Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 21 -

A Biodiversidade

O Papa começa a reflexões sobre Biodiversidade com a observação. “Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial produtiva”. (Laudato si, 32). Salvo melhor entendimento, a observação alerta para um aspecto nas reflexões sobre a natureza que costuma passar um tanto despercebido, melhor, posto em segundo plano. Referimo-nos ao descompasso da noção de tempo com que o homem  trabalha e o  ritmo do tempo em que acontecem os eventos naturais. As civilizações humanas  sobre as quais temos informações razoáveis, não passam dos 15.000, no máximo 20.000 anos. Durante esses 150 ou 200 séculos o homem realizou a transição entre a caça e a coleta para a agricultura e a criação de animais. A partir de tecnologias rudimentares, desenvolveu em alguns milhares de anos um arsenal monumental de ferramentas destinadas a manejo da terra e seus produtos. O ritmo do tempo foi-se acelerando na razão direta da diversificação, multiplicação e especialização das tecnologias e respectivas ferramentas. Os resultados acontecem em intervalos cada mais curtos. O trinômio: eficiência-rapidez-resultados, terminou por moldar as categorias mentais de tempo, que trabalham com limites cronológicos cada vez mais estreitos. Chegamos a um ponto em que a perspectiva do tempo encolheu de tal forma  que o que de fato interessa é “o hoje”. Para o “bárbaro digital, protótipo de homem dominante  da atualidade, o homem contemporâneo vive em função do presente, do aqui e agora” (Caldera, 2004, p. 90).

Depois desse preâmbulo vamos às reflexões sugeridas pelo objeto em pauta: a biodiversidade manipulada pela civilização atual, regida pelos interesses imediatistas. Para começo de conversas. A biodiversidade tem tudo a ver com os ecossistemas. Cada ecossistema é formado por um biodiversidade própria. Em outras palavras. Em cada ecossistema em particular as formas de vida, os macro, micro e nano organismos complementam-se na construção de uma unidade estrutural e funcional, enfim, um sistema. Ludwig von Bertalanffy, autor da Teoria Geral dos Sistemas descreve o significado do conceito.

O  sentido da expressão um tanto mística “o todo é mais que a soma das partes” consiste simplesmente em que as características constitutivas não são explicáveis a partir das características das partes isoladas. As características do complexo, portanto, comparadas às dos elementos, parecem “novas” ou “emergentes” Se, porém, conhecermos o total das partes contidas em sistemas e as relações entre elas, o comportamento do sistema pode ser derivado  do comportamento das partes. Podemos também dizer: enquanto podemos conceber uma soma como sendo composta gradualmente, um sistema, enquanto total de partes com sus inter-relações, tem de ser concebido como constituído instantaneamente. (Bertalanffy, 2009, p. 83)

O ecossistema, não importa o tamanho nem a complexidade, consiste numa unidade  estrutural e funcional. Em se tratando de ecossistemas naturais, dois são os conjuntos de elementos sobre os quais e a partir dos quais são construídos. De um lado são todas as formas de vida que fazem parte e são mutuamente complementares. Do outro lado é o meio físico-geográfico, o habitat, que oferece o chão, o clima e demais realidades naturais não vivas, sobre as quais as diversas formas de vida se desenvolvem. Num ecossistema, mais pobre ou mais rico em biodiversidade realiza-se uma mutualidade finamente calibrada entre todas as categorias e espécies de vida e com o chão sobre o qual prosperam. O sistema assim construído mantém o equilíbrio, sustentado por uma engenhosa cadeia alimentar. Estamos pois, frente a uma cadeia circular de seres vivos interdependentes. Sua base ou, se quisermos, o primeiro elo da cadeia é integrado pelos micro e nano organismos que sintetizam nutrientes via  via autotrófica, isto é, a partir  dos                                                                     minerais disponíveis e, ao mesmo tempo, os deixam em condições físico-químicas para que os vegetais possam aproveitá-los e se desenvolverem. Sobre esse fundamento prospera o segundo elo da cadeia alimentar. Formado essencialmente pelos vegetais que se alimentam dos minerais do solo e pela fotossíntese constroem as suas estruturas. Segue o terceiro elo da cadeia alimentar a cargo dos animais herbívoros que se alimentam de vegetais. O quinto elo, o topo da cadeia alimentar  pertence aos carnívoros. Os carnívoros e os animais que se alimentam de animais em decomposição e seus rejeitos e os reintegram na natureza, representam o elo que fecha a cadeia circular, um circuito fechado. de fina resolução. Qualquer desvio nesse circuito, seja pela razão que for, atrapalha o bom funcionamento do sistema ou em casos extremos sela o seu desmanche.

Essa é essência do sistema natural, do ecossistema, e sua  dinâmica com a vida que nele prospera. À semelhança de um organismo vivo, Betalanffy definiria o ecossistema como um sistema de equilíbrio instável. E outras palavras. O sistema como um todo mantém-se em equilíbrio, enquanto o fluxo de energia que o sustenta flui ininterruptamente tanto na dimensão horizontal, quanto vertical. Mas há um outro aspecto que não pode ser ignorado. Paralelamente ao fluxo de energia vão acontecendo, sob estímulos vindos do meio, alterações estruturais que, por sua vez, induzem a adaptações funcionais. Dito de outra maneira. A dinâmica da evolução não permite que o sistema se torne hermético. Os ecossistemas assemelham-se a caudais em constante movimento, em perpétua renovação, avançando por séculos, milênios e milhares de milénios, sem perder a sua identidade. A ruptura dessa dinâmica, porém, acontece por ocasião de catástrofes de grande porte, impacto de meteoros gigantes, vulcanismo, mudança drástica da temperatura etc. A maior ameaça atual ao equilíbrio e a própria subsistência de ecossistemas vem da parte do homem, com suas tecnologias altamente invasivas, com potencial para desequilibrar ou simplesmente aniquilar grandes ecossistemas. O exemplo mais gritante vem a ser a morte pura e simples do Rio Doce com a inundação de rejeitos da mineração.

Normalmente quando se fala em ecossistema a atenção volta-se para as florestas, campos naturais, savanas, pradarias, costas marítimas e por aí vai. São os macro ecossistemas dos quais depende em última análise, a biosfera como um todo. Dos solos dependem os ecossistemas terrestres que alimentam o homem física, cultural  religiosamente. Num outro contexto mais acima lembramos o papel do solo como condição da vida terrestre. O solo, o chão em que pisamos não passa de um gigantesco e complexo ecossistema formado por milhões de espécies de insetos, moluscos, vermes e uma incontável variação de espécies de micro e nano seres vivos. Em cada grama de solo fértil que pisamos, milhões deles se  encarregam de mantê-lo arejado ao mesmo tempo em que processam os resíduos e os colocam à disposição para dar  partida à circulação da cadeia de alimentos. Quanto a números e volumes remetemos o leitor para as páginas mais acima onde nos ocupamos com esses detalhes.

Até aqui nos preocupamos para entender como é estruturado e como funciona a cadeia de alimentos.  Essa é a metade da questão. A outra metade cabe às circunstâncias físico-geográficas, ao habitat específico em que a vida acontece. É dele em última análise que vem a energia que faz a vida possível e a sustenta. Os nutrientes peculiares a cada situação com o solo, a temperatura, a iluminação, a água, moldam o perfil e  imprimem o ritmo próprio de cada ecossistema. Assim temos a combinação, a simbiose entre a complementariedade sistêmica e o meio físico, do qual depende fundamentalmente a maior  ou menor riqueza da biodiversidade.


Espero que ficou razoavelmente compreensível  como é arquitetado e como funciona na sua complexidade um ecossistema. É oportuno, entretanto, insistir um pouco mais de que estamos lidando com uma realidade finamente calibrada e alta resolução. Num ecossistema como em qualquer outro sistema todos os componentes ocupam um lugar e cumprem uma função. A soma do desempenho de cada elemento faz com que o todo funcione melhor ou pior. Não há peça dispensável. Por mais insignificante que possa parecer vai fazer falta no todo. Funcionando mal interfere na qualidade do desempenho do todo. Sendo válido para um sistema mecânico ou eletrônico, ou qualquer outro aplica-se, em termos e à sua maneira, ao organismo individual  como ao ecossistema, um ente vivo à sua maneira.



This entry was posted on segunda-feira, 23 de outubro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.