As reflexões que seguem complementam as 97 anteriores,  com o título geral "A Natureza como Síntese"

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 97

“O bem morar”.

O conceito chave que perpassa como “Leitmotiv” o texto da “Encíclica Laudato si” e ao qual referenciamos as reflexões acima  sobre a natureza e a relação ontológica da espécie humana com ela, vem a ser o entendimento de que ela vem a ser “a nossa a casa”. Parece-me que como  fecho de tudo que vimos afirmando nas páginas que precederam cabe uma reflexão final no sentido de tentar dimensionar a riqueza e a densidade do “humano do homem” implícito nesse conceito, à primeira vista tão trivial e ao mesmo tempo tão óbvio. Em resumo parece importante chamar a atenção ao fato de que a casa é o local, o espaço no qual as pessoas moram. Portanto, uma casa no sentido que aqui emprestamos ao conceito, não pode deixar de oferecer as condições mínimas para um “bem morar”. Mais acima já lembramos que a única espécie viva na terra que “mora” é a humana. As demais, sem exceção, se abrigam, refugiam, se escondem, procuram proteção ou um recanto protegido para se reproduzir. Cavernas, ocos de árvores, tocas cavadas no chão, ninhos de sabiá, casinhas de João de Barro e por aí vai, não são “moradias” no sentido conceituado pela Encíclica. Com essa observação como pano de fundo pretendo dimensionar de alguma forma a importância do “bem morar”, para a satisfação das demandas existências do homem em todas as dimensões, tanto físicas, quanto psicológicas, sociais, artísticas e religiosas. 

Embora o “morar” costume ocupar um lugar um tanto à margem das preocupações filosóficas, Hermann Schmitz, fundador da “Nova Fenomenologia”, citado por Zoborowski, chama atenção à importância do “morar”, na história da humanidade. Trata-se de  um dos fatores determinantes na formatação da personalidade das pessoas e no sadio relacionamento com os demais integrantes de uma sociedade. Com a palavra o filósofo H. Schmitz:

Praticamente todas as pessoas acham que “estão morando”. O que significa isso?  Para responder a essa pergunta entra em questão, em primeiro lugar, uma moradia convencional que oferece todas as condições de um “bem morar”: fazer as refeições, dormir, amar, criar e educar os filhos. Para atender a esses quesitos uma moderna moradia oferece todas as demandas: uma cozinha, sala de jantar, quartos de dormir e quartos para os filhos. Também não pode faltar uma sala de estar. O que acontece aí. “Mora-se”. E o que se entende com esse conceito? Praticamente todas as atividades indispensáveis à vida, menos as relações sexuais e as necessidades fisiológicas, para as quais requerem-se recintos discretos e privativos. De mais a mais incluem-se nos espaços normais um escritório, um local para jogar conversa fora, um local reservado só para a intimidade da família e recepção de convidados, inclusive um canto para não fazer nada. A natureza do “bem morar” não se  esgota, porém, na enumeração dos espaços específicos e suas funções. Trata-se de um ambiente onde acontece a vida naturalmente, sem ter que prestar contas a quem quer que seja incluindo os motivos pelos quais pudesse ser exigido. (W. Schmitz, in Zoborowski, p. 213)

“A casa” onde acontece o “bem morar” materializa-se nos lugares, nos espaços e caminhos ou, resumindo, nas circunstâncias em que se localiza e configuram o cenário em que as pessoas se sentem em casa  - “Zuhause”, onde vivenciam as delícias da intimidade do lar – “Heimatgefühl”, onde se abriga a morada – “das Haus” rodeada das árvores, plantas, arbustos e flores, onde se escuta a sinfonia dos pássaros e animais silvestres, onde os mais diversos animais e aves domésticas convivem com crianças e adultos. Os brinquedos e as diversões da infância inspiram-se nas dádivas da natureza que delimita o cenário que oferece os estímulos que despertam no ser humano desde o remoto despertar da consciência, muitos dos traços mais marcantes da personalidade adulta em toda a sua caminhada futura, mesmo que se prolongue até os 90 ou mais anos. Aquele cenário único, “o Hof”, mesmo desfeito fisicamente com o andar das décadas e sucessão das gerações, acompanha o caminhar da vida e, costuma em inúmeros casos, vir à tona e a ele se retorna na hora da despedida dela. E, para completar o cenário não se podem esquecer a importância dos caminhos que interligam os lugares e espaços. Não importa se são estradas, veredas, trilhas, picadas na floresta ou rios. Arriscando-se por elas como crianças fomos descobrindo os segredos e as surpresas escondidas atrás de cada pedra, na copa das árvores, no silêncio da floresta, nas flores do campo, na brisa da tarde, no assustador da aproximação das trovoadas nas tardes de verão. Depois de décadas, depois de peregrinar por outras veredas, em momentos de retorno ao passado, cruzamos na memória por essas trilhas, veredas e caminhos com os pais, irmãos, parentes, vizinhos, amigos e até forasteiros que há muito tempo já passaram para “outro lado do caminho”, no entender de Santo Agostinho.

Refletindo sobre as características em que acontece o “bem morar” que acabamos de enunciar e descrever, chega-se à conclusão que devido ao estado de agressão à natureza a que a atual civilização avançou, que a concretização desse conceito terminou num problema filosófico e, consequentemente num desafio prático. Ficou difícil encontrar lugares, espaços e caminhos para instalar um morada no sentido tradicional do conceito, isto é, um ambiente no qual as pessoas se sintam existencialmente inseridas, protegidas para dar vasão a todas as demandas do “humano” – “die Menschlikeit”, na qual, em última instância, radica a razão de ser da sua existência. Como causa e, ao mesmo tempo com consequência somam-se a esse cenário sempre novos espaços devorados pelo avanço da urbanização, na maioria dos casos carente de um planejamento adequado. As cidades vão estendendo seus tentáculos  e muitas delas transformam-se em metrópoles e não poucas terminam em gigantescas megalópoles. Nas periferias multiplicam-se os bairros e favelas carentes de água tratada, de saneamento básico, de vias de circulação seguras e infestados por traficantes, assassinos e contraventores da lei de todas as matizes, abrigando uma população de subempregados e desempregados. Nessa dinâmica dissolvem-se os valores  éticos, os valores familiares, os valores do convívio social levando a um comportamento individual e coletivo errático, sem regras, sem compromissos, terminando em rebanhos que se vendem por qualquer preço aos discurso de espertalhões se escrúpulos. A tudo isso soma-se a artificialização em praticamente todas as atividades humanas. 

No contexto desse panorama o “morar” num dos grandes problemas do nosso tempo. Chegou a um ponto em que se pode afirmar que nessas situações as pessoas já não moram. No sentido metafórico perderam o chão debaixo dos pés e já não têm como deitar raízes existenciais. Pensando bem, afirmou Theodor Adorno, citado por Zoborowski, tornou-se impossível morar. Ainda segundo Zoborowski, Martin Heidegger, considerado o filósofo do “bem morar” imaginou e, de fato, concretizou o morar perdido no tempo, numa cabana que mandou construir numa encosta na Floresta Negra sem, entretanto, sugerir um retorno romântico para o passado. Quase diria que com sua cabana Heidegger sonhava com uma utopia. Zoborowski conclui com a observação: Foi preciso sentir com toda a crueza a falta, a carência daquilo que no passado foi realidade e enfrentar o sofrimento da ferida que o mundo de hoje impõe Á perda da “Querência” – “die Heimat”- a perda do “Lar” – “Heim”- a perda do “estar em Casa” – (“das zu Hause”), onde nos sentimos “Em Casa?” Será que existe aquele morar tranquilo onde nossas demandas existenciais se realizam.  E Heideger pergunta: “Será que ainda se pode encontrar  um local onde é dado ao homem viver entre o céu e a terra? Zoborowski conclui: Na melhor das hipóteses, nessa situação de perda, “da Querência” – “Heimat”, tem-se a impressão que ela não passa de uma súplica romântica de volta uma época que irremediavelmente ficou  no passado ou objeto de uma esperança que não passa de uma utopia. Parece-me que entre esses dois extremos um meio termo é possível. Não só  possível como em plena concretização avançando pelo mundo afora, dando razão ao lendário provérbio fruto da sabedoria romana: “in médio stat virtus”, na tradução literal: “a virtude encontra-se no meio termo”. Não se esquecendo que o “bem morar” não se resume numa morada bem planejada, confortável, ampla suficiente, repartições adequadas para atender aos rituais do bem viver de uma família mas, harmonicamente integrado nos lugares, caminhos e espaços que a interligam com as demais moradas. Conclui-se, portanto que “o bem morar” implica na harmonização das obras do homem com a paisagem natural. Em outro momento lembramos como exemplo dessa harmonização da presença do homem com a paisagem natural é possível com acontece no complexo dos Alpes da Suíça, Lichtenstein, norte da Itália e oeste da Áustria, com destaque para o emblemático Tirol do sul pertencente à primeira e o Tirol do Norte à segunda. Um fenômeno semelhante pode ser observado também no sul do Brasil, de maneira mais visível em áreas onde predomina a agricultura familiar. Mais acima já lembramos os cursos médios e superiores dos sete rios que formam a bacia do Guaíba. O mesmo vale, em termos, para as      Missões, Alto Uruguai, centro oeste e leste de Santa Catarina, oeste do Paraná, além de muitas outras regiões do País.  Já a harmonização da presença do homem nos complexos urbanos de médio e grande porte, a solução da organização dos lugares, espaços e caminhos oferece desafios difíceis de enfrentar. Quanto maior for a dimensão dessas cidades, metrópoles e ou megalópoles, tanto mais grave a situação. Neste caso realmente as pessoas tornaram-se reféns e vítimas da sua própria criatura. Nesses casos extremos não tem como não concordar com Adorno, Heidegger e Bolch, resumidos por Zoborowski: “a casa é coisa do passado”.

Depois de todas reflexões acima, inspiradas nos três primeiros três capítulos da Encíclica “Laudato Si”, parece pertinente concluir. Deus criou a natureza e nela inseriu ontolgicamente a espécie humana para viver e sobreviver com os recursos por ela oferecidos; entregou ao homem o “Jardim da Natureza” para cultivá-lo como sendo sua casa e assim torna-lo mais rico; o “cultivo” desandou nos últimos séculos em espoliação, exploração irracional, em agressão ao ponto de por em risco esse “jardim” e com ele a espécie humana; as sirenes de alerta fazem-se ouvir pelo planeta inteiro. Como contraponto a esse cenário nada animador percebe-se o despertar da consciência alertando para a catástrofe desenhando-se no horizonte. Iniciativas de todos tipos e em todos os níveis estão sendo posto em prática para reatar e reforçar os laços da simbiose que liga o homem com a natureza e, dessa forma, tratar essa “Sua Casa” inserida no contexto das circunstâncias do século XXI.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 96

Poderíamos descrever milhares de outras paisagens humanizadas de uma beleza indiscutível. Ao avalia-las não cabe fazer comparações pois, cada uma é única na sua moldagem numa paisagem geográfica única que não se repete e, por isso mesmo, ecoa na alma de uma forma singular. E, por isso mesmo, que a natureza como “casa” da humanidade oferece múltiplas modalidades concretas para o acontecer da simbiose entre a alma e sua “mãe e pátria”. E, para que esse acontecer não passe por desvios e traumas é preciso que a “casa” ofereça as condições indispensáveis para poder ser chamada de “Lar”, de “Querência, de “Heim”, e as milhares de outras maneiras como cada cultura conceitua “o bem morar”. Holger Zoborowski resumiu em poucas linhas a multiplicidade e complexidade dos fatores que entram em cena ao tentarmos entender toda extensão e profundidade do significado do conceito “morar” para o homem.

Independente das diferenças que nos separam, moramos numa complexa rede de espaços e compartimentos que vão da adega (porão) ao telhado, do jardim ao terraço da cozinha, da sala de estar à sala das refeições, dos quartos de dormir e do banheiro. Moramos também em espaços mais amplos: nas ruas e quarteirões da cidade, nas nossas aldeias e cidades, nos nossos países e continentes. De alguma forma moramos em todos esses espaços embora em nossas moradias não caibam esses espaços. Moramos de alguma maneira em todos eles mesmo que na prática ocupem um espaço à margem do dia adia. Acontece que o “morar”, tendo como pano de fundo esse panorama realizamos as inúmeras potencialidades da nossa condição de humanos. (cf. Zoborowski, H.) 

As reflexões que nos levaram até aqui apontam para a conclusão que, em última análise, resumem todas as outras: a inserção ontológica da espécie humana na Natureza pois, o homem é “Adam, o nascido da terra”. Por isso, a Natureza vem a ser a “Sua Casa”. A Natureza vem a ser a “Casa” da humanidade porque como a espécie biológica comunga com as demais, tanto com os micro e nano seres vivos, quanto com as categorias taxonômicas superiores de vegetais e animais, da mesma matéria prima que compõe a natureza mineral, orgânica e viva. A espécie humana obedece às mesmas leis e os mesmos fatores responsáveis pelo surgimento, a evolução, o sucesso, o brilho ou fracasso das demais. A “Nossa Casa” resume-se num gigantesco ecossistema, dividido em incontáveis ecossistemas secundários, moldados pelas inúmeras peculiaridades climáticas, geomorfológicas, hidrológicas, edafológicas, habitados por milhões, senão de bilhões ou mesmo trilhões de espécies vivas, cada uma cumprindo a sua tarefa para que o todo e suas partes se mantenham em equilíbrio. Catástrofes inesperadas como a queda do meteoro gigante na península de Yukatan no México há aproximadamente 66 milhões de anos e que levou à extinção dos dinossauros ou ciclos climáticos, assim como as glaciações, o movimento das placas tectônicas, redesenharam drasticamente a fisionomia do nosso planeta. Entre outros foram ou são eventos globais e foram necessários centenas de milhares ou até dezenas de milhões de anos, para reparar os estragos causados à Natureza. Inúmeras espécies de plantas e animais foram extintas. Outras tantas tomaram o seu lugar. Mas, não se pode esquecer que a par dos  acontecimentos  de dimensões universais, eventuais ou cíclicos, a natureza como um sistema vivo, passa ininterruptamente por reajustes, remodelações, readaptações, comandados pelos processos químicos, pelas leis da física, pela movimentação das placas sólidas que formam a crosta terrestre flutuando sobre o magma em contínua movimentação, pela dinâmica biológica da evolução e todos os demais fatores que comandam o surgimento, a ascensão das espécies vivas e garantem o sucesso e/ou o declínio e extinção de outras tantas. E, somado aos eventos e agentes naturais vem somar-se a intervenção humana praticamente imperceptível durante todo o Paleolítico sobrevivendo e multiplicando-se coletando, caçando e pescando o que a “mãe terra” oferecia espontaneamente. Com a agricultura e a criação de animais começou a longa caminhada da invasão e agressão progressiva dos ecossistemas naturais dando lugar a ecossistemas humanizados. Na mesma cadência do aperfeiçoamento das tecnologias de manejo da terra e a multiplicação dos rebanhos de ovelhas, cabras, bovinos, suínos, aves e outras tantas espécies domesticadas, foram encolhendo os espaços até então ocupados por florestas, savanas, campos naturais, desertos e, principalmente, as terras planas de aluvião no curso médio e inferior dos grandes rios. Com a entrada triunfal da máquina em todas as suas modalidades, o homem foi invadindo, desfigurando e reconfigurando até ao irreconhecível não poucas paisagens naturais da “nossa casa”, ou então dando origem a ecossistemas humanizados de indiscutível beleza. As conquistas tecnológicas dos últimos 50 anos permitiram que a face original do nosso planeta se tornasse quase irreconhecível. Os sinais de perigo piscam e soam em todos os níveis chamando à reponsabilidade pequenos e grandes, ricos e pobres, poderosos e cidadãos comuns, a darem-se as mãos para evitar um colapso irreversível  da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”.  “E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de por em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo”. (Laudato si, 138).


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 95

Montanhas, florestas, vales misteriosos, savanas, pradarias, campos naturais, estepes avançando para além da linha do horizonte, desertos, campos de gelo e neve eterna, lagos, rios e oceanos, fizeram vibrar, cada qual à sua maneira, os arcanos mais profundos da alma das pessoas dotadas de um mínimo de sensibilidade. Os depoimentos que acabamos de registrar são testemunhas desse fenômeno. Castro Alves um dos poetas clássicos da literatura brasileira  viu na configuração dos morros em torno do Rio de  Janeiro um “ gigante orgulhoso de fero semblante num leito de pedra jazes a dormir”. E, dado à sua importância, vamos buscar mais alguns exemplos em outros continentes. 

“A Beleza, o Belo sempre antigo e sempre novo” – a “Pulchritudo semper antigua et semper nova” de Santo Agostinho, tem uma das suas expressões mais emblemáticas nos Alpes. Suas montanhas que sobem até perto de 5.000 metros cobertas de neve, seus vales profundos, as florestas subindo até as meias encostas, os lagos silenciosos e as planícies de um verde juvenil impar, moldaram o perfil da Suíça, o norte da Itália e oeste da Áustria. O perfil dos habitantes das aldeias e pequenas cidades daqueles vales exprimidos entre gigantes que sobem para além das nuvens, perpetuaram na sua história uma simbiose única entre a alma humana e o chão que os abrigou como “casa”, como “mãe e pátria”. E o resultado dessa simbiose identifica-se de muitas formas. Os 24 cantões que, com suas aldeias e povoados formam a Federação Suíça, apesar das identidades regionais, desenvolveram uma consciência de unidade nacional, melhor talvez regional, dificilmente encontrável em outra parte do mundo. Neste pequeno território o falar francês, italiano ou alemão não impede que, acima de tudo, prevaleça a convicção do pertencimento à pátria que os une como cidadãos acompanhado de todas as consequências implícitas nessa condição. Todos se assumem apenas como suíços unidos num cenário geográfico único que os identifica a todos, apesar de zelarem com fervor pelas suas tradições próprias, de modo especial a língua.  Tanto assim que nos grandes conflitos que envolveram a França, a Alemanha e a Itália e a Europa toda no século XX, a Suíça nunca abriu mão da neutralidade. Não poucas das montanhas mais representativas dos Alpes foram contemplados com nomes simbólicos como “Materhorn”, “Mönch”, “Jungfrau”, “Joch”, “Mont Blanc” e outros. 

Nos Alpes orientais, o Tirol do norte fazendo parte da Áustria e o Tirol do sul da Itália, predominam as Dolomitas, montanhas de calcário de formato inconfundível privilegiadas para a cultura de vinhedos e pomares. A organização das comunidades, os povoados, as aldeias, as pequenas cidades não passam de uma extensão para dentro dos outros dois países como um prolongamento da Suíça.  Todo esse complexo único de montanhas com os cumes e pontas cobertas de neve eterna, as florestas de verde escuro, parecendo tropas de assalto, galgando as encostas, até onde uma árvore ou arbusto encontra um pouco de húmus para se agarrar. E nos flancos dos abismos quase inacessíveis cresce e floresce o “Edelweiss” e a “Rosa dos Alpes”. As cabras e cabritos monteses equilibram-se na beira dos precipícios e a majestosa águia o (Lämmergeier), plana de uma montanha para a outra. São os símbolos desse cenário único, desse “jardim” sem igual oferecido pelo Criador para ser cultivado pelas tribos e povos emigrados do Centro e do Norte da Europa.

A história dessa simbiose única entre a alma humana e “sua casa”, formada por aquele cenário de montanhas, escarpas, precipícios, vales e lagos silenciosos, arroios de montanha, florestas escuras com seus animais e flores, teve início com a migração dos Cimbros e Teutões no final do século II antes da nossa era. Partiram da Jutlândia, hoje Dinamarca e arredores e, em parte, contornaram os Alpes pelo Oeste e uma parte cruzou diretamente as montanhas invadindo o Império Romano pelo Norte. As inevitáveis batalhas travadas entre os romanos e os invasores entre 113-101 AC, terminaram com a derrota dos Cimbros e Teutões na batalha de Ravena na qual Otoacker e sua esposa morreram em combate.  Esses recuaram para o norte e fixaram-se nos vales das montanhas consolidando suas comunidades naquelas encostas do sul dos Alpes. Sua presença tornou-se tão definitiva que até hoje pode ser detectada pelos costumes e a língua de aldeias situadas em vales e encostas até pouco tempo isolados nas montanhas. 

Durante os séculos IV e IX, D.C., aconteceram as grandes migrações dos povos vindos do Norte e Centro da Europa e que terminaram por moldar, em grandes linhas, o perfil humano e cultural daquela parte do mundo. Os Ostrogodos contornaram os Alpes pelo Leste e o Visigodos e Vândalos pelo Oeste, fixando-se em parte nos vales entre as montanhas de ambas as extremidades. Alanos, Suevos, Vândalos, Francônios e outros terminaram por fim a ocupação de todos os espaços habitáveis nesse gigantesco complexo de montanhas hoje politicamente sob a jurisdição da Federação Suíça, Áustria com destaque para o Tirol do Norte, o Tirol do Sul, no Norte da Itália, a fronteira sul da Baviera e a fronteira leste da França. 

Escolhi os Alpes como exemplo para ilustrar como a presença permanente do homem e sua interferência no ambiente natural que o abriga, ou em outras palavras, quando cultiva e não depreda esse seu “jardim”, é capaz de afinar os estímulos oferecidos pelo chão em  que deitou raízes, com os apelos  mais profundos da alma, permitindo  dar vasão ao autenticamente humano. Cumpre-se dessa forma a tarefa dada à humanidade pelo Criador ao inseri-lo ontologicamente na Natureza, de cultivá-la e não espoliá-la e degradá-la. O conceito deixa claro que os recursos necessários para suprir as demandas adequadas da sobrevivência física dos indivíduos e da espécie humana, assim como os estímulos da vida espiritual disponíveis no “jardim”, configuram-se num bem comum. O “cultivar” significa aperfeiçoar, tornar mais produtivo, mais aconchegante, mais habitável, um “estar em casa”, um “Heimatgefühl”, cuja lembrança acompanha as pessoas como uma referência, por vezes subliminar, como também pode explodir como um grito de socorro em situações extremas. Quando nada mais faz sentido a pessoa pede, melhor, suplica para que seja levada “para casa” pois, naquele lugar único encontra-se a âncora que a manteve em pé, por todos os lugares que peregrinou e com as pequenas e grande alegrias e as pequenas e grandes adversidades encontrados ao longo do caminhar da vida. Há poucos dias assisti a um filme que mostrou um grupo de prisioneiros alemães, obrigados a desativar milhares de minas   enterradas na areia de uma praia da Suécia. Não passavam de quase adolescentes de 18 no máximo 20 anos. Um por um foi estraçalhado pela explosão de minas ao serem desativadas. O que me chocou de modo especial foi quando o filme deu destaque à explosão de uma mina deixando o jovem prisioneiro literalmente em frangalhos. Resgatado pelos companheiros e morrendo nos seus braços, não parava de suplicar: “levem-me para casa”. A última frase que gravei na memória de uma pessoa muito especial para mim, por sinal, minha esposa acometida pelo mal de Alzheirmer, foi a mesma do prisioneiro morrendo longe de casa: “Vamos para casa”. Não é por nada que pessoas desenganadas e com pouco tempo de vida pedem para morrerem “em casa”. Essa reflexão poderia servir de tema para um livro ou, quem sabe uma estante de uma biblioteca ou uma biblioteca inteira. Aliás, nas bibliotecas reunidas por séculos nas universidades de referência, em mosteiros, em centros de cultura importantes, o espaço reservado à apologia do “humano” no homem e sua manifestação pela literatura e a arte, ocupa um espaço privilegiado. 

E voltando para região dos Alpes - pode ser também em qualquer outra região do mundo onde montanhas  e demais panoramas geográficos moldaram a paisagem em que o homem decidiu abrigar o seu “Lar” – a sua “Heimat”, o “seu estar em Casa”, o seu “Zuhause”.  Em todos esses espaços, cada um à sua maneira, expressa de forma única, o estado de espírito peculiar, resultado do fluxo de estímulos presentes nas realidades naturais despertando os potenciais do humano no homem. Sob o aspecto biogeográfico não pode ser desconsiderado o perfil e a localização das aldeias e pequenas cidades, além das moradias dispersas e acomodadas harmonicamente no seu entorno natural, acrescentando um elemento a mais à estética da paisagem, em vez de agredi-la ou deformá-la. O mesmo se pode afirmar do traçado das estradas e trilhas pelas quais circulam e se comunicam as pessoas. Pertencem ao conjunto dos acréscimos frutos do cultivo do “jardim” adicionando-lhe elementos novos que reforçam a estética naturalmente presente na paisagem. Mas, o que mais cai em vista, são as manifestações artísticas embutidas na poética, na literatura, nas melodias, nos cantos e nos próprios instrumentos com que são executados. Um exemplo emblemático vem a ser o “Alphorn”. Numa tradução técnica literal falaríamos em “Chifre dos Alpes” ou “Trompa dos Alpes”.  Mas, na compreensão histórico-cultural, o conceito de “Trompa dos Alpes”, sem dúvida, define melhor na sua essência, de esse instrumento produzir sons e melodias. A origem desse instrumento único vem do recurso a um chifre pelo qual os moradores, os pastores de ovelhas e cabras e cuidadores de vacas se intercomunicavam. As respostas em forma de eco rebatido pelos paredões das montanhas deixaram de ser apenas um sinal de intercomunicação técnica como acontece com os nossos equipamentos eletrônicos, para significar uma das formas de música subliminar e sublime tecendo a urdidura das relações do humano do homem para com aqueles que a escutam. Os “chifres” foram substituídos e aperfeiçoados para a sua função, por instrumentos moldados em lâminas de madeira empregando técnicas as mais modernas e mais avançadas. Definiria como sublime uma sinfonia executada com esse instrumento, por uma dezena de artistas postados num patamar na encosta de uma montanha. 

Não por nada uma paisagem dessas serve de inspiração para poesias, cantos, romances, contos de fadas, escultores em madeira e outros mais. Para não me prolongar demais sugiro apreciar uma “Ave Maria das Montanhas” (Ave Maria der Berge), cantada ou executada por conjuntos de instrumentos em sintonia com vozes femininas e/ou masculinas. Uma canção que não me canso de degustar vem a ser “La Montanara – Trentino”, inspirada nas belezas naturais da região de Trento, norte da Itália. Apenas como amostra pinço alguns versos: “Escuta a canção das montanhas. As montanhas te saúdam – La longe ecoa uma cascata e os pinheiros verdes filtram os prateados raios de luz – Uma branca nuvem paira solitária sobre as eternas montanhas”. A religiosidade foi e ainda é uma marca do homem e das comunidades alpinas. O testemunho desse espírito são os emblemáticos cruzeiros de madeira que emprestam um toque todo peculiar à paisagem. O Cristo crucificado esculpido em madeira os torna únicos e deu origem a um artesão especializado nesse tipo de arte presente e fazendo parte da história do tipo humano moldado por essas montanhas, vales e florestas: o “Herrgottschnitzler” – mal traduzido o “Escultor de Deus”.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 94

A Natureza como inspiradora

E para concluir as reflexões inspiradas nos três primeiros capítulos da Encíclica Verde, quero demorar-me mais um pouco num aspecto da Natureza, que para muitos passa despercebido. Faz parte do quotidiano de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e de percepção o que há de arte e de belo nas milhões de modalidades em que ela pode ser apreciada. Mais acima já chamei a atenção como os poetas, os músicos, os artistas plásticos e outros mais foram buscar a inspiração para se expressar nas suas peças artísticas, nas florestas, nos campos naturais, nas flores, nas montanhas, nos rios, nos mares e oceanos, nos fenômenos grandiosos e/ou assustadores, nos animais e plantas e em incontáveis outras  realidades  oferecidas pela natureza. Refiro-me ao potencial de obras de arte à espera da revelação pelo gênio dos artistas plásticos que, além da beleza e da perfeição dos traços em si, vem carregadas de simbolismos, significados históricos, cosmovisões, o imaginário despertado pelo transitório e, principalmente, pelo perene que perpassa a história da humanidade. Alguns exemplos para ilustrar. 

Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra. Melhor, buscada no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, simboliza a revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore. 

A arte e o belo à espera de serem desvelados pelos artistas podem ser encontrados nas realidades mais singelas como nas mais vistosas e mais impactantes que compõem os múltiplos e mais inusitados cenários da “nossa mãe e pátria”. Lembro mais algumas outras obras clássicas, além do mármore outros tipos de rochas tendo como matéria prima o granito. O artista português Noel Monteiro esculpiu num bloco de granito amarelo uma estátua de Nossa Senhora de Fátima de 3,50 m. de altura, uma de Nossa Senhora da Paz de 4,20 m. e uma terceira de Nossa Senhora Auxiliadora de 5,0 m. O obelisco na praça de São Pedro no Vaticano de granito vermelho mede 40 metros de altura. Igualmente monoblocos de granito são as colunas que sustentam a cúpula da catedral de Porto Alegre. Impressionantes são os rostos dos presidentes fundadores e consolidadores dos Estados Unidos da América do Norte, Washington, Jefferson, Th. Roosevelt e A. Lincoln, esculpidos diretamente na rocha no alto do monte Rushmore na Dakota do Sul. Medem 18 m. de altura e 5,5 na maior largura do rosto. Entre os monumentos historicamente famosos e mundialmente admirados não poderíamos omitir as pirâmides do Egito e junto a elas a grande esfinge que, com um olhar enigmático contempla há milhares de anos, a misteriosa vastidão do grande deserto. O basalto foi utilizado pelos escultores como matéria prima para inúmeras obras de arte que na sua mudez pétrea incarnam e contam a história de personagens e eventos que falam do perene e do transitório da marcha da história da humanidade através dos séculos e milênios. Merecem destaque o faraó Tutancamon, a rainha Nefredete, o Leão da Babilônia e muitos outros. Emblemáticas são também as estátuas da Ilha da Páscoa. Os artistas anônimos que as esculpiram na rocha vulcânica há séculos deixaram a ilha e até hoje não temos vestígios seguros da sua identidade e do seu destino. As enormes cabeças com o restante do corpo enterrado no chão, pesando toneladas, enfileiradas nas encostas da ilha, contemplam o oceano que, lá longe, se confunde com o horizonte. Parecem acompanhar com o olhar enigmático e nostálgico os últimos habitantes da ilha que partiram para uma terra que, até o momento, os arqueólogos, os etnógrafos e os historiadores não conseguiram localizar. E não podemos deixar a ocasião de lembrar o Aleijadinho o artista plástico brasileiro que marca toda uma época na arte da escultura valendo-se da “pedra sabão” como matéria prima.

Chamo a atenção à riqueza artística que nos oferecem os monumentos tumulares que podem ser apreciados em qualquer cemitério de toda e qualquer procedência étnica e religiosa. A natureza característica de cada local costuma oferecer a matéria prima, isto é, o tipo de rocha que foi utilizada pelos artífices para moldar os símbolos, entalhar as datas e perpetuar em prosa ou verso os valores cultivados pelos que aí estão sepultados. Os túmulos revestidos com mármore, basalto, granito, arenito, ou outra pedra qualquer, com seus símbolos, inscrições e formatos alertam o observador atento e dotado de um mínimo de sensibilidade humana, para o perene e o transitório da existência humana, como já lembramos mais acima. Os “campos santos” como também são chamados, significam incomparavelmente mais do que outras formas de perpetuar a memória da caminhada da humanidade, para intuir e compreender na sua essência ontológica o significado da profundidade do conceito do “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. 

E, para fechar a série de reflexões feitas até aqui, inspiradas nos três primeiros capítulos da “Encíclica Verde”, falta a referência aos simbolismos inspirados pela natureza nas suas manifestações intocadas pelo homem. Mais acima já nos referimos em várias ocasiões de alguma forma a esse potencial que a “nossa casa”, oferece à nossa capacidade de percepção e intuição. Em linhas muitos gerais falamos dos monumentos naturais merecedores de proteção como componentes significativos nas paisagens naturais. Nesse conceito enquadram-se cadeias de montanhas, montanhas isoladas, florestas, árvores de grande porte e/ou beleza, quedas de água, cataratas, lagos, rios, desertos, campos naturais, cânions, precipícios, a imensidão dos oceanos e inúmeras outras manifestações que, de alguma forma, compõem o cenário em que a espécie humana moldou a sua história. 

A gênese histórica das civilizações trai em muitos dos seus aspectos e, por vezes, na própria identificação que distingue umas das outras, os significados culturais emprestados a fatos e fenômenos naturais. As formações geológicas no entorno do Grand Canyon do Colorado assumem personalidade pela forma e a perspectiva em que foram vistas pelos estudiosos do parque. Encontramos nelas as personificações, o encontro de figuras históricas e personagens mitológicos que, por assim dizer, incarnam a índole e a alma de culturas e civilizações que evoluíram em ambientes e situações completamente diferentes e vão encontrar-se, como que numa síntese, naquele cenário milhares de quilômetros longe da sua origem. Destacamos aí o Templo de Schiva, as figuras de Brahma e Buda e o Templo de Confúcio, representantes emblemáticos das civilizações do Oriente remoto; o Templo de Zaratustra da mitologia persa; o Walhalla dos deuses germânicos e o Trono de Siegfried, personagem épico da canção alemã. No parque nacional Sequoia localizamos a Pirâmide Quéops representante da cultura egípcia, o Nariz de Homero, representando as civilizações consolidadas em torno do Mediterrâneo. Este é um exemplo emblemático de como tradições culturais histórica e geograficamente tão distantes umas das outras encontraram-se em situação tão inusitada como nas formações geológicas do parque do Grand Canyon e outros parques nacionais. A explicação para entender que um encontro nesses moldes fosse possível é preciso recorrer a lei que criou os parques americanos. O objetivo fundamental, além de proteger esses monumentos naturais e declará-los patrimônio nacional foi, colocar à disposição das pessoas comuns, como operários, pequenos empresários, funcionários públicos, alunos das escolas, colégios e universidades e seus professores e responsáveis, um ambiente que oferecesse condições para usufruir um lazer barato e tranquilo e um deliciar-se sadio em meio à natureza. À noite costumam-se programar-se sessões conduzidas por professores e especialistas também em férias, informando o público sobre a história, a formação geológica, a vegetação, os animais e a importância da preservação desses verdadeiros santuários naturais. Ao lazer do cotidiano esses ambientes assumem também o papel de autênticas universidades ao ar livre. Nesses encontros o povo comum vem a ser informado sobre a razão de ser dos nomes dados a montanhas, vales, árvores, fontes, grutas, cavernas, lagos, fontes quentes, e por aí vai. Ao lazer sadio alia-se um usufruir importante também da ampliação dos conhecimentos e, com isso, a elevação cultural dos veranistas. Os parques, portanto, como escolas e/ou universidades ao ar livre contribuem para ampliar os conhecimentos e o nível cultural dos seus frequentadores.

No parque nacional “Sequoia” encontra-se outro exemplo de como o imaginário cultural e a memória histórica pode ser perpetuada em realidades naturais características oferecidas pelo parque. A sequoias gigantes daquele parque incorporaram personalidades de figuras importantes da história do país. Em uma decisão histórica carregada de significados simbólicos os administradores do parque deram nomes aquelas árvores gigantescas, entre as quais, algumas contam com mais de cinco mil anos e, se nada de anormal lhes acontecer, continuarão ainda firmes por séculos e, quem sabe, por milênios. A maior e a mais possante delas foi contemplada com o nome do general “Sherman”; a segunda em tamanho é “o President” e, ao lado do “President”, um terceiro gigante contempla o cacique Cherochee “Chief Sequoia”; uma outra ainda imortaliza o general “Grant”. As árvores chamam a atenção aos frequentadores do parque sobre os generais responsáveis pela consolidação do Estado, o presidente e o cacique cherochee que, apesar dos desencontros e, quem sabe, exatamente pelos desencontros históricos, entraram de alguma forma, na síntese da identidade americana em formação. Na mesma floresta o visitante pode passar em revista, simbolizados nos seus gigantes, personagens determinantes da história do País: Washington, Lincoln, Mac Kinley, o general Lee, Theodor Roosevelt, Cleveland e outros. Para não ficar insistindo demais na lembrança de uma fase histórica desagradável que foi a guerra civil  e para poupar os parques do clima de disputas político partidárias, a preferência centrou-se em denominações históricas como “as Colunas de Hércules” ou metáforas sugeridas  pela peculiaridades dos diversos gigantes: a Chaminé, a Flecha Quebrada, o Gigante fulminado pelo Raio, Árvore Janela, Árvore Buraco da Fechadura, os Trigêmeos, o Nursery, o emblemático Casal Fiel, dois gigantes concrescidos  na base até três metros acima do chão, as Três Graças, o Solteirão, o Urso Gigante, a Árvore Estrebaria, os Soldados Sentinelas, a Árvore Telescópio. O parque de Yosemite, reúne talvez mais que qualquer outro os elementos que põem em ebulição o humano no homem e resultam numa harmoniosa  sinfonia colocando o observador num panorama que vai do Belo sutil das flores das ervas rasteiras, passando pelo Belo tranquilo dos arbustos e árvores da floresta e o rio Merced povoado de trutas brincando na água cristalina, rumorejando sobre os escolhos deixados pelo eterno lapidar das forças telúricas de milhares e milhões de anos, para terminar no Belo majestoso e arrebatador da moldura das montanhas de granito esculpidas no inconfundível  formato de “U” pela passagem das geleiras da era glacial. Permito-me reproduzir o estado de espírito do Pe. Rambo ao passar pelo portal de entrada do “do mais belo vale do mundo”, como anotou em seu diário. Depois de descrever a viagem de ônibus de São Francisco, depois de descrever os pomares do vale da Califórnia, a subida da Sierra Nevada, lembrar a epopeia da exploração do ouro naquela encosta em meados do século XIX, anotou:

Acontece que não viajei para a Sierra Nevada a procura de ouro, mas em busca do mais belo vale do mundo, o Vale de Yosemite. As montanhas aproximam-se cada vez mais uma das outras. O rio troveja com crescente força sobre os escombros das pedras, por entre florestas escuras, cada vez mais fechadas. De súbito, abre-se o portal de rochas, a floresta permite a visão livre e eu contemplo um cenário de fadas, como não existe outro igual. O Merced aqui reduzido a um arroio largo, rumoreja aos meus pés. As águas são tão cristalinas que permitem contar as pedras no fundo e observar a dança das trutas. Mais para longe, abre-se um prado coberto de capim verde, de canas com pontas reluzentes na cor do ouro e, no meio delas, milhares de flores brancas, vermelhas, amarelas e azuis. Mais adiante, segue a floresta formada por árvores majestosas, cedros, pinheiros, pinheiros Douglas. À direita, precipita-se uma cascata, a partir de um vale de mil metros e se desfaz em neblina. É a cascata véu da noiva. À esquerda sobe, mil metros de altura, um bloco de granito tingido de vermelho pelo sol da tarde. Chama-se “el Capitán”. É o rochedo sentinela do portal da entrada do vale das maravilhas, E, bem no fundo do vale, o cume de outro rochedo sobressai às montanhas. É o mais famoso de toda a Sierra Nevada: o “Half Dome”. E, acima de tudo estende-se o céu azul e, sobre ele deslizam suavemente os brancos veleiros de Deus. (Rambo, 2015, p. 255-256).

Numa outra passagem do diário escrito no parque de Yosemity, deixou outra reflexão que deixa o observador atento e sensível, perplexo e, ao mesmo tempo empolgado, parecendo flagrar-se num mundo em que as ambições e os valores, melhor, desvalores vendidos pela grande mídia, reduzem-se a pó. É de Einstein, seguramente um dos físicos mais importantes do século XX como continua sendo até hoje, a afirmação surpreendente: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe” ou então: “As ideias que iluminaram o meu caminho são a bondade, a beleza e a verdade”. Em outras palavras Rambo externa a mesma sensação, acomodado no Glacier Point um rochedo na extremidade do vale de Yosemite:

Com certeza devem existir poucos lugares na Terra, de onde se descortinam paisagens tão deslumbrantes. Para a direita, a vista alonga-se por sobre as serras intocadas até os cumes cobertos de neve das montanhas mais altas. Do lago Merced sai o rio do mesmo nome, precipitando-se em duas cascatas: o Nevada Fall, de 160 metros, e o Vernal Fall, com 97 metros. Em frente, no lado oposto, ergue-se o maior bloco de granito do mundo, o Half Dome, 2.760 metros acima do nível do mar e 1.500 a prumo sobre o chão do vale. Para a esquerda, desfruta-se de uma visão de todo o vale e, mais adiante, dos altiplanos de ambos os lados. Milhares de pinheiros Jeffrey, isolados, em grupos ou em florestas fechadas se parecem com um exército de soldados, aprestando-se para o assalto aos cumes das montanhas. Onde quer que haja uma saliência, uma fenda, um lugar para um pé, os arbustos se agarram: carvalhos anões, castanheiras anãs, azaleias anãs. Essas últimas vestem na primavera os gigantes das montanhas com o manto real de púrpura de suas cores esplendorosas. Aos meus pés o paredão de rochas precipita-se perpendicularmente por 976 metros. As fitas de azul negro das estradas, com os carros multicoloridos se movimentando nelas; a faixa azul clara do rio, entre a floresta escura e prados cor de ouro; as cidades de barracas, ao pé da grande cascata; as multiformes rochas na beirada; o Domo Fendido, os Arcos Reais, o Pináculo das Águias, a Torre de Observação, as Torres da Catedral, o Capitão Sentinela – tudo compõe um quadro que somente um foi capaz de conceber: Aquele que, no canto de Habacuc, “caminha sobre as montanhas e as faz tremer sob o passo marcial de suas eternidades”. 

Depois do almoço, fomos até o Sentinel Dome, uma cúpula de granito que se eleva em muito acima da floresta. Em cima do cume, cresce agarrado a uma fenda um pinheiro Jeffrey. O vento constante dobrou-o, horizontalmente, a cinco metros de altura, símbolo da vida vitoriosa sobre o rochedo morto. Tenho na minha frente, uma grande fotografia a cores, que comprei em Yosemite. Jamais apreciei uma imagem mais bela de uma árvore. A luz clara da tarde cintila sobre esse sublime cenário de montanhas. Mais uma vez ecoa o canto de vitória de Habacuc: “O Eterno caminha como um caçador sobre as montanhas; o sol e a lua escondem-se em suas moradas perante o faiscar da sua flecha e do brilho de fogo refletido na lâmina da sua espada. Sobre o altar-mor do mundo das montanhas, sobre os pináculos do mundo ondula, flutua e se embala o reflexo daquela luz eterna, mais antiga que todas as auroras e mais jovem que todos os poentes do sol”. (Rambo, 2.015, p. 159-260)


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 93

              

Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.
As reflexões que precederam tiveram como uma das intenções básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição peculiar por ser dotada de inteligência reflexa que lhe garante a capacidade observar a natureza que a cerca e perguntar como ela funciona, como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Com essa posição a Encíclica reafirma, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deve ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e desenvolver nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações humanas. A Encíclica chama a atenção que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de suas vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.

Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos foram decisivos para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro  confiável, a expectativa de vida média do brasileiro oscilava em torno dos 42 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor, de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas, a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar sua atenção na área médica e da saúde em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes à produção de seda na França. Em 1850 haviam sido colhidas 20000 toneladas na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão de que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em seus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de todas essas pesquisas Pasteur chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pelo desenvolvimento dos furúnculos, poliomielite e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para prevenir-se contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para atender a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no qual se lida com ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática  rotineira imunizando as crianças por meio de campanhas de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas do Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento de um fungo do gênero Penicillium que apresentava espaços transparentes. Fleming concluiu que os fungos liberavam algum tipo de substância que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada fica a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel e Dobzhansky na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins na genética médica, Edward Wilson no estudo dos ecossistemas e a importância dos insetos e inúmeros outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, o lado positivo que acabamos de mencionar merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pelas autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “O poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. Todo o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria’, embora dissesse também que isso não deve levar a uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, seus donos dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia está sendo comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável da missão do homem ao “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir com sucesso a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: “a fazerem progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio, 28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado, porque ela é conhecimento e, portanto, perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer os diferentes males que a ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e prestará aos homens serviços imensos, contanto que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979)

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito “fazer ciência”. O “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona e “porque” afinal é assim e o “sentido” de tudo que nele se encontra. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando se conscientiza da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em milhões de formas e cores, nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro-organismos, a flora, a fauna e nela a espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas. Sendo assim, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado por Sto. Agostinho citado mais acima: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e que converge para o objetivo comum: a busca da Verdade.