A Natureza como Síntese - 73

A nova linguagem interdisciplinar. A partir do momento em que as Ciência Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas as Letras e Artes celebram um pacto para, solidários e mutuamente comprometidos, entender cada vez melhor o nosso maravilhoso mundo e seus inquilinos com destaque para o homem, um novo  vocabulário conceitual começou a circular nos meios acadêmicos empenhados em produzir um conhecimento fundado numa perspectiva interdisciplinar. É fundamental que os especialistas dos mais variados  campos, intercambiem experiências, se sirvam de conceitos a que as partes atribuam o mesmo sentido. Em outras palavras, é indispensável que se fale a mesma língua nesse esforço que visa o entendimento entre os muitos segmentos do saber, um discurso honesto, desarmado, sincero. Vão nesse sentido os dois conceitos, “Weldbild e Weldauffassung – o retrato, a imagem do mundo e o significado do mundo ou a cosmovisão” formulados por Erich Wassmann. Cabe ao cientista desenhar o retrato tangível, visível e material, com os dados fornecidos pelos  métodos e técnicas de investigação empírica, o “Weldbild”. Ao filósofo e ou teólogo compete identificar o “donde, o como e o porque” do retrato do mundo desenhado pelo cientista. Em outras palavras, o sentido que lhe confere razão de ser, isto é, os significados que lhe garantem vida, sentido  e identidade, para a compreensão do mundo, ou a cosmovisão. Se a cosmovisão, a compreensão do universo e da natureza, a “Weldauffassung”, não for legitimada pelos dados que a ciência oferece, ela será “cega”. O retrato do mundo, o “Weldbild” é “manco” se não passar de um volume maior ou menor de informações aleatórias detectadas pela ciência.

Um outro conceito que vem fazendo parte cada vez mais frequente da linguagem dos cientistas que se ocupam com a natureza como um todo, a natureza como síntese e, de modo especial preocupados com a saúde do planeta, é a Ética. Apelam para a Ética como como argumento mais convincente. Note-se que o conceito na sua origem   é   próprio do linguajar da Filosofia e a Moral, sua versão religiosa, da Teologia. Como outros conceitos, o Darwinismo, por ex., a ética foi incorporada no  mundo conceitual de outros campos do conhecimento. Conquistou um lugar obrigatório nas mais diversas áreas dos conhecimentos aplicados, com a finalidade de disciplinar o comportamento dos respectivos profissionais. Fala-se muito em ética médica, ética no exercício da advocacia, ética na atividade econômica, ética social e por aí vai. 

Com cada vez maior frequência e mais insistência cientistas de renome como Edward Wilson, Francis Collins, Dobzhansky, para ficar com três cuja concepção da natureza foram analisados mais acima, terminam em colocar a ética, a capacidade de o homem distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado como terreno comum para a diálogo interdisciplinar. É óbvio que isso não acontece quando se debatem questões exclusivamente científicas e especializadas. Num encontro entre botânicos ou zoólogos sistematas, geólogos à procura de minérios ou campos de petróleo, entre outros, não é o lugar para falar em Ética. 

 Mas é na compreensão e no convívio do homem com a  natureza que,  cada dia que passa, essa relação ganha mais importância. Toda uma área de conhecimento a “Bioética”, vem se tornando mais popular e os que a ela se dedicam gozam cada vez de mais respeito e suas opiniões em questões ambientais são levadas em conta com muita seriedade. E é no plano das preocupações ecológicas que a Ética, mais especificamente o conceito de Bioética, assumiu um papel chave, como plataforma comum,  sobre a qual cientistas, filósofos, geógrafos, economistas, juristas, ecologistas sérios, têm condições de se entender, falando a mesma linguagem. A razão que subjaz aos esforços de qualquer profissional sério e ativista digno deste nome, consiste em tratar “a natureza como um bem comum”. Relembramos a máxima que colocamos como motivação  para escrever essas reflexões: “A natureza vive e sobrevive sem o homem, mas o homem não vive nem sobrevive sem a natureza”. Os motivos, os dados e argumentos que validam essa afirmação já foram exaustivamente confirmados pelas autoridades científicas que forneceram as informações que nortearam as reflexões que registramos até aqui. Cabe repetir mais uma vez chamar a atenção para o significado mais profundo que se esconde atrás da ideia chave que nos vem orientando até aqui. A espécie humana está existencialmente inserida na natureza. Sobrevive nela e dela em todos os níveis da sua identidade. Portanto, a natureza representa um bem comum e como tal, todo e qualquer ser humano tem o direito de usufruir dos seus benefícios. Por isso mesmo, o comprometimento com o equilíbrio da natureza se constitui num  dever ético, que deve ser sobreposto a qualquer outro interesse, quando a questão ambiental entra em discussão. 

“Sistema” é mais um  conceito que faz parte do dicionário interdisciplinar quando se procura entender  a natureza na sua globalidade. Foi popularizado por Ludwig von Bertalanfy, e amplamente e consistentemente formulado na sua obra clássica: “Teoria Geral dos Sistemas” (trad. port. Vozes, 2008). Salvo melhor juízo trata-se da formulação de uma síntese global que contempla todos os níveis e áreas do conhecimento, a começar pelas Ciências Naturais, passando pelas Humanas, as Letras, Artes e Filosofia. Como tal oferece, senão o melhor, certamente uma das fundamentações teóricas mais consistentes, para as iniciativas sérias de qualquer natureza e procedência, em favor da saúde do nosso planeta. Se no parágrafo anterior argumentamos com o sentido ético da natureza, como justificativa para o interesse pela saúde do meio ambiente, a Teoria Geral dos Sistemas, contribui com a fundamentação científica e até técnica para justificar o mesmo propósito. O conceito de sistema segundo Bertalanffy não resume a natureza a uma máquina, um relógio que funciona perfeita e automaticamente. A montagem do sistema como o defendido pelo autor citado, tem a sua razão de ser amarrada a uma teleologia, ou se quisermos, destinado a produzir resultados que não se resumem na soma do desempenho das partes e funções de cada peça. Há uma tarefa a cumprir um objetivo a alcançar. Esse fato implica de um lado que a participação de cada peça, cada componente do sistema tem razão de ser em função em relação ao que lhe compete contribuir para o bom funcionamento do todo em vista do fim para que existe. Do outro lado a contribuição de cada um é indispensável na proporção e no nível  que lhe compete no sistema como um todo. A lógica da conclusão não deixa dúvidas.  por mais insignificante que pode parecer um componente ele cumpre uma tarefa indispensável. No caso de não comprometer o funcionamento essencial diminui de alguma forma a sua qualidade e os seus resultados.   
Um bom exemplo é um organismo vivo superior como o do homem. Na base da sua estrutural e funcional estão as células. Organizadas em tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas formam o organismo. A destruição de um número menor de células por alguma lesão, obviamente não ameaça a  viabilidade do todo, mas de alguma forma, mesmo imperceptível, afeta o todo. O avanço das pesquisas científicas  somadas às conquistas da medicina  comprovam que a destruição de certos órgãos não compromete organismo como um todo, mas reduz a qualidade de vida da pessoa e limita de igual forma seu desempenho na razão direta da função afetada. A solução para órgãos como o coração, o fígado,  pulmões,  rins, etc., quando comprometidos no seu funcionamento,  soluciona-se até certo ponto com o transplante. Mesmo nesses casos o risco da rejeição prova que a natureza caibrou as células,  órgãos,  sistemas e  aparelhos,  em função de cada indivíduo. 

Da mesma forma como um organismo vivo funciona como um sistema, ressalvadas as peculiaridades, a natureza é um “organismo” à sua maneira, um mega sistema. O conceito compreende, em última análise, o universo e a natureza com todos os seres vivos que integram a biosfera. É nessa percepção da Natureza que se  encontra o argumento que justifica as ações de qualquer natureza a serviço de qualquer causa. Mas vamos restringir-nos à Natureza como sistema e a morada imediata de todas as espécies vivas conhecidas e, ao mesmo tempo, o cenário na qual evoluíram, prosperaram ou se extinguiram. Perguntamos: o que  afinal é a Natureza?. Edward Wilson assim a define: “A Natureza é  aquela parte do ambiente original e de suas formas de vida que permanece depois do impacto humano, Natureza é tudo aquilo que no planeta Terra não necessita de nós e pode existir por si”. (Wilson, 2006, p. 23)

Wilson pondera que para muitos essa definição não tem valor prático, porque não há recanto no planeta que não sofreu com a presença do homem. Todos os espaços disponíveis já foram tão humanizados e, por isso mesmo, descaracterizados ao ponte de se duvidar da existência de ecossistemas  que conservam a sua identidade original. Subsistem poucos quilômetros quadrados que nunca foram pisados pelo homem. Somos obrigados a dar parcialmente razão a essa visão pessimista. Poluentes industriais de tudo que é procedência e natureza, sobrecarregam anualmente a atmosfera e carregadas pelas correntes aéreas e marítima até além dos círculos polares, ameaçando inclusive o equilíbrio das calotas perenemente congeladas dos polos. O efeito estufa  agravado por esse processo fazendo subir gradativamente a temperatura média da terra põe em xeque a vida em espaços cada vez maiores. O autor observa ainda  que a maior parte da megafauna terrestre, que compreende animais que pesam de quilos ou mais, já foi caçada até a extinção. A fauna das planícies e florestas do mundo contemporâneo tem pouca semelhança com o majestoso desfile de gigantescos mamíferos e ave que foram levados à extinção pelos habilidosos caçadores do Paleolítico Boa parte dos animais sobreviventes está na lista dos ameaçados. Há 12 mil anos, a fauna das planícies americanas era mais rica do que a hoje existente na África. (Wilson, 2006, p. 24).

A Natureza como Síntese - 72

O “porque e para que” fazer Ciência. Depois desse alerta que é válido  a toda e qualquer especialidade no âmbito das Ciências Naturais, Dozhansky, vale-se da genética, sua especialidade, para ilustrar sua maneia de conceber o “fazer ciência”. No avanço das conquistas modernas da ciência, a genética é, sem dúvida um dos mais dinâmicos e mais promissores. A Genética, segundo o autor, não inventou uma nova  superbomba, nem tão pouco está em condições de competir com os lances românticos  das viagens interplanetárias. A importância e razão de ser dessa especialidade localiza-se em outro lugar e num outro nível.

Passaram-se mais de dois milênios, que os sábios gregos descobriram que o “conhecer-se a si mesmo”,  é a bases de toda a sabedoria. Quem sabe o objetivo principal e a finalidade maior (ou pelo menos um deles), da genética, da biologia e da ciência em geral, consiste em o homem compreender-se a si mesmo e tomar consciência de seu lugar no universo. (Dobzhansky, 1969, p. 11).

Com essa colocação Dobzhansky ensina que a ciência somente tem sentido quando ajuda ao homem a compreender-se a si mesmo. E esse compreender-se implica não apenas na compreensão da sua identidade como espécie taxonômica, mas em respostas para todas as dimensões da natureza humana. Para essa primeira questão podemos aceitar tranquilamente que a ciência tem respostas, senão definitivas, mas plenamente satisfatórias. Enumeram-se na linha daquelas que explicam a origem e a evolução  das demais espécies vivas. Mas no caso do homem colocam-se perguntas para as quais o potencial de resposta da ciência é insuficiente, embora indispensável. Em outros momentos essas questões já foram objeto das nossas reflexões.  Rambo resumiu num conceito o tamanho do desafio posto para as Ciências Naturais e demais áreas do conhecimento, isto é, explicar e entender a “Menschlichkeit” – o “Humano no Homem”. O que afinal vem a ser “Menschlichkeit” – “o Humano no homem?”. 

A natureza humana, desde que o homem se fez homem manteve-se na sua essência inalterada e com ela o “humano” – a “Menschlichkeit”. Ela se expressa nos mesmos medos, nos mesmos temores, nas mesmas esperanças, nas mesmas alegrias, nas mesmas perguntas existenciais, ao procurar o sentido para a sua própria existência: donde viemos, o que somos e para onde vamos. Somam-se a isso as perguntas pela natureza e razão do universo, da existência ou não de uma vida depois da morte, do lugar ou não lugar Deus, divindades, espíritos bons ou maus. Esses elementos, por comporem o “Humano”, vem intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações. Com essa matéria prima, cada povo e cada indivíduo procuraram respostas no seu mundo ambiente peculiar, para responder às questões existenciais a que nos acabamos de referir. Qualquer um conclui que não se trata de tarefa nem simples nem fácil. A complexidade do desafio é de tal ordem que a sua solução somente é possível quando enfrentado com métodos e instrumentos capazes de identificar as notas e os acordes dessa peça e, principalmente, como interagem para resultar numa  sinfonia harmônica. Parece evidente que os métodos convencionais, o analítico indutivo e o sintético dedutivo não conseguem dar conta para identificar e explicar a incógnita que é “o humano” – a “Menschlichkeit”. Segundo a opinião de Alfonso Borrero, esses métodos são chamados  para  conferir mais segurança e maior credibilidade para o conhecimento baseado na intuição e na percepção sensorial, numa fase histórica na qual, por assim dizer, exige-se “o preto no branco”, como selo de validade para que algo possa ser chamado de científica e racionalmente aceitável. 

A ciência  apenas possui  então valor quando cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit), quando compreendida e praticada a parir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais.  A ciência praticada como deve ser  é uma recriação do mundo, semelhante a de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo, 1994, p. ?)
A linha de reflexão que estamos seguindo pode até parecer uma digressão desnecessária, melhor complicadora, em relação ao que pretendemos, isto é, encontrar o terreno comum em que a as Ciências Naturais   e as Ciências dos Espírito encontrem condições para um diálogo construtivo. E para que o diálogo se estabeleça nesse nível, é fundamental que haja consenso na compreensão  daquilo que é essencial á realidade em causa: o Homem. Além do consenso sobre a natureza da realidade, objeto do diálogo, é indispensável que se fale a mesma língua. Os conceitos chave de que se valem os interlocutores precisam, no essencial pelo menos, serem  entendidos da mesma forma, isto é, terem o mesmo sentido, tanto para o cientista, quanto para o filósofo, o humanista, o letrado e o artista. É fundamental que os especialistas de todos os campos do saber tenham uma noção clara de que os postulados da ética decorrem da própria natureza humana e suas necessidades, portanto perenes, e não uma questão que pode ser relativizada ao sabor das ideologias no momento em moda;  de que a espécie humana como uma categoria taxonômica pode ser perfeitamente entendida como qualquer outra espécie, animal ou vegetal, quanto à sua origem  e gênese biológica;  de que a espécie humana comunga com as demais espécies vivas da mesma estrutura química e que seu organismo tem  o mesmo DNA  como o código responsável pelo funcionamento de todas funções vitais; que o DNA é susceptível  à recodificação para o melhor ou  o pior influenciado pelo meio ambiente; de que a sobrevivência da espécie está condicionada a um mínimo de recursos naturais necessários para alimentar-se e abrigar-se; de que a espécie humana depende para a vida e a morte de condições climáticas e atmosféricas minimamente estáveis e finamente calibradas; de que a espécie humana compartilha com as outras espécies animais dos mesmos instintos básicos para garantir a sobrevivência dos indivíduos e a perpetuação da espécie; de que, como as demais, tem conhecimento, memória, consciência e inteligência. Em se tratando da espécie humana, porém,  entram em jogo outros atributos exclusivamente humanos. O mais determinante de todos é sem dúvida a “Inteligência Reflexa”, a capacidade única pela qual o ser humano toma consciência de si mesmo, do mundo em sua volta e suas relações com ele próprio, dos demais seres humanos e das relações que determinam a convivência com eles; a capacidade única de procurar as origens e raízes do mundo  e sua própria e interessar-se “pelo como, o porque e o para que”, da sua existência e o sentido do universo e da natureza. Nesse cenário há um outro conjunto de desafios que não podem se menosprezados. Dizem respeito às esperanças, aos medos, aos temores, as mesmas perguntas existenciais, a procura de respostas para  o sentido para  a própria existência, da natureza e do universo, da continuação da vida de pois da morte, da existência ou não de um Deus ou de deuses, espíritos e ou ouras realidades além do mundo visível e tangível.

Sem entrar em maiores detalhes esses parecem ser, em grandes linhas, os elementos que fazem que o humano no homem seja de fato “humano” – “mensclich”. Partindo desse pressuposto é também nesse cenário que uma reflexão interdisciplinar isenta, honesta e séria tem condições de frutificar. Deixando de lado preconceitos, idiossincrasias, radicalizações, egoísmos e outras atitudes que impedem o diálogo, fica o convite para um encontro, uma confraternização de todas as áreas do conhecimento no cenário de interesse comum: o homem a sua identidade, a sua razão de ser e sua missão como figura central da “Criação” como a concebe Edward Wilson na sua visão de “humanista secular”, de um lado e  Rambo que pressupõe a “Criação de Deus” como pressuposto no estudo da natureza.  Tanto para o primeiro, quanto para o segundo, quanto para Francis Collins, Dobzhansky e tantos outros, a compreensão do universo e da natureza somente então se justifica e faz sentido, quando, direta ou indiretamente, cria as condições para que a espécie humana se conheça a si mesma, se aperfeiçoe  e se realize sempre mais, corporal e espiritualmente.

Tirando as conclusões lógicas do que tentamos afirmar nas considerações acima parece indiscutível  que a realização das potencialidades físicas e espirituais do homem, é diretamente proporcional à qualidade ou à degradação do meio ambiente em que vive. Sendo assim os recursos naturais devem estar em primeiro lugar disponíveis para todos indistintamente; que o equilíbrio climático é uma questão que interessa a todos; que a destruição dos ecossistemas naturais vem a ser uma ameaça de extinção de milhares de espécies de animais e vegetais; que o desperdício da água potável, o uso irracional do solo, de produtos químicos, pesticidas e outros artifícios, a médio e longa prazo, comprometem a sobrevivência de povos inteiros, não descartando a da humanidade como um todo. Resumindo. As Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e Artes, tem a sua razão de ser como caminhos para, cada uma à sua maneira, contribuir para a compreensão, a promoção e a realização do “humano no homem” – a “Menschlichkeit”. Sendo assim os diversos campos do conhecimento encontram-se em território comum e tem sua justificativa  em se nortearem pelos postulados comuns da Ética Natural. Parafraseando e interpretando Kant é lícito afirmar  que duas realidades deixam o cientistas, os filósofos, os humanistas e, de modo especial, as pessoas comuns, admiradas, pensativas e perplexas: o mundo lá fora que lhes garante alimento para o corpo e o espírito e a lei moral lá dentro, fazendo com que sejam capazes de distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado. 

A Natureza como Síntese - 71

Conclusões

O chão comum  -  A Ética.  Para quem acompanhou com atenção o pensamento dos cientistas que destacamos acima, encontra nas diversas concepções da natureza, coincidências flagrantes. Convergem para um consenso ao chamarem a atenção de que para entender a natureza os conhecimentos científicos são insuficientes como o são também as conclusões filosóficas e teológicas. “Sem a religião a ciência é manca e sem a ciência a religião é  cega”, conforme  entendimento de Einstein. Isso significa que a compreensão da natureza como uma grande síntese somente é possível se os dados, as informações, enfim, os conhecimentos gerados nas duas dimensões forem devidamente harmonizados. Deixando de lado convicções pessoais e ou filiações religiosas ou laicas, todos concordam no essencial. É emblemático como dois cientistas, um entomólogo, Edward Wilson que se assume como  “humanista secular” (Wilson, 2008, p. 12) e um botânico, Balduino Rambo, religioso jesuíta, se encontram no terreno comum da ética como o argumento mais forte para incentivar a preservação da natureza. Para os dois, a Natureza, a Criação ou outra denominação que se prefira, representa o cenário em que a espécie humana surgiu, evoluiu e edificou a sua história. Como as demais espécies de plantas e animais o corpo físico da espécie humana é formado  pelos mesmos elementos  que o dos demais seres vivos, desde as arqueobactérias até os mamíferos mais evoluídos. Oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e carbono estão presentes em todos eles. Além disso mais duas dúzias de outros elementos entram na estrutura dos seus organismos, variáveis em dosagem e  natureza, de acordo com as características das milhões de espécies. De outra parte os mesmos processos e leis  físicas e químicas básicas  regulam o funcionamento de todas as espécies. O mais notável da estrutura e funcionamento dos organismos vivos é o código genético presente em todos eles. Sua importância supera em muito qualquer outra característica comum pois, de um lado é responsável pela preservação da identidade biológica da respectiva espécie e do outro, pela capacidade de sofrer mutações. Elas  constituem-se no argumento mais convincente e mais sólido para  explicar as mudanças nas e entre as espécies. Em outras palavras, neste  e por meio deste dispositivo  a teoria da evolução encontrou o suporte científico mais convincente. Mas tanto para Edward Wilson quanto para os demais cientistas analisados nas presentes reflexões, permanece uma pergunta não respondida pela Ciência. Onde procurar a razão de ser, a causa primeira responsável pelo engenhoso e prodigioso mecanismo que, pelo visto, partindo de um organismo vivo primordial, foi capaz de evoluir para a complexidade de um mamífero superior como o homem e, paralelamente, desdobrar-se em milhões de espécies vivas tanto vegetais quanto animais, vivendo e convivendo em  ecossistemas harmonicamente calibrados?. É nesse nível que o verdadeiro cientista repete Einstein admitindo que os conhecimentos conquistados com o auxílio dos seus métodos  e instrumentos revelam-se “mancos” sem a ajuda do filósofo e teólogo. E estes por sua vez admitem que sem as conquistas científicas,  suas conclusões e crenças são “cegas”. É inevitável que enquanto os dois lados se fecharem em seus territórios, isto é, não dialogarem, não permutarem dados, experiências e conhecimentos, o cientista avança “mancando” e o teólogo tateando “cego” no escuro. A partir do momento em que os dois se decidirem a um diálogo, a uma troca de experiências e conhecimentos, o cientista percebe que há uma ordem, uma coerência, uma unidade e uma teleologia na infinita complexidade dos dados que vai identificando sob as lentes do microscópio, deduzindo de modelos matemáticos ou observando nos  telescópios ultra  potentes. Com isso o praticar ciência deixa de ser um procedimento errático, entregue ao acaso, à sorte, ao ensaio e erro, enfim, confere sentido à dedicação a alguma especialidade científica. Em outras palavras o cientista adquire segurança, deixa de “mancar”. Do outro lado,  filósofos e  teólogos percebem, à luz dos dados e descobertas dos pesquisadores, que a lógica racional e os princípios religiosos encontram respaldo e razão de ser no mundo real em que raciocinam e creem. Abrem os olhos para esse universo fantástico que é a natureza e nele começam a perceber, farejar,  intuir e enxergar, que o filosofar tem muito a ver com a lógica do mundo concreto em que vivemos e o crer e a prática da religiosidade tem uma dimensão que perpassa os acontecimentos do mundo material. Enfim, seus olhos se  abrem e começam “a enxergar”.  Neste sentido é emblemática a exclamação de Kant já referida mais acima: “nada me fascina tanto quanto o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro”. E é de Balduino Rambo a reflexão descansando à borda do cânion do Fortaleza em Cambará: “Alguém mora nesses abismos, alguém vigia nessa torre de observação”. 

Mas voltemos ao começo da reflexão em curso quando afirmamos que o cenário  comum onde se encontra o clima favorável para o diálogo ente as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito, chama-se  Ética no sentido mais amplo e bioética no sentido mais estrito. Só para relembrar, já em 1942, na sua famosa obra  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” o Pe. Balduino Rambo, ao insistir na preservação na forma original de pelo menos parcelas significativas da paisagem, enumerou: 

A proteção da natureza, em primeiro lugar está a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição  desnecessária ou inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e pedagógica sociais, e em adjutório indispensável da educação nacional. (Rambo, 1942, p. 338)

Parece oportuno lembrar que os princípios fundamentais de como conceber e lidar com a natureza enumeradas por Rambo, foram propostas ao público, numa obra que marcou e continua marcando época, há mais de 70 anos. Naquele momento histórico, final da década de 1930, as preocupações com o meio ambiente ainda não frequentavam os discursos públicos, não motivavam mutirões de reflorestamento, não serviam de bases para criar organizações não governamentais, muito menos  eram objetos de propostas de criação de leis específicas. Os campos de criação de gado da fronteira com suas intermináveis estâncias, ainda não tinham sido afetados na sua essência com a presença homem. Os campos de cima da Serra com os Aparados exibiam suas características espetaculares na forma original. Milhões de araucárias a perder de vista emprestavam uma atmosfera majestosa àquela paisagem carregada de simbolismos, testemunhas da gênese daquele planalto único. Inclusive na faixa originalmente coberta pela mata atlântica, a partir de  Torres, passando pelo centro do Estado e terminando no Alto Uruguai, embora intensivamente cultivada pelos agricultores familiares, ainda não era chão fértil para cultivar preocupações pelo tratamento mais racional das propriedades e das matas que ainda subsistiam. O andar da história do sul do Brasil encontrava-se no patamar lembrado pelo Pe. Rambo na “Fisonomia do Rio Gande do Sul.

Enquanto o espaço é suficiente e a densidade  demográfica pequena, não se tornam muito conscientes  tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir  sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos. (Rambo, 1942, p. 338).

Na data da publicação da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, a região das Missões, a Serra e o Alto Uruguai acabavam de ser incluídos nas colonizações já consolidadas. A meio caminho encontrava-se a colonização de todo o centro e oeste de Santa Catarina. A partir do final da década de 1950, as clareiras que se multiplicavam  rapidamente no centro e oeste do Paraná, prenunciavam que até o final do século XX,  em lugar daquelas terra férteis antes cobertas com  florestas virgens, a  presença do homem praticando uma agricultura já em fase de modernização e mecanização, consolidaria um dos polos de produção de alimentos mais importantes do País. Mas a disponibilidade de espaço para dar vazão aos excedentes populacionais gerados nos três estados do sul, esperava pela ocupação dos dois Matogrosso, Rondônia, Acre e Amazônia adentro. A grandes florestas, lá onde as fronteiras  dos grandes Estados da América Latina  se encontram, esperavam a civilização do século XXI, conforme profetizara o Pe. Johannes Rick há 80 anos passados. Chegados que estamos à metade da segunda década do século XXI, para o  Brasil e a humanidade como um todo, os sinais de alerta ambiental  piscam por toda a parte e em todas as fronteiras onde acontece a interferência da civilização no chão que lhe fornece os recursos materiais e espirituais.  A destruição da cobertura vegetal e animal está passando dos limites toleráveis, o ambiente  totalmente sintético das metrópoles e megalópoles, a poluição em todas as sua formas e origens, a ameaça ao equilíbrio ambiental pelo emprego abusivo de agrotóxicos, dejetos urbanos e ou industriais, configuram a “interferência além do tolerável na natureza motivado pelas necessidades brutais da vida. (Rambo, 1942. p. 338). Chegamos à vigésima quarta hora para que a humanidade mude radicalmente a  relação para com sua “mãe e pátria”. Não se trata de arroubo romântico de alienado. Trata-se, em última análise de prevenir, enquanto é tempo, a perda fatal do equilíbrio  da espécie humana e a precipitação no abismo, servindo-nos mais uma vez da metáfora de Nietzsche.

A fase da relação do homem com seu chão que vivemos nesse começo do milênio, alerta os responsáveis maiores pela condução da atual civilização, assim com qualquer pessoa consciente, a levar a sério  essa reflexão: “Assim, no curso de todas as culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento, seria falto dum requisito essencial da verdadeira cultura humana total e indigno  da terra, com que a mão pródiga do Criador o presenteou”. (Rambo, 1942, p. 338).

Não se requer nenhum esforço fora do comum para ler nas linhas e, principalmente, perceber nas entrelinhas das reflexões  de Rambo,  que a natureza com seus recursos administrados com inteligência, senso de responsabilidade e parcimônia, são condições com as quais morrem ou se perpetuam as esperanças do homem em relação ao seu destino como espécie. Voltamos, portanto, de novo ao mesmo pressuposto que dá sentido e torna obrigatório, como um dever de justiça e de solidariedade, a preocupação pelo futuro da vida na terra, pelo futuro sustentável da querência da humanidade. Todo o esforço empenhado nesse sentido só então tem sentido e justificativa quando estiver direta ou indiretamente a serviço do bem estar da espécie humana. Fazer ciência simplesmente por fazer ciência, termina na esterilidade dos resultados. De outra parte, o filosofar sem se preocupar em encontrar soluções para os impasses humanos, não passa de malabarismo intelectual que termina em satisfazer o próprio ego ou do isolamento  do “filósofo” no seu próprio olimpo. Dozhansky alertou sobre essa questão na introdução do seu livro “Herança e Natureza Humana”. 

No essencial, o progresso da ciência está nas mãos dos especialistas. Na medida em que a ciência se expande, o campo de cada especialista tende a estreitar-se. Alguns limitaram-se até o exagero. Correm sérios riscos e por sua vez são perigosos, em primeiro lugar porque sua própria vida interior está depauperada; em segundo lugar porque costumam ser presas fáceis da exploração pelos detentores de poder, dinheiro, coisa que prejudica tanto a ciência, quanto a humanidade no seu conjunto. (Dobzhansky, 1969, p. 10)

O autor comentando essa realidade   afirma que a ciência carrega  na  própria natureza um paradoxo que obriga a pensar. Esse paradoxo aparece mais visivelmente no próprio desenvolvimento da atividade científica. O especialista corre o risco de  evoluir para  um casulo incomunicável, um feiticeiro de posse exclusiva de segredos interditados ao comum dos mortais. Em outras palavras seus conhecimentos científicos são perfeitamente inúteis para enfrentar os grandes desafios da humanidade como um todo, como também os problemas que afligem as pessoas como indivíduos. Por mais acirrada que seja a especialização e, por isso mesmos, por mais fragmentada  o conhecimento científico do especialista, também nesse particular o exagero no desmonte dos objetos científicos, faz-se sentir uma tendência crescente para reunir numa síntese os dados obtidos pela análise científica. Evidentemente o candidato a elaborar um síntese corre um outro risco nada desprezível. Para que um síntese goze de um mínimo de abrangência, solidez e credibilidade, o sintetizador necessita dominar um espetro amplo de conhecimentos científicos somados a um raio não menor nem menos sólido de informações sobre as ciências do espírito, ciências humanas, letras e artes. E é no domínio tão vasto de conhecimentos  que reside o desafio maior para os  formuladores de sínteses. 

Num momento em que o número de cientistas e pesquisadores se multiplica proporcionalmente com maior rapidez do que a própria humanidade e as especialidades multiplicam de diversificam-se no mesmo ritmo, é impossível alguém se apropriar de informações sobre o que acontece nessa imensa pluralidade científica. Informações básicas de Filosofia, Ciências Humanas, Letras e Artes, talvez não seja tão complicado. São campos do saber há muito tempo consolidados. Seus objetos, suas bases teóricas e seus métodos de aproximação são muito menos complexos e seus desdobramentos em subespecialidades muito menor do que nas Ciências Naturais. De qualquer forma pelas dificuldades apontadas, embora se perceba uma crescente reclamação em busca da unidade na pluralidade do saber, o número de candidatos para concretizá-la é incomparavelmente menor do que os modernos cientistas, filósofos, humanistas ou literatos. Menor ainda é o número daqueles que de fato assumem o desafio e metem mãos à obra. Depois de alertar que os que  se arriscam a formular uma síntese, são em geral   especialistas e sintetizadores medíocres, conclui que em nome de uma compreensão do real sentido que impulsiona ou deveria alimentar toda a atividade científica como um todo, vale a pena tentar e por isso mesmo correr os riscos que a acompanham.  

Apesar disso, deveria haver cientistas que sejam capazes de combinar a vontade de romper com a carapaça protetora de suas especialidades e partir para a exploração de campos mais amplos. Significa, sem dúvida, uma  tarefa perigosa pois, pode implicar na perda da fama de especialista. Acontece que como tantas outras tarefas de risco também essa é necessária na sociedade moderna. A vida interior dos indivíduos se enriquecerá com a abertura para uma compreensão do que de fato representa a atividade científica. Alguns aspecto e realizações dizem respeito a todos. (Dobzhansky, 1969, p. 10-11).

A Natureza como Síntese - 70

Todos os sábios que analisamos até aqui declaram, de uma forma ou outra, sua perplexidade frente a essa constatação inequívoca e se perguntam: Como se deu a travessia do “Rubicão” que traça a linha de fronteira entre o instintivo e o racional. Como todos eles com maior ou menor convicção defendem a evolução natural como mecanismo responsável pelas mudanças, adaptações e novidades que surgiram e surgem ainda hoje  em a natureza, tentaram explicar o que é possível explicar pelos genes capazes de reagir com mutações em contato com o ambiente em contínua transformação. Não é aqui novamente o lugar para discutir a mais diversas soluções que foram apresentadas pelos diferentes autores. Uma outra prerrogativa privativa da espécie humana pelos menos tão intrigante quanto a capacidade de refletir é a Lei Moral inata ao homem. Esse enigmático instrumento que se manifesta em todas as pessoas e que, desde muito cedo na infância faz com que a criança comece a distinguir entre o certo e o errado. A explicação, via evolução natural da Inteligência Racional e da Lei Moral representam um desafio até agora não superado pelos cientistas de fato sérios e confiáveis. Também não é aqui o lugar  para aprofundar essa questão.

As considerações que  acabamos de fazer, podem até parecer um desvio desnecessário ao foco central em torno do qual giram as reflexões, isto é, “A Natureza como  Síntese”. Entretanto, elas fazem todo o sentido nesse contexto na medida em que apontam nessa direção. 

A  partir do ponto de vista de que  todas as espécies vivas, incluindo o homem, são o resultado da evolução global da vida na terá, alguns aspectos dessa gênese dessa história sugerem um aprofundamento da reflexão que desenvolvemos  até aqui. O primeiro fato é a evidência de que a vida na terra tem  o seu ponto de partida nas “arqueobactérias”, formas primitivas e relativamente simples que marcam a transição entre o orgânico não  vivo e o propriamente vivo. Pelos dados fornecidos pelos métodos de datação da cronologia terrestre disponíveis, os vestígios de vida mais remotos são encontrados em formações rochosas que datam de cerca de  3,5 bilhões de anos. Trata-se de diferentes formas de micróbios, os quais, presume-se, que eram dotados da capacidade de armazenar informações, quem sabe pelo DNA. Auto-reproduziam-se além de dotadas de um potencial indefinido de evoluir para inúmeras formas de vida. Dessas formas de vida é legítimo concluir que, pelos mecanismos e leis da evolução, descendem todas as espécies de seres vivos que compõem atualmente a biosfera. Pelo que a evolução tem a apresentar como responsável por essa fantástica ascensão do simples lá no começo ao extremo da complexidade de hoje, desde  então até o estágio atual da natureza viva, não houve rupturas, não se percebem “lacunas” que não sejam explicáveis pela ciência, até a chegada do homem. A dinâmica evolutiva é continua e ininterrupta e caracteriza-se pela complexificação ascendente e pela capacidade inesgotável de produzir novas espécies e descartar ao longo dessa trajetória aquelas que as mutações em combinação com as alterações do meio ambiente, tornam menos competitivas. O que de momento interessa nesse processo é a complexificação. que, aliás, representa um dos conceitos-chave sobre os quais  Teilhard de Chardin apoia a sua grandiosa síntese do universo e da natureza. Para ele a complexificação ascendente permite uma manifestação cada vez mais explicita da consciência. Presente rudimentarmente nas formas mais arcaicas de vida ela vai aflorando na medida em que as formas de vida se complexificam, até o refinamento extremo nas formas mais evoluídas, orientando os instintos que garantem segurança e competitividade.

No topo dessa complexidade  anatômica e fisiológica, somada à plena tomada de consciência do mundo que o rodeia, situa-se o homem. Até aqui tudo muito certo e muito lógico. Um senão, porém, vem a essa altura complicar a lisura dessa história. O homem tem tudo perfeitamente igual ao mundo animal, inclusive seu instintos, consciência, inteligência e conhecimento daquilo que o cerca. Acontece entretanto que ele ocupa uma posição, não mínimo singular, senão qualitativamente diferente, pela inteligência reflexa com a qual é capaz de avaliar os objetos que encontra, as realidades com se defronta, as situações em que é obrigado a movimentar-se. A isso soma-se a lei moral que confere a capacidade única de avaliar os seus atos e os dos seus semelhante,  distinguindo entre o certo e o errado, livre para optar por caminhos alternativos, inclusive equivocados ou de auto destruição. Dessa forma o ser humano dispõe de liberdade  de opção e  e da tomada de  decisões alternativas. E onde há liberdade de escolha, onde, portanto, há possibilidades, há esperança e onde há esperança a realização plena é possível, “o bem como tal” é possível, conforme racionou o filósofo da esperança, Ernst Bloch.

Essas reflexão até pode parecer um desvio estranho no caminho que estamos seguindo. Salvo melhor juízo, não é. Serviu para mostrar como a espécie humana ocupa definitivamente o topo da ascensão biológica. Mais. Ela parece ter atingido o limite das possibilidades puramente genético-evolutivas para avançar mais. O fato é que essa base constitui-se na condição sem a qual  a inteligência  reflexa e demais características superiores exclusivas da espécie humana, se possam manifestar. Em outras palavras. A natureza biológica específica do homem, fruto do processo biológico da evolução, desenvolveu os instrumentos por meio dos quais, ele é capaz de ativar a sua capacidade racional, de articular sons numa escala inexistente  entre as espécies animais e fazer valer as exigências da Lei Moral. Mal comparando a evolução genético-biológica põem à disposição os instrumentos que permitem ao homem executar suas sinfonias, expressar por mil modalidades de linguagens o seu universo cultural e intercambiá-lo com seus semelhantes, fixá-lo nas mais diversas formas de escrita, transmiti-lo às novas gerações. Em outras palavras novamente a evolução preparou as cordas vocais como instrumentos da fala, não porém, “o que”  é para ser transmitido. Preparou o violino mas não as melodias que o virtuose é capaz de estrair dele. O especialista em linguagem Daniel Everett lançou um livro com significativo título: “Language a Tool of Culture” – “A Linguagem uma Ferramenta  da Cultura”, no qual defende uma posição muito próxima para a linguagem, daquela de Dobzhansky. 

Da mesma forma como os genes determinam nossa capacidade de falar, não o que dizemos, os princípios éticos que aceitamos não provêm da nossa herança biológica, senão pela cultural. A evolução biológica do homem previu a base orgânica para sua evolução cultural. Por servir como base do progresso cultural ela não deve ser apenas preservada nos limites do possível, senão também aperfeiçoada e valorizada. A planificação da evolução humana, incluindo a biológica, a biologia deve ser direcionada para a perspectiva  da herança espiritual e cultural do homem. Neste contexto inclui-se a religião, a filosofia, a arte e o conjunto do conhecimento e experiência acumulado pela humanidade. (Dobzhnsky, 1969,  p. 177)

Essas informações de Dobzhansky somadas às muitas outras que encontramos no decorrer dessas reflexões, subsidiam, cada uma à sua maneira, a tese de que a Natureza constitui-se numa monumental síntese. Na perspectiva sistêmica ou organísmica de Ludwig von Bertalanffy , na compreensão de Teilhard de Chardin e de Balduino Rambo, o universo, a natureza e todas formas de vida nela encontráveis, extintas ou não, são o resultado dessa síntese, formando por assim dizer um “super-sistema”. E o próprio conceito de sistema ou organismo afirmam implicitamente que os sub-sistemas que compõem o todo são, por sua vez e à sua maneira, resultado de uma síntese. Edward Wilson, pesquisando formigas e outros insetos e observando ecossistemas naturais e humanizados chegou à conclusão de que a Natureza é um Fato objetivo”, isto é, resultado de uma síntese. Francis Collins estudando as características do genoma humano como sendo o  responsável por um surpreendente parentesco biológico entre todas as formas de vida, desde as mais rudimentares até as mais evoluídas, incluindo o homem, formulou o conceito de “BioLogos”  para fazer entender como, a partir dos dados da genética,  resultou a síntese de que nos estamos ocupando.

Mas há um outro aspecto paralelo a essa linha de interpretar a natureza que, embora controversa entre os que se ocupam com essa temática que não pode se desprezada, apresentada  por Collins e que pode ser percebida nas entre linhas dos demais. Referimo-nos as diversas interpretações de como a evolução preparou o caminho para possibilitar o surgimento do homem. Foi apresentada na sua forma extrema pela teoria “antrópica”, pela qual a natureza existe em função do homem, preparando o terreno para tal  e as condições para se desenvolver biológica e culturalmente objeto dos comentários de Collins (cf. A Linguagem de Deus, p.). Implícita nessa maneira de interpretar o acontecer da história da vida, teve como finalidade o homem, o que significa que foi orientado por uma teleologia.

Dobzhansky concluiu seu livro sobre a “Hereditariedade e Natureza do Homem” com uma reflexão que faz todo o sentido para aqueles que se preocupam  com a saúde do nosso planeta, a nossa morada, a nossa pátria, a nossa querência ou a “nossa mãe e pátria”.

A evolução levou o homem a uma encruzilhada da qual não há escapatória e não permite voltar atrás. Nosso passado animal ficou irremediavelmente perdido. Nem querendo não é possível retornar a ele. Está em questão de um lado o ocaso cultural e biológico e, do outro, uma progressiva adaptação da cultura ao lastro hereditário dos genes e suas mutações e, do outro a cultura induzindo as mutações nos  genes. Vem aqui  ao caso a metáfora de Nietzsche que imagina a humanidade equilibrando-se sobre uma corda estendida sobre um  abismo. Na primeira alternativa a humanidade não chega na outra borda do precipício. Cai no abismo antes de a alcançar. Na segunda o condicionamento recíproco entre os genes e a cultura, garante, apesar dos pesares, alcançar  a outra margem. Está nas mãos do homem escolher a alternativa certa para que a travessia ocorra sem um catástrofe definitiva e irreversível. Uma postura otimista permite acreditar que a espécie humana não se precipite no abismo. Já que a nossa época é caracterizada por muitos como a idade da ansiedade é preciso contrapor-lhe uma boa dose de otimismo. Dobzhansky declara-se otimista embora a ansiedade domine uma alta porcentagem das pessoas. Seu otimismo provem da convicção de que a natureza e o homem são frutos da evolução e a humanidade junto com a natureza continuarão evoluindo indefinidamente para o futuro. Olhando em nosso derredor constatamos que existe um enorme volume de fealdades, temperadas por não menos belezas; há muita coisa boa acontecendo, como também muito coisa abominável. O que deve prevalecer não é o pessimismo destruidor mas o otimismo e consequentemente a esperança criadora. O mundo não foi criado de forma estática por uma única ação criadora, A criação não é um ato isolado mas um processo, cujo êxito não pode ser garantido pela evolução. Entretanto, o homem tem todas as condições de lutar para que o processo não termine num beco sem saída. Na última frase do seu livro, Dobzhansky conclui sua reflexão: “Sem dúvida o homem está de posse das ferramentas para assegurar êxito e essa é uma batalha que confere significado e dignidade à vida humana individual e coletiva. Permita-me repetir, a evolução confere esperança”. (Dobzhansky, 1969,  p. 178).

A Natureza como Síntese - 69

Dito isso analisemos com mais detalhes o que Dozhansky propõe no último capítulo do seu livro: “Para onde vai a Humanidade?”, em relação à síntese que é tema central das reflexões que vimos fazendo até aqui. Nele o autor nos  brinda  com elementos preciosos para fundamentar a tese de que a natureza e, como personagem principal a espécie humana, formam uma “Grande Síntese”. Na sua compreensão o polo de convergência da natureza e por isso mesmo de todo o esforço da ciência, devem ter a compreensão do homem  como objetivo maior. É sua a reflexão.

A ciência deve ser antropocêntrica, o que quer dizer ter o homem como referência. Algumas vezes define-se a ciência básica, fundamental e teórica, como método para compreender o mundo. A ciência prática ou a tecnologia é um método para transformar o mundo em função da vontade e das aspirações do homem. É perfeitamente razoável que o conhecimento do mundo seja útil, melhor indispensável, para determinar quais as mudanças serem efetuadas, como fazê-las, para que beneficiem a humanidade. Não há dúvida de que a inter-relação e a ciência básica deve ser interpretada de modo amplo. O conhecimento das partículas subatômicas, dos átomos e das moléculas, organismos inferiores e superiores, das montanhas e oceanos, dos planetas, sóis e galáxias, ajuda ao ser humano no seu esforço de compreender-se a si mesmo e sua lugar no universo.

Quem é o homem, donde vem e para onde vais? É questionável que  a ciência por si só esteja em condições de  responder definitivamente essas interrogações; certamente as melhores inteligências seriam impotentes  diante delas sem dispor de conhecimentos científicos. (Dobzhansky, 1969, p. 150)

A essa reflexão o autor acrescentou os versos do poeta Omar Khayyam que viveu há oito séculos passados, condensando em poucas palavras a mesma problemática: “Chegamos a este mundo sem saber porque; Nem de onde, queiras ou não, como a água que flui; e partimos dele como o vento do deserto, para onde não sei, queiras ou não”. (idem, º. 151). Ao poeta soma a opinião do filósofo, Nietzsche. “O ser humano é uma corda estendida entre os animais  e o super-homem, uma corda estendida sobre um abismo. (idem, p. 151). Não consta que Darwin, assim como muitos outros cientistas, a maioria presumivelmente, não conheceram  Omar Khayyam, muito menos inspiraram-se em seus versos. O fato é que a ciência e os cientistas estão direta ou indiretamente comprometidos em achar respostas para as perguntas formuladas pelo poeta. Sem dúvida progrediu-se muito neste sentido nos últimos dois séculos. Nos laboratórios, nas pesquisas de campo observando o acontecer da natureza na sua prodigiosa complexidade, abriram milhares de caminhos e trilhas, sonhando em contribuir para dar sempre mais respostas parciais, convergindo para uma que seja a final e a conclusiva. 

Dobzhansky demora-se em explorar a riqueza de sentido da metáfora de Nietzsche. O homem como espécie biológica ainda não concluiu a evolução. Já venceu uma boa parte da sua travessia por cima do abismo. Será que logrará chegar são e salvo na  outra margem, ou seu destino é precipitar-se do alto e terminar com sua história truncada no meio do caminho. Na verdade três são os desfechos possíveis. Ou a evolução termina no super-homem de Nietzsche; ou uma hecatombe nuclear ou vinda de fora, do universo, rompe a corda e a humanidade termina no fundo do abismo; ou a evolução encontra condições para continuar sua marcha até esgotar todo o seu potencial e a biosfera e com ela a espécie humana,  se apagam  como uma vela que esgotou a cera que a alimenta. Não faz sentido apostar em um desses desfechos pois, em última análise não interfere na essência da natureza humana. O próprio super-homem de Nietzsche não seria uma nova espécie humana, mas um novo patamar previsto e efetuado pelo curso normal da evolução.

Depois dessas considerações, Dobzhabsky demora-se em insistir que a espécie humana, apesar dos pesares, não deixa de ser um fenômeno único, Leitmotiv da sinfonia que confere sentido e razão de ser à harmonia da natureza; que  a cultura não se transmite pelas células sexuais e portanto, não pelos genes, mas é individualmente adquirida por cada pessoa, pela convivência com pais, irmãos, vizinhos, seu entorno social, a tradição oral  e escrita ou perpetuada de qualquer outra forma; que a fase decisiva na transmissão da cultura é na infância e, num sentido mais amplo, a socialização começa no nascimento e estende-se até a morte; que a transmissão da cultura acontece independente da identidade étnica e por isso somos todos, de alguma maneira herdeiros tanto dos personagens proeminentes da história, quanto dos anônimos protagonistas  das conquistas culturais desde o remoto paleolítico, até hoje; que a cultura evolui e continua evoluindo como os genes, porém, acionada não por mecanismos biológicos, mas por mecanismos e leis próprias. A evolução biológica e a evolução cultural são fenômenos análogos e não homólogos, por isso mesmo um não é passível de redução no outro. Esse reducionismo espalhou uma grande confusão entre cientistas, historiadores, sociólogos e políticos, Transformada em ideologia política serviu de base para desqualificar  raças supostamente inferiores geneticamente e por isso incapazes de ascender em direção ao “super-homem” imaginado por Nietzsche. O exemplo em cultura pura foi o nacional socialismo que elegeu a “raça ariana” como a predestinada a realizar essas façanha e desqualificar todas as demais como inferiores e merecedoras  de extermínio. De qualquer forma essa confusão reina em grau mais ou menos acentuado onde quer que se pratica a  discriminação  motivada pelo argumento “raça”. Essa confusão é universal no tempo e no espaço. Onde  quer que tenham vivido raças humanas de cores, estatura e compleição física diferentes, o racismo esteve e está de alguma forma presente. Segundo essa concepção a evolução biológica e a evolução cultural estariam condicionadas à mutação dos genes. Seria, portanto, um processo homólogo e reducionista em que a cultura na sua essência é o resultado do DNA como a cor da pele ou as papilas dos dedos. O autor exemplifica a questão com os avanços espetaculares verificados nos últimos séculos em todos os setores da atividade humana e chama a atenção ao fato de  “que milhões de trabalhadores que na atualidade manejam complicadas máquinas são filhos  e netos de camponeses e lavradores que apenas sabiam cultivar a terra. Para essa mudança certamente não foi necessário esperar a mutações genéticas para transformar  camponeses em engenheiros.  (Dobzhansky, 1969, p. 154). 

A posição oposta à que prega o determinismo genético afirma que a identidade genética da humanidade é de tal ordem que não deve ser tomada em consideração quando o assunto é cultura, relacionamento social, político e procedimentos econômicos. Justifica-se  pela reação normal de que um extremo provoca reações extremas opostas. Novamente a saída defendida pelo autor, segue um caminho intermediário assim descrito por ele. 

Não há dúvida que a capacidade da espécie humana não surgiu repentinamente em algum remoto antepassado nosso: pelo contrário, deve ter evoluído gradualmente. Tão pouco essa capacidade é constante; varia de tempos em tempos e de individuo para indivíduo. Os genes humanos permitem que o homem adquira uma cultura com maior ou menor facilidade, mas a diferença do que os racistas sustentam, os genes não determinam o tipo de cultura de que se apropria, da mesma maneira que os genes permitem que o homem fale, mas não permitem o que ele fala. A continuidade e o desenvolvimento da cultura somente é possível na medida em que preserve e aperfeiçoe sua base genética. (Dobzhansky, 1969,  p, 155).

Continuando, Dobzansky defende com argumentos vindos da genética de que o homem é descendente de um ancestral comum como os símios antropoides. Defende o pensamento absolutamente dominante de que foram as mutações genéticas que o tornaram talvez o mais competitivo e o mais bem sucedido de todas espécies de mamíferos. “Fazem milhões de anos, nossos antepassados eram animais pouco numerosos e inconspícuos que aparentemente viviam na África; atualmente o homem é um verdadeiro cosmopolita, que vive em todas as partes do mundo” (Dozhansky, idem, p. 157). Pelo que é legítimo concluir das afirmações do autor até aqui, as mutações  que ocorreram na espécie humana no decorrer de sua gênese, fizeram com que se transformasse numa das mais bem adaptadas pela versatilidade que seu genoma lhe proporciona.  Salvo melhor juízo penso que aqui escapou ao ilustre geneticista um detalhe que não parece de pouca importância. Observando bem a estrutura anatômica ficam visíveis algumas características que colocam o homem em situação de inferioridade aos animais,  tomando em consideração a   competição seletiva ao nível instintivo. Observando as mãos sob os aspecto anatômico elas não oferecem especialização às vezes levada quase a exagero nos animais. Isso  faz com que não sirvam para nada em termos de execução de uma tarefa qualquer, como por ex., as garras de um tamanduá ou tatu, o casco de um cavalo, os dentes caninos de leão ou os  dentes de um roedor. Acontece que as mãos, os pés, os dente e outros recursos anatômicos do homem são capazes de dar conta de todas essas tarefas, porém, com uma eficiência muito menor do que seus competidores na natureza. As mãos servem para cavar, mas cavam mal, servem para agarrar, mas agarram mal, servem para esmurrar, mas esmurram mal. Aos dentes caninos cabem apenas funções complementares  e  sua utilidade não passa muito além do completar a arcada dentária. Assim poderíamos analisar outros detalhes da anatomia humana comparando-os com os dos animais. Pelo fato, porém, de as mãos, por assim dizer não servirem para nenhuma função especializada, a serviço da inteligência racional transformam-se num instrumento de multi-utilidade a extremos de refinamento improvável no mundo animal. Para ilustrar basta observar o que um violinista é capaz de exigir dos dedos para extrair do instrumento  vibrações nos limites do impossível. Ainda mais o manuseio correto e eficiente da parafernália da informática indispensável para tocar para frente a civilização de hoje, é impensável sem incrível versatilidade das mãos. Considerando bem a evolução anatômica tornou a espécie humana uma das menos competitivas entre seus pares no mundo animal. Entregue somente a seu potencial físico-anatômico a espécie humana quem sabe já teria sido varrido do planeta ou reduzida a uma existência sem brilho. O que então faz com ela é provavelmente a única espécie entre os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, em franca expansão? A resposta vem de uma característica exclusiva da espécie humana: a Inteligência Reflexa. Para entender mais facilmente por que a inteligência reflexa confere tamanha vantagem competitiva, já os antigos gregos parecem ter encontrado uma resposta que satisfaz até hoje. Para eles, a natureza foi estruturada sobre níveis de complexidade ascendentes, ou seja: os minerais existem, os vegetais existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. A capacidade do raciocínio, se preferirmos, da inteligência reflexa, faz a diferença. De um lado a espécie humana tem as suas raízes  como espécie existencialmente mergulhadas no reino vegetal e no reino animal. Como as  plantas e animais sua existência biológica é comandada pelas mesmas leis gerais da biologia. Vegeta como a plantas, sente, tem consciência, memória e inteligência como os animais, principalmente os mamíferos que lhe são taxonomicamente mais próximos. Supera entretanto, esses níveis pela inteligência reflexa, pela capacidade de raciocinar. Em outras palavras. Um cachorro ou um macaco sabem coisas, mas o homem é o único a saber o “porque” do seu saber. Os animais morrem mas o homem é o único que sabe que vai morrer. Essa capacidade de tomar consciência de uma situação ou de um fato, observá-lo, interpretá-lo, encontrar soluções alternativas para lidar com ele, escolher o caminho que parece o mais acertado para solucionar desafios, são todas operações mentais que só se observam no comportamento do homem e dependem de raciocínio, de inteligência reflexa. É nessa prerrogativa que deve ser buscada a enorme vantagem competitiva para a sobrevivência, sobre os demais seres vivos que com ele disputam o espaço e os meios de sobrevivência. O próprio Dobzhansky resumiu  essa superioridade em competir ao observar que o mais notável é que tantos outros organismos impõem-se ao meio ambiente mudando os genes, o ser humano o faz geralmente modificando a cultura, adquirida e transmitida por aprendizado. Com efeito numerosas espécies de animais adaptaram-se a climas frios desenvolvendo espessas proteções de lã ou pelos, hibernando durante o período de frio; o homem dominou o frio acendendo um fogo e confeccionando vestimentas para abrigar-se. A adaptação por meio da cultura é muitíssimo mais rápida e eficiente do que a adaptação genética; uma nova ideia ou acontecimento, criado por uma só pessoa, pode converter-se em patrimônio da humanidade num espaço de tempo relativamente curto. (Dobzhansky, 1969,  p. 157)

A Natureza como Síntese - 68

A visão sintética da natureza de Dobzhansky a partir da genética.  O que é legítimo concluir do que se acaba de comenta? Dobzhansky apresenta uma resposta a partir de sua especialidades de geneticista, válida na sua essência para cientistas em qualquer uma das áreas da Ciências Naturais. Ao apresentar o livro “A Herança e a Natureza Humana” a bases que nos servirá de guia para as reflexões que seguem, chama a atenção ao fato de que a obra é fruto da série “Holiday Science Lectures”, patrocinada pela Sociedade Americana para o Progresso da Ciência em 1963 e  1964. O objetivo da série de estudos e reflexões foi assim resumido: “ampliar os horizontes científicos do público, e compartilhar com ele uma parte da emoção e inspiração do esforço científico.

Dos numerosos avanços da ciência, a ciência da hereditariedade, é um dos mais impressionantes. Evidentemente a genética não inventou uma nova superbomba, nem consegue competir com a sensação romântica oferecida pelas viagens interplanetárias. O interesse e a importância da genética são definidos por outras razões. Há mais de dois milênios os sábios gregos descobriram que “o conhecer-se a si mesmo”, é base de toda a sabedoria. Talvez a principal finalidade da genética, da biologia e da ciência em geral – ou pelo menos um deles  -  consiste  em ajudar o homem a compreender-se a si mesmo e tomar consciência do seu lugar no universo.

Por meio deste livro não se pretende cobrir o campo todo da genética. Nosso objetivo principal serão os aspetos humanísticos da genética, que vale dizer enfocar os dados, as ideias e as concussões básicas mais significativas para o homem, sua origem e seu futuro. (Dobzhansky, 1969, p. 11)

O corpo da obra “Herança e a Natureza humana” é dedicado à análise das conquistas da genética até 1975, ano do falecimento do cientista. Introduz o capítulo  primeiro intitulado “A Natureza da Hereditariedade” apresentando um panorama do crescimento exponencial da humanidade, numa taxa média anual de 1,8%. De 2.015.000.000 em 1930, pulou para 2.509.000.000 em 1950 e em 1961 já subira para 3.069.000.000. Hoje, 2015 constatamos a impressionante cifra de ------------ Essa situação mostra que a densidade populacional vai se intensificando, na razão direta do aumento populacional. Os homens agrupam-se mais e mais e confluem para centros urbanos, metrópoles e megalópoles cada vez mais gigantescas. Viver como eremita no deserto, afirma o autor é geograficamente impossível pois, até os desertos transformaram-se em lugares de lazer, em campos de exploração de petróleo, em complexos tecnológicos, como por ex., o Vale do Silício nos Estados Unidos. As florestas tropicas e subárticas assim como as ilhas mais distantes nos oceanos, as proximidades dos polos recebem ininterruptamente cientistas, exploradores e complexos de instalação para explorar recursos naturais. “O homem é obrigado assumir-se cada vez mais, de acordo com a definição de Aristóteles  - como politikón zoon, como animal social, como animal da cidade, como animal “político”. (Dobzhansky, 1969, p. 13.

Os seres humanos além de formar uma espécie taxonômica com as características  comuns  que permitem sua classificação nessa categoria zoológica, como as demais, apresenta, ao mesmo tempo, uma variedade individual que vai ao extremo. Não há duas pessoas perfeitamente idênticas. Desde que foi constatado que as impressões digitais são prova de identificação, até hoje, não há notícia da existência de coincidência no desenho das papilas entre duas pessoas, tanto assim que continuam como prova conclusiva da identidade ou não, em casos de dúvida. Nem mesmo os gêmeos idênticos são realmente idênticos, são isso sim, menos diferentes. Dobzansky chama à atenção ao fato de que por mais parecidos entre si pareçam os indivíduos de uma espécie, uma observação mais atenta mostra que também  entre os animais e as plantas, há traços que os identificam como individualidades. A resposta a essa constatação  deve ser procurada na combinação dos efeitos da herança genética e a influência do meio ambiente em que as pessoas se encontram. “Uma  pessoa  qualquer, com todas as suas características físicas, mentais e culturais é produto da interação entre natureza e alimentação, hereditariedade e ambiente” (Dobzhansky, p. 14). Sendo assim tanto o determinismo genético, quanto o determinismo ambiental, levados ao exagero, distorcem o que de fato ocorre com o homem e, por extensão com os animais e plantas. No caso do homem somam-se à base genética e à influência do meio geográfico, as características culturais com todos os seus desdobramentos. Conclui-se daí que,  as incontáveis modalidades das condições geográficas e as condições culturais, colaboram com outras tantas modificações nos indivíduos, ressalvado o potencial genético de cada pessoa ou indivíduo de uma determinada espécie. 

O código genético como fundamento da identidade biológica de todos os seres vivos, das arqueobactérias ao  elefante e o homem, das algas diatomácias até uma araucária várias vezes secular, apresenta os mesmos elementos químicos básicos, o mesmo DNA,  o mesmo plano estrutural e os mesmos reflexos nos indivíduos. Representa assim um poderoso argumento, talvez o mais consistente,  em favor da “síntese” da natureza. Vale lembrar que Francis Collins encontrou esse argumento em favor da natureza como síntese, também no campo da genética, enquanto Wilson o foi buscar nas observação dos insetos e ecossistemas naturais e humanizados que a natureza é um “Fato objetivo”. Theilard de Chardin chegou à mesma  conclusão partindo da paleoantropologia, Bertalanffy da biologia. Os caminhos e as abordagens  são diferentes mas todas convergem “para Roma”, isto é, todos sinalizam para uma grande síntese.

No capítulo I, Dobzansky explica  exaustivamente o papel das células sexuais; como os cromossomas e genes conduzem a herança genética; qual a composição química dos cromossomas e os mecanismos de auto multiplicação relacionam-se com  origem da vida. Dedica o capítulo II à “Multifacética  Natureza Humana”. Nele aprofunda a questão da individualidade do homem  na unidade da humanidade; genótipo e fenótipo; estudo dos gêmeos; as modificações induzidas pelo meio ambiente. No capítulo III discute a questão da raça, as diferenças individuais e da coletividade, a raça como fenômeno biológico, as frequências genéticas humanas, uma possível classificação das raças humanas, raça, inteligência e personalidade, um elogio à diversidade. O capítulo IV leva como título: “A Tara Genética e o Perigo das Radiações”, com os subtítulos: Evolução, mutação, as mutações no homem, tipos de mutação e suas causas, a maioria das mutações é prejudicial, seleção natural, tara genética, condições genéticas ambivalentes, genética e o perigo das radiações. Esses quatro capítulos, como se perceber pelos assuntos enfocados neles, ocupam-se com a fundamentação da natureza humana, bases genéticas e interação do meio ambiente com essas bases. Não é o lugar aqui para profundar os aspectos científicos e técnicos desse fundamento, pois, o interesse nas presente reflexões  é aprofundar a tese da “Natureza como Síntese”.