Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 22 -

Fiquemos apenas com o ecossistema como suporte da biodiversidade, que é a preocupação do Papa nessa passagem da Encíclica. Há cerca de 15.000 ou 20.000 anos, a humanidade começou a invadir e interferir nos ecossistemas naturais, a partir do momento em que os primeiros agricultores começaram a cultivar suas hortas e plantações. Darcy Ribeiro fala em “Revolução dos Alimentos”, Edward Wilson em “Primeira Traição à Natureza”. Deixando de lado os dois olhares opostos na percepção daquele evento histórico e dando, em termos, razão aos dois, foi naquela transição entre os coletores e caçadores e a agricultura e a domesticação e criação de animais, que foram dados os primeiros passos na caminhada sem retorno na invasão e depauperamento dos ecossistemas naturais e sua biodiversidade.

De um lado não passa de uma utopia, melhor  de uma irracionalidade pregar o retorno às condições do Neolítico e condenar a humanidade de volta à barbárie. Do outro lado não passa de cegueira irresponsável admitir como normal o não enxergar os extremos a que chegou a invasão e a agressão à natureza. Edward Wilson, do alto de sua competência e autoridade, estigmatizou a situação como “a segunda traição à natureza”. Na sua Encíclica o Papa faz eco ao cientista.

O recursos da natureza estão a ser depredados também por causa  de formas imediatistas de entender a economia e a atividade econômica. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental. (Laudato si, 32)

O Papa continua sua reflexão alertando para o fato de que o desafio ambiental não se resolve com parâmetros que reduzem os recursos naturais a uma mera utilidade prática. Servem sim a fins práticos como alimentos, matérias primas  a serem industrializadas, medicamentos e outros. Entretanto os componentes dos ecossistemas, tanto vegetais, quanto animais, quanto o cenário físico-geográfico, tem um valor em si. São fundamentais para moldar  cosmovisão, a forma singular como as pessoas percebem a suas existências em circunstâncias ambientais também singulares. O homem e suas culturas nasceram  e se consolidaram numa autêntica simbiose com  contexto natural. Além de assegurar as demandas da sobrevivência física, a paisagem imprime marcas indeléveis na psique das pessoas, contribui com símbolos, valores, estímulos religiosos, inspiração para as artes e saborear o belo. Poderíamos continuar teorizando ao indefinido sobre esse tema mas o lugar não é aqui. De qualquer forma valem alguns exemplos. Uma criança que encontrou num floresta, por ex., os brinquedos e vivências infantis, tende a ser mais meditativa, mais reflexiva, mais silente. Essa experiência irá acompanhá-la pelo resto da vida. Como que numa memória atávica fará com que se encontre consigo mesmo na penumbra de um floresta, envolto pelo silêncio quebrado pela sinfonia e harmonia dos seu sons. No planalto, na sombra dos pinheirais o Pe. Rambo encontrou seu “paraíso na terra”. Pinheiros, cabriúvas louros, cedros, canjeranas, carvalhos, incarnam  valores, simbolizam virtudes, abrigam mitos, servem de lugar para cultos. Personalidade como um pinheiro, incorruptível como a cabriúva, nobre como o louro ou o carvalho, místico ou mítico com o cedro. O silêncio da floresta é eloquente, as montanhas falam, espíritos misteriosos povoam os abismos, sentinelas vigiam no alto das montanhas, a brisa sussurra, as fontes tagarelam, os arroios murmuram. Os ecossistemas, cada qual à sua maneira fala uma linguagem eloquente. Mesmo que o forasteiro não consiga decifrar  seus códigos ele capta a melodia que transmitem. O Papa chama a atenção a essa face tão importante da “casa” em que moramos.

Entretanto, não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais “recursos” exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si. Anualmente desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não  poderemos conhecer, que nossos  filhos não poderão ver, perdidos para sempre. A grande maioria deles estingue-se por razões que tem a ver com a atividade humana. Por nossa causa milhares de espécies já não darão glória a Deus com sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos o direito de o fazer. (Laudato si, 33)

O Papa continua sus reflexões aprofundando  aspectos que merecem destaque quando o assunto é o binômio Ecossistema – Biodiversidade. As iniciativas e ações em favor do meio ambiente limitam-se não raro a objetos tópicos. É louvável a cruzada que tenta impedir a caça das baleias, o empenho em salvar da extinção o mico-leão-dourado, a arara azul, o lobo-guará, o búfalo americano e outras espécies de maior porte. Embora mereça todo o apoio, os objetivos são tópicos. Se essas cruzadas visando espécies mais visíveis,  não fizerem parte de uma política e de uma prática de preservação dos  ecossistemas em que vivem, pouco ou nada irão contribuir para salvar a vida na terra. Reforçando o que já lembramos mais acima, cada ecossistema é um sistema. Cada espécie viva contribui  na medida da importância da função que lhe cabe no todo.  Observando bem, as vedetes dos preservacionistas não são exatamente as peças mais importantes quando o equilíbrio da natureza está em jogo. Isso não quer dizer que a extinção não abra uma lacuna irreparável. Deixa a biodiversidade um pouco mais pobre, mas não  compromete o ecossistema na sua totalidade. É natural que o espetacular, o que enche os olhos ou encanta os ouvidos, seja alvo preferencial dos preservacionistas. Um pinheiro impressiona pelo seu tronco robusto e sua copa majestosa, não  pelas raízes que mergulham no solo. O que empolga e encanta é a biodiversidade  sobre  e acima do chão. Acontece que a biodiversidade condição sem a qual as florestas não se desenvolvem, viceja nas entranhas do solo. Passa, por assim dizer, despercebida porque a maior parte dessas espécies são microscópicas e sub microscópicas. Esse micro e nano universo de seres vivos formam o primeiro elo da  cadeia alimentar. Sem ele as macro espécies são simplesmente impensáveis. É a esse universo que o Papa se refere quando alerta: “mas para o bom funcionamento dos ecossistemas, são também necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e variedade inumerável de micro organismos”, (Laudato se, 34). Esse fantástico  universo de seres vivos que torna o solo fértil, macio e arejado é a maior vítima do abuso das tecnologias de correção e fertilização artificial.

Entre as milhares de espécies associadas  num ecossistema há normalmente algumas, por assim dizer, as âncoras na sua sustentação e expansão. Aproveito para relembrar o papel  insubstituível dos insetos nessa função. Remeto o assunto para as reflexões acima. Ainda nesse particular um número  maior do que se pensa de pássaros são peritos reflorestadores. Apanham as frutas e frutinhas, comem a polpa e deixam cair as sementes. Muitas delas descartam as sementes em pleno voo fazendo-as nascer nos lugares mais impossíveis. Exemplar nesse reflorestamento é  a gralha azul. Cada ano nascem milhares de araucárias nos esconderijos onde ela costuma esconder os pinhões como reserva de alimentação. Na transição entre os campos naturais e a floresta no sul do Brasil, a bragatinga faz o papel de conquistadora do campo. As sementes maduras são arremessadas campo adentro. Germinam e se desenvolvem e na suas sombra nascem cedros, canjeranas, cabriúvas, guajuíras, seguidas da vegetação secundária que prospera no cenário da floresta que avança enquanto no subsolo os micro organismos processam as folhas descartadas, revolvem o solo, preparando-o para a vegetação que avança, oferecendo abrigo para mamíferos aves, répteis e anfíbios. A Encíclica chama a atenção que “Alguns répteis pouco numerosos, que habitualmente nos passam despercebidos, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio de um lugar”. (Laudato si, 34).

No momento em que um ecossistema começa a entrar em colapso, a intervenção humana pode ser necessária para reverter ou pelo menos estagnar o processo, alerta o Papa. Acontece que a intervenção numa realidade tão complexa, trás consigo seus riscos. Conhecendo a natureza de tais intervenções, sabe-se diante mão que existe uma grande probabilidade de agravar a situação em vez de saná-la. “A emenda fica pior do que  soneto”, como ensina a sabedoria popular. Uma intervenção chama a outra e os ecossistemas degradam-se cada vez mais. Entra-se num dinâmica sem retorno.  “Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver essa dificuldade agrava muitas vezes mais a situação”. (Laudato si, 34). O círculo vicioso de que fala o Papa verifica-se, por exemplo, na extinção ou migração de pássaros que se alimentam de insetos nocivos às lavouras. A falta deles exige a aplicação de inseticidas mais poderosos e em maior volume, o que por sua vez aprofunda agrava a invasão nos ecossistemas. Com as espécies nocivas de insetos outras tantas úteis são eliminadas. Segue o depauperamento progressivo do solo. Chega-se ao limite em que uma reversão do processo se torna muito difícil e em casos extremos impossível. Volto a chamar a atenção para os insetos. A eliminação das abelhas pelo exagero no uso de agrotóxicos, afeta seriamente a produção e a produtividade dos pomares. Em casos extremos, como acontece na China, os pomares de maçãs precisam ser polinizados artificialmente, com enormes custos de mão de obra, numa tarefa que as abelhas prestam de graça e ainda fornecem mel e cera. O Papa observa.

São louváveis e, às vezes admiráveis os esforços dos cientistas e técnicos  que  procuram dar solução para os problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, Damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas vezes à serviço da finança e economia, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da  tecnologia e as ofertas de consumo continuam a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e insuperável por outra criada por nós. (Laudato si, 34)



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