essa região de fronteira, pouco habitada, pedia o mais rapidamente possível uma ocupação maciça e permanente. Foi para lá que se encaminharam os imigrantes alemães a partir de 1824. Enfrentando enormes dificuldades lançaram os fundamentos de um modelo agrário até então desconhecido no Brasil: a pequena propriedade familiar com o objetivo para a policultura de subsistência. 

Vencidos os desafios do começo, os imigrantes organizaram-se em comunidades com suas igrejas, escolas, cemitérios, casas de comércio, artesanatos, hospitais e locais de lazer. Depois de uma fase de sobrevivência, consolidaram-se e finalmente progrediram e prosperaram. Contavam na escola  como a responsável maior pelo nível de formação mínimo exigido de um cidadão e na igreja como a instituição que preservou  a religiosidade  na sua essência. 

No começo do século vinte quando as comunidades se contavam aos milhares, quando as fronteiras de colonização entravam nas reservas de florestas virgens na Serra, Missões e Alto Uruguai, foi preciso pensar em organizações mais abrangente. Surgiram então as grandes organizações: primeiro A Associação Rio-grandense de Agricultores, depois, em seu lugar, a Liga União Colonial, os Comitatti, e a Sociedade União Popular. Nas assembléias gerais dessas Associações analisavam-se as questões de interesse geral dos colonos, acertavam-se sugestões e soluções e acertavam-se estratégias.

A resultante humana dessa fórmula peculiar que os imigrantes alemães encontraram  resultou no cidadão também peculiar que muitos convencionam chamar “Teuto-Brasileiro”. Quem viaja pelos estados do sul do Brasil, Rio grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, especialmente na porção Central, Norte e  Oeste, encontra esse cidadão perfeitamente integrado na vida nacional, cultivando ainda os valores e tradições dos seus antepassados, firmemente ancorado na sua comunidade e, não raro na comunicação diária utilizando-se dos dialetos oriundos das províncias da Alemanha de origem, visivelmente adaptados à língua e às condições locais.