Bicentenário da Imigração - 26

Modelos de Colonização

História da colonização dos estados do sul do Brasil, a partir de 1824,  por imigrantes europeus: alemães, italianos, poloneses e outros, oferece ao pesquisador uma série de facetas importantes e interessantes a serem analisadas. Há toda uma questão relativa ao próprio potencial geográfico das regiões a eles destinadas, às questões relativas à ocupação, à posse e legitimação das terras, à identidade e idoneidade dos colonizadores, etc. Além desses e de outros há um ângulo nesta história que normalmente  não merece muito destaque e que é possível identificar nas linhas e entrelinhas tanto da documentação oficial como privada, relativa à colonização. Refiro-me  à colonização como instrumento de política étnica, cultural e religiosa. 

Partindo desse viés como base é possível distinguir vários modelos. Coincidem em linhas gerais com os objetivos dos diversos agentes colonizadores presentes  em todas as frentes pioneiras: o poder público imperial ou republicano federal, provincial ou do estado e municipal, mais as colonizações empreendidas por grandes organizações associativas e as colonizações tocadas pela iniciativa privada, empresas ou pessoas físicas. No anexo de nº 5 da obra comemorativa do primeiro centenário da Imigração Alemã no Rio Grande do Sul, encontra-se uma lista dos colonizadores  até o começo de 1920. Constam aí 17 colonizações promovidas pelo governo imperial, cinco pelo governo provincial, sete pelo governo federal, 16 pelo governo estadual, três por governos municipais, 27 por empresas de colonização, 186 por pessoas físicas e duas pela Associação Riograndense de Agricultores. 

Começando pelas 17 colônias promovidas pela governo imperial, entre as quais salientam-se São Leopoldo, Três Forquilhas, São Pedro de Alcântara  e Feliz para os imigrantes alemães e as quatro colônias para imigrantes italianos: Caxias, Garibaldi, Bento Gonçalves e Silveira Martins, observa-se um perfil mais ou menos comum. Os assentamentos foram feitos em glebas do governo imperial e concretizaram-se  de acordo com os objetivos originais do projeto colonizador, isto é, povoar as terras públicas com imigrantes europeus não lusos em pequenas propriedades de menos de 100 hectares. O que realmente interessava era implantar um novo modelo fundiário combinado com uma produção agrícola diversificada tendo a família como base. Não houve,  pelo menos ao que parece, uma preocupação explícita em promover assentamentos étnicos e confessionais identificados. As circunstâncias da época e a própria natureza do processo, somada à procedência dos imigrantes da Europa, determinaram que fossem etnicamente  caracterizados. No caso dos imigrantes alemães o fator confessional não foi determinante, a não ser em alguns casos isolados. Católicos e protestantes costumavam ter livre acesso aos lotes  nas frentes de colonização. Uma exceção aconteceu com a colonização de Tupandi, antigo 8º distrito de Montenegro. Juca Inácio Teixeira dono das terras, confiou a corretagem de uma parte de sua estância ao longo do arroio Salvador a João Heck e João Kuhn de São José do Hortênsio. Como católicos fervorosos levaram para a nova fronteira de colonização somente alemães católicos. A situação consolidou-se com a  implantação da paróquia e a nomeação do Pe. Mathias Pfluger, um jesuíta bávaro que a administrou durante 30 anos. Casos desses, porém, foram exceções. A dinâmica normal determinou a organização de comunidades católicas e protestantes nas mesmas linhas ou picadas, geralmente sem maiores problemas de convivência. O mesmo se deu a partir de 1875 com as quatro colônias italianas acima citadas. A diferença entre elas e as alemãs foi o fato de não terem imigrado italianos protestantes, por isso  a coincidência do fator étnico e confessional não tem nada a ver com um pré-requisito exigido pelos agentes de colonização. 

O que se acaba de afirmar  das colônias promovidas pelo governo imperial, em linhas gerais, vale também para as colônias  de iniciativa provincial: Santa Cruz, Agudo, Nova Petrópolis, Monte Alverne e São Feliciano.

O fator étnico e confessional tão pouco aparece como determinante na maioria dos  assentamentos  promovidos pelo governo federal e estadual a partir da implantação da República. Houve, porém, casos em que o fator étnico fez parte da política de colonização. O exemplo mais emblemático foi a colonização de Santa Rosa e arredores, começada em 1915 pelo governo estadual.

Noventa anos já se haviam passado desde o início da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Toda a faixa de terras de em torno de 300 quilômetros de comprimento  e de  e de 50 a 100 de largura, começando por Taquara do Mundo Novo para terminar em Santa Maria da Boca do Monte, fora ocupada por descendentes de alemães. Paralelamente as colônias italianas de Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves, haviam-se estendido pelo planalto até Passo Fundo, Erechim e Lagoa Vermelha. Em meio às duas colonizações maiores, da alemã e italiana, ou na periferia delas, instalaram-se comunidades de poloneses. Uma avaliação superficial dava a impressão que regiões da Alemanha, Áustria ou Suíça, tinham sido transplantadas para o Sinos, Caí, Pardo e Jacuí. Da mesma forma  Caxias, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Nova Prata, Guaporé, Muçum, Marau, no planalto e Silveira Martins perto de Santa Maria, se pareciam como réplicas de regiões do norte da Itália e Guarani das Missões um enclave polonês.

De modo especial os descendentes dos imigrantes alemães  concentravam-se em regiões exclusivas. Destacavam-se na paisagem humana do Rio Grande do Sul pela organização comunitária, pela laboriosidade, pelo apego às tradições, pela língua que falavam, pela alta escolaridade, pelo progresso econômico, pela intensa vida associativa. Davam assim, para não poucos, a falsa impressão de enclaves étnicos renitentes à assimilação. Entre todos esses elementos um sobressaía de modo especial. Sua taxa de alfabetização passava dos 90% quando a média nacional andava pelos 40%. A resposta encontra-se nas escolas criadas, administradas e controladas pelas comunidades, tanto sob o aspecto administrativo quanto curricular e a própria filosofia pedagógica e métodos praticados pelos professores. O resultado final desse estado de coisas foi uma população na sua quase totalidade alfabetizada, dada à leitura de jornais, almanaques, periódicos e livros, gozando de um elevado nível de formação e informação, uma população em condições de emitir julgamentos de valor sobre questões políticas, econômicas, culturais e religiosas. 

Se de um lado esse estado de coisas costumava ser visto como algo de positivo até o começo da primeira guerra mundial, para outros podia parecer um tanto estranho. Mas, de qualquer forma, até aquele momento, não causara maior problema na convivência com os demais grupos étnicos. Cá e lá podiam ser ouvidas vozes de alerta chamando a atenção para o fato como uma anomalia e os mais exaltados falavam em “perigo alemão”. Entende-se que ficava difícil para um luso-brasileiro acreditar que pessoas cultivando uma língua e costumes estranhos, não se comunicando ou comunicando-se mal em português, merecessem ser aceitos como cidadãos brasileiros no sentido pleno do termo. 

Esse panorama somado ao fato de que, a partir da década de 1920, começaram a circular as vozes em favor de um nacionalismo crescente que deveria ter como base um Estado fortemente centralizado, impondo a “brasilidade” como objetivo, tornavam-se cada vez mais evidentes os sinais apontando para políticas e ações públicas no sentido de diminuir e, finalmente, apagar as diferenças étnicas. Mas foi a partir da “Semana de Arte Moderna” em São Paulo em 1922 que o “abrasileiramento” transformou-se em bandeira do nacionalismo e os “alienígenas” como um estorvo a ser neutralizado. 

Entende-se assim que a partir de então as estratégias nas colonizações controladas pelo governo, além dos critérios geoeconômicos, entrassem também critérios de natureza étnica. Significa em outras palavras que os novos assentamentos deveriam ser planejados e implantados, misturando os elementos das diversas etnias. Partia-se da ilusão de que a simples justaposição física levaria a assimilação mútua e em uma, ou no máximo, duas gerações as diferenças desaparecessem normalmente. A experiência demonstrou que não era bem essa a lógica que orientava os migrantes a escolherem as fronteiras de colonização. 

Nessas colonizações predominou, via de regra, o povoamento étnico levando alemães, italianos, poloneses e outros a organizarem suas comunidades em  linhas e picadas etnicamente definidas. As características dos povoadores frustrou  assim, de alguma maneira, as intenções do governo estadual. No atacado ficava a impressão de uma região étnica e religiosamente mista, fato que não se verificava no varejo da formação das comunidades.

Um modelo oposto de colonização foi patrocinado pela Associação Riograndense de Agricultores. Fundada em 1899 em Santa Catarina da Feliz. Essa organização foi, na verdade, um ambicioso projeto  de  desenvolvimento econômico e promoção humana, pensado de forma  interconfessional e inter-étnica. Embora surgida numa assembléia geral dos católicos e seu mentor principal ter sido o padre jesuíta Theodor Amstad, pelos estatutos estava aberta  à filiação de protestantes e aos integrantes de outras etnias representadas no Estado. Entre os muitos e grandes desafios que a Associação teve que enfrentar, figurava a necessidade crônica de providenciar por novos assentamentos. A situação dos excedentes da antiga região colonial chegara a um ponto tal que foi preciso partir para um empreendimento de grandes proporções, fora da região original destinada aos imigrantes. A opção foi pela região das Missões e Alto Uruguai, com o seu ponto de partida em Serro Azul, atual Cerro Largo, então sob a jurisdição do município de São Luiz Gonzaga.

Na assembleia anual da Associação dos Agricultores em 1902, estabeleceram-se alguns princípios a serem observados pelos povoadores de novas fronteiras de colonização. Para cada distrito foram nomeadas uma ou mais pessoas encarregadas para orientar os candidatos à emigração. Esse tipo de providência tinha suas razões. Tratava-se de um empreendimento de grande envergadura. Os candidatos às novas fronteiras  de colonização eram, na sua totalidade, filhos de agricultores, simples e confiantes, movidos por uma enorme vontade de construir o futuro em terras virgens e não poucos animados por um tal ou qual espírito de aventura. Compreende-se assim que se formara um clima propício para que todo o tipo de espertalhões tentasse aproveitar-se da situação. Como é comum em tais circunstâncias, apresentaram-se aqueles que ofereciam terras quase de graça, outros vendiam terras inexistentes, outros ainda vendiam a dois ou mais compradores o mesmo lote. Prometiam vantagens e  facilidades impossíveis e os desavisados deixavam-se enganar.

Mais duas recomendações foram acrescentadas. Em primeiro lugar, insistiu-se que os colonizadores formassem grupos maiores de pessoas conhecidas entre si, evitando a dispersão entre colonos estranhos. Essa providência facilitaria em muito o começo da nova vida em situações  muitas vezes difíceis e precárias e, ao mesmo tempo,  diminuía o tempo necessário para  formação de comunidades bem integradas. 

A resolução de nº 9 da assembleia geral de 1902, previa também assentamentos em comunidades separadas por confissão religiosa e identidade étnica. “A assembleia geral previu em colonizações, bem conduzidas, a garantia do bem-estar material e espiritual das futuras gerações dos excedentes gerados nas áreas antigas da colonização. Ao tratar-se de assentamentos novos apontou-se para o desejo generalizado que se sugerisse o critério da separação de acordo com  confissão religiosa”  e identidade étnica - (Einheitskolonien).

A justificativa para tomar o critério confessional como determinante na fundação de colônias, explica-se  pelos inconvenientes que resultavam na época para a prática pastoral, tanto católica quanto protestante. Estava-se a 50 ano do Concílio Vaticano II, numa época, portanto, em que uma série de barreiras canônicas separavam as duas confissões. O casamento de um católico com um protestante ou vice-versa, acarretava numa série de inconvenientes e obrigava o cônjuge da outra confissão  a sujeitar-se a cláusulas canônicas inegociáveis. O católico era proibido servir de padrinho num batizado de protestante assim como convidar um protestante para ser o padrinho num batizado católico. Num casamento misto o cônjuge protestante era obrigado a prometer que os filhos seriam batizados e educados na Igreja Católica e não impedir que a parte católica praticasse a sua religião, o que significava na pratica a renúncia da parte protestante à sua confissão para os descendentes. Em muitas dessas situações as promessas não passavam de meras formalidades e se a parte católica contraía matrimônio com um protestante sem se sujeitar à regra canônica, passava ser excluída da Igreja. Tenho na minha família uma caso exemplar dessa situação. Um tio bisavô  casou com uma protestante e não se sujeitou às exigências canônicas. Foi por isso considerado herético e a sua descendência, são hoje os protestantes com o meu sobrenome ou um pouco alterado de Rambor our Rambow. Não faltam depoimentos de curas de alma católicos referindo-se aos casamentos mistos com uma praga e um dos grandes problemas na sua atividade pastoral. Evidentemente essas preocupações estão superadas e podem causar estranheza a quem não se situa nas circunstâncias de então. De qualquer forma, sobre esse pano de fundo, as orientações adotadas  nas colonizações da primeira metade do século XX, fazem sentido. 

A experiência feita em Serro Azul serviu de estímulo para ser reeditada na colonização de Santo Cristo. A respeito dessa experiência cito o comentário do Pe. Balduino Rambo:

Não demorou e ficou claro que não era preciso colonizar somente de acordo com as confissões religiosas como também das nacionalidades. As colônias  formadas por alemães, italianos e poloneses não conseguiram formar comunidades organizadas. Em muitos casos o segmento mais fraco partia para outras regiões com graves consequências para o desenvolvimento econômico. Profetas tranquilamente  acomodados  em seus gabinetes, acusaram os velhos jesuítas de terem impedido a “nacionalização” dos descendentes de alemães em suas colônias fechadas. Mas esses homens encanecidos na pastoral colonial sabiam da própria experiência para onde conduz a teoria da mistura nacionalista. (Rambo, Balduino, Johannes Rick, SJ, Sonderdruck aus der Zeitschrift “Montfort”, Heft ½, 1958)

As experiências de Serro Azul e Santo Cristo serviram mais tarde de inspiração para a colonização de Porto Novo (Itapiranga) e Porto Feliz (Mondai) e San Alberto e Puerto Rico no norte da Argentina. Nos dois casos foi adotado o modelo étnico combinado com o confessional. Porto Novo desenvolveu-se como uma colonização exclusivamente de alemães católicos e Porto Feliz de alemães protestantes. A mais emblemática foi a de Porto Novo, devido em primeiro lugar ao Pe. Johannes Rick, que moldou a Colônia à imagem do velho  catolicismo da Restauração Católica. Preservou até perto dos nossos dias uma fisionomia exclusivamente alemã e católica. 

Para o observador de hoje, valer-se da confissão religiosa e identidade étnica como critério para orientar assentamentos de agricultores, parecerá no mínimo estranho, sem cabimento e inaceitável. Nas primeiras décadas do século XX, entretanto, podia ser considerado normal ou pelo menos explicável. A prática pastoral ensinara que  comunidades identificadas pela confissão facilitavam o atendimento religioso. Ao mesmo tempo reduzia em muito o risco de desencontros no dia a dia do convívio entre confissões diferentes, de modo especial em pontos críticos como casamentos mistos e padrinhos de batizados. De outra parte a identificação étnica, que na época implicava no uso quotidiano de línguas diferentes e usos e costumes também diversos, facilitava a formação de comunidades e a própria convivência comunal.

Merece destaque o fato de que a região das Missões e Alto Uruguai ter sido fruto em larga escala da migração interna. Para lá confluíram contingentes significativos de todas as vertentes étnicas importantes que participaram da moldagem do perfil humano hoje presente no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XIX vivia na região uma população esparsa e dispersa de remanescentes do tempo das Missões e posteriores. Eram descendentes dos bandeirantes apresadores de indígenas, aventureiros e comerciantes espanhóis e lusos, mestiços “missioneiros” e fragmentos das tribos de índios dispersos pelos campos e matas adjacentes. 

Instalou-se então, a partir da segunda metade do século XIX a ocupação e colonização definitiva de toda a região. Para lá confluíram alemães, italianos, poloneses, teuto-russos, judeus, etc. Nas antigas áreas de colonização nas bacias do Sinos, Caí, Taquari, Antas, Pardo, Jacuí, Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Veranópolis e demais localidades daquela região do planalto, predominara o povoamento etnicamente identificado. Nas Missões e no Alto Uruguai todas essas vertentes  vão encontrar-se aos poucos, pondo em marcha os mais diversos mecanismos de contato, de intercâmbio e de progressiva integração. A partir de então a região transformou-se num autêntico laboratório de integração étnica, cultural, social, econômica e religiosa. A vizinhança geográfica, a mútua aceitação, o intercâmbio, a assimilação e aculturação mútua, entretanto, não fez esquecer as raízes históricas da população. Mesmo que hoje não se observem mais sinais importantes de rejeição e mesmo que a língua, a economia, a visão social, as concepções  religiosas sinalizem para uma unidade étnico-cultural, verifica-se contudo um sadio e entusiástico retorno às raízes e uma preocupação generalizada de, na unidade, preservar e cultivar as diferenças. São exemplos a “casas alemãs”, “polonesas” e “italianas”  em Santo Ângelo. 

Assim como a região das Missões e do Alto Uruguai foi e continua sendo um magnífico laboratório que permite observar de como acontecem os encontros inter-étnicos de uma maneira mais genérica, oferece também material abundante para os estudiosos interessados no mundo das ideias que aí se encontraram. Uma avaliação objetiva dessa problemática seria impossível se o historiador não estivesse de posse de uma compreensão mínima do universo da cosmovisão e do imaginário indígena. A ele sobrepôs-se, e de alguma forma, mesclou-se a proposta missionária das reduções jesuíticas de promoção humana do indígena, inserindo-o numa civilização nos moldes do cristianismo ibérico e de uma organização social inspirada no solidarismo. Oposta, sem dúvida, foram as motivações que levaram os paulistas e espanhóis à região, depois do banimento dos missionários e a dispersão dos indígenas. 

A partir da colonização definitiva que começou na segunda metade do século XIX,  responsável pela fisionomia étnica e cultural de hoje da Região, é possível detectar, sem maior esforço os outros modelos. O projeto colonizador de Cerro Largo e Santo Cristo foi orientado pelo princípio do solidarismo comunitário, tendo como lema o princípio pregado pela Sagrada Escritura “Viribus Unitis – Somando forças”, orientado pela separação das comunidades pelo critério étnico e confessional. Nas colônias patrocinadas pelo Estado prevaleceu a intenção de induzir e acelerar o caldeamento étnico e cultural e estimular a formação de novos polos de produção agrícola. As empresas colonizadoras privadas e colonizadores individuais, orientavam-se por uma filosofia bem mais prosaica: fazer negócios com as terras. 

Mas há um outro aspecto a ser considerado. A região das Missões e do Alto Uruguai  de 1880 a 1950, serviu de desafogo para a constante superpopulação das regiões coloniais mais antigas. O modelo de pequenos e médios estabelecimentos rurais não demorou por mostrar seus efeitos também nessa região. Os excedentes começaram, a partir de 1920, a procurar terras fora dela e desencadearam  um fluxo migratória sempre mais acelerado para o Centro e o Oeste de Santa Catarina, para o Oeste do Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e mais para o norte, Acre, Rondônia e até para Roraima, Amapá, Centro Oeste, Maranhão e Bahia. Paralelamente ocorreram  movimentos de organização interna  de natureza econômica como a implantação de cooperativas de produção, comercialização, consumo e crédito, iniciativas para levar a efeito feiras e festas como Festa Nacional da Soja em Santa Rosa, a Festa Nacional do Milho em Santo Ângelo, movimentos de reorganização social e religiosa, o retorno às raízes e por aí vai. 

Bicentenário da Imigração - 25

Contribuições dos imigrantes alemães

Neste capítulo pretendo resgatar algumas das principais contribuições dos imigrantes vindos da Europa Central e do Norte, que começaram a fixar-se no Brasil a partir da década de 1820. Na maioria das ocasiões, quando o assunto é tratado, concentra-se a atenção no projeto colonizador intencionado pelas autoridades brasileiras e confiado a imigrantes europeus não ibéricos. Essa imigração imprimiu contornos inconfundíveis em áreas significativas nos estados do sul. Com o assentamento dos agricultores alemães no rio Grande do Sul desde 1824, no leste de Santa Catarina a partir de 1850 e, desde 1870 poloneses e 1875 italianos, algo de inédito foi implantado no Pais. 

Entre as muitas contribuições quero destacar as seguintes: o novo modelo colonizador, a organização comunal, a educação, a religiosidade, o trabalho, o associativismo, o teuto-brasileirismo de hoje. 

Novo  Modelo colonizador
Percorrendo as áreas em que predominou e ainda predomina a presença alemã e sua descendência, constata-se que eles ostentam peculiaridades não encontráveis nas demais regiões do Brasil. Destacam-se, neste sentido,  de maneira mais evidente, no Rio Grande do Sul, as bacias fluviais do Sinos,  Cai, Taquari,  Pardo,  Jacuí, da região das Missões e do Alto Uruguai, além do leste  e do centro oeste de Santa Catarina e o oeste do Paraná. Transita-se por centenas e milhares de pequenos núcleos coloniais, vilas e pequenas cidades. Centros urbanos maiores formam as sedes dos municípios. Alguns deles, localizados em pontos estratégicos, evoluíram para polos regionais de importância crescente. Apopulação viveu e, em parte, vive ainda hoje, da agricultura fundamentada na pequena propriedade rural familiar. 

Os estabelecimentos rurais sobressaem todos por um perfil comum. Constituem-se em micro empresas familiares de produção agrícola. Resultaram historicamente de uma característica colonização de povoamento. Sob esse prisma e, sob muitos outros, inauguraram no Pais um modelo de ocupação territorial e um paradigma inédito de organização social e de atividade econômica. Comparando-os com o paradigma que orientou os grandes ciclos econômicos do algodão, da cana, da mineração, do café e do gado com seus latifúndios, suas fazendas, suas estâncias e sua escravaria, impõe-se a pequena propriedade familiar, dedicada à agricultura diversificada. 

Examinando o projeto colonizador, tanto da parte das autoridades brasileiras, quanto da parte dos imigrantes em foco, subjaz a ele uma filosofia de povoamento que conferiu à sociedade daí resultante, características que a distinguiam do restante do Pais.

Os imigrantes alemães  e os demais  grupos procedentes da Europa Central e do Norte encaminharam-se para o Novo Mundo, no caso para o Brasil, com o intuito de, como agricultores, aí se estabelecerem em caráter permanente, armar uma tenda definitiva  numa nova pátria, enfim, colocar as bases para que seus filhos e netos pudessem construir o futuro que as terras de origem já não tinham condições de oferecer. 

A mentalidade com que os espanhóis e portugueses desembarcaram na América ficou explícita na declaração de um dos conquistadores espanhóis: “Eu vim pelo ouro e não para lavrar a terra como um camponês!” Pois os alemães, italianos, poloneses e demais imigrantes vindos da Europa Central e do Norte vieram como camponeses, lavrar a terra,  organizar um lar seguro e uma Querência promissora para si e para os seus. Chegaram para, com todas as suas potencialidades e toda a sua obstinação de camponeses, contribuir com a edificação de uma nova pátria. Em relação à antiga, politicamente falando, tinham “queimado os navios” ou “cruzado o Rubicão.” Não desembarcaram em companhia de sócios de empreitada, para enriquecer  o mais rapidamente possível, “fazer o seu Brasil” e retornar abastados para as terras de origem. 

Esses imigrantes ao se estabelecerem como agricultores, não apenas obedeceram a uma tarefa que eles próprios se tinham imposto mas, simultaneamente, atenderam ao convite das autoridades brasileiras que se propunham incorporar na economia nacional produtiva as áreas de florestas devolutas do sul e garantir as fronteiras por meio de um povoamento sistemático e definitivo .

A intenção de que os imigrantes e seus descendentes se dedicassem exclusivamente à agricultura transformar-se-ia, a partir do final do século XIX, num dos primeiros motivos de desencontro entre eles e os luso-brasileiros. O crescimento numérico, a expansão e a dispersão geográfica, somados à crescente vontade de participação ativa no comércio, na indústria, nas profissões liberais, na política e na burocracia e administração pública, serviu de alerta para o segmento luso, detentor exclusivo do controle político-administrativo local, regional e nacional. Difundiu-se aos poucos uma tal ou qual preocupação por um suposto “perigo alemão”. Por motivos óbvios os momentos de maior efervescência que azedaram seriamente as relações mútuas entre luso-brasileiros e teuto-brasileiros, aconteceram durante as duas guerras mundiais, mais na segunda do que na primeira. 

A organização comunal.
Com a imigração alemã foi inaugurado no pais um novo paradigma de organização social e comunitária. A natureza mesma da colonização por povoamento e a tradição multissecular dos imigrantes convergiam para a formação de comunidades rurais bem integradas e sólidas. As dificuldades iniciais causadas por um contexto geográfico hostil, pelo entorno social e cultural luso-brasileiro, pela difícil comunicação com as autoridades em todos os  níveis, pelas promessas em parte não cumpridas, fizeram da cooperação comunal uma condição de sobrevivência no início, para a consolidação da colonização e, finalmente, para o êxito do empreendimento.

Na base dessa organização comunal encontramos os lotes coloniais de proporções modestas, considerando o restante do país, cerca de 70 hectares no começo e entre 25 a 30 mais tarde. Sobre essa base desenvolveu-se a colonização fundamentada na pequena propriedade familiar. A família funcionou como micro empresa ou micro unidade de produção agrícola. As unidades familiares organizaram-se em comunidades, delimitadas geograficamente por um vale, uma planície, uma várzea ou um planalto. Essas comunidades organizadas em forma de “linhas”, “picadas” ou “lajeados” formavam a base dessa colonização de povoamento. Cada comunidade  dessas formava uma unidade até certo ponto autônoma e auto suficiente pois, cada qual dispunha de uma infraestrutura mínima para garantir-lhe uma relativa independência, como ferrarias, sapatarias, carpintarias, alfaiatarias, moinhos. Em muitas delas havia alguém que entendia de doenças, remédios e tratamentos mais simples. As escolas, as igrejas, os cemitérios, as casas de comércio, as sociedades, os clubes  e associações, garantiam a coesão e a integração comunal. 

A autonomia de meios e estrutura asseguravam as condições  mínimas para uma relativa auto suficiência. É evidente que não se pretende atribuir a essas comunidades características de autonomia total. O que se quer afirmar é que os problemas, os desafios e os empreendimentos comuns, tinham perfeitas condições de gerenciamento pela própria comunidade. Cada uma delas  representava, por assim dizer, uma mini-república com sua igreja, sua escola, seu comércio local, sua produção agrícola e artesanal e dispondo de meios mínimos de governo e controle interno. Resumindo pode-se dizer que elas representavam uma réplica das aldeias das terras de origem adaptadas às circunstâncias locais. O que aconteceu foi um tal ou qual transplante  da Europa para o Brasil, sem que  houvesse uma ruptura, menos ainda uma desagregação cultural mais profunda. 

A estrutura implantada nessas comunidades, as estratégias postas a funcionar e o gerenciamento  comunal foram decisivos na construção desse projeto de colonização.

Escola e educação
Conscientes de que os interesses de uma comunidade pressupunham um nível cultural mínimo, os colonos alemães se uniram, por conta e risco próprios, a criarem os meios necessários. Assim, já na primeira década da imigração, implantaram as primeiras escolas, antes mesmo de construírem capelas e igrejas. No começo as escolas serviam também para a celebração dos cultos e missas aos domingos. Multiplicaram-se assim as “escolas-capela” tão características das primeiras décadas. Para esses imigrantes a escola e a educação figuravam entre os interesses prioritários ao se instalar uma nova picada nas fronteiras de colonização. A fim de entender  o valor dado à escola pelos colonizadores alemães, é preciso prestar atenção às várias funções que lhe cabiam.

Esperava-se, em primeiro lugar, que o aluno aprendesse a ler, a escrever e a apropriar-se das noções básicas do cálculo. Na escola os filhos dos colonos municiavam-se com os instrumentos essenciais para estabelecerem as relações intra e inter comunais e, ao mesmo tempo, administrar com segurança as propriedades e os negócios da família. 

Em segundo lugar a escola fazia o papel de instrumento  permanente da preservação dos valores  religiosos tanto entre os católicos quanto entre os protestantes. Como até 1850 a assistência religiosa prestada pelos pastores protestantes foi precária e entre os católicos inexistente, a escola supria os ensinamentos religiosos essenciais, prevenindo desta forma, uma perigosa decadência. E, de fato, a escola assegurou um nível mínimo à religiosidade e, fez com que não acontecesse uma degeneração mais séria, até que a assistência pastoral se tornasse regular e qualificada a partir de 1850, com a vinda de jesuítas para o atendimento aos católicos e os pastores ordenados para os protestantes. As associações e as diretorias das escolas responsáveis pela educação escolar, serviram de modelo para os sacerdotes católicos e os pastores protestantes organizarem as paróquias. Estabeleceu-se, desta forma uma íntima colaboração e uma complementariedade mútua entre a comunidade e diretoria da escola e a comunidade e diretoria da igreja, entre o professor e o sacerdote, entre o professor e pastor.

Em terceiro lugar a escola foi importante para a preservação dos valores culturais como a língua e a maneira de ser alemães.

Em quarto lugar a escola foi a incentivadora do despertar da consciência da cidadania brasileira. Tornara-se lugar comum, aceito sem a menor preocupação critica, que essa escola se transformara num dos focos mais renitentes à assimilação do imigrante alemão na sociedade nacional. Entretanto muitos documentos, testemunhos, declarações de princípios  e a própria maneira de proceder dos agentes da educação, apontam na direção oposta. Quando da implantação do currículo comum para as escolas católicas no começo do século XX, constavam nele como disciplinas obrigatórias o português, a história e a geografia do Brasil. 

A Religiosidade
Paralelamente  à preocupação com a escola e a educação, os colonos alemães e italianos cultivavam uma sincera e profunda religiosidade, que perpassava todos os momentos do seu quotidiano. Os sinos das igreja e capelas convidavam  para um momento de oração pela manhã e à hora do meio dia.  No entardecer chamavam para o “ângelus.” Sem constrangimento os colonos se católicos se descobriam, seguravam o cabo da enxada e cansados do trabalho do dia, recitavam três Ave Marias. Não poucos, principalmente mulheres e crianças, ajoelhavam-se sobre a terra fecunda que o arado acabara de sulcar. As orações da noite costumavam ser o último ato do dia. 

Para essa gente, o trabalho e a oração formavam uma simbiose perfeita. Uma dava sentido à outra. O trabalho sem a oração assumia as feições de um castigo. A oração sem o trabalho transformava-se num ato vazio e sem sentido. Fizeram do lema “reza e trabalha” o norte de suas vidas. 

Sendo assim, é evidente que a missa ou o culto aos domingos e dias santificados, assumisse um significado todo especial. Nessas ocasiões recebiam-se os sacramentos, revigorava-se  a fé e, ao mesmo tempo, renovava-se o ânimo para enfrentar mais uma semana de luta e de trabalho. Nas sua prédicas e nas suas homilias, sacerdotes e pastores encarregavam-se de manter acesa a chama da fé, recordar os princípios doutrinários e chamar a atenção para as  obrigações morais e disciplinares. 

Até um tempo que não vai muito longe, a igreja, além de propiciar  encontros estritamente religiosos, oferecia o espaço para reuniões comunitárias. Antes e depois dos  atos religiosos formais, acontecia o convívio comunitário tendo como foco preocupações profanas, trocas de ideias e experiências e até realização de negócios.

A religião perpassava todos os acontecimentos e neles, não raro, se confundia, ao ponto de se tornar difícil estabelecer a fronteira entre o profano e o sagrado. Na verdade, a religião e suas manifestações individuais e coletivas, representavam uma das faces e, as atividades profanas, a outra face da mesma realidade: a vida do colono com suas lutas, alegrias, sofrimentos, sucessos e frustrações. E como produto final forjou  uma estirpe de homens e mulheres dotados de fé inabalável, de uma indômita vontade de progredir, levando na maioria dos casos uma vida frugal, mas condimentada com frequentes intervalos, em que a alegria de viver irrompia com vigor e espontaneidade. 

Nas proximidades das igrejas encontrava-se invariavelmente o cemitério. Nesse local, envolto numa atmosfera de solene tranquilidade, a memória e a veneração dos antepassados assumia as proporções do sagrado. Em longas fileiras, em túmulos bem cuidados, descansavam as gerações de homens e mulheres que haviam precedido no vitorioso empreendimento colonizador. Com suas virtudes, com seu  amor à família, sua dedicação constante, com seu trabalho duro, sua perseverança e obstinação, colocaram as pedras do fundamento de uma modalidade de civilização nova em terras brasileiras. Foram autênticos pioneiros, protagonistas de uma saga heróica, cuja história até hoje só foi contada em fragmentos. O anonimato em que costumavam viver e lutar, avessos ao barulho e à retórica vazia, fez com que levassem para a sepultura as provas do heroísmo do quotidiano e os lances, por vezes épicos, que cá e lá marcaram a aparente singeleza dessa história. 

O que essa gente pensava de Deus, do mundo e dos homens, encontra-se perpetuado em fragmentos e expresso nos epitáfios entalhados nas cruzes de seus túmulos.

O exemplo dos antepassados em todas as dimensões  existenciais motivava essa veneração. Não se tratava de um culto apenas nostálgico. Significava, isto sim, uma tomada de posição, uma reafirmação de sua história pessoal e um juramento de fidelidade às raízes. 

O trabalho
Se  a organização comunal, se a escola e a educação e sua prática foram marcas registradas dos imigrantes alemães, um outro fator igualmente decisivo para o êxito  do projeto colonizador foi o trabalho. O trabalho aqui entendido no seu sentido mais amplo. Os imigrantes, tanto os alemães quanto italianos e outros, não refugavam tarefa de espécie alguma, quando se tratava de conquistar o sucesso e melhorar as condições de vida. Porque o trabalho se constituía na condição sem a qual o êxito e o progresso estariam comprometidos. Ele se transformou num dos valores mais caros, embora trajasse muitas vezes as  roupas da dureza, da persistência, da luta sem trégua. Entre os colonizadores a execução de qualquer tipo de trabalho, por mais ingrato, humilde e desprezível que pudesse parecer, transformava-se em motivo de orgulho. A certeza de que o trabalho significava a via obrigatória rumo ao sucesso, fez dele motivo de satisfação, de enobrecimento e lhe conferia as características de um postulado ético e de um mandamento de vida. Ao trabalhador incansável, à mulher atarefada desde o amanhecer até a noite, prometia-se  a prosperidade, assegurava-se o respeito dos homens e a certeza das bênçãos dos céus.

Neste ponto os imigrantes alemães, italianos e poloneses e outros distinguiram-se em muito dos seus vizinhos lusos. Para esses últimos o trabalho braçal, as lides domésticas e  similares eram desprezíveis. Quem se prezava tratava de ficar longe delas. Para executá-las recorriam aos escravos ou peões. O senhor do engenho não comprometia as mãos operando a parafernália destinada à fabricação do açúcar. O estancieiro não criava bolhas nas mãos plantando postes de cerca e não se arriscava rasgá-las esticando arame farpado. Ficava à distancia. Ele supervisionava, o capataz comandava e os peões  pegavam no pesado.

Não fora essa a concepção e a valorização do trabalho, os imigrantes com certeza teriam naufragado em meio aos inúmeros e ingentes obstáculos que encontraram. Tomando ao pé da letra o mandamento bíblico: “comerás  o pão de cada dia com o suor do teu rosto”, enfrentaram a floresta prenhe de surpresas. E o resultado não se fez esperar. Em questão de poucas décadas, a paisagem que até então acoitara foragidos e bandoleiros, abrigara tribos indígenas dispersas e servira de covil para as feras, cedera lugar a centenas  de núcleos agrícolas nos quais labutava, de sol a sol, uma linhagem de homens e mulheres, dispostos a tudo, quando a meta era progredir.

O trabalho aliado a outras virtudes e outros valores impulsionou essa gente sempre para frente. Como um rolo compressor a que nada resistia, ultrapassaram a primeira região de colonização no Sinos, no Caí, no Taquari, no Pardo e no Jacuí, para, no final do século XIX, tomarem de assalto a Serra, as Missões e o Alto Uruguai. Entre 1925 e 1960, passaram o rio Uruguai para colonizar o centro-oeste de Santa Catarina e, entre 1960 e 1980, desbravar também o oeste do Paraná. E o avanço dos descendentes desses imigrantes não parou no Paraná. Hoje é possível encontrar descendentes remotos deles no Mato Grossos do Sul, no Mato Grosso do Norte, em Rondônia, no Acre, no Cerrado do Brasil Central, na Bahia, no Maranhão, no Amapá, em  Roraima e, não em último lugar, nas repúblicas vizinhas da Argentina e do Paraguai. Onde chegaram e armaram acampamento brotaram, de um ano para outro, nas circunstâncias mais difíceis, lavouras de milho, mandioca, soja, arroz e trigo.

Não foi por acaso que as coisas se deram e ainda continuam acontecendo dessa maneira. É que, apesar da distância de tempo e  espaço que separava  os descendentes dos imigrantes das suas raízes europeias, souberam guardar e transmitir esse fantástico valor que é o trabalho e com toda a mística e motivação ética que o envolve.

Associativismo
O associativismo praticado pelos teuto e ítalo brasileiros coloca-nos frente a mais uma das grandes contribuições que eles legaram. Demonstraram uma capacidade incomum de  criar formas associativas e uma inesgotável versatilidade em praticá-las. A imagem bíblica do feixe de varas que a tudo resiste, o lema do mutuo engajamento. “viribus unitis” – “unindo forças”, aliado ao apelo cristão “omnibus omnia” – “ tudo para todos”, alimentaram a filosofia, os meios e estratégias do sucesso. 

O associativismo sob suas mais diversas formas, transformou-se no meio mais eficaz de os imigrantes praticarem o lazer, cultivarem a arte, desenvolverem o esporte, manterem-se fieis ao espírito religioso, promoverem a educação e a cultura, de dinamizarem, enfim, a atividade econômica. A capacidade de se associarem e a facilidade de se engajarem em empreendimentos comuns foram de importância decisiva na conquista do sucesso. É nisso que consiste um dos legados mais importantes e uma das contribuições mais valiosas. 

NB - Informações exaustivas sobre o Associativismo encontra-s em duas obras do autor desses “Flagrantes”; “O Associativismo Teuto-Brasileiro e os Primórdios do Cooperativismo no Brasil” e “Somando Forças – O projeto social dos jesuítas no sul do Brasil”. Ambas essas obras foram publicadas pela Editora da Unisinos, o primeiro em 1988 e o segundo em 2011.

O Teuto-Brasileiro de hoje
No período entre as duas guerras mundiais operou-se entre os alemães do sul do Brasil, um fenômeno de grande importância. Correu paralelo e, até certo ponto, em direção oposta ao desejo dos imigrantes de aprenderem a língua portuguesa e firmarem-se como cidadãos. Pode-se dizer que funcionou em muitos casos como freio, baixando aparentemente o ritmo da integração definitiva. Falamos da fidelidade que  mantiveram aos seus dialetos e às tradições dos seus antepassados. A incapacidade de as autoridades estaduais e federais entender somado à recusa de aceitar esse aparente paradoxo, terminou por gerar no final dos anos de 1930, a Campanha de Nacionalização de  triste memória. 

Essa atitude, contraditória e conflitante na aparência, foi o resultado das próprias peculiaridades históricas em que se plasmou a identidade germânica. Auto definir-se como alemão não significava referenciar-se a fronteiras nacionais. Não significava servir a um regime político ou filiar-se a uma ideologia. O elemento síntese estava na unidade étnico-cultural, real ou presumida. Tanto podia alguém ser alemão e cidadão do estado alemão, como também cidadão austríaco, suíço ou russo. O que antes de mais nada os unia, eram os laços de sangue, de etnia e de cultura. Para todos os efeitos práticos eram alemães aqueles que tinham emigrado de algum dos territórios em que predominava a “ordem alemã”. Neles fora gerada a germanidade - o “Deutschtum”. Aí  encontravam-se suas raízes e se consolidara a sua identidade. A cidadania jurídica e as fronteiras nacionais, por mais importantes que fossem, não passavam, em última análise, de eventualidades históricas. Podiam mudar e, de fato, mudavam, no ritmo em que mudavam os regimes políticos e se alternavam os governos. O que permanecia, apesar de tudo, era o fato de serem “alemães”. 

Ora, esse elemento iria necessariamente entrar como fator decisivo, quando da sua inserção definitiva como cidadãos na nacionalidade brasileira. Para eles era a coisa mais óbvia e mais  coerente assumir essa cidadania com todas as consequências legais, permanecendo, contudo, alemães como seus antepassados o haviam feito na Alsácia, em Luxemburgo, na Hungria ou na Rússia. Esse entendimento do conceito de cidadania, desvinculada da raça, da etnia, da cultura, para muitos foi e é ainda difícil de entender. Coerentes consigo mesmos e fieis à sua história, trataram de pôr em prática essa concepção também no Brasil. 

Da atitude diária somada  ao atendimento dos requisitos formais do exercício da cidadania, os teuto-brasileiros souberam também recorrer à retórica, ao discurso para expressar  as suas intenções. Falando a um plateia de lideranças teuto-brasileiras em Santa Cruz do Sul, em 1936, Franz Metzler deixou o seguinte testemunho:

Sou brasileiro. Eu me confesso fiel a minha pátria. Amo-a com todo o ardor do meu coração e com toda a força da minha personalidade, não menos que qualquer outro, a quem a pátria é sagrada, ama e deve amar a sua.

Entretanto  declaro-me fiel à etnia alemã, aos hábitos alemães e à maneira de ser alemã.

Todos conhecem a afirmação: mantemo-nos fieis à cultura alemã, à maneira de  ser alemã, porque desta maneira serviremos melhor ao Brasil. Ouvimos  este depoimento em qualquer discurso festivo e em qualquer declaração de princípios por parte de teuto-brasileiros. Eu o subscrevo com todas as letras no sentido de que permanecendo fiéis à germanidade temos condições de desenvolver plenamente a nossa personalidade para desta forma nos transformarmos em membros úteis da sociedade nacional ( ... ).  (Metzler , 1836, p. 8)

Desde as primeiras horas em que aqui chegaram,  os  alemães prepararam  a nova terra para ajusta-la à sua maneira de encarar esse desafio. Organizaram suas comunidades, seus serviços, sua infraestrutura, seus negócios e o lazer de acordo com a tradição. Como alemães haviam embarcado para o Brasil e como alemães pretendiam continuar ao indefinido, no tocante à cultura sem, entretanto deixar de agir como cidadãos brasileiros. Assim continuaram procedendo sem imaginar que, algum dia, alguém pudesse julga-los menos brasileiros por isso.  Não suspeitaram que os  dialetos que falavam e os costumes que praticavam, pudessem  servir de motivo para suspeitar da  autenticidade  das suas reais intenções aqui no Brasil.

Continuaram, portanto, agindo como o fizeram nos primeiros setenta ou oitenta anos. A diferença que foi-se impondo com o correr dos anos, resumiu-se no aprendizado da língua vernácula, na tomada definitiva da consciência que eram cidadãos brasileiros e na adaptação às peculiaridades circunstanciais daqui. E o resultado foi e é, ainda em grande parte, o personagem conhecido como teuto-brasileiro. 

Essa atitude resultou em episódios curiosos, mas certamente muito significativos. Alguns antigos escravos negros que haviam  convivido durante anos com os colonos alemães, não falavam português mas o dialeto dos colonos. No período mais agudo da Campanha de Nacionalização, em plena segunda guerra mundial, um deles chegou a declarar com muita convicção: “Nós alemães temos que nos unir”. 

Bicentenário da Imigração - 24

Imigração alemã para o Brasil-
Propaganda e Realidade

Voltamos a Carlos Fouquet com a sua afirmação de que  “história da humanidade é uma história de migrações e suas consequências”. A afirmação é válida para os tempos primitivos, sobre os quais nos informam os registros arqueológicos. Vale também para os poucos milênios sobre os quais dispomos de informações escritas. Vale de maneira especial, para os assim chamados tempos modernos, os últimos cinco séculos, desde 1500, com suas migrações maciças para as Américas, Austrália, Nova Zelândia, sul da África e outras partes do mundo. 

Para o momento  interessa, mais de perto, a emigração procedente da Europa Central e do Norte. Novamente, segundo Fouquet, todos os países da Europa contribuíram para essa migração recente, de longe a mais abrangente. Ela processou-se em  ondas sucessivas com intensidades periódicas maiores ou menores. Ora se tratava de desbravadores, ora de pioneiros como os portugueses, ingleses e russos, ora imigrantes tardios e posteriores, como os alemães, italianos, poloneses e outros. Havia-os também que atuaram como matrizes de novas etnias ou fundadores de novos estados como Portugal, Espanha, Inglaterra e Rússia. Havia também os países que,  por sua vez, apenas forneciam  contingentes humanos. Foi o caso principalmente da Alemanha, Itália, Polônia, Áustria, Suíça e outros da Europa Central e do Norte.

Quando se fala e emigração-imigração, emigrantes-imigrantes, coloca-se uma interrogação, fácil de formular mas para responder nem tanto. A movimentação, o deslocamento, a migração de pessoas e principalmente de grupos, tem tudo a ver  com a pergunta: Porque se migra? Porque indivíduos, grupos humanos e povos inteiros abandonam os locais e as terras onde nasceram, para enfrentarem caminhos desconhecidos em busca de uma terra não menos  desconhecida? Uma constatação parece óbvia. As pessoas, em situação normal, só abandonam sua terra natal em busca de uma nova se  aquela já não oferece condições mínimas  para realizar-se dignamente. Relembramos a máxima dos antigos romanos: “ubi bene ibi pátria”. A pátria do ser humano encontra-se lá onde ele se sente bem. No momento em que vida se torna difícll ou  insustentável, as pessoas começam a sonhar com terras desconhecidas, paraísos impossíveis, quimeras ilusórias. Utopias fantasiosas e fantásticas começam a tomar conta das mentes ao ponto de tornar impossível qualquer avaliação serena e objetiva. Seja por razões econômicas, seja por motivos religiosos, seja por motivos sociais, étnicos ou quaisquer outros, mundos desconhecidos, realidades imaginárias apresentam-se como solução para  os problemas, a superação das frustrações e o caminho para o encontro com a dignidade e a felicidade.

A miséria, a pobreza extrema, a marginalização, as perseguições políticas e ou religiosas, a absoluta ausência  de soluções ou perspectivas, compuseram o caldo em que a propaganda dos agentes de emigração encontraram ouvidos sempre atentos. É nesse clima que conseguiram com maior facilidade vender ilusões, apresentar utopias como se fossem realizáveis, ou até emprestar credibilidade às inverdades mais descaradas. Apelam para as necessidades mais  elementares da vida, jogam  com os sentimentos humanos mais sagrados e mais íntimos ou acenam com a emigração como o cumprimento de uma missão divina. 

Restrinjo-me aqui à “propaganda e realidade”, envolvendo a imigração europeia para o sul do Brasil. Apresento, em primeiro lugar algumas amostras dessa propaganda, para em seguida pintar a realidade que os imigrantes encontraram. Para ilustrar de alguma forma os apelos aliciadores de imigrantes, especificamente para o Brasil, lançamos mão de algumas amostras pinçadas da obra de Freden e Smolka: “O Brasil na canção alemã”. Uma antiga canção de propaganda cantada na região do Hunsrück, em tradução livre, dizia: “João, depois de amanhã partiremos todos para o Brasil. Não deixa de avisar a Gertrud Bummes, senão ela é capaz de se atrasar. Não esqueça a tia Cristina lá do Beco Torto. Também o Matias da aldeia de Lay, que gosta de participar de tudo com vocês. Venha comigo, ainda é tempo. Na Holanda o navio nos espera”.

“João, João, vem comigo emigremos para o Brasil, essa terra gigantesca. As batatas são do tamanho de uma cabeça. Todos os dias mata-se um porco e toma-se o melhor dos vinhos. E a maioria das panelas são pequenas para caberem as patas, os fígados e as cabeças. João, não te faz esperar porque o navio na Holanda nos espera”. 

“No Brasil não se trabalha por uma remuneração miserável. A terra brilha de tanto ouro. Parece um pedaço do paraíso que Deus reservou para os pobres que, mergulhados em profunda miséria, o imploram todos os dias por uma migalha de pão. Há tempo de descanso para todos”. 

Uma outra canção muito apreciada e muito popular, repetia o estribilho: “O Brasil não dista muito daqui”. Sobre essa canção informa Bösche que a escutou no navio como se fossem “urrros assustadores”, ao embarcar em 1824 em Hamburgo. Num livro sobre o Rio de Janeiro em 1829, relata-se que os viajantes podiam escutar a “bela canção”, vindo do navio. O Dr. Blumenau observou que na década de 1820, quando essa canção se encontrava no auge, do como ela pintava aos imigrantes o Brasil, como um Eldorado, como um paraíso. Bastava chegar lá par se tornar um homem rico e feliz. Ainda em 1851 os soldados da “Legião Alemã” a cantavam.

Tem a sua origem no Hunsrück uma canção de conteúdo religioso, tentando convencer que o emigrar significava atender a um chamado de Deus. Reproduzo algumas estrofes como amostra.

“Fomos chamados por Deus, pois de outra forma não teríamos chegado à essa decisão. Por isso cremos e a Seu mando emigramos. Deus falou a Abraão. Sai da tua terra e vai para a terra que te mostrarei, guiado por minha forte mão. Também nós confiamos firmemente em Deus e na sua sagrada palavra. Movidos por ela partimos para o Brasil. Também nós confiamos firmemente em Deus. Enfrentemos, portanto, a viagem e vamos para  o Brasil.

De uma coletânea publicada em 1830 extraímos algumas amostras que  retratam muito bem o clima de expectativa, o nível de um exagero beirando o irracional, ao ponto de fazer  transparecer um tom de deboche, emprestado a um número de  versos e poesias inteiras. Esses apelos circulavam em bom número praticamente em todas as regiões donde partiam contingentes importantes de emigrantes, como Odenwald, Baixa Saxônia, Hunsrück, Romênia, Rússia e outras. 

“Chegou o momento e a hora. Vamos para a América. Os cavalos estão prontos. Partiremos para uma terra estranha. Amigos que nos conhecestes, apertemo-nos as mãos pela última vez, não choremos, não choremos demais, vemo-nos hoje e nunca mais”. 

“O café amadurece em todos os arbustos e seu consumo está ao alcance de qualquer um. O trigo turco é sadio. Muitas vezes uma única espiga pesa até três onças”:

“Lá  os peixes são grandes, como fomos informados e podem ser apanhados com a mão. Não raro as carpas pesam até meio quintal”.

“Batatas há que como se fossem massa-pão. Em cada pé há três  alqueires delas. Partimos para a terra sempre verde, onde as rosas florescem até no inverno”.

Os emigrantes de Odenwald partiam para a viagem, cantando:

“Quando o navio vem navegando pela margem, entoa-se uma canção!.

Os alemães do Volga cantavam.

“A carroça está pronta à porta. Partiremos com mulher e filhos, partiremos para a terra prometida; lá o ouro é abundante como a areia. Trallala, Trallala, sem demora estaremos em Brasilia”. 

Consta ainda uma outra canção cantada entre os alemães russos, apontando sem reticências os motivos da emigração. Fala dos privilégios que Catarina, a Grande, concedera para atraí-los  para as colônias do Volga e a posterior retirada dos mesmos pelo Czar.

“O manifesto da Imperatriz dirigia-se aos alemães. Convidava-os para semear pão e plantar videiras; convidava-os para serem colonos”. 

“Deixamos a nossa terra e partimos para a terra dos russos; os russos muito nos invejaram, porque por tanto tempo estávamos livres (do serviço militar). Com astúcia conseguiram que  não deveríamos continuar como colonos. Ah, sim, já não somos colonos e obrigaram-nos a carregar uma arma. O que aconteceu com a história da inveja, foi destruir o manifesto”. 

“Se nos pretendem acorrentar, quebramos as correntes. Não queremos ser russos, queremos permanecer alemães”. 

“Aqui na Rússia não se pode viver, porque à força nos fazem soldados. O que conseguimos economizar, a viagem para o Brasil consome, a viagem para a terra onde não há inverno”. 

“Chegando na cidade de Hamburgo, nosso dinheiro nos será tirado. Na travessia do oceano, nossa bolsa se esvazia”,

Da Alsácia vem os versos.

“Quando chegamos no mar nossas bolsas estavam vazias”. 

Do Hunsrück vem a observação.

“Os preguiçosos não se conseguem estabelecer e por isso viajam para o Brasil”. 

E de um desconhecido vem a crítica à terra natal.

“Seja feliz terra natal mal-agradecida. Vamos para uma outra terra. Vamos a Brasilia. Para trás deixamos as dívidas”. (cf. Fouquet, 1974, p. 80-82).

E para encerrar a parte da propaganda, vale a pena reproduzir um fragmento dos apelos feitos aos judeus da Rússia emigrados para o sul do Brasil. As terras do outro lado do oceano eram pintadas como intermináveis, não custando quase nada, a natureza exuberante, a abundância sem fim, o clima paradisíaco. Tudo isso incentivava a imaginação desses camponeses à beira do desespero e os levou a cultivar esperanças impossíveis  e francamente absurdas. Embarcavam com as mulheres e os filhos pois, na outra banda do Atlântico os aguardava, senão o paraíso perdido, pelo menos uma existência menos atribulada do que aquela que levavam sob o tacão do Czar.

Embutidos na propaganda da época  explorava-se até o inverossímil, uma série de apelos muito caros aos judeus. No interior do Nordeste estaria localizada a terra de Ofir. Da mesma forma ter-se-iam refugiado em alguma parte na América as tribos perdidas de Israel. De alguma maneira o rei Salomão estaria relacionado com o rio Solimões e Cristovão Colombo teria sido um judeu que, antes de mais nada, recebera a missão de encontrar terras para que os judeus pudessem viver em paz, longe dos tentáculos da inquisição, num lugar, enfim, onde houvesse condições de recuperar a identidade e auto estima. 

É da autoria de Marcos Folowitsch a matéria de propaganda: “Numa clara manhã de abril (...) quando a estepe começava a reverdecer na alegre entrada da primavera, apareceram em Zegradowka, pequena e risonha aldeia russa da província de Kersau, lindíssimos prospectos  com ilustrações coloridas descrevendo a excelência do clima, da fertilidade da terra, da riqueza e variedade da fauna, da beleza e exuberância da flora de um vasto e longínquo país, chamado Brasil”.

No cartaz destacava-se : “Sob o céu azul e distante, de um azul muito doce, um lavrador, chapéu de abas largas, camisa arreganhada, empunhando encurvado, as rabiças de uma arado puxado por uma junta de bois, revolvendo a terra virgem. Um pouco mais longe, no fundo, o ouro vegetal de extensos trigais maduros. Mais além ainda, azulados pela distância, coqueiros, palmeiras e florestas misteriosas.  E, no primeiro plano, destacando-se em cores vivas, um enorme pomar  em que predominavam as laranjeiras  e na sua sombra porcos comiam lindas laranjas caídas no chão”. (Fouquet, 1974,  p. 89-91).

É fácil imaginar o efeito que  um cartaz de propaganda desses  exerceu sobre o ânimo dos miseráveis camponeses judeus da Rússia. Havia em primeiro lugar, a esperança bem fundamentada de se tornarem donos de um pedaço de terra de dimensões nem sequer sonháveis na terra natal. Havia em segundo lugar, o fascínio de viver numa terra na qual encontrariam um clima acolhedor e uma natureza excepcionalmente pródiga; chamava-os em terceiro lugar, a terra virgem  e fértil, garantia maior de uma alimentação farta; chamava-os em quarto lugar, um autêntico paraíso, onde as laranjas, fruta símbolo da nobreza e prodigalidade da natureza, serviam de alimento aos porcos,  animais desqualificados e impuros  para os judeus.  Se sobravam laranjas até para os porcos, o que um judeu não se poderia permitir  esperar?.

Motivações semelhantes incendiavam a imaginação e as expectativas dos camponeses da Polônia, subjugados pela Prússia, Rússia e Áustria. A mesma quimera que motivou dezenas de milhares de aldeões de Cremona, Veneza, Trento, Trevisio, Bérgamo e demais  regiões do norte da Itália, cantar o  refrão: “Merica, Merica, Merica” ... e  peregrinar  em massa até os  portos do Mediterrâneo  e enfrentar a longa travessia do oceeano nas piores condições imagináveis. 

E assim, alemães, suíços, russos, judeus, poloneses, austríacos, italianos e muitos outros emigraram para o Brasil, perseguindo cada qual à sua maneira, um sonho e uma utopia.

Depois de mostrar que a propaganda nas suas mais diversas formas e modalidades contribuiu como instrumento para estimular a emigração europeia, cabe a pergunta:

E como foi a realidade encontrada ao desembarcarem no sul do Brasil?

Em grandes linhas a realidade encontrada foi a mesma para todos. Merece atenção, em primeiro lugar, a realidade geográfica. As terras destinadas aos imigrantes pelo governo imperial, concentravam-se no sul do país, em áreas cobertas por florestas subtropicais de difícil penetração. Encobriam solos de alta fertilidade e o clima ameno permitia uma grande variedade de culturas. Essas florestas haviam ficado, até então, à margem dos interesses do Brasil Colônia. Eram impróprias para a criação de gado. Os invernos de até zero  graus desaconselhavam  culturas como café, cana de açúcar e algodão, as grandes vedetes da economia nacional de então. De outra parte essa região de florestas ficara à margem dos interesses porque em seu sub solo não havia jazidas de minerais importantes, nem pedras preciosas, nem ouro. As madeiras e demais essências vegetais também não ofereciam perspectivas de aproveitamento econômico em escala maior.

Pois, foram essas florestas ou matas virgens, que cobriam aproximadamente  metade das terras destinadas aos imigrantes. Com isso estava posto o cenário geográfico com o qual seriam obrigados a conviver e nele construir o seu futuro. E foi neste momento que a dura realidade começou a tomar o lugar do cenário construído a partir das propagandas que lhe haviam incendiado a imaginação. Na verdade, a floresta que encontraram era imensa, impressionante,  majestosa e fascinante de um lado. Do outro, porém, a mesma floresta inspirava temor, ocultava incógnitas, despertava suspeitas de que em suas entranhas  escondiam-se as surpresas mais inesperadas.

Um dos primeiros desafios consistiu em aprender a lidar com a floresta, encontrar a forma menos trabalhosa para limpar um eito de mato, pôr abaixo as árvores maiores, deixar livre o solo fértil e semear a primeira colheita. Além de lidar com a floresta havia ainda os predadores naturais que dizimavam as colheitas, os animais domésticos e não raro punham em risco a vida das pessoas. E para tornar a situação ainda mais dramática, os imigrantes não encontraram nem métodos nem pessoas em quem se pudessem inspirar ou a quem recorrer. Como única maneira de lidar com a mata virgem conhecia-se a coivara, isto é, a derrubada de uma porção de mato e a posterior queima quando seco. Este método usado pelos dos índios, foi universalmente adotado pelos imigrantes como forma de lidar com a floresta.

Havia ainda um outro obstáculo a ser enfrentado e vencido. Nas matas do sul do Brasil haviam-se refugiado dezenas de tribos de indígenas. Tratava-se das sobras e sobreviventes  do período missioneiro, dos caçadores de escravos e do avanço da ocupação europeia, principalmente dos açorianos nas estâncias de criação de gado da fronteira sul e dos campos de cima da serra. Seminômades deslocavam-se pelas matas alimentando-se de frutas silvestres, dos pinhões das florestas de araucárias e da caça. Quando os colonos começaram a se instalar na região, suas plantações de milho, mandioca e feijão, tornaram-se alvo frequente das incursões dos assim chamados “bugres”. Confrontos diretos com os colonos ocorreram, mas de forma esporádica. Há registro de alguns assassinatos de colonos e o sequestro de mulheres e crianças. No Rio Grande do Sul não há registro de expedições organizadas para manter os “bugres” afastados ou dizimá-los. Já em Santa Catarina a caça ao índio tornou-se prática em algumas regiões. Mas o que nesta questão merece destaque é que os “bugres”, pelo princípio do “ius primi possidentis”, eram os donos legítimos daquelas florestas. Mas como no Brasil da época a posse se dava pela ocupação e não pela compra, a lógica mandava conceder aos nativos pelo menos determinadas áreas a título de posse com valor legal. De outra parte os imigrantes foram instalados na região, no contexto de uma colonização oficial. No início as terras lhes foram dadas pelo Império dono delas e mais tarde adquiridas por compra. Ninguém, portanto, poria em dúvida  a legitimidade da posse por parte dos colonos. De qualquer forma, o conflito se instalou e por várias gerações a referência aos “bugres”, punha os colonos em alerta, mesmo quando há décadas eles já não vagavam mais pelas florestas que esperavam pelo machado dos imigrantes.

Sob esse pano de fundo fica mais do que claro que a propaganda incentivando a emigração, não passava de um engodo, de uma mistificação. As terras, sem dúvida, eram abundantes, oferecidas de graça no primeiro momento. Os solos eram altamente férteis e o clima permitia a produção de alimentos praticamente o ano todo. Todo o restante que a propaganda sugeria esboroava-se, desfazia-se  na medida em que os imigrantes tomavam contato com a nova realidade. Não encontraram nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas. A fartura em alimentos era possível, mas com muito suor e sangue. Não havia escola nem igreja, não havia comunidade organizada. Era preciso erguer o primeiro abrigo para  a família utilizando varas do mato, cipós e folhas de palmeira e abrir as primeiras trilhas na mata virgem. Não havia nem médicos nem hospitais. 

Esse quadro assumia contornos ainda mais dramáticos quando se considera o entorno social em que os imigrantes foram assentados. O sul do Brasil na época era uma área de fronteira em disputa, povoada por luso-brasileiros, mestiços, castelhanos e tribos dispersas de índios, cujas línguas e costumes não tinham nada a ver com os dos imigrantes. A região estava mergulhada  em permanentes escaramuças  e guerras de fronteira, entre lusos e castelhanos. Entre 1835 e 1845 aconteceu a Guerra dos Farrapos e por algum tempo foi declarada a independência do sul do Brasil do Império brasileiro. Além das dificuldades apontadas  mais acima, foram forçados a aprender a conviver e a participar desse cenário tumultuado na nova pátria.

Como é fácil concluir a propaganda que moveu as populações  centro-europeias a emigrar para o sul do Brasil, pintou uma realidade totalmente ilusória, acenou com a solução fácil de todos os problemas, com a superação de todas frustrações, com a troca de uma situação de desespero, para a de um paraíso distante e possível. Se tudo isso não  passou de uma ilusão, de uma mistificação, houve contudo algo de real e objetivo. No sul do Brasil encontravam-se em potencial as condições, os pressupostos para começar uma nova vida, para construir um futuro promissor. E os imigrantes, passado o primeiro susto, puseram mãos à obra e, com denodo, com perseverança, com a obstinação peculiar ao camponês, enfrentaram os obstáculos e as hostilidades e terminaram por transformar o sul do Brasil na região mais próspera e mais desenvolvida do país.

Bicentenário da Imigração - 23

As áreas colonizadas até aqui tinham sido de propriedade do Governo Imperial. Em torno delas localizavam-se extensões de maior ou menor tamanho em mãos de particulares, tanto no curso médio e superior do rio dos Sinos e seus afluentes, como do Caí e Taquari em toda a sua extensão. Foi sobre essas matas que a lógica do avanço orientou o fluxo colonizador. As terras em ambas as margens do Santa Maria (Paranhana), pertenciam a Tristão Monteiro. Batizou-as com o sugestivo nome de Mundo Novo quando começou a colonizá-las com imigrantes alemães. O povoamento do Mundo Novo iniciou efetivamente em 1847 e prolongou-se até o final da década de 1870, quando contava com 284 famílias, das quais apenas 10 não eram de origem alemã. Vizinha ao Mundo Novo ficava a Fazenda Padre Eterno, vendida em lotes aos colonos pelo proprietário o Barão do Jacuí. Idêntico caminho tomou na mesma época a família Leão, proprietária do "Leonerhof" (Sapiranga e arredores). O prolongamento da colônia da Feitoria, o Morro Pelado na margem do rio dos Sinos, foi colonizado por seus donos Chico Santos e Fialho.

Simultaneamente às colonizações ao leste do núcleo inicial de São Leopoldo no vale do rio dos Sinos, intensificou-se o avanço para o oeste e o norte, para dentro do vale do rio Caí. Todas essas terras de alta fertilidade, encontravam-se em mãos de particulares e uma parte menor sob jurisdição imperial. Estendiam-se ao longo das margens do Caí e de seus quatro principais afluentes: o Forromeco, o Salvador e o Maratá na margem direita e o Cadeia na esquerda. Os donos dessas terras as lotearam e venderam aos colonos procedentes, na sua maioria das áreas antigas da colonização no vale do Sinos e  em menor número diretamente imigrados da Alemanha.

Na mesma época em que o vale do rio Caí foi colonizado, iniciou-se o povoamento do vale do Taquari. Na grande maioria também esses  colonos procederam das colônias mais antigas do Sinos. O avanço se deu num ritmo impressionante. Todo o vale do Caí e todo o vale do Taquari foram por assim dizer, tomados de assalto e conquistados ao mesmo tempo. Como aconteceu no Caí também no Taquari pertenciam a  proprietários particulares. Os dois mais conhecidos no Taquari foram Vito Mena Barreto  na margem esquerda e Antônio Fialho na margem direita. Não demorou e as terras férteis do rio Forqueta fossem incorporadas na frente de colonização. O mesmo se repetiria mais para o interior na margem esquerda do Taquari com a colonização de Teutônia. Na margem direita o avanço tomou a direção de Santa Clara, Sampaio, Venâncio Aires, Santa Emília e arredores. As terras do Governo de Monte Alverne fora colonizadas na mesma época e serviram de ligação para a colônia de Santa Cruz e Rio Pardinho.

O avanço da colonização, a começar por Taquara do Mundo Novo até Santa Cruz dp Sul, incorporara as terras mais planas dos cursos médios dos rios. Os vales mais afastados e as encostas da Serra, em mãos de proprietários menores, entraram no mesmo processo a partir de 1875. Em questão de 20 anos  todas as terras de alguma forma aproveitáveis haviam sido ocupadas. Apesar das dificuldades da topografia e da distância dos centros maiores, contribuíram com uma parcela significativa dos produtos básicos da época: feijão, milho, banha e na região de Santa Cruz e Venâncio Aires, tabaco. Neste avanço incluíram-se também as colonizações mais ao sul como Rincão del Rei e as localizadas entre Candelária e Santa Maria.

No decorrer da década de 1880 haviam-se esgotado as últimas reservas de terras disponíveis nas bacias dos rios dos Sinos, Caí, Taquari, Pardo e Jacuí. Nas colônias aí existentes, porém, a pressão por mais e mais terras virgens aumentava a cada dia. Na época a única forma capaz de aliviar essa tensão, encontrava-se na abertura de novas fronteiras de colonização. Desta vez a lógica apontava para o norte e para o oeste em direção às imensas áreas cobertas de mata virgem, encobrindo solos e topografia altamente favoráveis. Foi nesta direção que se orientou então o fluxo migratório a partir da década de 1890.

Em 1890 abriram-se as primeiras clareiras na mata onde hoje floresce Ijuí, a metrópole da Serra. O Pe. Amstad comparou Ijuí a São Leopoldo. Assim como São Leopoldo foi centro de irradiação das chamadas colônias antigas, ou colônias "velhas", assim Ijuí desempenhava o papel de centro de irradiação das colônias "novas" no norte e no noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. A partir daí a região transformou-se num grande laboratório de experiências de colonização. Entre os anos de 1890 e 1930 foram implantados no mínimo quatro modelos. Ijuí foi uma iniciativa do governo federal, Santa Rosa do governo estadual e Santo Ângelo um projeto municipal. Todas as demais colonizações foram empreendimentos particulares, ou de empresas, ou de pessoas físicas, ou de associações. Na sua monumental obra  comemorativa do centenário da imigração, o Pe. Amstad resumiu assim a colonização de toda essa região:

Com essas colonizações abrira-se o espaço para os excedentes populacionais das colônias antigas. E no fim da revolução em 1895 começou um novo e alegre movimento migratório. As mudanças aconteciam via trem, a cavalo, de carro e até em carroças de boi. Não raro podia-se assistir ao espetáculo inusitado  como pessoas que até aquele momento mal haviam ultrapassado os marcos de fronteira de seu município, carregavam com toda a naturalidade seus pertences numa carroça,  passando três a quatro semanas peregrinando, até alcançarem o extremo noroeste do nosso Estado, em Cerro Azul, Pirapó, ljuí, Serro Pelado, para aí construírem sua nova Querência.

Tempos difíceis esperavam para breve pelas aves de arribação. Gafanhotos, seca e por fim os ratos migratórios tornaram a vida amarga. Mas o tempo de penúria passou e quando os pioneiros e os mais pobres tinham aberto a brecha, seguiu um reforço financeiramente  mais bem dotado, gente com dinheiro. Adquiriram muitas vezes, complexos de terras maiores também na colônia de Guarani pertencente ao governo. Em questão de 10 a 15 anos o rio Ijuí, de Cerro Azul até a sua desembocadura no rio Uruguai, numa extensão de 70 a 80 quilômetros, fora ocupado. Acabara-se de fundar a São Leopoldo do século XX.

Fato semelhante se verifica com as colônias de Passo Fundo e Cruz Alta. A diferença é que nelas residia uma população étnica e confessionalmente mais mesclada. Mesmo assim encontram-se nesta região distritos coloniais de exclusiva descendência alemã, como é o caso da Colônia Selbach, Barra do Colorado, Neu Würtemberg, General Osório e outras. Desta forma, também aí os excedentes das colônias antigas encontraram assentamentos novos fechados. Quem hoje visitar as  colônias de Passo Fundo, Palmeira, Cruz Alta, Santo Ângelo e São Luiz, pode estar certo de encontrar ali assentados conhecidos procedentes das colônias antigas. Já se desenvolveu um ativo intercâmbio entre o norte e o sul e entre o leste e o oeste e não se constitui numa raridade que famílias inteiras das colônias novas, locomovendo-se em carroças, vão fazer visitas nas colônias velhas. E exatamente nessas visitas acontece que, muitas vezes, os hóspedes das colônias velhas adquirem terras para si e seus filhos, quando as circunstâncias das novas colônias agradam. Em muitas dessas visitas segue então, num prazo mais curto ou mais longo, a correspondente transferência para os novos assentamentos, os quais tomam rapidamente um acelerado ritmo de progresso, impulsionado pelos colonos acostumados ao trabalho.

Um pouco mais adiante o Pe. Amstad chega a falar de uma verdadeira febre migratória que teria acometido os colonos de todas as regiões do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1910 e 1920:

Havia duas razões que explicam  o surgimento do fenômeno nada desejável da febre de emigração: o sistema de colonização do governo estadual do Rio Grande do Sul e a especulação dos compradores e vendedores de terras.
Já que a maioria das colônias particulares e das pertencentes a companhias colonizadoras, haviam sido ocupadas, restavam  aos colonos à procura de terra para assentamentos, as colônias do governo. O sistema de colonização dos atuais governantes positivistas, consiste em abrir colônias mistas, nas quais são assentadas misturadas pessoas das mais diversas nacionalidades. Esse sistema não agrada nem aos colonos de descendência alemã, nem aos de descendência italiana, nem aos  de descendência polonesa. Isto fez com que, durante os últimos dez anos, os melhores elementos, possuidores de mais capital, fossem fixar-se fora do nosso Estado em colônias confessionais e etnicamente separadas, em Santa Catarina, Paraná e Argentina. (Cem anos de germanidade, 1999, p. 128-131)

Depois da primeira grande guerra a febre migratória empurrara os excedentes tanto das colônias alemãs como das italianas, até a barranca do rio Uruguai em toda a extensão norte e noroeste do Estado. As matas virgens praticamente intactas da margem direita do rio, tanto no vizinho estado de Santa Catarina como na Argentina estimularam com seu fascínio ainda mais o ímpeto da nova geração à procura de terra.

Três foram as áreas que canalizaram as atenções dos novos pioneiros: o vale do rio do Peixe na região central de Santa Catarina, o extremo oeste do mesmo estado e a Província de Missiones na Argentina. Colonos procedentes  das mais diversas  localidades das antigas colônias no Rio Grande do Sul, povoaram toda a área que atualmente tem como centro a cidade de Joaçaba. Outros ultrapassaram essa região para irem fundar Porto União e União da Vitória, em ambas as margens do rio Iguaçu, no extremo norte de Santa Catarina e no sul do Paraná. No extremo oeste a colonização irradiou-se de dois núcleos iniciais mais importantes: Porto Feliz, hoje Mondaí e Porto Novo, a Itapiranga de hoje. A partir deles, em questão de 30 anos, todo o oeste de Santa Catarina foi incorporado ao fluxo da colonização.

A colonização de grande parte da Província argentina de Missiones: Posadas, Puerto Rico, Monte Carlo, San Aberto, Eldorado, etc.,  foi citada quando examinamos a colonização alemã na Argentina.

Já no final da década de 1950 a ordem "vamos para as colônias novas", que impulsionara a colonização do norte do Rio Grande do Sul e o centro e o oeste de Santa Catarina, foi substituída por outra palavra de ordem: "vamos ao Paraná". Milhares de colonos procedentes de todas as regiões do Rio Grande do Sul, somados à primeira geração de excedentes de Santa Catarina, avançaram sobre as novas fronteiras de colonização no oeste do Paraná. O ritmo foi ainda mais acelerado e mais intenso do que nas etapas anteriores. Em praticamente um geração as áreas disponíveis na região estavam colonizadas. 

No decorrer das décadas de 1980 e 1990 o fluxo migratório avançou pelo Mato Grosso do Sul e pelo Mato Grosso, Rondônia e Acre, para, enfim, alcançar a fronteira norte do País no estado do Rio Branco. Na mesma época aconteceu a participação de agricultores vindos do sul, muitos deles descendentes de imigrantes alemães, em projetos de colonização e empreendimentos agrícolas diversos  na Bahia, no Maranhão, no Pará e até no Amapá,  de modo mais intenso, porém, nos cerrados de Goiás e Mato Grosso tanto do Sul quanto do Norte 

Conclusão
O estudo comparativo entre as colonizações alemãs no Brasil, Argentina e Chile, que acabamos de apresentar, mostram no atacado muitas semelhanças. Nos três países existiam no início do século XIX  imensas áreas econômica, social e politicamente à margem dos estados. No Chile estendiam-se, em grandes linhas, da cidade de Temuco para o sul, até Puerto Montt, Puerto Varas e a ilha de Chiloe. O filé dessas terras situava-se nas proximidades do lago de Lhanguihe. Na verdade elas constituíam o território dos índios Mapuches e costumava ser tratada como "frontera". O termo sugere uma situação de indefinição de posse até uma indefinição de soberania do Estado Chileno, recém independente, sobre a região. Impunha-se, portanto a necessidade e além da necessidade a urgência de garantir a soberania o que  implicava na consolidação da "frontera" no sul.

A soberania colocava-se como pressuposto para o aproveitamento do seu potencial econômico. Tratava-se de extensas áreas planas de terras próprias para a agricultura cobertas de densas florestas virgens. Elas abrigavam solos férteis e reservas incalculáveis de madeira, sob um clima relativamente ameno. Tornar produtivas essas terras mediante o povoamento sistemático por colonos alemães, pareceu a solução mais prática para as autoridades chilenas. A imigração alemã a partir do final de 1840, contribuiu decisivamente  para a integração da região no todo nacional e transformá-la numa rica fonte de produtos agro-pecuários. A inóspita paisagem mudou rapidamente de feição. No lugar das florestas selvagens na orla do lago de Lhanguihe e das costas do oceano Pacífico, a laboriosidade e a maneira de ser dos imigrantes, plasmou uma paisagem humanizada inédita no País. Em volta dos centros maiores de polarização como Puerto Montt, Puerto Varas, Puerto Arenas, Frutillar, Valdivia, Osorno, Concepción, etc... multiplicaram-se centenas de   comunidades. Os colonos proprietários  de pequenas glebas familiares, dedicavam-se em tempo integral à tarefa de tornar produtiva a terra e fazer florescer uma intensa vida religiosa e cultural, polarizada pelas igrejas, as escolas, as associações, as sociedades, os clubes, etc.

Em várias regiões da Argentina verificava-se, na mesma época, uma situação muito parecida com a do Chile, porém, mais complexa e mais heterogênea. Em vez de uma região passível de colonização compacta a Argentina oferecia três: os vales dos rios Negro e Colorado, o chaco e a bacia média e superior do rio Paraná, nas províncias de Entre Rios e Missiones. Também para essa tarefa foram convidados colonos alemães. Pode-se concluir que o objetivo principal  da colonização dessa s regiões, foi o mesmo daquele do Chile, isto é, consolidar a soberania sobre elas e incorporá-las no esquema produtivo do País, mediante uma colonização sistemática. No caso argentino a questão indígena assumiu proporções muito mais importantes do que no Chile. A região do rio Negro e Colorado e a do Chaco abrigavam numerosas  populações nativas que foram subjugadas e em grande parte exterminadas. No rio Negro e Colorado havia ainda o risco da apropriação das terras por chilenos, entre os quais um número expressivo de alemães, vindos do outro lado dos Andes. 

As colônias alemãs mais numerosas e mais importantes foram implantadas no curso médio e superior do Paraná, em Entre Rios e Missiones, durante toda a segunda metade do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX. Na sua essência não diferem  muito estrutural e institucionalmente daquelas do sul do Chile e do Chaco.

A mais extensa  e a mais antiga das colonizações alemãs na América Latina aconteceu no Brasil, a partir de 1824. O núcleo irradiador inicial foi implantado na fazenda real do Linho Cânhamo em São Leopoldo no Rio Grande do Sul. A partir dele a expansão  da colonização tomou o rumo oeste até Santa Maria no centro do Estado, numa extensão de mais ou menos  70 por 400 quilômetros. No final do século dezenove tomou o rumo norte e noroeste e na primeira metade do século vinte avançou pelo oeste de Santa Catarina e o Paraná. Um segundo polo irradiador iniciou-se na década de 1850 no leste de Santa Catarina e um terceiro menos importante no Espírito Santo bem mais confinado do que dois anteriores. Aproximadamente a terça parte da paisagem humana do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e boa parte do oeste do Paraná, exibe, ainda hoje, os traços inconfundíveis  da presença  e das tradições alemãs.

Como avaliação geral é lícito afirmar que as colonizações alemãs no Chile, na Argentina e no Brasil, cumpriram basicamente a mesma função: povoar grandes regiões vazias com imigrantes capazes de fazê-las produtivas, incorporá-las no todo nacional, estimular um modelo agrícola alternativo ao existente e tornar os respectivos países socialmente mais equilibrados com uma classe média sólida e bem constituída. É o óbvio que em cada caso particular seja possível detectar nuances mais ou menos importantes, fruto das peculiaridades físico geográficas, étnicas e culturais, com que os imigrantes alemães se defrontaram.

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Colonizações  alemãs no Brasil.  

Entre os países da América Latina onde foram implantados projetos de colonização com imigrantes alemães, a primeira iniciativa coube, historicamente falando, ao Brasil. Depois que a colonização em escala maior por açorianos se mostrou impraticável, a administração colonial optou por convidar colonos de outras regiões da Europa. A exclusão dos ingleses, franceses e holandeses se  entende por razões históricas óbvias. Estes estiveram presentes no Brasil desde o início do período colonial disputando com os portugueses a soberania de regiões inteiras da Colônia. Um motivo semelhante desaconselhava de todo em todo o ingresso de espanhóis no território brasileiro na condição de povoadores. Na prática teria significado  abdicar da luta pela posse de vastos territórios das fronteiras em disputa, sobretudo na região do Prata. As preferências voltaram-se então para imigrantes procedentes da Europa Central e do Norte. As razões da opção por alemães, italianos e outros, resumiram-se basicamente na tradição camponesa milenar em pequenas propriedades desses povos e o fato de nunca se terem intrometido na soberania da Colônia. Com certeza influiu também a experiência positiva de outros países de imigração, como por ex., os Estados Unidos, onde os  imigrantes alemães e italianos, contavam entre os colonizadores mais disciplinados, mais empreendedores e mais bem sucedidos. O casamento do príncipe D. Pedro com a princesa austríaca Leopoldina, acrescentou mais um motivo para a preferência pelos alemães.

Os primeiros assentamentos de colonos aconteceram, ainda antes da independência, na Bahia com as colônias Leopoldina e Frankental e no Rio de Janeiro na região de Petrópolis.

Entretanto a colonização alemã que iria marcar definitivamente regiões inteiras do País, concentrou-se nos três estados do sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A ocupação por europeus dos grandes espaços vazios, cobertos de florestas, fazia parte do projeto do  Império que, no seu bojo visava vários objetivos. Entre eles merecem destaque: a colonização sistemática e  intensiva das terras devolutas, a implantação de um  modelo de pequena propriedade familiar, a formação de uma classe média rural, o incremento da produção diversificada de alimentos, o branqueamento da raça, o fornecimento de suprimentos para as tropas envolvidas nas guerras de fronteira e a própria consolidação das fronteiras.

Foi com essas expectativas, alimentadas pelo governo imperial, que ocorreu a implantação do primeiro núcleo de colonização em 1824, na fazenda do Linho Cânhamo em São Leopoldo. A Colônia Alemã  de São Leopoldo, como passaria a ser conhecida na história da imigração no Brasil, foi realmente o ponto de partida  e o paradigma que orientou  as colonizações até 1980 em  vastas áreas dos três estados há pouco mencionados. Vencidas as dificuldades iniciais as comunidades solidamente organizadas em torno de sua igreja, escola, cemitério, casa de comércio, artesanatos, clubes e associações, foram-se multiplicando com muita rapidez. Uma alta taxa de natalidade somada a um baixa mortalidade infantil e, até o início da primeira guerra mundial, o aporte de novos imigrantes, alimentaram essa dinâmica.

Num esboço muito sucinto essa história de 200 anos da imigração alemã no sul do Brasil, pode ser resumida mais ou menos assim: O primeiro núcleo definitivo foi instalado na Real Feitoria do Linho Cânhamo em São Leopoldo em 1824. A ele seguiram-se mais tarde em 1827 dois outros  no Rio Grande do Sul,  independentes do primeiro: São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas, ambas nas imediações de Torres. Vinte e poucos anos mais tarde, a partir de década de 1850, foram-se instalando os primeiros núcleos de   colonização alemã em Santa Catarina, tendo Blumeau como matriz. A Blumenau seguiram-se: Joinville, Brusque, Pomerode, Rio do Sul, São Bento, Mafra, Forquilhinha e muitos outros. 

Cada um desses polos de irradiação, o de São Leopoldo no Rio Grande do Sul e o de Blumenau e Joinvile em Santa Catarina, seguiu dinâmicas semelhantes mas independentes um do outro. Acompanhemos primeiro o mais antigo, o da Colônia Alemã de São Leopoldo. Apenas a título de observação vale lembrar que as colônias de São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas ficaram, durante um século, praticamente confinadas no isolamento do litoral norte do Rio Grande do Sul.

Voltemos à Colônia de São Leopoldo. Vencidas as dificuldades iniciais os imigrantes e seus descendentes da Colônia de São Leopoldo não demoraram em implantar suas comunidades em áreas próximas. O processo de expansão colonial começara. Como já foi dito mais acima, dois foram os fatores principais que impulsionaram o processo: o crescimento vegetativo da população e o afluxo de novos imigrantes. Já a partir da década de 1850 a primeira geração  nascida no Brasil, chegara à idade de procurar o seu próprio lote de terra. Ora, é por todos conhecido que as famílias eram numerosas ao mesmo tempo em que a mortalidade infantil situava-se em patamares relativamente baixos para a época.

De outra parte os lotes coloniais com suas dimensões reduzidas não recomendavam mais do que uma ou no máximo duas divisões. Levantamentos realizados na época mostram que cada 1000  famílias geravam, na média por ano, nada menos do que 200 excedentes, candidatos naturais a novos lotes. Tendo-se em vista que o crescimento vegetativo de uma população avança em progressão geométrica, fica fácil imaginar a movimentação no meio colonial.

Já o final da primeira década após o início da imigração alemã, marcou o começo da ocupação das terras fora dos limites da área inicial destinada para a colonização. Na obra Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul - (1824-1924), o Pe. Theodor Amstad descreveu assim a situação:

No começo da Guerra dos Farrapos, como já foi dito, está ocupada somente a parte anterior e plana da colônia governamental de São Leopoldo e a primeira parcela das três picadas: Dois Irmãos, Picada Berghan e Picada dos Portugueses. Poucos povoadores, como por ex., M. Mombach, arriscaram-se a cruzar o topo dos primeiros morros. Já em 1832, na Picada dos Portugueses, foi preciso desistir dos postos avançados do Fritzenberg e Rosental e concentrar-se mais na parte baixa, por causa do ataque dos bugres. Somente na década de quarenta, ao terminar a Guerra dos Farrapos, arriscou-se a ocupação das áreas mais afastadas das Picadas. (Cem anos de germanidade, 1999).

A retirada dos subsídios para a imigração em 1831 estagnou quase por completo a corrente imigratória. A Guerra dos Farrapos, 1835-1845,  terminou por desestimular definitivamente a vinda de imigrantes. O término desta guerra marcou a retomada da imigração e o início sistemático da ocupação das áreas periféricas do núcleo original da imigração. Nos dez anos que se seguiram entre 1845 e 1855, o avanço da colonização teve como alvos preferenciais o vale do rio Feitoria, afluente do rio Cai, tendo a Picada de Dois Irmãos como ponto de irradiação e o Rio Cadeia, também afluente da margem esquerda do rio Caí, onde a Picada dos Portugueses serviu de referência mais importante. Foram sendo sucessivamente povoados o Bugerberg ou Bucherberg,  Jammertal e a Walachei. Em seguida o avanço tomou o rumo do Erval. 

Uma dinâmica semelhante impulsionou o povoamento das porções posteriores das Picadas dos Berghan e da Picada dos Portugueses. Neste processo destacaram-se Bohnental, Linha Nova, Schneiderstal, Holanda e Picada Café, com suas diversas ramificações. 

A obra já citada "Cem Anos de Germanidade" resumiu assim os 25 primeiros anos da expansão colonial:

É lícito afirmar então que em meados dos anos cinquenta as terras postas à disposição para a colonização pelo governo imperial nas três picadas antigas, estavam em linhas gerais povoadas. A Picada Feliz, que veio somar-se em 1845, contava na época com 90 a 100 famílias, podendo ser considerada ocupada, tomando em consideração as condições populacionais da época. Nada mais natural então que muitos pais de família numerosa e muitos jovens empreendedores da colônia, procurassem terras favoráveis em outra parte (Cem anos de germanidade, (1999, p. 108)