Fiquemos
apenas com o ecossistema como suporte da biodiversidade, que é a preocupação do
Papa nessa passagem da Encíclica. Há cerca de 15.000 ou 20.000 anos, a
humanidade começou a invadir e interferir nos ecossistemas naturais, a partir
do momento em que os primeiros agricultores começaram a cultivar suas hortas e
plantações. Darcy Ribeiro fala em “Revolução dos Alimentos”, Edward Wilson em
“Primeira Traição à Natureza”. Deixando de lado os dois olhares opostos na
percepção daquele evento histórico e dando, em termos, razão aos dois, foi
naquela transição entre os coletores e caçadores e a agricultura e a
domesticação e criação de animais, que foram dados os primeiros passos na
caminhada sem retorno na invasão e depauperamento dos ecossistemas naturais e
sua biodiversidade.
De
um lado não passa de uma utopia, melhor
de uma irracionalidade pregar o retorno às condições do Neolítico e
condenar a humanidade de volta à barbárie. Do outro lado não passa de cegueira
irresponsável admitir como normal o não enxergar os extremos a que chegou a
invasão e a agressão à natureza. Edward Wilson, do alto de sua competência e
autoridade, estigmatizou a situação como “a segunda traição à natureza”. Na sua
Encíclica o Papa faz eco ao cientista.
O recursos da natureza
estão a ser depredados também por causa
de formas imediatistas de entender a economia e a atividade econômica. A
perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que
poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a
alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes
espécies contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro,
alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental. (Laudato si, 32)
O
Papa continua sua reflexão alertando para o fato de que o desafio ambiental não
se resolve com parâmetros que reduzem os recursos naturais a uma mera utilidade
prática. Servem sim a fins práticos como alimentos, matérias primas a serem industrializadas, medicamentos e
outros. Entretanto os componentes dos ecossistemas, tanto vegetais, quanto
animais, quanto o cenário físico-geográfico, tem um valor em si. São
fundamentais para moldar cosmovisão, a
forma singular como as pessoas percebem a suas existências em circunstâncias
ambientais também singulares. O homem e suas culturas nasceram e se consolidaram numa autêntica simbiose com
contexto natural. Além de assegurar as
demandas da sobrevivência física, a paisagem imprime marcas indeléveis na
psique das pessoas, contribui com símbolos, valores, estímulos religiosos,
inspiração para as artes e saborear o belo. Poderíamos continuar teorizando ao
indefinido sobre esse tema mas o lugar não é aqui. De qualquer forma valem
alguns exemplos. Uma criança que encontrou num floresta, por ex., os brinquedos
e vivências infantis, tende a ser mais meditativa, mais reflexiva, mais silente.
Essa experiência irá acompanhá-la pelo resto da vida. Como que numa memória
atávica fará com que se encontre consigo mesmo na penumbra de um floresta,
envolto pelo silêncio quebrado pela sinfonia e harmonia dos seu sons. No
planalto, na sombra dos pinheirais o Pe. Rambo encontrou seu “paraíso na terra”.
Pinheiros, cabriúvas louros, cedros, canjeranas, carvalhos, incarnam valores, simbolizam virtudes, abrigam mitos,
servem de lugar para cultos. Personalidade como um pinheiro, incorruptível como
a cabriúva, nobre como o louro ou o carvalho, místico ou mítico com o cedro. O
silêncio da floresta é eloquente, as montanhas falam, espíritos misteriosos
povoam os abismos, sentinelas vigiam no alto das montanhas, a brisa sussurra,
as fontes tagarelam, os arroios murmuram. Os ecossistemas, cada qual à sua
maneira fala uma linguagem eloquente. Mesmo que o forasteiro não consiga
decifrar seus códigos ele capta a
melodia que transmitem. O Papa chama a atenção a essa face tão importante da
“casa” em que moramos.
Entretanto, não basta
pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais “recursos” exploráveis,
esquecendo que possuem um valor em si. Anualmente desaparecem milhares de
espécies vegetais e animais, que já não
poderemos conhecer, que nossos
filhos não poderão ver, perdidos para sempre. A grande maioria deles
estingue-se por razões que tem a ver com a atividade humana. Por nossa causa
milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência, nem poderão
comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos o direito de o fazer. (Laudato
si, 33)
O
Papa continua sus reflexões aprofundando
aspectos que merecem destaque quando o assunto é o binômio Ecossistema –
Biodiversidade. As iniciativas e ações em favor do meio ambiente limitam-se não
raro a objetos tópicos. É louvável a cruzada que tenta impedir a caça das baleias,
o empenho em salvar da extinção o mico-leão-dourado, a arara azul, o
lobo-guará, o búfalo americano e outras espécies de maior porte. Embora mereça
todo o apoio, os objetivos são tópicos. Se essas cruzadas visando espécies mais
visíveis, não fizerem parte de uma
política e de uma prática de preservação dos ecossistemas em que vivem, pouco ou nada irão
contribuir para salvar a vida na terra. Reforçando o que já lembramos mais
acima, cada ecossistema é um sistema. Cada espécie viva contribui na medida da importância da função que lhe
cabe no todo. Observando bem, as vedetes
dos preservacionistas não são exatamente as peças mais importantes quando o
equilíbrio da natureza está em jogo. Isso não quer dizer que a extinção não
abra uma lacuna irreparável. Deixa a biodiversidade um pouco mais pobre, mas
não compromete o ecossistema na sua
totalidade. É natural que o espetacular, o que enche os olhos ou encanta os
ouvidos, seja alvo preferencial dos preservacionistas. Um pinheiro impressiona
pelo seu tronco robusto e sua copa majestosa, não pelas raízes que mergulham no solo. O que
empolga e encanta é a biodiversidade
sobre e acima do chão. Acontece
que a biodiversidade condição sem a qual as florestas não se desenvolvem,
viceja nas entranhas do solo. Passa, por assim dizer, despercebida porque a
maior parte dessas espécies são microscópicas e sub microscópicas. Esse micro e
nano universo de seres vivos formam o primeiro elo da cadeia alimentar. Sem ele as macro espécies
são simplesmente impensáveis. É a esse universo que o Papa se refere quando
alerta: “mas para o bom funcionamento dos ecossistemas, são também necessários
os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e variedade
inumerável de micro organismos”, (Laudato se, 34). Esse fantástico universo de seres vivos que torna o solo
fértil, macio e arejado é a maior vítima do abuso das tecnologias de correção e
fertilização artificial.
Entre
as milhares de espécies associadas num
ecossistema há normalmente algumas, por assim dizer, as âncoras na sua sustentação
e expansão. Aproveito para relembrar o papel
insubstituível dos insetos nessa função. Remeto o assunto para as
reflexões acima. Ainda nesse particular um número maior do que se pensa de pássaros são peritos
reflorestadores. Apanham as frutas e frutinhas, comem a polpa e deixam cair as
sementes. Muitas delas descartam as sementes em pleno voo fazendo-as nascer nos
lugares mais impossíveis. Exemplar nesse reflorestamento é a gralha azul. Cada ano nascem milhares de
araucárias nos esconderijos onde ela costuma esconder os pinhões como reserva
de alimentação. Na transição entre os campos naturais e a floresta no sul do
Brasil, a bragatinga faz o papel de conquistadora do campo. As sementes maduras
são arremessadas campo adentro. Germinam e se desenvolvem e na suas sombra
nascem cedros, canjeranas, cabriúvas, guajuíras, seguidas da vegetação
secundária que prospera no cenário da floresta que avança enquanto no subsolo
os micro organismos processam as folhas descartadas, revolvem o solo,
preparando-o para a vegetação que avança, oferecendo abrigo para mamíferos
aves, répteis e anfíbios. A Encíclica chama a atenção que “Alguns répteis pouco
numerosos, que habitualmente nos passam despercebidos, desempenham uma função
censória fundamental para estabelecer o equilíbrio de um lugar”. (Laudato si,
34).
No
momento em que um ecossistema começa a entrar em colapso, a intervenção humana
pode ser necessária para reverter ou pelo menos estagnar o processo, alerta o
Papa. Acontece que a intervenção numa realidade tão complexa, trás consigo seus
riscos. Conhecendo a natureza de tais intervenções, sabe-se diante mão que
existe uma grande probabilidade de agravar a situação em vez de saná-la. “A
emenda fica pior do que soneto”, como
ensina a sabedoria popular. Uma intervenção chama a outra e os ecossistemas
degradam-se cada vez mais. Entra-se num dinâmica sem retorno. “Normalmente cria-se um círculo vicioso, no
qual a intervenção humana, para resolver essa dificuldade agrava muitas vezes
mais a situação”. (Laudato si, 34). O círculo vicioso de que fala o Papa
verifica-se, por exemplo, na extinção ou migração de pássaros que se alimentam
de insetos nocivos às lavouras. A falta deles exige a aplicação de inseticidas
mais poderosos e em maior volume, o que por sua vez aprofunda agrava a invasão
nos ecossistemas. Com as espécies nocivas de insetos outras tantas úteis são
eliminadas. Segue o depauperamento progressivo do solo. Chega-se ao limite em
que uma reversão do processo se torna muito difícil e em casos extremos
impossível. Volto a chamar a atenção para os insetos. A eliminação das abelhas
pelo exagero no uso de agrotóxicos, afeta seriamente a produção e a
produtividade dos pomares. Em casos extremos, como acontece na China, os
pomares de maçãs precisam ser polinizados artificialmente, com enormes custos
de mão de obra, numa tarefa que as abelhas prestam de graça e ainda fornecem
mel e cera. O Papa observa.
São louváveis e, às vezes
admiráveis os esforços dos cientistas e técnicos que
procuram dar solução para os problemas criados pelo ser humano. Mas,
contemplando o mundo, Damo-nos conta de que este nível de intervenção humana,
muitas vezes à serviço da finança e economia, faz com que esta terra onde
vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e
cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e as ofertas de consumo continuam
a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma
beleza insuprível e insuperável por outra criada por nós. (Laudato si, 34)