A Natureza como Síntese - 69

Dito isso analisemos com mais detalhes o que Dozhansky propõe no último capítulo do seu livro: “Para onde vai a Humanidade?”, em relação à síntese que é tema central das reflexões que vimos fazendo até aqui. Nele o autor nos  brinda  com elementos preciosos para fundamentar a tese de que a natureza e, como personagem principal a espécie humana, formam uma “Grande Síntese”. Na sua compreensão o polo de convergência da natureza e por isso mesmo de todo o esforço da ciência, devem ter a compreensão do homem  como objetivo maior. É sua a reflexão.

A ciência deve ser antropocêntrica, o que quer dizer ter o homem como referência. Algumas vezes define-se a ciência básica, fundamental e teórica, como método para compreender o mundo. A ciência prática ou a tecnologia é um método para transformar o mundo em função da vontade e das aspirações do homem. É perfeitamente razoável que o conhecimento do mundo seja útil, melhor indispensável, para determinar quais as mudanças serem efetuadas, como fazê-las, para que beneficiem a humanidade. Não há dúvida de que a inter-relação e a ciência básica deve ser interpretada de modo amplo. O conhecimento das partículas subatômicas, dos átomos e das moléculas, organismos inferiores e superiores, das montanhas e oceanos, dos planetas, sóis e galáxias, ajuda ao ser humano no seu esforço de compreender-se a si mesmo e sua lugar no universo.

Quem é o homem, donde vem e para onde vais? É questionável que  a ciência por si só esteja em condições de  responder definitivamente essas interrogações; certamente as melhores inteligências seriam impotentes  diante delas sem dispor de conhecimentos científicos. (Dobzhansky, 1969, p. 150)

A essa reflexão o autor acrescentou os versos do poeta Omar Khayyam que viveu há oito séculos passados, condensando em poucas palavras a mesma problemática: “Chegamos a este mundo sem saber porque; Nem de onde, queiras ou não, como a água que flui; e partimos dele como o vento do deserto, para onde não sei, queiras ou não”. (idem, º. 151). Ao poeta soma a opinião do filósofo, Nietzsche. “O ser humano é uma corda estendida entre os animais  e o super-homem, uma corda estendida sobre um abismo. (idem, p. 151). Não consta que Darwin, assim como muitos outros cientistas, a maioria presumivelmente, não conheceram  Omar Khayyam, muito menos inspiraram-se em seus versos. O fato é que a ciência e os cientistas estão direta ou indiretamente comprometidos em achar respostas para as perguntas formuladas pelo poeta. Sem dúvida progrediu-se muito neste sentido nos últimos dois séculos. Nos laboratórios, nas pesquisas de campo observando o acontecer da natureza na sua prodigiosa complexidade, abriram milhares de caminhos e trilhas, sonhando em contribuir para dar sempre mais respostas parciais, convergindo para uma que seja a final e a conclusiva. 

Dobzhansky demora-se em explorar a riqueza de sentido da metáfora de Nietzsche. O homem como espécie biológica ainda não concluiu a evolução. Já venceu uma boa parte da sua travessia por cima do abismo. Será que logrará chegar são e salvo na  outra margem, ou seu destino é precipitar-se do alto e terminar com sua história truncada no meio do caminho. Na verdade três são os desfechos possíveis. Ou a evolução termina no super-homem de Nietzsche; ou uma hecatombe nuclear ou vinda de fora, do universo, rompe a corda e a humanidade termina no fundo do abismo; ou a evolução encontra condições para continuar sua marcha até esgotar todo o seu potencial e a biosfera e com ela a espécie humana,  se apagam  como uma vela que esgotou a cera que a alimenta. Não faz sentido apostar em um desses desfechos pois, em última análise não interfere na essência da natureza humana. O próprio super-homem de Nietzsche não seria uma nova espécie humana, mas um novo patamar previsto e efetuado pelo curso normal da evolução.

Depois dessas considerações, Dobzhabsky demora-se em insistir que a espécie humana, apesar dos pesares, não deixa de ser um fenômeno único, Leitmotiv da sinfonia que confere sentido e razão de ser à harmonia da natureza; que  a cultura não se transmite pelas células sexuais e portanto, não pelos genes, mas é individualmente adquirida por cada pessoa, pela convivência com pais, irmãos, vizinhos, seu entorno social, a tradição oral  e escrita ou perpetuada de qualquer outra forma; que a fase decisiva na transmissão da cultura é na infância e, num sentido mais amplo, a socialização começa no nascimento e estende-se até a morte; que a transmissão da cultura acontece independente da identidade étnica e por isso somos todos, de alguma maneira herdeiros tanto dos personagens proeminentes da história, quanto dos anônimos protagonistas  das conquistas culturais desde o remoto paleolítico, até hoje; que a cultura evolui e continua evoluindo como os genes, porém, acionada não por mecanismos biológicos, mas por mecanismos e leis próprias. A evolução biológica e a evolução cultural são fenômenos análogos e não homólogos, por isso mesmo um não é passível de redução no outro. Esse reducionismo espalhou uma grande confusão entre cientistas, historiadores, sociólogos e políticos, Transformada em ideologia política serviu de base para desqualificar  raças supostamente inferiores geneticamente e por isso incapazes de ascender em direção ao “super-homem” imaginado por Nietzsche. O exemplo em cultura pura foi o nacional socialismo que elegeu a “raça ariana” como a predestinada a realizar essas façanha e desqualificar todas as demais como inferiores e merecedoras  de extermínio. De qualquer forma essa confusão reina em grau mais ou menos acentuado onde quer que se pratica a  discriminação  motivada pelo argumento “raça”. Essa confusão é universal no tempo e no espaço. Onde  quer que tenham vivido raças humanas de cores, estatura e compleição física diferentes, o racismo esteve e está de alguma forma presente. Segundo essa concepção a evolução biológica e a evolução cultural estariam condicionadas à mutação dos genes. Seria, portanto, um processo homólogo e reducionista em que a cultura na sua essência é o resultado do DNA como a cor da pele ou as papilas dos dedos. O autor exemplifica a questão com os avanços espetaculares verificados nos últimos séculos em todos os setores da atividade humana e chama a atenção ao fato de  “que milhões de trabalhadores que na atualidade manejam complicadas máquinas são filhos  e netos de camponeses e lavradores que apenas sabiam cultivar a terra. Para essa mudança certamente não foi necessário esperar a mutações genéticas para transformar  camponeses em engenheiros.  (Dobzhansky, 1969, p. 154). 

A posição oposta à que prega o determinismo genético afirma que a identidade genética da humanidade é de tal ordem que não deve ser tomada em consideração quando o assunto é cultura, relacionamento social, político e procedimentos econômicos. Justifica-se  pela reação normal de que um extremo provoca reações extremas opostas. Novamente a saída defendida pelo autor, segue um caminho intermediário assim descrito por ele. 

Não há dúvida que a capacidade da espécie humana não surgiu repentinamente em algum remoto antepassado nosso: pelo contrário, deve ter evoluído gradualmente. Tão pouco essa capacidade é constante; varia de tempos em tempos e de individuo para indivíduo. Os genes humanos permitem que o homem adquira uma cultura com maior ou menor facilidade, mas a diferença do que os racistas sustentam, os genes não determinam o tipo de cultura de que se apropria, da mesma maneira que os genes permitem que o homem fale, mas não permitem o que ele fala. A continuidade e o desenvolvimento da cultura somente é possível na medida em que preserve e aperfeiçoe sua base genética. (Dobzhansky, 1969,  p, 155).

Continuando, Dobzansky defende com argumentos vindos da genética de que o homem é descendente de um ancestral comum como os símios antropoides. Defende o pensamento absolutamente dominante de que foram as mutações genéticas que o tornaram talvez o mais competitivo e o mais bem sucedido de todas espécies de mamíferos. “Fazem milhões de anos, nossos antepassados eram animais pouco numerosos e inconspícuos que aparentemente viviam na África; atualmente o homem é um verdadeiro cosmopolita, que vive em todas as partes do mundo” (Dozhansky, idem, p. 157). Pelo que é legítimo concluir das afirmações do autor até aqui, as mutações  que ocorreram na espécie humana no decorrer de sua gênese, fizeram com que se transformasse numa das mais bem adaptadas pela versatilidade que seu genoma lhe proporciona.  Salvo melhor juízo penso que aqui escapou ao ilustre geneticista um detalhe que não parece de pouca importância. Observando bem a estrutura anatômica ficam visíveis algumas características que colocam o homem em situação de inferioridade aos animais,  tomando em consideração a   competição seletiva ao nível instintivo. Observando as mãos sob os aspecto anatômico elas não oferecem especialização às vezes levada quase a exagero nos animais. Isso  faz com que não sirvam para nada em termos de execução de uma tarefa qualquer, como por ex., as garras de um tamanduá ou tatu, o casco de um cavalo, os dentes caninos de leão ou os  dentes de um roedor. Acontece que as mãos, os pés, os dente e outros recursos anatômicos do homem são capazes de dar conta de todas essas tarefas, porém, com uma eficiência muito menor do que seus competidores na natureza. As mãos servem para cavar, mas cavam mal, servem para agarrar, mas agarram mal, servem para esmurrar, mas esmurram mal. Aos dentes caninos cabem apenas funções complementares  e  sua utilidade não passa muito além do completar a arcada dentária. Assim poderíamos analisar outros detalhes da anatomia humana comparando-os com os dos animais. Pelo fato, porém, de as mãos, por assim dizer não servirem para nenhuma função especializada, a serviço da inteligência racional transformam-se num instrumento de multi-utilidade a extremos de refinamento improvável no mundo animal. Para ilustrar basta observar o que um violinista é capaz de exigir dos dedos para extrair do instrumento  vibrações nos limites do impossível. Ainda mais o manuseio correto e eficiente da parafernália da informática indispensável para tocar para frente a civilização de hoje, é impensável sem incrível versatilidade das mãos. Considerando bem a evolução anatômica tornou a espécie humana uma das menos competitivas entre seus pares no mundo animal. Entregue somente a seu potencial físico-anatômico a espécie humana quem sabe já teria sido varrido do planeta ou reduzida a uma existência sem brilho. O que então faz com ela é provavelmente a única espécie entre os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, em franca expansão? A resposta vem de uma característica exclusiva da espécie humana: a Inteligência Reflexa. Para entender mais facilmente por que a inteligência reflexa confere tamanha vantagem competitiva, já os antigos gregos parecem ter encontrado uma resposta que satisfaz até hoje. Para eles, a natureza foi estruturada sobre níveis de complexidade ascendentes, ou seja: os minerais existem, os vegetais existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. A capacidade do raciocínio, se preferirmos, da inteligência reflexa, faz a diferença. De um lado a espécie humana tem as suas raízes  como espécie existencialmente mergulhadas no reino vegetal e no reino animal. Como as  plantas e animais sua existência biológica é comandada pelas mesmas leis gerais da biologia. Vegeta como a plantas, sente, tem consciência, memória e inteligência como os animais, principalmente os mamíferos que lhe são taxonomicamente mais próximos. Supera entretanto, esses níveis pela inteligência reflexa, pela capacidade de raciocinar. Em outras palavras. Um cachorro ou um macaco sabem coisas, mas o homem é o único a saber o “porque” do seu saber. Os animais morrem mas o homem é o único que sabe que vai morrer. Essa capacidade de tomar consciência de uma situação ou de um fato, observá-lo, interpretá-lo, encontrar soluções alternativas para lidar com ele, escolher o caminho que parece o mais acertado para solucionar desafios, são todas operações mentais que só se observam no comportamento do homem e dependem de raciocínio, de inteligência reflexa. É nessa prerrogativa que deve ser buscada a enorme vantagem competitiva para a sobrevivência, sobre os demais seres vivos que com ele disputam o espaço e os meios de sobrevivência. O próprio Dobzhansky resumiu  essa superioridade em competir ao observar que o mais notável é que tantos outros organismos impõem-se ao meio ambiente mudando os genes, o ser humano o faz geralmente modificando a cultura, adquirida e transmitida por aprendizado. Com efeito numerosas espécies de animais adaptaram-se a climas frios desenvolvendo espessas proteções de lã ou pelos, hibernando durante o período de frio; o homem dominou o frio acendendo um fogo e confeccionando vestimentas para abrigar-se. A adaptação por meio da cultura é muitíssimo mais rápida e eficiente do que a adaptação genética; uma nova ideia ou acontecimento, criado por uma só pessoa, pode converter-se em patrimônio da humanidade num espaço de tempo relativamente curto. (Dobzhansky, 1969,  p. 157)

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