Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 22 -

Fiquemos apenas com o ecossistema como suporte da biodiversidade, que é a preocupação do Papa nessa passagem da Encíclica. Há cerca de 15.000 ou 20.000 anos, a humanidade começou a invadir e interferir nos ecossistemas naturais, a partir do momento em que os primeiros agricultores começaram a cultivar suas hortas e plantações. Darcy Ribeiro fala em “Revolução dos Alimentos”, Edward Wilson em “Primeira Traição à Natureza”. Deixando de lado os dois olhares opostos na percepção daquele evento histórico e dando, em termos, razão aos dois, foi naquela transição entre os coletores e caçadores e a agricultura e a domesticação e criação de animais, que foram dados os primeiros passos na caminhada sem retorno na invasão e depauperamento dos ecossistemas naturais e sua biodiversidade.

De um lado não passa de uma utopia, melhor  de uma irracionalidade pregar o retorno às condições do Neolítico e condenar a humanidade de volta à barbárie. Do outro lado não passa de cegueira irresponsável admitir como normal o não enxergar os extremos a que chegou a invasão e a agressão à natureza. Edward Wilson, do alto de sua competência e autoridade, estigmatizou a situação como “a segunda traição à natureza”. Na sua Encíclica o Papa faz eco ao cientista.

O recursos da natureza estão a ser depredados também por causa  de formas imediatistas de entender a economia e a atividade econômica. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental. (Laudato si, 32)

O Papa continua sua reflexão alertando para o fato de que o desafio ambiental não se resolve com parâmetros que reduzem os recursos naturais a uma mera utilidade prática. Servem sim a fins práticos como alimentos, matérias primas  a serem industrializadas, medicamentos e outros. Entretanto os componentes dos ecossistemas, tanto vegetais, quanto animais, quanto o cenário físico-geográfico, tem um valor em si. São fundamentais para moldar  cosmovisão, a forma singular como as pessoas percebem a suas existências em circunstâncias ambientais também singulares. O homem e suas culturas nasceram  e se consolidaram numa autêntica simbiose com  contexto natural. Além de assegurar as demandas da sobrevivência física, a paisagem imprime marcas indeléveis na psique das pessoas, contribui com símbolos, valores, estímulos religiosos, inspiração para as artes e saborear o belo. Poderíamos continuar teorizando ao indefinido sobre esse tema mas o lugar não é aqui. De qualquer forma valem alguns exemplos. Uma criança que encontrou num floresta, por ex., os brinquedos e vivências infantis, tende a ser mais meditativa, mais reflexiva, mais silente. Essa experiência irá acompanhá-la pelo resto da vida. Como que numa memória atávica fará com que se encontre consigo mesmo na penumbra de um floresta, envolto pelo silêncio quebrado pela sinfonia e harmonia dos seu sons. No planalto, na sombra dos pinheirais o Pe. Rambo encontrou seu “paraíso na terra”. Pinheiros, cabriúvas louros, cedros, canjeranas, carvalhos, incarnam  valores, simbolizam virtudes, abrigam mitos, servem de lugar para cultos. Personalidade como um pinheiro, incorruptível como a cabriúva, nobre como o louro ou o carvalho, místico ou mítico com o cedro. O silêncio da floresta é eloquente, as montanhas falam, espíritos misteriosos povoam os abismos, sentinelas vigiam no alto das montanhas, a brisa sussurra, as fontes tagarelam, os arroios murmuram. Os ecossistemas, cada qual à sua maneira fala uma linguagem eloquente. Mesmo que o forasteiro não consiga decifrar  seus códigos ele capta a melodia que transmitem. O Papa chama a atenção a essa face tão importante da “casa” em que moramos.

Entretanto, não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais “recursos” exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si. Anualmente desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não  poderemos conhecer, que nossos  filhos não poderão ver, perdidos para sempre. A grande maioria deles estingue-se por razões que tem a ver com a atividade humana. Por nossa causa milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos o direito de o fazer. (Laudato si, 33)

O Papa continua sus reflexões aprofundando  aspectos que merecem destaque quando o assunto é o binômio Ecossistema – Biodiversidade. As iniciativas e ações em favor do meio ambiente limitam-se não raro a objetos tópicos. É louvável a cruzada que tenta impedir a caça das baleias, o empenho em salvar da extinção o mico-leão-dourado, a arara azul, o lobo-guará, o búfalo americano e outras espécies de maior porte. Embora mereça todo o apoio, os objetivos são tópicos. Se essas cruzadas visando espécies mais visíveis,  não fizerem parte de uma política e de uma prática de preservação dos  ecossistemas em que vivem, pouco ou nada irão contribuir para salvar a vida na terra. Reforçando o que já lembramos mais acima, cada ecossistema é um sistema. Cada espécie viva contribui  na medida da importância da função que lhe cabe no todo.  Observando bem, as vedetes dos preservacionistas não são exatamente as peças mais importantes quando o equilíbrio da natureza está em jogo. Isso não quer dizer que a extinção não abra uma lacuna irreparável. Deixa a biodiversidade um pouco mais pobre, mas não  compromete o ecossistema na sua totalidade. É natural que o espetacular, o que enche os olhos ou encanta os ouvidos, seja alvo preferencial dos preservacionistas. Um pinheiro impressiona pelo seu tronco robusto e sua copa majestosa, não  pelas raízes que mergulham no solo. O que empolga e encanta é a biodiversidade  sobre  e acima do chão. Acontece que a biodiversidade condição sem a qual as florestas não se desenvolvem, viceja nas entranhas do solo. Passa, por assim dizer, despercebida porque a maior parte dessas espécies são microscópicas e sub microscópicas. Esse micro e nano universo de seres vivos formam o primeiro elo da  cadeia alimentar. Sem ele as macro espécies são simplesmente impensáveis. É a esse universo que o Papa se refere quando alerta: “mas para o bom funcionamento dos ecossistemas, são também necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e variedade inumerável de micro organismos”, (Laudato se, 34). Esse fantástico  universo de seres vivos que torna o solo fértil, macio e arejado é a maior vítima do abuso das tecnologias de correção e fertilização artificial.

Entre as milhares de espécies associadas  num ecossistema há normalmente algumas, por assim dizer, as âncoras na sua sustentação e expansão. Aproveito para relembrar o papel  insubstituível dos insetos nessa função. Remeto o assunto para as reflexões acima. Ainda nesse particular um número  maior do que se pensa de pássaros são peritos reflorestadores. Apanham as frutas e frutinhas, comem a polpa e deixam cair as sementes. Muitas delas descartam as sementes em pleno voo fazendo-as nascer nos lugares mais impossíveis. Exemplar nesse reflorestamento é  a gralha azul. Cada ano nascem milhares de araucárias nos esconderijos onde ela costuma esconder os pinhões como reserva de alimentação. Na transição entre os campos naturais e a floresta no sul do Brasil, a bragatinga faz o papel de conquistadora do campo. As sementes maduras são arremessadas campo adentro. Germinam e se desenvolvem e na suas sombra nascem cedros, canjeranas, cabriúvas, guajuíras, seguidas da vegetação secundária que prospera no cenário da floresta que avança enquanto no subsolo os micro organismos processam as folhas descartadas, revolvem o solo, preparando-o para a vegetação que avança, oferecendo abrigo para mamíferos aves, répteis e anfíbios. A Encíclica chama a atenção que “Alguns répteis pouco numerosos, que habitualmente nos passam despercebidos, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio de um lugar”. (Laudato si, 34).

No momento em que um ecossistema começa a entrar em colapso, a intervenção humana pode ser necessária para reverter ou pelo menos estagnar o processo, alerta o Papa. Acontece que a intervenção numa realidade tão complexa, trás consigo seus riscos. Conhecendo a natureza de tais intervenções, sabe-se diante mão que existe uma grande probabilidade de agravar a situação em vez de saná-la. “A emenda fica pior do que  soneto”, como ensina a sabedoria popular. Uma intervenção chama a outra e os ecossistemas degradam-se cada vez mais. Entra-se num dinâmica sem retorno.  “Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver essa dificuldade agrava muitas vezes mais a situação”. (Laudato si, 34). O círculo vicioso de que fala o Papa verifica-se, por exemplo, na extinção ou migração de pássaros que se alimentam de insetos nocivos às lavouras. A falta deles exige a aplicação de inseticidas mais poderosos e em maior volume, o que por sua vez aprofunda agrava a invasão nos ecossistemas. Com as espécies nocivas de insetos outras tantas úteis são eliminadas. Segue o depauperamento progressivo do solo. Chega-se ao limite em que uma reversão do processo se torna muito difícil e em casos extremos impossível. Volto a chamar a atenção para os insetos. A eliminação das abelhas pelo exagero no uso de agrotóxicos, afeta seriamente a produção e a produtividade dos pomares. Em casos extremos, como acontece na China, os pomares de maçãs precisam ser polinizados artificialmente, com enormes custos de mão de obra, numa tarefa que as abelhas prestam de graça e ainda fornecem mel e cera. O Papa observa.

São louváveis e, às vezes admiráveis os esforços dos cientistas e técnicos  que  procuram dar solução para os problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, Damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas vezes à serviço da finança e economia, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da  tecnologia e as ofertas de consumo continuam a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e insuperável por outra criada por nós. (Laudato si, 34)



Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 21 -

A Biodiversidade

O Papa começa a reflexões sobre Biodiversidade com a observação. “Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial produtiva”. (Laudato si, 32). Salvo melhor entendimento, a observação alerta para um aspecto nas reflexões sobre a natureza que costuma passar um tanto despercebido, melhor, posto em segundo plano. Referimo-nos ao descompasso da noção de tempo com que o homem  trabalha e o  ritmo do tempo em que acontecem os eventos naturais. As civilizações humanas  sobre as quais temos informações razoáveis, não passam dos 15.000, no máximo 20.000 anos. Durante esses 150 ou 200 séculos o homem realizou a transição entre a caça e a coleta para a agricultura e a criação de animais. A partir de tecnologias rudimentares, desenvolveu em alguns milhares de anos um arsenal monumental de ferramentas destinadas a manejo da terra e seus produtos. O ritmo do tempo foi-se acelerando na razão direta da diversificação, multiplicação e especialização das tecnologias e respectivas ferramentas. Os resultados acontecem em intervalos cada mais curtos. O trinômio: eficiência-rapidez-resultados, terminou por moldar as categorias mentais de tempo, que trabalham com limites cronológicos cada vez mais estreitos. Chegamos a um ponto em que a perspectiva do tempo encolheu de tal forma  que o que de fato interessa é “o hoje”. Para o “bárbaro digital, protótipo de homem dominante  da atualidade, o homem contemporâneo vive em função do presente, do aqui e agora” (Caldera, 2004, p. 90).

Depois desse preâmbulo vamos às reflexões sugeridas pelo objeto em pauta: a biodiversidade manipulada pela civilização atual, regida pelos interesses imediatistas. Para começo de conversas. A biodiversidade tem tudo a ver com os ecossistemas. Cada ecossistema é formado por um biodiversidade própria. Em outras palavras. Em cada ecossistema em particular as formas de vida, os macro, micro e nano organismos complementam-se na construção de uma unidade estrutural e funcional, enfim, um sistema. Ludwig von Bertalanffy, autor da Teoria Geral dos Sistemas descreve o significado do conceito.

O  sentido da expressão um tanto mística “o todo é mais que a soma das partes” consiste simplesmente em que as características constitutivas não são explicáveis a partir das características das partes isoladas. As características do complexo, portanto, comparadas às dos elementos, parecem “novas” ou “emergentes” Se, porém, conhecermos o total das partes contidas em sistemas e as relações entre elas, o comportamento do sistema pode ser derivado  do comportamento das partes. Podemos também dizer: enquanto podemos conceber uma soma como sendo composta gradualmente, um sistema, enquanto total de partes com sus inter-relações, tem de ser concebido como constituído instantaneamente. (Bertalanffy, 2009, p. 83)

O ecossistema, não importa o tamanho nem a complexidade, consiste numa unidade  estrutural e funcional. Em se tratando de ecossistemas naturais, dois são os conjuntos de elementos sobre os quais e a partir dos quais são construídos. De um lado são todas as formas de vida que fazem parte e são mutuamente complementares. Do outro lado é o meio físico-geográfico, o habitat, que oferece o chão, o clima e demais realidades naturais não vivas, sobre as quais as diversas formas de vida se desenvolvem. Num ecossistema, mais pobre ou mais rico em biodiversidade realiza-se uma mutualidade finamente calibrada entre todas as categorias e espécies de vida e com o chão sobre o qual prosperam. O sistema assim construído mantém o equilíbrio, sustentado por uma engenhosa cadeia alimentar. Estamos pois, frente a uma cadeia circular de seres vivos interdependentes. Sua base ou, se quisermos, o primeiro elo da cadeia é integrado pelos micro e nano organismos que sintetizam nutrientes via  via autotrófica, isto é, a partir  dos                                                                     minerais disponíveis e, ao mesmo tempo, os deixam em condições físico-químicas para que os vegetais possam aproveitá-los e se desenvolverem. Sobre esse fundamento prospera o segundo elo da cadeia alimentar. Formado essencialmente pelos vegetais que se alimentam dos minerais do solo e pela fotossíntese constroem as suas estruturas. Segue o terceiro elo da cadeia alimentar a cargo dos animais herbívoros que se alimentam de vegetais. O quinto elo, o topo da cadeia alimentar  pertence aos carnívoros. Os carnívoros e os animais que se alimentam de animais em decomposição e seus rejeitos e os reintegram na natureza, representam o elo que fecha a cadeia circular, um circuito fechado. de fina resolução. Qualquer desvio nesse circuito, seja pela razão que for, atrapalha o bom funcionamento do sistema ou em casos extremos sela o seu desmanche.

Essa é essência do sistema natural, do ecossistema, e sua  dinâmica com a vida que nele prospera. À semelhança de um organismo vivo, Betalanffy definiria o ecossistema como um sistema de equilíbrio instável. E outras palavras. O sistema como um todo mantém-se em equilíbrio, enquanto o fluxo de energia que o sustenta flui ininterruptamente tanto na dimensão horizontal, quanto vertical. Mas há um outro aspecto que não pode ser ignorado. Paralelamente ao fluxo de energia vão acontecendo, sob estímulos vindos do meio, alterações estruturais que, por sua vez, induzem a adaptações funcionais. Dito de outra maneira. A dinâmica da evolução não permite que o sistema se torne hermético. Os ecossistemas assemelham-se a caudais em constante movimento, em perpétua renovação, avançando por séculos, milênios e milhares de milénios, sem perder a sua identidade. A ruptura dessa dinâmica, porém, acontece por ocasião de catástrofes de grande porte, impacto de meteoros gigantes, vulcanismo, mudança drástica da temperatura etc. A maior ameaça atual ao equilíbrio e a própria subsistência de ecossistemas vem da parte do homem, com suas tecnologias altamente invasivas, com potencial para desequilibrar ou simplesmente aniquilar grandes ecossistemas. O exemplo mais gritante vem a ser a morte pura e simples do Rio Doce com a inundação de rejeitos da mineração.

Normalmente quando se fala em ecossistema a atenção volta-se para as florestas, campos naturais, savanas, pradarias, costas marítimas e por aí vai. São os macro ecossistemas dos quais depende em última análise, a biosfera como um todo. Dos solos dependem os ecossistemas terrestres que alimentam o homem física, cultural  religiosamente. Num outro contexto mais acima lembramos o papel do solo como condição da vida terrestre. O solo, o chão em que pisamos não passa de um gigantesco e complexo ecossistema formado por milhões de espécies de insetos, moluscos, vermes e uma incontável variação de espécies de micro e nano seres vivos. Em cada grama de solo fértil que pisamos, milhões deles se  encarregam de mantê-lo arejado ao mesmo tempo em que processam os resíduos e os colocam à disposição para dar  partida à circulação da cadeia de alimentos. Quanto a números e volumes remetemos o leitor para as páginas mais acima onde nos ocupamos com esses detalhes.

Até aqui nos preocupamos para entender como é estruturado e como funciona a cadeia de alimentos.  Essa é a metade da questão. A outra metade cabe às circunstâncias físico-geográficas, ao habitat específico em que a vida acontece. É dele em última análise que vem a energia que faz a vida possível e a sustenta. Os nutrientes peculiares a cada situação com o solo, a temperatura, a iluminação, a água, moldam o perfil e  imprimem o ritmo próprio de cada ecossistema. Assim temos a combinação, a simbiose entre a complementariedade sistêmica e o meio físico, do qual depende fundamentalmente a maior  ou menor riqueza da biodiversidade.


Espero que ficou razoavelmente compreensível  como é arquitetado e como funciona na sua complexidade um ecossistema. É oportuno, entretanto, insistir um pouco mais de que estamos lidando com uma realidade finamente calibrada e alta resolução. Num ecossistema como em qualquer outro sistema todos os componentes ocupam um lugar e cumprem uma função. A soma do desempenho de cada elemento faz com que o todo funcione melhor ou pior. Não há peça dispensável. Por mais insignificante que possa parecer vai fazer falta no todo. Funcionando mal interfere na qualidade do desempenho do todo. Sendo válido para um sistema mecânico ou eletrônico, ou qualquer outro aplica-se, em termos e à sua maneira, ao organismo individual  como ao ecossistema, um ente vivo à sua maneira.



Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 20 -

À despoluição dos  rios e cursos de água menores vem somar-se  a diminuição dos volumes ou até o esgotamento das fontes que  os alimentam. O desmatamento das cabeceiras dos rios e seus afluentes, tem nisso uma responsabilidade muito maior do que se pensa ou se quer admitir. Parece incrível, o reflorestamento das cabeceiras chega triplicar a vasão das fontes além de reativar as que secaram depois do deflorestamento. Uma experiência de boa envergadura nesse sentido na Serra da Mantiqueira, está a produzir resultados surpreendentes. Os donos das propriedades em vez de serem subsidiados para cultivar pastagens nas encostas íngremes recebem um “salario reflorestamento” de mais de um salario mínimo por mês. Esse tipo de iniciativas, como prova o projeto na Mantiqueira nas cabeceiras das  bacias fluviais do sudeste ampliado para outras regiões, as beneficiaria com o aumento da quantidade e qualidade da água fornecida à população. Nessas regiões a agricultura de enxada e arado de boi está sendo abandonada pela dificuldade de trabalhá-las somada à baixa produtividade e entregue às leis da natureza. Em algumas décadas uma magnífica floresta secundária foi cobrindo as encostas médias e altas dos vales. No fundo dessas florestas muito parecidas com as originais virgens, fontes voltam a brotar e as que resistiram têm seus volumes triplicados. Além de todos os demais benefícios ecológicos, quem mais se beneficia são os consumidores da água. O exemplo que mais cai em vista entre nós desse tipo de florestamento espontâneo e seus efeitos benéficos, pode ser observado nos cursos médios e superiores dos rios que formam o Guaíba. Há 50 anos as roças de milho e feijão subiam até uma estreita coroa de floresta original, remanescente na borda dos morros, totalmente impraticável mesmo à base da enxada. Hoje dá prazer em circular naqueles vales. As novas florestas descendo pelas encostas enchem os olhos e a sinfonia dos pássaros que retornaram dos seus refúgios, encanta os ouvidos. Córregos cristalinos murmurando na penumbra das árvores convidam a beber na concha da mão ou mergulhar a boca num dos muitos reservatórios minúsculos formados em seus leitos. Numa paisagem dessas a gente se flagra no meio do paraíso perdido, mas não esquecido do qual já falamos mais acima.

Já que  a natureza faz a sua parte quando deixada agir de acordo com seu ritmo e suas leis, está na hora de o homem assumir a sua. Tomemos o Rio dos Sinos como exemplo. Há 50 anos pescavam-se dourados na altura do Zoológico em Sapucaia do Sul. O dourado é sabidamente uma espécie de peixe exigente quanto à qualidade da água. Na década de 1960, por iniciativa da Faculdade de Economia de São Leopoldo, foi elaborado um projeto de desenvolvimento regional integrado para o vale do Rio dos Sinos. Prefeituras, empresários, conselhos comunitários, Estado e União interessaram-se pelo projeto. Numa tramitação surpreendentemente rápida foi aprovado pelo Itamaraty, para ser apresentado ao Governo da então República Federal da Alemanha, com solicitação de auxílio técnico para elaborar o projeto a ser executado. O governo alemão aderiu à proposta e contratou a Agrar und Hydrotechnik, especializada nesse tipo de projetos, para realizar um diagnóstico e propor ações concretas para otimizar as potencialidades da região. Uma equipe interdisciplinar formada por engenheiros com especialização em hidrologia e construção de barragens, geólogos, agrônomos, engenheiros florestais, topógrafos, economistas, urbanistas, passou um ano e meio fazendo diagnóstico e propondo soluções: sistema de diques de proteção contra as enchentes; uma projeto de abastecimento central de água para todos os municípios de Três Coroas até Canoas; sistema de tratamento dos esgotos domésticos e rejeitos industriais; proposta para incentivar a produção de fruti-horti-grangeiros; estímulo à pecuária de leite; reflorestamento das encostas; implantação de distritos industriais; disciplinamento da expansão urbana; estradas de circulação regional e outros. Tudo ficou minuciosamente detalhado num amplo relatório entregue às autoridades, para servir de base para futuras obras a cargo das administrações municipais, estaduais e federais. Se pelo menos a metade das ações propostas tivesse sido implementada, o Vale do Rio dos Sinos seria hoje uma referência de como  uma região em ritmo acelerado de urbanização e industrialização, deveria lidar com a inserção no seu cenário geográfico. E os resultados concretos? Pífios. Do sistema de diques apenas uma parte no município de São Leopoldo foi executada, com notáveis benefícios para a cidade. Todo o restante encalhou e estagnou na falta de visão e de modo especial, nos interesses bairristas dos que deveriam implementá-lo. O rio não passa de um cloaca, o reflorestamento ficou por conta da natureza, o saneamento básico não passa de iniciativas tópicas, enquanto a expansão dos bairros acontece ao sabor de uma ocupação que pouco difere de invasões e entregue a uma política e modelo imobiliário predatório.

Nessa  iniciativa global de 50 anos atrás, destaco o que foi a proposta de abastecimento de água já que é esse bem que motivou as reflexões que estamos fazendo inspirados na Encíclica do Papa Francisco. A proposta dos técnicos alemães resumia-se em ampliar a barragem já existente no rio Paranhana na altura de Três Coroas. Tecnicamente era viável pois, o volume de água era suficiente  para um reservatório capaz de abastecer 1.200.000 consumidores com 300 litros dia por pessoa. Exceto Porto Alegre todo o vale do Rio dos Sinos a jusante de Três Coroas poderia ser atendido com água numa estação central junto ao reservatório, dispensando subestações nos município. A água tratada descendo por gravidade exigia apenas conexões na tubulação central em pontos estratégicos para servir a população local. A implantação do projeto foi abortada pela visão acanhada das prefeituras e políticos dos municípios a serem beneficiados. Mais uma solução que caiu vítima do bairrismo e da falta de vontade política por parte dos que detinham o poder e a autoridade para implementá-la.

Na Encíclica o Papa chama a atenção para outro perigo que ronda o abastecimento de água. Multiplicam-se cada vez mais as manifestações em favor da privatização da água, opinião defendida   pelas redes sociais por personagens do porte do presidente da Nestlé. Não há necessidade de um esforço especial para perceber o lado perverso dessa proposta. O Papa chama a atenção: “Enquanto a qualidade a água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para privatizar  este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”. (Laudto si, 30).

Privatizar a água e condicionar o acesso a ela às leis do mercado fere o que de mais fundamental há nessa questão. A água é condição para a existência e a perpetuação  da vida em geral e da humana em particular. E assim voltamos ao começo das nossas reflexões sobre a água. Trata-se de um bem comum e o acesso livre a ele um direito moral para qualquer pessoa e um dever moral não o manipular por interesses comerciais. A gerência dos recursos hídricos é da competência e responsabilidade do poder público na condição de gestor dos bens comuns. Uma outra modalidade para gerenciar o abastecimento de água poderia ser  pela comunidade local. Poderia ser a solução para as comunidades no interior rural, acostumadas por tradição administrar comunitariamente os bens coletivos, como cemitério, estradas vicinais, hospital, escola, lazer, etc. Já que nos centros urbanos não vingam as relações comunitárias cabe ao município, ao estado ou à união providenciar também por esse recurso. Sob hipótese nenhuma os grandes mananciais de água, rios lagos, aquíferos subterrâneos deveriam ser passíveis de privatização e seu acesso regido pelas leis do mercado. O Papa alerta para as consequências da privatização da água.

Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares e milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflito deste século. (Laaudto si, 31)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 19 -

A água.

O último pedido de uma agricultor moribundo, por sinal meu padrinho, foi um gole de água fresca. Tomada a água pronunciou suas últimas palavras: “Se não fosse a água boa e fresca”. Esta frase pronunciada ao despedir-se da vida, resume todo o significado universal da água. “Se não fosse a boa e fresca água?” A resposta é taxativa. Inimaginável seria a vida na terra. O filósofo pré Socrático Tales de Mileto, há 2.500 anos passados, não duvidou em afirmar que “o todo é uno”; “o uno é múltiplo” e “a água é o princípio de tudo”. Sobre esses conceitos  construiu o edifício do seu pensamento filosófico.

“Se não fosse a boa e fresca água”, diz o agricultor moribundo. “A água é o princípio de tudo”, completa o filósofo. O senso comum do primeiro e a dedução lógica dos segundo, concluem na essência pela mesma verdade: sem água não há vida. Em outras palavras a água é condição sem a qual a vida não existe nem subsiste. Se as conclusões dos cientistas estão corretas, a vida começou, há bilhões de anos no fundo dos oceanos primordiais. Durante dezenas e centenas de milhões de anos evoluiu confinada nesse ambiente líquido. Na estrutura dos biontes,  dos unicelulares, na maioria das plantas e nos animais em geral, para lá de 90% do peso é água. Os líquidos que neles circulam, distribuem os nutrientes e eliminam os resíduos, são basicamente água. Sem necessidade de descer a detalhes fica evidente e indiscutível o papel da água  na vida na terra. Sem ela ou com seu desaparecimento, a biosfera desapareceria na sua totalidade. A terra passaria à categoria dos outros planetas  desertos e sem vida que orbitam em torno do sol. Concluindo. Sem água não há vida. e a lógica manda acrescentar: da qualidade da água depende a qualidade da vida. Soma-se assim ao papel  da água como condição da vida a qualidade da água como condição para a qualidade da vida. Dispensa-se um esforço mental complicado para concluir que a água como condição de vida e condição de qualidade de vida, é uma necessidade primária e como tal um bem comum. E, em sendo assim, todos, sem exceção tem o direito natural ao acesso à água de qualidade. Apenas para relembrar: o tratamento que se dá a água e sua disponibilidade implica numa questão de ética. Na Encíclica o Papa insiste:

Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse  recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência  das pessoas e, portanto, é condição para o exercício de outros direitos humanos.  Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na sua dignidade inalienável. (Laudato si, 30)

Nessa passagem da Encíclica o Papa aponta questões de fundamental importância quando o assunto é água. Já alertamos que sem água a vida não é possível e, por isso mesmo,  o acesso a ela é um direito de todos. Acontece que o acesso universal à água em si não basta. A água posta à disposição das pessoas precisa ser de qualidade pois, saúde e qualidade da água são sinônimos. Em outras palavras. O nível de saúde de uma população é diretamente proporcional à qualidade da água que bebe. O problema não reside tanto na escassez mas na qualidade da água.

A solução para o drama do abastecimento de água de qualidade é tão urgente quanto complexo. Sendo a água um bem comum e o acesso a ela uma direito natural e universal, a responsabilidade  da solução do problema cabe pela própria natureza ao poder público  e todas as suas instâncias de execução. Acontece que o problema não se resolve oferecendo água tratada à população. Gerenciar a água exige muito mais do que garantir abundância e qualidade. Paralelamente, melhor complementarmente, é preciso evitar, ou pelo menos  controlar e disciplinar os agentes responsáveis pela baixa qualidade da água que em inúmeros casos reduzem as reservas de água disponível a autênticas cloacas. A qualidade  de que falamos não exige  apenas estações de tratamento. A solução começa e se prolonga por todo o trajeto que a água percorre até as estações de tratamento. Relembrando as considerações que fizemos  ao tratarmos do clima, os agentes que então responsabilizamos pela má qualidade do ar, empestam também a água que bebemos. E por essa razão é responsabilidade do atual modelo de produção predatório movido a combustíveis de alto potencial de contaminação do ambiente.

A cultura do descarte vem a ser mais um fator de grande preocupação. Ao descarte em si soma-se a maneira irresponsável como os rejeitos são tratados. Por enquanto a reciclagem não passa de  ações ainda tímidas embora promissoras. Um volume ainda pouco significativo é convertido em adubo orgânico e devolvido à natureza como fertilizante do solo. A prática elementar de separar o lixo seco do orgânico ainda deixa muito a desejar. Centenas de milhares de toneladas de lixo não sortido acumulam-se em gigantescos lixões das cidades e metrópoles. Com a chuva os subprodutos da decomposição dos rejeitos orgânicos espalham-se nas redondezas, infiltram-se no solo afetando plantas, animais e o homem. Pior. Penetrando nas camadas mais profundas do solo contaminam o lençol freático e com isso todas as fontes que dele se alimentam. Um volume provavelmente ainda maior de lixo do que o recolhido aos lixões, é simplesmente jogado fora em terrenos, baldios, sarjetas córregos, arroios e rios. As consequências são óbvias. Empesta esses locais e ambientes  com a proliferação de agentes de transmissão de epidemias. As pessoas obrigadas a viver em tais circunstâncias não tem como se livrar dos efeitos da natureza doente, respirando o ar fétido de uma atmosfera saturada de poluentes. A lógica é implacável. As pessoas que vivem num ambiente doente terminam adoecendo. E nessas circunstâncias há um agravante com efeitos devastadores. Em países do terceiro mundo principalmente e nos em desenvolvimento o saneamento básico, se é que existe, é de uma precariedade gritante. Os rejeitos domésticos terminam no ambiente imediato infestando tudo: o chão, as plantas e a água. Sem acesso a água tratada a população recorre às fontes, córregos, arroios e rios. Uma verdadeira tragédia humana. O Papa adverte: “Este mundo tem uma grave dívida social para  com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicada na dignidade inalienável”. (Laudato si, 30)

Em seguida o Papa chama a atenção ao duplo desafio: o fornecimento de água potável a todas as pessoas e o desperdício da água potável pelos que a ela tem acesso.

Esta dívida (o acesso à água potável) é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento às populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de  desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade. (Laudato si, 30)

Três sinalizações  parecem  relevantes nessa passagem da Encíclica. Em primeiro lugar, as iniciativas e ações que dizem respeito à água tratada extensiva a toda a população. Esse é o drama que aflige em massa os cidadãos dos países subdesenvolvidos, com destaque para a África. Nos países em desenvolvimento os programas públicos de saneamento, embora declarados como prioritários nos discursos em períodos eleitorais, deixam muito a desejar. Nos países desenvolvidos o saneamento básico e com ele o item água está sendo resolvido a contento. Sem dúvida há ainda muito a ser equacionado também no primeiro mundo. Há uma questão complementar à demanda da água potável: a recuperação pela despoluição dos recursos hídricos nas proximidades e nos perímetros das grandes concentrações humanas nos centros urbanos. São Paulo é exemplo. Dois rios, o Pinheiros e o Tietê cortam a cidade mas transformados em autênticas cloacas. Nos complexos urbanos maiores e seus arredores concentram-se pequenos rios, arroios, córregos e fontes, proporcionalmente num estado de degradação semelhante ao Pinheiros ou Tietê.